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Fé e computação: Irmã Mary Kenneth Keller

(Imagem: Domínio Público)

Vida antes da computação:


Mary Kenneth Keller nasceu em 1913 na cidade de Cleveland nos Estados Unidos,
sendo Evelyn Marie Keller seu nome de nascença, filha de John Keller e Catherine Sullivan
Keller que possuíam quatro filhos. Mary foi a segunda filha do casal, tendo como irmão mais
velho Ralph L. Keller, irmã mais nova Ruth Catherine Keller Peters e o irmão caçula John
Franklin Keller, seu pai nasceu em Nova Iorque e trabalhou como gravador em litografia, e
sua mãe nasceu em Ohio e era filha de imigrantes irlandeses, ambos frequentaram a escola
até a oitava série [10].
Na sua vida estudantil sempre frequentou colégios religiosos como a Escola
Primária Católica St. Philip Neri em Cleveland, ministrada pelas Irmãs da Humildade de
Maria (CHMs), a Escola Primária Católica St. Gertrude em Chicago, ministrada pelas irmãs
BVM e a The Immaculata High School, onde se mostrou muito ativa, participando das
atividades extracurriculares, como o clube de braille, banda, basquetebol, orquestra, equipe
de notícias, presidência social e promotoria [16].
(Imagem: Domínio Público) Carta escrita pela Irmã Kenneth informando que sua entrada no
convento foi adiada devido a situação financeira de sua família.

Em 1932, Mary Jerellen Tangney escreveu que os últimos dois anos de ensino médio da
Irmã Kenneth foram difíceis devido à doença na família e responsabilidade adicional em
casa. A família Keller sofreu severamente com a depressão e problemas financeiros, tanto
que a Irmã Kenneth teve de adiar sua entrada ao convento [23], sendo realizada
posteriormente em 1932 com auxílio das Irmãs Imaculada nas despesas. [10] Ela foi
formalmente recebida em 1933, e então que seu nome foi alterado de Evelyn para Kenneth.
Após 2 anos, em 1935, a Irmã realizou seus primeiros votos religiosos e iniciou sua carreira
de docente, sendo designada para trabalhar os próximos 29 anos com educação primária e
secundária. Conquistando seu bacharel em Ciências Matemáticas, com especialização em
latim em 1943. [15]

Início e carreira na computação:


Sua vontade por computação surgiu após ler “Signs of the times” e já em 1961
estava se matriculando no Dartmouth College em Hanover, para seu primeiro workshop em
educação em computação [15], que embora alguns programas de pós-graduação tivessem
um pequeno número de mulheres, a presença feminina ainda era de certa forma incomum e
o fato de ser uma freira vestida dos pés a cabeça, deixava o momento mais único. Como a
própria Irmã disse: “Um dia saí para ver um computador e nunca mais voltei… Pareceu-me
que o computador seria a ferramenta mais revolucionária para fazer matemática que eu
poderia obter.” [24]. E indo na contramão de muitos relatórios que falaram que a Irmã
Kenneth foi uma das criadoras do BASIC durante seu workshop, Kurtz escreve que a irmã
“não teve absolutamente nada a ver com a criação da linguagem de computador BASIC”
[24], que foi lançada em 1964.
Em certo momento, Mary Benedict Phelan, presidente do Clarke College, percebe
que seria de suma importância os alunos estarem preparados para a era da informação,
então o ideal seria uma irmã para liderar. Com isso a irmã terminou seu doutorado e se
preparou para esse novo trabalho [4, 28].
A Irmã Kenneth foi apoiada por uma bolsa de estudos da National Science
Foundation e depois por uma bolsa universitária, onde escreveu a dissertação de sua tese
"Inductive Inference on Computer Generated Patterns", com a ideia de gerar
automaticamente a n-ésima expressão matemática em uma série, dadas as primeiras k
expressões [19]. Então após 29 anos de primário e secundário, e mais 33 anos de ensino
universitário, completou seu ensino formal aos 51 anos.
Quando começou a trabalhar no Clark College, seu pensamento era o
seguinte:"Automação, ou mais precisamente, cibernética, é um fato de nossas vidas. Seu
impacto é rápido e em muitos aspectos silencioso. Nosso senso de responsabilidade deve
nos fazer desejar ser informados e informar nossos alunos. Além disso, o computador pode
dar uma nova dimensão à educação que oferecemos." [21]. E não era apenas a Irmã
Kenneth que via o computador como um item de suma importância, Mary Benedict também
observou isso, assim instalando seu primeiro computador dentro da universidade. A
máquina em questão era um IBM 1130 que possuía 8k de memória, instalado com leitor de
fita papel em 1966 e atualizado para permitir a entrada de cartão perfurado em 1969 [22].
A Irmã Kenneth era vista como uma professora e comunicadora muito talentosa e
exigente, que utilizava o humor como método de ensino. Porém, em 1973, migrou do ensino
para a administração. E em 1977, a universidade fundiu o Departamento de Economia /
Ciência da Administração no Departamento de Ciência da Computação para formar o
Departamento de Ciências da Computação e Gestão, a irmã explicou que grande parte dos
alunos que estavam se formando iam para as áreas de negócio e industria, e ela gostaria
de formar um programa de mulheres em administração para integrar as disciplinas [17],
assim dobrando o corpo docente de 2 para 4 [5].

(Imagem: Domínio Público)


Serviços à comunidade:
No final da década de 60 a irmã Keller tornou-se especialista em Hardware, software
e aplicações relacionadas a computadores. Desde então ela passou a ser muito procurada
por empresas e o governo local para ajudar na resolução de problemas e consultorias que
eram relacionados com a sua especialidade. Dessa maneira, ela fez seminários para
empresas, indústrias e até para a comunidade financeira local, prestou consultoria para a
cidade de Dubuque e o "Mercy Hospital" e várias outras empresas[15]. As pessoas diziam
que eles ligavam e ela resolvia os problemas[4].
Toda essa experiência e networking que a irmã Mary Keller criou ajudou muito a
Universidade de Clarke, que recebeu uma doação de um IBM-360-40 com um contrato para
desenvolver software para ​John Deere Dubuque Works[18]. Além disso, graças a todo esse
trabalho, as pessoas diziam que ela montou quase sozinha o laboratório de informática só
dando palestras em faculdades e universidades, conferências, almoços e jantares,
convenções e qualquer oportunidade que aparecesse de público que ela pudesse alcançar
e receber por isso[8].
Algo interessante era que nestas palestras a irmã sempre dava uma grande ênfase
na ética dentro da computação. Ela sempre dizia que os computadores deveriam ser
usados para abrir novos horizontes e não substituir os trabalhos atuais[3].

Sua filosofia na computação:


A irmã Keller via o computador como um grande processador de ideias para textos e
que já deveria ser usada no ensino da quarta série. Um ponto interessante que ela defendia
muito era que o computador não precisava ser usada apenas em problemas matemáticos,
como ela dizia:

"Claro que é algo matemático, mas, por favor, não pense que é apenas uma
máquina de somar ou uma super régua de cálculo."[10]

Ela estava ciente de que existiam medos e esperanças com relação à crescente da
computação. Medo de empregos deixarem de existir com os computadores ou da ajuda que
as máquinas podiam trazer nas produções, segurança e decisões da humanidade. Porém,
ela defendia a ideia de que mesmo que a gente tenha esperança de que o computador
possa ajudar a humanidade, precisamos ter um bom senso de responsabilidade pois "nem
sempre o homem usou bem suas invenções".[20]
Mesmo com esses temores e preocupações que podiam existir com o uso de
computadores, a irmã Keller ainda tentava trazer e falar como os computadores tinham
potencial para serem máquinas de ensino, bibliotecas para recuperação de informações,
auxílio na redução das tarefas administrativas monótonas e até na tradução de línguas
estrangeiras.
Para a irmã Mary, com a computação ajudando na educação os professores teriam
mais tempo para ter um contato mais humano e próximo dos alunos e seus colegas
professores. Para ela, todo aluno de ensino médio já deveria ser capaz de programar um
computador e saber como funcionam os sistemas binários internos que estão presentes
dentro de um computador. A ideia da irmã era de que todo cidadão tinha o direito de ter o
conhecimento proporcional a sua capacidade e sem a computação acessível a todos,
estaríamos trazendo uma visão distorcida e não permitindo que todos chegassem em sua
capacidade total.

A irmã Mary Keller em uma conferência na Universidade de Clarke sobre Hospital e


Aplicações Médicas de Computadores. Créditos: Clarke University Archives.

Curiosidades sobre sua vida:


Algumas das curiosidades que pessoas próximas contaram sobre a Irmã Mary era
de que mesmo ela tendo um forte senso de independência, ela nunca aprendeu a dirigir um
carro, porém ela era confiante nas suas habilidades e se recusava a ser intimidada. Ela
também não tinha vergonha de contar histórias sobre seus momentos embaraçosos e
engraçados, como na vez em que ela se trancou para fora do seu quarto de hotel no meio
da noite. Falam muito também de como a Irmã Keller era generosa mesmo sendo
econômica com seus recursos, ajudando qualquer alunos ou pessoa que precisasse de
ajuda financeira de maneira rápida e discreta. Ela também guardou um dinheiro para
realizarem uma festa após o seu falecimento, mas para a infelicidade de alguns amigos
próximos, uma das irmãs pegou esse dinheiro para colocar em um fundo.[2]
No seu tempo livre a irmã Mary tinha como hobby estudar outros idiomas, ela sabia
ler em francês, alemão, italiano e russo.[6] Outra paixão eram as peças de teatro, onde
além de amar assistir ela também chegou a atuar uma vez em uma peça. Existia também
um grande interesse em filmes e isso influenciou ela a se interessar pelo jogo "Alpha
Centauri". A irmã Mary gostava também de música clássica, além de dançar e tocar violino.
Uma das coisas que a Irmã Mary fazia que mostrava seu bom humor apurado era
nas várias vezes em que ela recebia ligações do país inteiro oferecendo vagas de emprego.
Durante a ligação, ela esperava calmamente as pessoas contarem e explicarem todos os
detalhes da vaga para no final ela dizer: "Sabe, eu não poderia aceitar um salário desde que
fiz o voto de pobreza".[25]
A vida espiritual da irmã Keller trazia uma missão muito clara para a sua vida. Dentro
do seu escritório existia uma placa com os dizeres: “Minha vida é uma contínua mudança de
consciência da vontade de Deus para mim”. Ela sempre carregava um manuscrito do
versículo de Eclesiastes 3:1-2: “Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito
debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que
se plantou,".

Últimos dias da Irmã Keller:

A irmã Keller nos últimos dias de vida viveu em Mount Carmel, na casa-mãe de
Dubuque, onde recebeu cuidados paliativos [10]. Mesmo estando no final da sua vida ela
ainda possuía um computador em seu quarto [7], onde continuava a trabalhar e até mesmo
dar aulas a outras irmãs que moravam junto com ela. [14]
A irmã Catherine Dunn conta ainda como a irmã Keller ainda sentia que tinha muito
trabalho a fazer ainda e não queria morrer. Mas infelizmente ela veio a falecer no dia 10 de
janeiro de 1985, sendo enterrada em Mount Carmel. Sua lápide é compartilhada com outra
irmã e possui as 3 datas mais importantes na vida da irmã: seu nascimento, sua
consagração e entrada na BVM sister e sua morte.[10]

A lápide compartilhada de Mary Keller em Mount Carmel, Dubuque, Iowa. Photo: T.J. O’Leary
Referências

[1] ALVES, Lara Kimbely. Mary Kenneth Keller. 9 de Julho de 2020. Disponível em:
<https://projetolua.ifce.edu.br/encyclopedia/mary-kenneth-keller/>

[2] BLITGEN, Carol. BVM. Conference call, July 2, 2019.

[3] BYRNE James. Expert urges computer familiarity. Chicago Sun Times, January 17, 1966.

[4] CAFFERY, Mary Louise BVM. Conference call, July 2, 2019.


[5] Clarke College receives a $206,676 National Science Foundation grant. Clarke College
Computer Sciences Department Newsletter, Summer 1980.

[6] Clarke College. Draft of news release regarding new computer science minor
concentration, BVM and Clarke University files, Dubuque, Iowa, 1965.

[7] DUNN, Catherine, BVM. Conference call, July 2, 2019.

[8] Doris Walsh, BVM. Kenneth Keller, BVM, 1913-85. still being quoted. BVM Newsletter,
39(1), October/November 2003.

[9] GNIPPER, Patrícia. Mulheres Históricas: Irmã Mary Kenneth Keller, pioneira na ciência
da computação. 21 de Julho de 2016. Disponível em:
<https://canaltech.com.br/internet/mulheres-historicas-irma-mary-kenneth-keller-pioneira-na-
ciencia-da-computacao-74111/>

[10] HEAD, Jennifer. Mary Kenneth Keller: First US PhD in Computer Science. University of
Maryland. dia 2 de agosto de 2022. Disponível em:
<https://deepai.org/publication/mary-kenneth-keller-first-us-phd-in-computer-science>.

[11] MACKE, Robbert. Religious Scientists: Sr. Mary Kenneth Keller B.V.M. (1913-1985) –
Computer Science. 29 de dezembro de 2019. Disponível em:
<https://www.vaticanobservatory.org/sacred-space-astronomy/religious-scientists-sr-mary-ke
nneth-keller-b-v-m-1913-1985-computer-science/>

[12] RYAN, Maeve. Sister Mary Kenneth Keller (PhD, 1965): The first PhD in computer
science in the US. 18 de março de 2018. Disponível em:
<https://www.cs.wisc.edu/2019/03/18/2759/>

[13] FOX Bertha M. BVM. Conference call, July 2, 2019.

[14] Karen Walsh. Older nuns learn new tricks on computers. Dubuque Telegraph Herald,
April 9, 1984.

[15] KELLER Mary Kenneth, BVM. Resume, chronology, and transcripts, BVM and Clarke
University files, Dubuque, Iowa.
[16] Ruth Tangney. National distinction for Immaculata Braille Club. The Immaculata News,
4, November 1930.

[17] Sister Mary Kenneth Keller. Memorandum to Father Dennis Zusy, Chairperson of Clarke
College Academic Affairs Committee, proposing Department of Computer and Management
Sciences. Clarke University files, October 21, 1977.

[18] Sister Mary Kenneth Keller and David P. Hopley. Technical Services Agreement
between John Deere Dubuque Works and Clarke College. Clarke University files, November
29, 1979.

[19] Sister Mary Kenneth Keller, BVM. Inductive Inference on Computer Generated Patterns.
PhD thesis, PhD dissertation in Computer Sciences, University of Wisconsin, Madison, WI,
June 1965.

[20] Sister Mary Kenneth. Man and machine – in that order. BVM Vista, pages 24–25,
December 1964.

[21] Sister Mary Michail, BVM. Clarke computers, cybernetics. BVM Vista, pages 26–28,
March 1966.

[22] Sister Mary Kenneth Keller memorial symposium timeline, BVM and Clarke University
files, Dubuque, Iowa, 1985.

[23] Sister Mary Jerellen Tangney. Letter to Mother Mary Gervase Tuffy, BVM, August 28,
1932.

[24] Thomas Kurtz. Private communication: email January 11, 2019.

[25]The nun and the computer. Dubuque Telegraph-Herald, October 3, 1965.


Biografia dos autores:

Samuel Leal Valentin. Estudante de Bacharelado


em Sistemas de Informação na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). No seu
tempo livre gosta de tocar guitarra, fazer trabalhos
voluntários pela igreja, jogar no computador e
acompanhar o Flamengo. Desenvolvedor de
plataformas usando Laravel e php e brincando
com Python na faculdade.

Vitor Neis da Silva. Graduando em Bacharelado


de Sistemas de Informação na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Desenvolvedor web e apaixonado pelo Santos
Futebol Clube, jogos eletrônicos e séries
televisivas.

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