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“As crianças estão se sentindo importantes”:

avanços na Alimentação Escolar a partir da lei 11.947/2009 e da


compra da Agricultura Familiar1
Mariana Oliveira Ramos2
ONG ANAMA – Ação Nascente Maquiné
marianaoliveiraramos@gmail.com

Resumo

Criado em 1955, o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) atende cerca de 47milhões de
crianças, jovens e adultos, das redes públicas e filantrópicas de ensino no Brasil, desde a Educação
Infantil até a Educação de Jovens e Adultos. É uma política estrutural da Segurança Alimentar e
Nutricional no país, aproximando questões de saúde coletiva - na qualidade da refeição oferecida, a
estratégias de desenvolvimento rural - ao promover a compra da Agricultura Familiar (AF),
preferencialmente local e agroecológica (estipulada pela lei 11.947/2009). O objetivo deste artigo é
apontar elementos de estudo sobre Alimentação Escolar e AF, a partir do relato de experiências
profissionais desenvolvidas no Litoral Norte do RS nos últimos cinco anos. Três dimensões da PNAE
foram debatidas: cardápios escolares saudáveis, compras da agricultura familiar e o papel de
professoras e merendeiras na educação alimentar das crianças. Destacam-se mudanças nos
cardápios escolares a partir da compra da agricultura familiar, com o aumento na oferta de alimentos
frescos e locais. Alguns desafios das “novas relações” entre agricultores e escolas. Novas
perspectivas no rural a partir da organização de grupos de agricultores e da consolidação do mercado
institucional para a AF. Por fim, destaca-se o papel de merendeiras e professoras na formação de
crianças que crescerão com o gosto por alimentos de sua região; acompanharão mais de perto os
ciclos agrícolas; terão mais respeito e orgulho de serem parentes ou amigas de agricultores/as, que
produzem sua merenda – gostosa e nutritiva. Todos avanços observados a partir das compras da AF.

Palavras-chave: alimentação saudável, alimentação escolar, agricultura familiar.

Abstract

Initiated in 1955, the School Meals Program reaches about 47milion children and adults, from all
public schools, since kindergarden till Adult’s Education. It is an important Food Security program in
Brazil, putting together public health and development matters, since it worries about serving quality
meals and has to buy at least 30% of the food from Family Farmers, especially from those who
produce in the same town of the schools and in an organic way. The goal of this paper is to point out
subjects of study about School Meals Program in Brazil and Family Farming. It is written since the last
five years of work experience with these subjects, in the Northern Shore of Rio Grande do Sul. Three
dimensions of the Program were discussed: healthy school meals, the process of buying from Family
Farmers and the role of teachers and school cooks in educating the taste of the scholars. Changes in
school meals since the acquisition of family farmers’ products were pointed out: more fresh food is
arriving at schools now. Challenges about the relationship between farmers and schools were
registered. To the farmers, new perspectives are arising as long as the governmental market
strengthen to them and they are assisted in forming new groups and organizations. At last, the role of
teachers and cooks at the education of children that will grow up with a taste to the food that their

1
Artigo escrito para Revista Trajetória - Multicursos da Faculdade Cenecista de Osório, referente à oficina de
estudos sobre o tema da Alimentação Escolar e Agricultura Familiar durante o XV Fórum Internacional de
Educação, 1 a 3/agosto/2011, cuja temática central será “Identidade: interação e saberes”.
2
Nutricionista (UFSC), mestre em Desenvolvimento Rural (UFRGS), é técnica da ONG Ação Nascente
Maquiné, desenvolvendo projetos voltados à agricultura familiar e agroecologia.
region produce, that will know closer the agriculture cicles and that will respect and be more proud of
their relatives and friends, family farmers, that produce their school meals – tasty and nutritious.

Key-words: healthy food, School Meals Program, Family Farming

Introdução

A importância de uma alimentação saudável para o desenvolvimento das crianças e


para a qualidade de vida em geral é cada vez mais reconhecida. Todavia, é
crescente o número de pessoas que sofrem de doenças relacionadas a maus
hábitos alimentares. Doenças como diabetes, hipertensão, problemas
cardiovasculares, alergias alimentares, sobrepeso, depressão, osteoporose, dentre
outras, são cada vez mais presentes e estão relacionadas a uma alimentação
industrializada e sem referência local. Muitas dessas doenças, antes comuns
somente em adultos, acometem hoje muitas crianças e jovens, tanto na cidade
quanto no campo, e chamam a atenção dos profissionais na escola.

Como movimento predominante (mas não único) observa-se a globalização de um


padrão alimentar caracterizado por um aumento no consumo de alimentos
industrializados e por uma redução no consumo de alimentos frescos e regionais
(DIEZ GARCIA, 2003, p. 484). No caso do Brasil, Mondini e Monteiro (1994)
demonstraram a substituição da banha, toucinho e manteiga por óleos e margarinas,
uma redução no consumo de tubérculos (como a mandioca, a batata doce e os
carás), de cereais e de feijão, assim como o aumento no consumo de laticínios
(industrializados em grande diversidade de produtos, mas com a mesma matéria-
prima).

Tais estudos demonstram que as mudanças na alimentação, no sentido de preferir


alimentos industrializados, práticos e padronizados, estão relacionadas com a
modernização e industrialização da produção agropecuária, iniciadas nos anos 70,
quando houve um grande investimento e esforço por parte do governo nacional para
que ocorresse a modernização da agricultura brasileira. Nesse período, o pacote
tecnológico de produção convencional de alimentos foi importado e disseminado
pelas comunidades rurais através da extensão rural oficial. Os técnicos de campo
passaram a ensinar os agricultores a plantar usando sementes híbridas, tratores,
adubos sintéticos e agrotóxicos, cultivando maiores extensões de terra com um
único alimento. Ao incentivar as monoculturas, o governo buscava maior
produtividade, liberação de mão de obra do campo para as nascentes indústrias nas
cidades e excedentes de alguns alimentos que interessavam para a exportação
(como é o caso da soja hoje, que ocupa grandes extensões de terra no Brasil, ainda
que não atenda às necessidades alimentares e nutricionais da população brasileira).

A modernização da agricultura é conhecida como Revolução Verde, titulo que


carrega um pouco de ironia, pois os impactos ambientais e sociais deste processo
de mudanças no campo foram e ainda são enormes: desde a contaminação de
águas e solos com metais pesados e substâncias com alto poder cumulativo até o
massivo êxodo rural, que transformou a distribuição demográfica no Brasil: até 1970
a maior parte de sua população morava no meio rural; a partir desta década
somente um pouco mais de 20% do total da população brasileira vive no interior –
nas pequenas cidades e comunidades rurais.

Enquanto a agricultura era modernizada em busca de maior produtividade (com


altos custos sociais e ambientais) a comida foi sendo cada vez mais industrializada e
padronizada, perdendo muitos nutrientes (especialmente fibras, vitaminas e
minerais) ao mesmo tempo em que aumentava o teor de gordura, sal, açúcar,
toxinas e substâncias prejudiciais à saúde presentes nos alimentos: resíduos de
agrotóxicos e de drogas veterinárias, corantes, aromatizantes, conservantes, outros
aditivos químicos e embalagens excessivas e de material inadequado (como o
plástico e o alumínio).

No campo da saúde coletiva ocorreu no Brasil, assim como em outros países do


mundo, um processo de “transição nutricional”, no qual a quantidade de pessoas
com sobrepeso cresceu, vindo a superar o número de pessoas desnutridas (FILHO;
RISSIN, 2003). Ainda que a redução na desnutrição deva ser entendida como um
avanço, a qualidade dos alimentos disponibilizados desde então vem diminuindo,
favorecendo o aumento do sobrepeso e da obesidade, bem como das doenças
carenciais, ocasionadas pela deficiência de um ou mais nutrientes. A anemia por
deficiência de ferro é uma das doenças carenciais mais perigosas e de maior
ocorrência entre as crianças brasileiras. Alimentos como feijões, carnes, frutas e
hortaliças frescas podem estar em falta na alimentação de muitas delas.
As crianças são mais sensíveis a alguns compostos químicos como os agrotóxicos e
outros presentes nos alimentos industrializados. Por isso, muitas doenças alérgicas,
a baixa imunidade, assim como hiperatividade, irritabilidade e dificuldades de
concentração e aprendizagem, comuns entre as crianças de hoje, podem estar
relacionadas à presença destes compostos tóxicos e à falta de vitaminas, minerais,
fibras e vitalidade na sua alimentação.

Por todo o descrito, enfatiza-se que uma alimentação saudável depende de uma
agricultura saudável. A agricultura moderna (monocultora, empresarial) é um fator de
adoecimento e de degradação ambiental. Nesse sentido, a Alimentação Escolar tem
servido como exemplo e prática de caminhos para a construção de cardápios
saudáveis e sustentáveis, aproximando questões de saúde coletiva - na qualidade
da refeição oferecida ao escolar, a estratégias de desenvolvimento rural - ao
promover a compra da Agricultura Familiar, preferencialmente local e agroecológica.
Historicamente, a Agricultura Familiar produz alimentos diversificados (pois mantém
a lógica da produção para o autoconsumo), em pequenas e médias propriedades,
com baixo impacto ambiental, sendo responsável por 70% da produção de alimentos
destinados ao consumo interno no país.

Criado em 1955, o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) atende hoje


cerca de 47milhões de crianças, jovens e adultos, sendo destinado a todos os
alunos das redes públicas e filantrópicas de ensino no Brasil, desde a Educação
Infantil até a Educação de Jovens e Adultos. O PNAE atende cerca de 25% da
população brasileira! É uma política estruturante da Segurança Alimentar e
Nutricional3 no país, pois não se limita a uma ação assistencialista de distribuição de
alimentos, mas atua na consolidação da produção interna de alimentos,
diversificados, com identidade local/regional, ao mesmo tempo criando mercado
institucional para a Agricultura Familiar brasileira (FROELICH, 2010).

Em junho de 2009 foi aprovada a lei 11.947 (BRASIL, 2009b), que regulamenta o
programa e institui, dentre outras questões, a obrigatoriedade da compra de no

3
A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN)3 a define como “a realização do direito de
todos ao acesso regular e permanente a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de
saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”
(BRASIL, lei n.11346, 2006).
mínimo 30% dos recursos repassados pelo governo federal aos estados e
municípios em alimentos produzidos pela Agricultura Familiar, com preferência por
aqueles produzidos nas próprias localidades e regiões, e para os alimentos
orgânicos. São repassados pelo governo federal R$0,304/dia/aluno para estados e
municípios, que devem complementar o recurso.

Importante lembrar que para os efeitos desta lei Alimentação Escolar é entendida
como todo alimento oferecido no ambiente escolar, independente de sua origem,
durante o período letivo (isso inclui o que é oferecido pelas cantinas, o que as
crianças trazem de casa).

Há diversos profissionais que se dedicam bastante para que o PNAE seja bem
executado e para que ele cumpra os objetivos a que se propõe: contribuir para o
crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento
escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de
ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as
suas necessidades nutricionais durante o período letivo (artigo 4° da lei
11.947/2009).

Ao longo de seus 56 anos de idade, o PNAE foi sendo aperfeiçoado, alicerçando-se


hoje na dimensão de Direito Humano à Alimentação Adequada e tornando-se o
maior programa de Alimentação e Nutrição do país, com atendimento universalizado
(atende todos os escolares das redes públicas e filantrópicas do país,
independente de renda, cor, etnia ou qualquer outro critério de exclusão), devendo
fornecer no mínimo 20% das necessidades nutricionais do escolar (quando uma
refeição é oferecida).

O objetivo deste artigo é despertar o interesse de professoras/es e outros


profissionais da educação para assuntos relacionados à Alimentação Escolar e
Agricultura Familiar. Três elementos foram escolhidos para este debate:

a) cardápios escolares saudáveis: relação entre saúde e alimentos frescos, da


estação, da agrobiodiversidade local e regional, com identidade cultural;

4
A Educação Infantil, escolas quilombolas e indígenas recebem R$0,60/aluno/dia.
b) a compra da agricultura familiar: o (re)conhecimento de seu município e região,
documentos necessários, organização e parcerias importantes, impactos na vida dos
agricultores envolvidos, o fortalecimento de relações de complementaridade entre o
rural e o urbano;

c) o papel de merendeiras e professoras na educação alimentar das crianças: a


construção de paladares, a formação de consumidores conscientes, a (re)tomada de
alimentos, receitas e memórias.

Material e métodos

O presente artigo consiste em um relato de experiência, a partir da qual é feito um


debate ampliado sobre os temas fundamentado na legislação pertinente e
levantamento bibliográfico. Ele nasce de experiências de trabalho profissional
desenvolvidas nos últimos cinco anos, com destaque para a atuação na extensão
rural não-oficial (através da ONG Anama5) de 2006 até o momento presente, e na
gestão do programa como nutricionista da Prefeitura Municipal de Maquiné no ano
de 2008.

Neste período tive oportunidade de participar do PNAE em diferentes papéis. Como


nutricionista, atuei na elaboração de cardápios, orientação e capacitação de
merendeiras, elaboração da lista de compras de alimentos, avaliação nutricional das
crianças, acompanhamento de reuniões do CAE, desenvolvimento de atividades de
educação alimentar e ambiental nas escolas. Como extensionista rural, tenho atuado
na sensibilização de gestores e conselheiros, organização e acompanhamento de
grupo informal da agricultura familiar para o abastecimento do PNAE, capacitação
de merendeiras e oficinas para professores.

Cardápios escolares saudáveis

O artigo 12 da lei 11.947/2009, regulamentada pela resolução 38/2009 do Fundo


Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), exige que os cardápios
5
ONG Ação Nascente Maquiné (ANAMA), fundada em 1997, tem sede em Maquiné e um histórico de trabalho
em educação ambiental, recuperação de áreas degradadas, fortalecimento da agricultura familiar, promoção da
agroecologia. Para maiores informações: www.onganama.org.br
escolares sejam elaborados por nutricionista responsável, com utilização de gêneros
alimentícios básicos, respeitando-se as referências nutricionais, os hábitos
alimentares, a cultura e a tradição alimentar da localidade, pautando-se na
sustentabilidade e diversificação agrícola da região, na alimentação saudável e
adequada.

Estes cardápios devem oferecer pelo menos 20% das necessidades nutricionais dos
escolares e três porções de frutas e hortaliças (200g/aluno) por semana. A lei proíbe
a compra de refrigerantes e sucos em pó, bem como restringe o consumo de
enlatados, embutidos e doces (como milho em conserva, salsicha e achocolatados
respectivamente).

Um dado curioso: segundo dados de 2005 da ABIR (Associação Brasileira das


Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não-Alcoólicas), o Brasil é o terceiro maior
mercado de refrigerantes do mundo: 12,2 bilhões de litros foram consumidos em
2004, um consumo médio de 65litros/habitante ao longo do ano. Já os sucos de
fruta, apesar do grande potencial produtivo do Brasil, movimentaram um mercado de
300 milhões de litros no mesmo ano, atingindo um consumo médio de 1,5
litro/habitante, um consumo 41 vezes menor do que o de refrigerante (CENTRO
ECOLÓGICO, 2006). Com este padrão alimentar predominante, no qual muitas
vezes é comum ver famílias substituindo a água e sucos naturais por refrigerantes,
imagine se a Alimentação Escolar não proibisse a compra de bebidas artificiais? A
Alimentação Escolar é um importante espaço de formação de hábitos alimentares
saudáveis e as regulamentações da lei ajudam este espaço a se consolidar.

É importante que todos os grupos de alimentos sejam oferecidos às crianças ao


longo da semana: cereais, tubérculos e panificados (os energéticos), verduras,
legumes e frutas (os reguladores), feijões, carnes, ovos, leite e derivados (os
construtores). A gordura deve vir na forma de óleo vegetal (não-transgênico) ou
banha de porco de boa qualidade. Margarina e açúcar devem ser evitados.

A qualidade desses alimentos é fundamental! Consumir alimentos frescos exige uma


adaptação da escola e dos alunos para um cardápio que muda de acordo com as
estações. Não dá pra comer tomate, goiaba ou maçã o ano todo! A maior parte dos
alimentos têm o seu período de maturação em determinada época do ano e quanto
mais frescos forem consumido, mais nutritivos.

A sazonalidade no cardápio garante alimentos mais nutritivos, de menor custo,


aproxima os alunos dos ciclos naturais e agrícolas e favorece a compra de
alimentos de agricultores familiares da região.

Uma das constatações após o primeiro ano de compra obrigatória da Agricultura


Familiar é a necessidade de aumentar a diversidade de itens ofertados pelas
famílias, especialmente de frutas. Essa é uma demanda que está sendo levada aos
agricultores, mas por outro lado, é importante que as escolas também (re)aprendam
a consumir a diversidade de frutas nativas que muitas vezes são mal aproveitadas.

Na região do litoral norte do RS encontramos diferentes espécies de árvores


frutíferas nativas ou bem adaptadas, como goiaba, laranja, lima, limão, bergamota,
ameixa, amora, quaresma, banana, juçara, abacate, araçá, maracujá, jabuticaba. O
manejo ecológico dessas espécies resulta numa produção de alta qualidade, capaz
de garantir sabores e nutrientes para a merenda, sendo uma ótima opção para os
cardápios escolares.

Além das frutas, há na região a oferta de tubérculos (aipim, batata doce, cará do ar,
cará da terra, inhame, mandioquinha), grãos (feijões, arroz, milho), hortaliças e
alguns produtos processados pela agricultura familiar: polpas e chimias de frutas
orgânicas, molho de tomate orgânico e panificados.

A oferta de alimentos de origem animal produzidos na região ainda é pequena. As


rigorosas exigências da legislação sanitária e a ausência de Serviços de Inspeção
Municipal (SIM) em muitos municípios da região são algumas das razões para isso.
Se houver comprometimento dos setores do governo relacionados com a questão
(Agricultura, Saúde, Educação), leite, ovos, carnes e peixes, muito utilizados na
Alimentação Escolar, poderão chegar às crianças com uma qualidade muito superior
aos leites e ovos processados em larga escala, consumidos atualmente.

Desse modo, as compras da agricultura familiar que iniciam com 30% dos recursos
repassados hoje, demonstrando sua qualidade e eficiência, poderão representar até
100% das aquisições. Aí teremos cardápios escolares integralmente abastecidos
pela agricultura familiar.

A partir da experiência em Maquiné estamos observando um processo de mudanças


nos cardápios escolares, que começam a ofertar em maior quantidade, qualidade e
regularidade frutas, hortaliças e tubérculos (como o aipim e batata doce), por serem
os produtos que a agricultura familiar mais prontamente tem para oferecer. Relatos
de professoras e merendeiras afirmaram uma boa aceitação por parte das crianças
e jovens das saladas adquiridas este ano: alface, brócolis, couve-flor, couve folha,
beterraba e repolho. Por mais que algumas escolas ganhassem verduras e frutas de
pais de alunos, pois Maquiné é um município essencialmente agrícola, a
regularidade e quantidade das hortaliças nunca foi como é possível ser hoje. A
diversidade de hortaliças estimula as merendeiras a preparar mais de ma opção de
salada e as crianças escolhem e servem sozinhas as saladas em seus pratos. Como
afirma Neusa, merendeira de uma das maiores escolas no município, “as crianças
estão se sentindo importantes!”.

A compra da agricultura familiar

O PNAE já passou por uma série de mudanças relacionadas às formas de gestão e


execução. Desde 1994 sua gestão funciona de forma descentralizada. Nesse
modelo, os estados e municípios são os responsáveis pelo uso dos recursos e pela
qualidade nutricional da refeição.

A compra dos alimentos para a alimentação escolar deve obedecer à lei


11.947/2009 e à resolução 38/2009 do FNDE, que estabelecem alguns critérios,
dentre os quais:

- no mínimo 70% dos recursos devem ser utilizados para a compra de alimentos
básicos, respeitando os hábitos alimentares de cada localidade e sua vocação
agrícola;

- no mínimo 30% dos recursos devem adquirir alimentos produzidos pela Agricultura
Familiar local, regional, estadual ou nacional (nessa ordem).
Para alguns municípios, a compra da Agricultura Familiar já ocorria muito antes da
aprovação da lei 11.947/2009 (como nos casos de Dois Irmãos, Tapes e Rolante,
todos no RS). A experiência destes, somada às experiências com o Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (o PAA) ajudaram a construir a lei da
Alimentação Escolar e a dar pistas para a superação de dificuldades que este novo
processo vem apresentando para muitas prefeituras e direções de escolas
estaduais.

Para quem compra, os desafios e o caminho mais adequado para se executar a


aquisição da Agricultura Familiar passam pelo conhecimento do que sua região
produz, a sazonalidade desta produção e como estão organizados os agricultores
para, a partir daí, montar seu cardápio, lista de compras e chamada pública.

É preciso que os gestores e responsáveis pela compra busquem conhecer mais a


realidade da Agricultura Familiar de seus municípios e regiões. As escolas e
secretarias de educação encontram-se normalmente cheias de atribuições e pouca
gente para dar conta de todas elas, o que faz com que muitas critiquem essa nova
demanda de aproximação da Agricultura Familiar. Somado a isso, muitos
responsáveis pelas compras desconhecem a oferta de alimentos sazonal, pouco
relaciona a importância disso com os cardápios e estão acostumados às dinâmicas
de entregas dos mercados. Este é um ponto crucial: não é possível esperar das
organizações da Agricultura Familiar a mesma dinâmica dos mercados que tem
outra logística de suporte e que trabalham somente com a comercialização.

As organizações da Agricultura Familiar trabalham com coletivos de famílias, que


moram distantes umas das outras, muitas vezes com pouco acesso à comunicação
(o telefone ainda não cobre todo o meio rural e a internet parece ainda uma
realidade distante nas comunidades rurais do Litoral Norte do RS). Estas famílias
tem uma dinâmica de trabalho bastante vinculada à terra, sujeitas às mudanças do
clima, estão na roça a maior parte do dia, todos os dias. Os plantios e colheitas são
planejados de acordo com o que se espera comercializar e, uma vez firmados
contratos com a Alimentação Escolar, os agricultores/as recebem um cronograma de
entrega que assumem o compromisso de atender.
Isso tudo implica em uma organização com semanas de antecedência, para que as
guias de entrega em cada escola sejam atendidas. É por isso que a comunicação
entre escolas e organizações da Agricultura Familiar deve ser boa e, em casos de
mudanças de pedidos ou entregas, isso deve acontecer com muitos dias de
antecedência.

Para dar um exemplo, vejamos o caso da banana, uma produção importante no


Litoral Norte, inclusive a banana orgânica. O número de dias necessários para o
amadurecimento da banana varia de acordo as condições de temperatura e
umidade. Quanto mais quente, mais rápido e facilmente ela amadurece. Por isso, o
abastecimento de banana no inverno exige mais planejamento ainda, especialmente
para os pequenos produtores que não dispõem de estrutura para climatização.

Assim, pelo lado de quem vende, o grande desafio e, ao mesmo tempo, estímulo
promovido pela lei é a organização dos agricultores/as. A lei 11.947/2009 permite
que a venda seja feita por grupos formais (associações, cooperativas) de
agricultores familiares, e por grupos informais. Para estes a assessoria e parceria de
outras instituições é fundamental para que esse processo organizativo e
administrativo das compras tenha início (Emateres, Sindicatos de Trabalhadores
Rurais, Prefeituras, ONGs).

Em primeiro lugar há um processo de formação de grupos a ser facilitado, processo


que envolve compromisso, aprendizado e relações de confiança e companheirismo,
para que a vontade de se estar/trabalhar em grupo seja honesta e duradoura. A
inclusão de grupos informais feita pela lei tem funcionado como um grande estímulo
ao associativismo, permitindo que as famílias experimentem o trabalho em conjunto
e vivenciem a dinâmica de reuniões, de decisões em coletivo, de prestação de
contas e de divisão de tarefas que todo grupo demanda. Esta dinâmica de grupo é
fundamental para que as famílias de agricultores alcancem a qualidade e
regularidade que precisam para abastecer as escolas.

Em Maquiné, a Anama tem atuado como entidade articuladora de um grupo informal


composto atualmente por seis famílias e que recentemente escolheu um nome para
si: Sabores da Terra.
Formado o grupo, há uma série de documentos que precisam ser criados e
aprimorados para permitir a organização dos diferentes agricultores e de seus
produtos, em relação com as diferentes escolas. Na relação entre agricultores e
escolas há uma série de documentações: chamadas pública, projeto de venda,
contrato de fornecimento, termos de recebimento, notas fiscais e pagamentos. É
bastante coisa! Os agricultores não estão acostumados com esse tipo de trabalho e
por isso é tão importante a existência de uma entidade articuladora e também a
formação de uma pessoa para atuar com a parte administrativa.

Para a organização interna do grupo, outros documentos são necessários para que
o processo avance. Na condução do grupo Sabores da Terra desenvolvemos: lista
de produtos do grupo e suas épocas disponíveis, cronograma de entregas por
produtor, cronograma de entregas por escola, termos de recebimento, orientação
para preenchimento do bloco do produtor por família, dentre outros.

A oportunidade de vender sua produção localmente, sem a presença de


atravessadores tem representado a construção de novos mercados e novas
perspectivas para a Agricultura Familiar. Por outro lado, exige também uma série de
novos cuidados na forma de produzir, colher, embalar, entregar, receber o
pagamento, emitir a nota fiscal e organizar uma logística de coleta e distribuição dos
alimentos, dividindo seus custos. São muitos aprendizados, sendo o compromisso e
a logística de entrega nas escolas um dos desafios atuais do grupo Sabores da
Terra6.

Ainda que com muitos desafios, o grupo Sabores da Terra está crescendo (em
número de famílias, de produtos, volume de vendas) e demonstra a vontade de
seguir o caminho em conjunto, começando a amadurecer a idéia de montarem uma
cooperativa. O caminho até lá é ainda longo e exige a continuidade da assessoria
técnica. O papel da Anama, além do suporte humano e material direcionado até o
momento, é reforçar os dois princípios que tem destacado ao longo deste processo:
o compromisso das famílias com o trabalho de grupo e com a transição para a
produção orgânica.

6
A experiência do grupo de agricultores de Maquiné gerou um pequeno vídeo-documentário que pode ser
acessado na página www.onganama.org.br
Estes são alguns dos avanços que a lei 11.947/2009 tem alcançado ao ser
executada em nossa região: a formação de novas organizações, a inclusão de
famílias com grande dificuldade de comercialização até o momento e o avanço da
agroecologia. Para que a transição agroecológica ocorra é necessário que os
agricultores tenham assistência técnica em produção orgânica e que consigam
comercializar seus produtos.

O papel de merendeiras e professoras na educação alimentar das crianças.

A aceitação das crianças coroa o sucesso de um cardápio! É importante lembrar que


as crianças estão aprendendo os sabores dos alimentos! Não nascem sabendo o
que gostam e o que não gostam de comer. As crianças formam seus hábitos
alimentares experimentando os alimentos e olhando o que sua família, seus
professores e amigos da escola comem (MIELNICZUK, 2007).

A merendeira é uma grande educadora: seus saberes culinários, seus cuidados com
a limpeza e a higiene no preparo, seu tempero e, principalmente, o carinho e a
atenção que coloca nesta comida, desde o seu recebimento e armazenamento, até
seu preparo e distribuição para os alunos.

A lei 11.947/2009, em seu artigo 15°, afirma que aç ões educativas abordando o
tema alimentação e nutrição e o desenvolvimento de práticas saudáveis de vida, na
perspectiva da segurança alimentar e nutricional devem perpassar o currículo
escolar.

A resolução 38/2009 do FNDE, que regulamenta a lei 11.947, em seu artigo 13°7
considera, dentre outras estratégias de educação alimentar e nutricional, a oferta da
alimentação saudável na escola, a implantação e manutenção de hortas escolares
pedagógicas, a inserção do tema alimentação saudável no currículo escolar e a
realização de oficinas culinárias experimentais com os alunos.

7
Ainda neste artigo, a resolução 38 adverte que “A fim de promover práticas alimentares saudáveis, deverá ser
respeitado o disposto na Portaria Interministerial MEC/MS n° 1.010, de 8 de maio de 2006”. Vale a pena
consultar esta portaria, que tem um texto bastante interessante em relação à promoção de práticas alimentares
saudáveis.
Retomando um pouco do que foi discutido na introdução deste artigo, as mudanças
na alimentação em direção a comidas padronizadas e industrializadas tem
conquistado o paladar de crianças, jovens e adultos. Em Maquiné, Ramos (2007)
registrou um processo de mudanças nas práticas alimentares de famílias rurais que
resultou no desuso do milho, de tubérculos, da banha de porco e de frutas nativas,
em detrimento a um aumento no consumo de sucos em pó, óleo de soja, margarina,
farinha de trigo e outros alimentos industrializados e não produzidos localmente.

Merecem especial atenção os múltiplos significados que envolvem a “conquista do


paladar” dos agricultores e a atual estranheza por parte dos jovens frente a
alimentos que muito participaram dos pratos e receitas de seus avós, como o milho,
o cará, o inhame e hortaliças espontâneas (como a serralha, o caruru, o dente de
leão).

Nesse sentido, é importante ter clareza que às mudanças alimentares estão


associadas mudanças culturais. Woortmann (1985) afirma que “[...] em qualquer
sociedade, os alimentos são, não apenas comidos, mas também pensados e, nesse
sentido, a comida possui um significado simbólico”, ela fala de algo a mais do que os
nutrientes.

A comida fala de laços familiares e comunitários, expressa visões de mundo, enseja


a sociabilidade, orienta processos de cura, diferencia socialmente, demarca
territórios e estabelece identidades. Os cultivos, alimentos e formas de preparo que
carregam estes diferentes sentidos variam de acordo com a cultura de cada grupo
social, a qual orienta seus saberes e práticas alimentares. A escola é um espaço de
pesquisa permanente em suas comunidades e pode também ser um local de
(re)conhecimento de identidades locais enfraquecidas por todo esse processo de
modernização da agricultura, da comida e das vidas de cada comunidade.

Nossa experiência em Maquiné tem mostrado que as merendeiras aproveitam os


momentos de recebimento dos alimentos para encontrar conhecidos da região e se
desafiam a preparar novas receitas com os itens frescos que passaram a receber da
Agricultura Familiar.
É bem verdade que há muitos desafios a vencer, como a adequação das cozinhas
(em espaço e equipamentos como fruteiras e espremedores de frutas) para que os
alimentos frescos e locais passem a compor cada vez mais os cardápios escolares.
Nessa caminhada, torcemos para que cada merendeira perceba e seja cada vez
mais valorizada pela importância de seu trabalho na construção de uma geração
saudável, inteligente, conhecedora e orgulhosa de sua região. Em uma das
reuniões, quando falávamos do planejamento para as compras do próximo ano,
lembramos do milho verde e uma das professoras comentou da polenta de milho
verde, referindo-se a ele como um prato com sabor de casa, de família e de
memória no município. Quem sabe quantas outras receitas poderão ser resgatadas
com a compra de alimentos da região?

Considerações finais

Que avanços na Alimentação Escolar pudemos perceber a partir da obrigatoriedade


de compra da Agricultura Familiar?

Agricultores há muito desacreditados de oportunidades de algo novo mostram-se


mais uma vez confiantes e desafiam-se a experiências de grupo, de compromisso,
de envolvimento com as escolas e de transição agroecológica. Há uma possibilidade
de renda, preços mais justos para seu trabalho, um mercado garantido que lhes
permite planejar sua produção, seu trabalho e, quem sabe, até suas férias (bem
pouco comum entre agricultores/as).

Novos consumidores estão sendo formados: crianças que crescerão com o gosto
por alimentos de sua região; conhecerão uma diversidade de sabores de frutas,
verduras, tubérculos e outros; acompanharão mais de perto os ciclos agrícolas e da
natureza nos seus locais de moradia; terão mais e mais respeito e orgulho de serem
filhas, filhos, parentes ou amigas de agricultores e agricultoras, que produzem sua
merenda – gostosa, fresca e nutritiva.

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