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PONTA DELGADA
6 de novembro de 2023
O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
I. Introdução
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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
O Fio das Missangas remete para a ideia de que cada conto é comparado a uma jóia rara
que, uma a uma, unidas por um fio (que é a escrita criativa do poeta), originam um colar
com grande valor.
Cada missanga constitui um valor singular e incalculável, pois cada conto tem uma
marca especial e própria. Esta referência ao título do livro vai aparecer por três vezes,
destacando as pessoas (neste caso os poetas) mais importantes para a evolução do
mundo.
O Fio das Missangas, publicado pela editora Caminho, é uma colectânea de vinte e
nove contos, construída como um conjunto de textos a que a metáfora contida no título
dá coesão e unidade.
Cada um destes textos obedece a uma condensação narrativa, por vezes quase sem
história, com poucas personagens, mas cheia de lirismo e de construções metafóricas,
sendo os neologismos criados pelo autor chaves importantes na descodificação da
mensagem.
Na minha opinião, o livro tem três linhas de força, as quais são sugeridas pelas
ilustrações que estão nas capas dos livros: a 1ª refere-se ao universo feminino; a 2ª trata
do realismo mágico; a 3ª aborda o ofício de poeta. Vou apresentar cada uma delas e
exemplificar com alguns contos.
O Universo feminino
Muitos contos denunciam o sofrimento das mulheres moçambicanas, por várias razões:
- sofrem por causa do poder masculino (“Os olhos dos mortos” e “Meia culpa, meia
própria culpa”);
- são consideradas inferiores perante a sociedade (os dois contos citados);
- são vítimas de violência doméstica e/ou de discriminação (os dois contos citados);
- passam, por vezes, de vítimas a agressoras (os dois contos citados).
Em “Meia culpa, meia própria culpa” (a mulher, Maria Metade, mata o marido com um
punhal, à entrada da porta de casa) e em “Os olhos dos mortos” (a mulher mata o
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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
marido Venâncio com um vidro que apanhou de um quadro que estava partido no meio
da sala, enquanto dormia na cama), assistimos às histórias (contadas na 1ª pessoa) duas
mulheres que mataram os maridos, por causa do álcool e porque sofriam de violência
doméstica.
“O fio e as missangas”, narra a história de JMC, um homem alto e magro, casado, que
se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres e que devido ao seu enorme
coração era aconselhado pela mãe a continuar a visitá-las. As mulheres, por sua vez, não
lhe resistiam, porque gostavam da forma como eram tratadas: com amor, respeito,
carinho, com elogios, o que não acontecia com os seus maridos. Por isso, ele afirma que
“A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as
missangas…”
Quando regressava, ia primeiro para casa da mãe que lhe dava banho (para que a esposa
não soubesse), contava-lhe as suas aventuras e só depois é que ia para a sua casa.
Após a morte da mãe, deixou de visitar as mulheres e perdeu algumas faculdades, não
conseguindo reconhecer a própria esposa, mas continuando sempre educado e elogioso
para as mulheres, como o comprova o tratamento à sua esposa que não reconhece: “E
você quem é, minha flor?”
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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
“Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como
contas de missanga, alinhadas no fio da descrença.”
No conto "Inundação", há um rio (metáfora para a passagem do tempo) que parece ter
vida própria, que inunda tudo e engole casas. Há também peixes e aves (metáforas) que
são as lembranças guardadas desde a infância. Há, ainda, a capacidade da mãe em
chamar os mortos através do canto (o marido que faleceu e deste modo volta a ser feliz).
No conto «Peixe para Eulália», devido à doença da sua amada (Eulália), por causa da
seca que durava há anos, o louco Sinhorito (só Eulália acreditava nele), que era capaz de
tirar e voltar a pôr os olhos, partiu, de forma anormal, num barco em direção ao céu,
com os remos a fazerem de asas, para fazer chover água e peixes, o que acabou por
acontecer. Por isso, o narrador afirma:
“Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como
contas de missanga, alinhadas no fio da descrença (as pessoas normais que muitas
vezes não acreditam ou não querem mudar a forma de estar na vida).”
O ofício de poeta (escreve versos e conta histórias porque não se conforma com a
realidade)
- a fuga à realidade da vida através da escrita (“O menino que escrevia versos”);
- a capacidade de sonhar e de criar novos mundos (“O menino que escrevia versos”);
- a linguagem ao serviço da criação literária (todos os contos).
- neologismos, amálgamas, discurso metafórico, sinestesias, personificações,
ironia…
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O fio das missangas, de Mia Couto: Uma leitura possível
Nestes versos do início do conto "O menino que escrevia versos", já é possível perceber
que o menino não está satisfeito com a sua vida e queixa-se, sobretudo por duas razões:
a primeira razão, pelo facto de falar e não ser ouvido pelos pais nem pelas pessoas que o
rodeiam; a segunda razão, devido à realidade em que vive ser precária e não se
comparar aos seus sonhos e às suas expectativas, que passavam por uma vida diferente
da dos pais.
Na verdade, o menino é filho de um casal com poucas possibilidades económicas, sem
grandes estudos e poucas perspetivas de futuro. A mãe (D. Serafina) é doméstica e o pai
é mecânico. O pai sempre trabalhou na oficina, não quis estudar e considera que o filho
deve seguir a mesma profissão, que já vinha da família. Quando soube que o filho
escrevia versos, quis tirá-lo da escola e mandou-o ao médico para ser visto e não ser a
vergonha da família. O pai queria que o médico fizesse a revisão ao filho como se faz a
um carro (parte mecânica e parte elétrica). A mãe compreendia o filho, mas acatou a
decisão do marido e levou-o ao médico.
Quando o menino diz ao médico que lhe dói a vida, acrescenta que utiliza a escrita para
fugir a essas dores, através do sonho. Assim, para viver tinha de escrever versos, pois os
versos eram pedaços de vida. Passado uma semana, o médico resolveu internar o
menino na sua clínica para que ele lhe lesse os seus versos e o médico pudesse escutar a
voz do menino que ia lendo, através dos versos, o seu próprio coração.
VI. Bibliografia:
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ROBLÉS, Ana Paula dos Reis Alves (2007), O fantástico e o maravilhoso na narrativa
de Mia Couto. Dissertação de Mestrado – University of South Africa, disponível em:
http://www.google.pt/url?sa=t&source=web&cd=2&ved=0CB4QFjAB&url=http%3A
%2F%2Fuir.unisa.ac.za%2Fbitstream%2Fhandle
%2F10500%2F2280%2Fdissertation.pdf%3Fsequence
%3D1&ei=CYmOTf_FENODhQeOvui7Dg&usg=AFQjCNERXh6-
BH3wU1C4XMIQ0M9V3CxUrQ (30-10-2023).