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Escola Secundária Antero de Quental

Português – 10º ano

O fio das missangas, de Mia Couto: uma leitura possível

Docente: Adelaide Carreiro


Discente: Maria Batista

PONTA DELGADA
6 de novembro de 2023
O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

A missanga, todas a veem.

Ninguém nota o fio que,


em colar vistoso, vai compondo as missangas.

Também assim é a voz do poeta:


Um fio de silêncio costurando o tempo.

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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

I. Introdução

Bom dia / boa tarde a todos


A minha apreciação crítica vai ser sobre o livro de contos O fio das missangas, de Mia
Couto, publicado pela editora Caminho em 2004.
Para ser honesta /sincera, escolhi este livro por causa do título, sobretudo por duas
razões: em primeiro lugar, porque adoro fazer colares de missangas; em segundo lugar,
porque eu e a minha colega Mariana criámos uma empresa para vender colares de
missangas que fazíamos, bem como outras peças, na feira das Traquitanas.
Na minha opinião, estamos perante um livro fabuloso que se lê com alguma facilidade,
com contos muito curtos, mas com histórias fascinantes, que nos cativam logo nos
parágrafos iniciais. Aconselho vivamente a sua leitura a todos os colegas.

II. O autor e a obra


António Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 1955 na cidade
da Beira, em Moçambique. Adotou o pseudónimo de Mia Couto porque tinha uma
paixão por gatos. É filho de pais portugueses que emigraram para Moçambique em
meados do século XX. Foi jornalista e professor e é, atualmente, biólogo e escritor.
Algumas obras publicadas: Raiz de orvalho (1983), Contos do nascer da terra (1997),
Na berma de nenhuma estrada (1999), Terra sonâmbula (1992), Estórias
abensonhadas (1994), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), O fio
das missangas (2004).
Mia Couto é considerado o grande escritor da atualidade em Moçambique, está
traduzido em várias línguas e é um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal.
Por isso, já foi galardoado com vários prémios pelo conjunto da sua obra, dos quais
destaco o Prémio Camões, em 2013.

III. O Fio das Missangas

A missanga, todas a veem.

Ninguém nota o fio que,

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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

em colar vistoso, vai compondo as missangas.

Também assim é a voz do poeta:


Um fio de silêncio costurando o tempo.

O Fio das Missangas remete para a ideia de que cada conto é comparado a uma jóia rara
que, uma a uma, unidas por um fio (que é a escrita criativa do poeta), originam um colar
com grande valor.
Cada missanga constitui um valor singular e incalculável, pois cada conto tem uma
marca especial e própria. Esta referência ao título do livro vai aparecer por três vezes,
destacando as pessoas (neste caso os poetas) mais importantes para a evolução do
mundo.
O Fio das Missangas, publicado pela editora Caminho, é uma colectânea de vinte e
nove contos, construída como um conjunto de textos a que a metáfora contida no título
dá coesão e unidade.
Cada um destes textos obedece a uma condensação narrativa, por vezes quase sem
história, com poucas personagens, mas cheia de lirismo e de construções metafóricas,
sendo os neologismos criados pelo autor chaves importantes na descodificação da
mensagem.
Na minha opinião, o livro tem três linhas de força, as quais são sugeridas pelas
ilustrações que estão nas capas dos livros: a 1ª refere-se ao universo feminino; a 2ª trata
do realismo mágico; a 3ª aborda o ofício de poeta. Vou apresentar cada uma delas e
exemplificar com alguns contos.

O Universo feminino
Muitos contos denunciam o sofrimento das mulheres moçambicanas, por várias razões:
- sofrem por causa do poder masculino (“Os olhos dos mortos” e “Meia culpa, meia
própria culpa”);
- são consideradas inferiores perante a sociedade (os dois contos citados);
- são vítimas de violência doméstica e/ou de discriminação (os dois contos citados);
- passam, por vezes, de vítimas a agressoras (os dois contos citados).
Em “Meia culpa, meia própria culpa” (a mulher, Maria Metade, mata o marido com um
punhal, à entrada da porta de casa) e em “Os olhos dos mortos” (a mulher mata o

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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

marido Venâncio com um vidro que apanhou de um quadro que estava partido no meio
da sala, enquanto dormia na cama), assistimos às histórias (contadas na 1ª pessoa) duas
mulheres que mataram os maridos, por causa do álcool e porque sofriam de violência
doméstica.

Noutros contos, há a superação desse sofrimento e a exaltação das suas qualidades:


- através do amor, do respeito mútuo, do carinho e do elogio da mulher (“O fio e as
missangas”).
“A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as
missangas…”

“O fio e as missangas”, narra a história de JMC, um homem alto e magro, casado, que
se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres e que devido ao seu enorme
coração era aconselhado pela mãe a continuar a visitá-las. As mulheres, por sua vez, não
lhe resistiam, porque gostavam da forma como eram tratadas: com amor, respeito,
carinho, com elogios, o que não acontecia com os seus maridos. Por isso, ele afirma que
“A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as
missangas…”
Quando regressava, ia primeiro para casa da mãe que lhe dava banho (para que a esposa
não soubesse), contava-lhe as suas aventuras e só depois é que ia para a sua casa.
Após a morte da mãe, deixou de visitar as mulheres e perdeu algumas faculdades, não
conseguindo reconhecer a própria esposa, mas continuando sempre educado e elogioso
para as mulheres, como o comprova o tratamento à sua esposa que não reconhece: “E
você quem é, minha flor?”

O Realismo mágico / sobrenatural (ultrapassa o normal entendimento humano)


Alguns contos têm um certo ambiente de realismo mágico, que se confunde, por vezes,
com as lendas populares de Moçambique:
- rios que engolem casas (“Inundação);
- a capacidade de falar com os mortos (“Inundação);
- mulher transformada em leopardo (“O caçador de ausências”);
- barcos que se remam no ar (“Peixe para Eulália”);
- olhos que saem de suas órbitas (“Peixe para Eulália”).

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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

“Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como
contas de missanga, alinhadas no fio da descrença.”

No conto "Inundação", há um rio (metáfora para a passagem do tempo) que parece ter
vida própria, que inunda tudo e engole casas. Há também peixes e aves (metáforas) que
são as lembranças guardadas desde a infância. Há, ainda, a capacidade da mãe em
chamar os mortos através do canto (o marido que faleceu e deste modo volta a ser feliz).

em “O caçador de ausências”, Florinha transforma-se em leopardo e é reconhecida pelo


narrador através dos seus olhos; salva o narrador de ser morto num assalto.

No conto «Peixe para Eulália», devido à doença da sua amada (Eulália), por causa da
seca que durava há anos, o louco Sinhorito (só Eulália acreditava nele), que era capaz de
tirar e voltar a pôr os olhos, partiu, de forma anormal, num barco em direção ao céu,
com os remos a fazerem de asas, para fazer chover água e peixes, o que acabou por
acontecer. Por isso, o narrador afirma:
“Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como
contas de missanga, alinhadas no fio da descrença (as pessoas normais que muitas
vezes não acreditam ou não querem mudar a forma de estar na vida).”

O ofício de poeta (escreve versos e conta histórias porque não se conforma com a
realidade)
- a fuga à realidade da vida através da escrita (“O menino que escrevia versos”);
- a capacidade de sonhar e de criar novos mundos (“O menino que escrevia versos”);
- a linguagem ao serviço da criação literária (todos os contos).
- neologismos, amálgamas, discurso metafórico, sinestesias, personificações,
ironia…

De que vale ter voz


se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)

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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível

Nestes versos do início do conto "O menino que escrevia versos", já é possível perceber
que o menino não está satisfeito com a sua vida e queixa-se, sobretudo por duas razões:
a primeira razão, pelo facto de falar e não ser ouvido pelos pais nem pelas pessoas que o
rodeiam; a segunda razão, devido à realidade em que vive ser precária e não se
comparar aos seus sonhos e às suas expectativas, que passavam por uma vida diferente
da dos pais.
Na verdade, o menino é filho de um casal com poucas possibilidades económicas, sem
grandes estudos e poucas perspetivas de futuro. A mãe (D. Serafina) é doméstica e o pai
é mecânico. O pai sempre trabalhou na oficina, não quis estudar e considera que o filho
deve seguir a mesma profissão, que já vinha da família. Quando soube que o filho
escrevia versos, quis tirá-lo da escola e mandou-o ao médico para ser visto e não ser a
vergonha da família. O pai queria que o médico fizesse a revisão ao filho como se faz a
um carro (parte mecânica e parte elétrica). A mãe compreendia o filho, mas acatou a
decisão do marido e levou-o ao médico.
Quando o menino diz ao médico que lhe dói a vida, acrescenta que utiliza a escrita para
fugir a essas dores, através do sonho. Assim, para viver tinha de escrever versos, pois os
versos eram pedaços de vida. Passado uma semana, o médico resolveu internar o
menino na sua clínica para que ele lhe lesse os seus versos e o médico pudesse escutar a
voz do menino que ia lendo, através dos versos, o seu próprio coração.

Em suma, as vinte e nove histórias referem-se aos comportamentos da humanidade,


levando o leitor a fazer uma profunda reflexão acerca da existência humana, através do
universo feminino, do realismo mágico e do ofício de poeta. Neste sentido, o autor
considera os poetas, as mulheres e os loucos como iguais, pois são eles que fazem
avançar o mundo com os seus sonhos. Todos são missangas.

Agradeço a vossa atenção e espero que vos tenha despertado interesse e


curiosidade para lerem o livro.
Adeus e até à próxima apresentação

VI. Bibliografia:

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 CHEVALIER, Jean, e Alain Gheerbrant (1994), Dicionário dos Símbolos, Lisboa,


Teorema.

 COUTO, Mia (2022), O Fio das Missangas, Lisboa, Caminho.

 MARTINS, António José Marques (2006), O universo do fantástico na produção


contista de Mia Couto: potencialidade de leitura em alunos do Ensino Básico.
Dissertação de Mestrado – Vila Real, UTAD, disponível em:
http://www.google.pt/url?sa=t&source=web&cd=2&ved=0CCEQFjAB&url=https%3A
%2F%2Frepositorio.utad.pt%2Fbitstream
%2F10348%2F36%2F1%2Fmsc_ajmmartins_vol1.pdf&ei=bViOTeinM4qahQeopuy7D
g&usg=AFQjCNE7z1shphilEiCR-RgGIDIGkxttTQ (01-11-2023).

 ROBLÉS, Ana Paula dos Reis Alves (2007), O fantástico e o maravilhoso na narrativa
de Mia Couto. Dissertação de Mestrado – University of South Africa, disponível em:
http://www.google.pt/url?sa=t&source=web&cd=2&ved=0CB4QFjAB&url=http%3A
%2F%2Fuir.unisa.ac.za%2Fbitstream%2Fhandle
%2F10500%2F2280%2Fdissertation.pdf%3Fsequence
%3D1&ei=CYmOTf_FENODhQeOvui7Dg&usg=AFQjCNERXh6-
BH3wU1C4XMIQ0M9V3CxUrQ (30-10-2023).

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