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Piaget e o programa de filosofia para crianças e jovens:

uma aproximação crítica entre o método especulativo e a


técnica genérica piagentiana
DIEGO BECHI*

Resumo: O presente trabalho tem por propósito fazer uma análise crítica entre os principais
argumentos que compõe a epistemologia genética de Piaget e a teoria lipminiana de educação.
Partindo do estudo dessas duas teorias, o texto apresenta as divergências teóricas e os conceitos
e argumentos que possibilitam a aproximação entre os dois pesquisadores. No primeiro
momento, são enfatizadas as mudanças de concepções ocorridas em Piaget, destacando seu
antigo desejo em entender os grandes sistemas filosóficos e sua posterior crítica ao método
especulativo. Após essa explanação, busca-se entender como o conhecimento é alcançado e
estruturado pela mente humana. Juntamente com as atribuições ligadas à interação sujeito-
objeto, é possível compreender o que Piaget entende por sujeito epistêmico ou epistemologia.
Para finalizar, são apresentadas algumas informações referentes ao Programa Filosofia com
crianças e jovens, destacando a importância do diálogo e da reflexão filosófica no
desenvolvimento das habilidades cognitivas. Em meio às últimas colocações, as ideias de
Lipman e Piaget são confrontadas, dando origem a dois pontos em comum: o primeiro abrange
o conceito interação e o segundo compreende os conceitos de escola ativa e aluno ativo.
Palavras-chave: Epistemologia Genética; Interação; Ensino de Filosofia; Conhecimento;
Diálogo.
Abstract: The present work has the purpose to make a critical analysis of the main arguments
that make up the genetic epistemology of Piaget and lipminiana theory of education. From the
study of these two theories, the text presents the theoretical disagreements and arguments and
concepts that enable a rapprochement between the two researchers. At first, the changes are
emphasized conceptions occurred in Piaget, emphasizing its longstanding desire to understand
the great philosophical systems and their subsequent criticism of the speculative method. After
this explanation, we seek to understand how knowledge is achieved and structured by the
human mind. Along with the tasks related to the subject-object interaction, you can understand
what Piaget meant by epistemic subject or epistemology. Finally, some information is presented
for the Philosophy program with children and young people, highlighting the importance of
dialogue and philosophical reflection on the development of cognitive skills. Amid the last
positions, the Lipman and Piaget's ideas are confronted, giving rise to two points in common:
the first covers the concept interaction and the second comprises the active school concepts and
active student.
Key words: Genetic Epistemology; Interaction; Philosophy of Education; Knowledge;
Dialogue.

*
DIEGO BECHI é Mestre em educação (UPF) e professor (convidado) de Ética e
Conhecimento na Universidade de Passo Fundo (UPF).

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Introdução
No decorrer deste artigo será realizada improvisação subjetiva”. Para o
uma análise a fim de encontrar cientista suíço, é preciso estabelecer um
elementos que possibilitem uma método de cooperação, em que a
aproximação crítica entre a produção científica esteja embasada em
epistemologia genética de Piaget e fatos dedutivos, evitando contágios ou
algumas das ideias defendidas por pressões do grupo social.
Lipman em seu programa filosofia para
Entre os inúmeros estudos e pesquisas
crianças e jovens. Uma das grandes
realizadas na área da educação,
diferenças entre esses dois
especialmente no que se refere ao
pesquisadores atribui-se à relação entre
comportamento infantil, Piaget foi um
teoria do conhecimento e método.
conhecedor dos grandes sistemas
Enquanto que o norte-americano está filosóficos. Não há como compreender
preocupado com a postura metodológica
sua história sem adentrar nos relatos que
assumida pelos educadores em sala de dizem respeito aos seus desejos,
aula, o psicólogo suíço elabora uma concepções e acontecimentos, nos quais
teoria do conhecimento baseada em influenciaram a sua forma de pensar2.
pesquisas científicas. O objetivo Em meio a tantos anseios e empecilhos
principal de Piaget está ligado à defrontados por Piaget durante seus
formação do conhecimento. Sua teoria estudos, a filosofia assumiu um papel
busca fundamentar-se sobre as seguintes muito importante em sua vida
questões: ““Como é possível alcançar o profissional. Positiva ou negativamente,
conhecimento?”. Formulada a pergunta, ela contribuiu para que Piaget pudesse
surge de imediato outra: “Conhecimento analisar com mais cautela o alcance de
de quê?”” (CHIAROTTINO, 1988, p. suas ideias. Muito cedo se consagrou à
03). filosofia, vindo posteriormente a
No âmbito da filosofia, Lipman abandonar o método especulativo. Suas
revolucionou a ideia na qual se afirmava principais teorias são fundamentadas
que a filosofia é instrumento apenas de cientificamente através do método
filósofos ou de especialistas. Ele criou experimental.
materiais e buscou na tradição a Piaget exerceu sua carreira profissional
concepção metodológica que permeia o ao lado de grandes personalidades no
fazer filosófico1. Com isso, a filosofia âmbito da filosofia. A educação
tornou-se imprescindível a quem busca
nacional francesa era embasada na
formar sujeitos capazes de pensar por si
formação filosófica em detrimento das
mesmos, de pensar bem. Enquanto isso,
demais disciplinas, entre elas a
Piaget (2009, p. 10) faz um comentário
psicologia. Conhecedor da história da
desfavorável à reflexão especulativa ao
filosofia, somados a profundos estudos
salientar que, por meio dessa, o sujeito
sobre biologia e pesquisas
corre “o risco de voltar as costas à
experimentais, Piaget foi convidado a
verificação, pelo impulso da
suceder o filósofo Merleau Ponty na
cadeira que ocupava na Faculdade de
1
O termo “fazer filosófico” utilizado neste Letras da Sorbonne. Levando em conta
artigo diferencia-se do ensino de filosofia
2
baseado na história da filosofia. O fazer Sobre isso ler: PIAGET, Jean. Saberes e
filosofia é tido como um processo reflexivo e ilusões da filosofia. Disponível em:
problematizador, mediante uma prática http://www.scribd.com/doc/698 3403/Jean-
pedagógica dialógica. Piaget-Sabedoria-e-IlusOes-Da-Filosofia.

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seus estudos filosóficos e sua dedicação de meus trabalhos filosófico-biológicos
em relação à ciência experimental, entre [...]” (PIAGET, 1969, p. 199). Para
elas a biologia e a psicologia, será feito tanto, as primeiras pesquisas
uma análise para compreender o lugar desenvolvidas com vistas a formular
assumido pela filosofia diante da leis que hipoteticamente regiam a vida
concepção piagentiana, antes e após o dos animais e vegetais, eram seguidas
desenvolvimento de sua Epistemologia de inúmeros anseios filosóficos.
Genética. Com isso, o artigo versará Influenciado pelo filósofo Arnold
sobre as seguintes questões: o que Reymond – em especial por seus
Piaget entende por Epistemologia trabalhos sobre ciência grega na qual
Genética? Há alguma possibilidade de o empregava profundamente o método
exercício filosófico vir a contribuir para histórico-crítico – Piaget (1969, p. 200)
com o desenvolvimento cognitivo das destaca a proximidade entre as duas
crianças e jovens? áreas: “foi, pois, com maior confiança
nele que me deixava encorajar a
1. Piaget: filósofo ou cientista?
prosseguir uma carreira essencialmente
Antes de recorrer ao método filosófica e a especializar-me em
experimental, Piaget iniciou sua carreira filosofia biológica”.
estudando a tradição filosófica. Essa
iniciação ao estudo filosófico Seu amor pela filosofia durou muitos
desempenhou um grande papel em sua anos. Concluído seu doutorado, Piaget
vida, porém, de pouca duração. ainda estava dividido entre a filosofia e
Primeiramente, inúmeras razões as ciências experimentais. Nessa época
levaram-no a interessar-se pela a psicologia também passou a fazer
filosofia. Após alguns anos, abstraiu-se parte de sua vida. O surgimento dessa
de seus desejos primários, vindo a última partiu de seus estudos sobre
criticar o sistema filosófico. A filosofia epistemologia e biologia, quando o
era a fonte onde Piaget alimentava suas mesmo teve a sensação “de que para
dúvidas em seu nascente estado de analisar as relações entre o
formação: “eu descobria uma filosofia conhecimento e a vida orgânica seria
respondendo exatamente à minha talvez útil fazer um pouco de psicologia
estrutura intelectual” (PIAGET, 2009, experimental” (PIAGET, 1969, p. 200).
p. 4). Nessa época de incertezas, Piaget Mesmo diante de disciplinas
não separava a filosofia das demais experimentais e de projetos que
áreas do conhecimento, a exemplo da requeriam tais experimentos, perpassou-
biologia. A proximidade entre filosofia se um período em que os estudos
e biologia pode ser concebida por filosóficos não foram postos em
intermédio da seguinte afirmação: “uma questão. A filosofia tornara
observação de Bergson3 me imprescindível na execução de seus
impressionara muito e me parecia projetos de caráter epistemológicos.
fornecer um fio condutor para o início Piaget não colocava a prova seus
conhecimentos filosóficos. Suas dúvidas
partiam do âmbito da psicologia
3
Não será realizada uma análise minuciosa que experimental. Ele não sabia ao certo se
identifique a relação entre Piaget e os filósofos a psicologia iria contribuir para o
expostos no texto, isso porque nosso objetivo é desenvolvimento de sua teoria do
apenas situar a influência da filosofia na vida
desse pesquisador, sem a necessidade de fazer
conhecimento: “ainda não se tratava no
uma análise histórica abrangendo as principais meu espírito de optar entre a filosofia e
idéias desses pensadores. a psicologia, mas somente de escolher
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se, para estudo de epistemologia séria, uma satisfação intuitiva, a teoria
me seria ou não necessário dedicar-me piagentiana tinha por propósito a
durante alguns semestres à psicologia” objetividade dos resultados obtidos.
(PIAGET, 1969, p. 201). Baseando-se Para Piaget (1969, p. 203), a reflexão
nessas descrições, pode-se deduzir que a especulativa ao permanecer “ligada à
filosofia chegou a ser insubstituível aos inteira personalidade dos pensadores,
olhos de Piaget, essencial mesmo diante ela conduz ao que se deve dominar uma
de seus estudos experimentais. sabedoria ou uma fé racionada, e não é
um conhecimento do ponto de vista dos
Ciência e filosofia tinham o mesmo critérios objetivos ou interindividuais de
valor. Porém, sua principal teoria sobre verdade”. A segunda crítica advém da
epistemologia genética ainda não havia dependência das correntes filosóficas
sido desenvolvida. O método para tal já em relação às transformações sociais e
havia sido encontrado: análise dos fatos. políticas. Ele afirma ter ficado surpreso
Em contrapartida ao método com o movimento das ideias da
especulativo, esse método tornou-se o instabilidade social que reinava na
principal critério a fim de obter Europa após a Segunda Guerra
respostas coerentes aos seus estudos Mundial: a instabilidade “me conduziu,
epistemológicos. Mesmo diante da naturalmente, a duvidar do valor
decadência do método especulativo, o objetivo e universal das posições
epistemólogo abnegava-se em destituir filosóficas tomadas em tais condições.
a filosofia na elaboração de seus No meu pequeno país [...], numerosos
conhecimentos de cunho científico. sintomas mostravam essa dependência
Diante dos estudos intermediários entre das ideias em relação às contracorrentes
o domínio do desenvolvimento sociais” (PIAGET, 1969, p. 203).
psicobiológico e os problemas de
estruturas normativas, Piaget (2009, p.
201) insiste em tornar explícito seu Tendo em vista essas críticas e demais
gosto pela filosofia: “eu não me sentia informações até então expostas, pode-se
menos filósofo em função disso [...]”. concluir que a verdade e o
Mas essa posição em relação à filosofia conhecimento objetivo são encontrados
mudou no decorrer de suas pesquisas. apenas nos fatos. A verdade não está
Os experimentos voltados à biologia e a submetida ao domínio da intuição
psicologia assumiram o patamar individual ou da fé; ela é abstraída de
anteriormente ocupado pela filosofia. A fatos concretos em conjunto com o
psicologia estabeleceu-se como método experimental. O papel da
fundamental e a filosofia foi fortemente filosofia diante desse propósito é
criticada. reduzido ao extremo. Se antes a
filosofia era vista como uma amiga
O epistemólogo suíço apresenta duas capaz de apresentar a verdade aos que a
razões pelas quais passou a negar a ela se direcionavam, agora a mesma
filosofia em sua busca pela verdade. A obtém uma conotação negativa, egoísta
primeira crítica, atribui-se a desafeição e não objetivadora. Conforme salienta
dos métodos tradicionais da filosofia. A Piaget (1969, p. 2013) “a filosofia acaba
reflexão especulativa limita-se ao de fato por retardar sistematicamente o
âmbito das hipóteses, dando origem a progresso de uma disciplina
conclusões subjetivas. Em experimental”. Diante disso, cabe agora
contraposição aos resultados providos apresentar as principais conclusões
de uma determinada convicção ou de obtidas por Piaget através de suas
110
pesquisas experimentais em torno de os sujeitos em suas condições
sua epistemologia genética. individuais, suas facilidades e
empecilhos. Não haveria objetividade se
2. A formação do conhecimento em fossem levadas em conta as
Piaget características de cada um. O sujeito
Os estudos de epistemologia genética epistêmico é “um sujeito ideal,
desenvolvidos por Piaget têm por universal, que não corresponde a
propósito viabilizar um conhecimento ninguém em particular, embora sintetize
objetivo de como o conhecimento é as possibilidades de cada uma das
alcançado e estruturado pela mente pessoas e de todas as pessoas ao mesmo
humana. O objeto do conhecimento na tempo” (CHIAROTTINO, 1988, p. 4).
acepção de Piaget abrange toda a Ao estudar o sujeito epistêmico, sua
realidade circundante (contexto físico e preocupação não está em destacar as
cultural): “natureza, objetos construídos circunstâncias que atingem
pelo homem, ideias, valores, relações determinados indivíduos – problemas
humanas, em suma, História e Cultura” auditivos, visuais, entre outras
(CHIAROTTINO, 1988, p. 3). Ao particularidades físicas ou sociais – mas
analisar como tais conhecimentos são em destacar as condições orgânicas
alcançados pela mente humana, comuns a esses indivíduos.
juntamente com algumas atribuições
ligadas à interação sujeito-objeto,
Contudo, as potencialidades naturais
estaremos a compreender o que Piaget
próprias do ato de conhecer não são
entende por sujeito epistêmico ou
desenvolvidas por si mesmas. Assim
epistemologia. Essa interação somente é
como um germe precisa ser alimentado
possível por se tratar de um sujeito
para que venha a atingir sua forma
constituído por uma estrutura orgânica
elementar, a ação do sujeito sobre o
capaz de conhecer, de obter sentido por
meio é indispensável para que a
meio das experiências sensíveis. Por
capacidade de conhecer venha ser
esse motivo, o epistemólogo não se
desenvolvida. De acordo com
limita a explicar como é possível o
Chiarottino (1988, p. 4), “o
conhecimento no adulto, mas também
conhecimento parte da ação de uma
considera importante expor as
pessoa sobre o meio em que vive, mas
condições orgânicas necessárias para
não ocorre sem a estruturação do
que o sujeito chegue ao conhecimento
vivido”. A existência de um potencial
possível. Assim, além de divulgar o que
não obtém valor sem uma ação, assim
entende por epistemologia, deixa
como a ação não possui valor sem as
também explícito o significado
estruturas internas do pensamento. O
atribuído ao termo genética.
sujeito deve ser capaz de assimilar as
Seu anseio em elaborar uma experiências constituídas na interação
epistemologia genética, capaz de com o mundo circundante. Nesse
superar a teoria especulativa dos processo de assimilação, os objetos
filósofos, deu origem a várias pesquisas apresentados pelo meio adquirem
experimentais a fim de responder significação. As descrições de Piaget
objetivamente sobre como se processa o aproximam-se, em parte, das ideias do
conhecimento no sujeito epistêmico. O filósofo Merleau Ponty ao afirmar “que
sujeito epistêmico é o sujeito do um objeto é percebido e tem um sentido
conhecimento para Piaget. Contudo, sua quando é passível de ser assimilado por
teoria não é elaborada levando em conta uma estrutura. Assim, conhecimento
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implica sistemas de significação” principal propósito somente quando
(CHIAROTTINO, 1988, p. 4). forem utilizadas pelo sujeito para
guardar seus objetos. Outras poderão
Mas, segundo Piaget, nem todas as permanecer vazias, sem nada a oferecer
estruturas presentes no organismo quando forem abertas pela primeira vez.
humano sofrem interferências do meio. O mesmo poderá acontecer com as
Em tese, três estruturas compõem o estruturas mentais. O sujeito poderá
organismo humano: estruturas desenvolver algumas habilidades, mas
totalmente programadas, estruturas ter dificuldades em executar
parcialmente programadas e, por determinadas tarefas. Ou, até mesmo,
último, as estruturas nada programadas. obter um retardo mental devido a troca
As primeiras compõem o aparelho de experiências com o meio ter sido
reprodutor. Essas estruturas “nos insatisfatória. Mas, segundo Piaget, se
capacitam a prever determinados não houver nenhuma lesão orgânica,
comportamentos, tornados manifestos sendo a relação com o ambiente externo
em determinadas épocas (exemplos: a prejudicada apenas por causas físicas ou
fase de maturação sexual e a sociais, tais prejuízos poderão ser
possibilidade de reprodução da superados. Em observação a essa
espécie)” (CHIAROTTINO, 1988, p. 8). problemática, Chiarottino faz menção a
O sistema nervoso é composto por Helen Keller – cega, surda e muda –
estruturas parcialmente programadas. que com a ajuda de sua professora Anne
Tais estruturas não se encontram em Sullivan, conseguiu estabelecer relações
total submissão às solicitações do meio, satisfatórias com o meio, vindo a se
mas dependem em grande parte dele tornar escritora e conferencista4. Antes
para se constituírem. Enquanto isso, as do contato com a professora, Helen
estruturas nada programadas dependem possuía um “déficit”, mas
essencialmente do meio para serem
[...] como não havia lesão orgânica,
desenvolvidas. Elas são chamadas de
assim que se estabeleceu o contato
estruturas mentais, específicas do ato de do organismo com o meio abriu-se
conhecer. Nesse caso, o conhecimento a possibilidade da troca entre eles
não é herdado geneticamente. Essas e, assim, construíram-se as
estruturas, nomeada por Piaget de estruturas mentais. Assim, qualquer
estrutura orgânica nada programada, criança cuja as trocas com o meio
oferecem aos sujeitos a possibilidade de tenham sido prejudicadas, não
alcançar os conhecimentos disponíveis. importa por que fator, pode
Porém, conforme já havíamos apresentar “déficits”. O que não
salientado anteriormente, a atualização quer dizer que este não seja passível
de tais conhecimentos na mente humana de ser superado (CHIAROTTINO,
1988, p. 6).
dependerá da interação do sujeito com o
meio ambiente – físico ou social.

Se não houver essa relação, ou se, por 4


Para conhecer melhor essa história recomenda-
motivos físicos ou sociais, a troca entre se assistir o filme “O milagre de Helen Keller”.
organismo e meio for prejudicada, o Ele traz à tona desde as principais dificuldades
sujeito poderá apresentar sérios enfrentadas em seus primeiros anos de vida –
“déficits”. Nesse caso, as estruturas sua falta de habilidade em se comunicar, sua
frustração e violência contra sua nova
mentais podem ser comparadas professora e a metodologia por ela utilizada –
analogicamente com as gavetas de um até o momento em que Helen Keller passa a
armário. As gavetas atingirão seu reconhecer os objetos.

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Assim como as gavetas vazias de um experiências em ações. Os seres
armário poderão ser utilizadas e humanos possuem estruturas biológicas
preenchidas com inúmeros materiais, as específicas, que os diferenciam das
estruturas mentais que apresentam demais espécies animais. O
“déficits” serão atualizadas se forem desenvolvimento das estruturas mentais,
solicitadas pela interação entre resultado da interação sujeito-objeto,
organismo e meio. Por esse motivo, requer o exercício do raciocínio. Ao
“uma criança sem lesão orgânica nunca mesmo tempo em que é afetado pelo
é inferior à outra mas, sim, está inferior, meio ambiente, o sujeito é naturalmente
pois pode aprender o que a outra já capacitado a organizar tais
aprendeu se for solicitada pelo meio” conhecimentos por meio de um
(CHIAROTTINO, 1988, p. 7).5 As processo de equilibração. Isso porque, o
potencialidades entre os seres humanos meio físico e social em que o mesmo
são as mesmas. Tanto as dificuldades está inserido sofre constantes mutações.
quanto o próprio pensamento lógico não Tais variações rompem com e estado de
são inatos. O que há de inato na espécie equilíbrio do organismo, iniciando um
humana são as condições biológicas que novo processo de readaptação das
irão predispor o surgimento de certas estruturas cognitivas.
estruturas mentais. A probabilidade de
um sujeito apresentar um retardo mental O desenvolvimento cognitivo é
ou desenvolver a capacidade de pensar resultado da soma entre o desequilíbrio
logicamente são as mesmas. O que causado pelo meio ambiente e a busca
muda são apenas as experiências constante de adaptação do sujeito à
vividas. Por isso, o desenvolvimento do realidade em que está inserido. Por isso,
raciocínio lógico está atrelado à pode-se afirmar que o retardo mental,
possibilidade de o sujeito ser desafiado ou o então chamado “déficit” cognitivo,
pela realidade externa a pensar é ocasionado pela falta de desequilíbrio
logicamente. das estruturas biológicas. Quanto mais
intensa for a interação entre organismo
Concomitantemente, o objeto não e meio, mais complexas serão as
possui por si mesmo a capacidade de estruturas cognitivas. Isto é, para que
desafiar o sujeito. A produção de essas estruturas sejam atualizadas o
conhecimentos se dá por meio da organismo precisa ser desafiado a
interação entre o sujeito cognoscente e a adaptar-se às mutações da realidade.
realidade. Assim como as estruturas Essa adaptação acontece por meio de
mentais dos sujeitos sofrem um mecanismo de assimilação (jogo
transformações ao se relacionarem com simbólico) e acomodação (reprodução).
o mundo externo, num processo de Apesar de possuírem funções distintas,
interação, o sujeito também transforma esses dois conceitos são
a realidade externa ao traduzir suas complementares e encontram-se
presentes em toda a vida dos indivíduos.
5
Ao estabelecer a noção de “inferioridade” e
Cada vez que o desenvolvimento
“superioridade”, Piaget não dá ênfase às cognitivo passa por desequilíbrios e
condições sócio-culturais em que os sujeitos equilíbrios esses dois mecanismos são
estão envolvidos. Por ser uma teoria biológica, acionados. O primeiro tem a função de
Piaget está preocupado com a natureza humana, incorporar os dados da experiência no
com sua estrutura orgânica. Sobre isso,
Chiarottino descreve que, “as noções de inferior
indivíduo. Ele está mais próximo aos
e superior, nesse contexto, não são ideológicas, dados sensíveis, ao desequilíbrio. Por
mas biológicas” (1988, p. 7). meio desse processo, as experiências
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são incorporadas aos esquemas objeto torna-se mais significativa
previamente estruturados. Já o segundo, quanto mais avançados forem os níveis
está mais próximo das estruturas de desenvolvimento cognitivo, o tempo
biológicas e ao equilíbrio. Quando uma de superação de cada estágio dependerá
nova experiência é intelectualmente dos níveis de equilíbrio e desequilíbrio
assimilada, o mecanismo de provocados por essa relação.
acomodação tem a função de modificar
o esquema vigente, propiciando a 3. O ideal lipminiano de educação
acomodação e a adaptação dos novos versus a proposta genérica de Piaget
conhecimentos obtidos na interação Diferentemente de Piaget, Lipmam
com o meio físico e social. A propõe um novo paradigma educacional
acomodação põe o sujeito de volta ao baseado na reflexão especulativa. Para o
seu estado de equilíbrio, constituindo filósofo, é necessário uma reforma
novas estruturas cognitivas. educacional que venha a proporcionar
Porém, todo esse processo de experiências escolares e extraescolares
transformação vai depender das significativas. Na prática, as crianças
aptidões que os indivíduos têm de chegam à escola motivadas, curiosas e
elaborar e assimilar as suas interações dispostas a aprender; porém, essa
com o meio. Essas variações sucedem o curiosidade tende a gradativamente
nível de desenvolvimento cognitivo desaparecer. O desejo de apreender,
referentes a cada indivíduo nos diversos buscar novos conhecimentos, fazer os
estágios6 de sua vida. O modo como trabalhos solicitados e conhecer novos
esse indivíduo se relacionará com a professores, reduz-se à mera obrigação.
realidade que o rodeia, dependerá de Nesse momento, as atividades escolares
sua organização mental. Essa, por sua tornam-se opressoras e estranhas às
vez, varia de acordo com o período necessidades e aos anseios das crianças
evolutivo em que ele se encontra. A e dos jovens. Lipman (2001, p. 32)
pessoa que estiver no último estágio de chega a salientar que “se a experiência
seu processo evolutivo, estará mais apta escolar fosse tão rica e significativa
a estender e aprofundar seus como de fato pode ser, não veríamos
conhecimentos do que aquelas que se tantas crianças detestando ir à escola”.
encontram inerentes aos primeiros Por isso, o processo de ensino e
estágios. Apesar de Piaget descrever aprendizagem não pode limitar suas
uma média de idade para cada período, funções às tradicionais técnicas de ler,
o início e o término de cada um ouvir e reproduzir aquilo que foi dito e
dependerá também dos estímulos lido. Não há dúvida quanto à relevância
provocados pelo meio ambiente. Ao da leitura e da escuta no decorrer do
mesmo tempo em que a relação sujeito- processo formativo, porém faz-se
necessário propiciar algumas mudanças
nos propósitos pelos quais vêm sendo
6
Piaget apresenta quatro estágios no processo utilizadas. A substituição do “repetir” e
evolutivo da espécie humana, sendo eles: do “reproduzir” pelo “fazer” constitui
Estágio sensório-motor (0 a 2 anos); Estágio
uma das iniciativas metodológicas mais
pré-operatório (2 a 7 anos); Estágio operatório
concreto (7 a 11 ou 12 anos); e, por último, eficientes em favor da reflexão. Diante
Estágio operatório formal (11 ou 12 anos em dessas transformações, a
diante). Porém, não temos nesse texto o problematização passa a ser valorizada
propósito de apresentar detalhadamente os em detrimento da inculcação e
quatro estágios de desenvolvimento cognitivo
memorização de conteúdos.
defendidos por esse autor.

114
O aluno não exercita o pensamento desenvolvimento de estratégias
reflexivo quando assume o papel de dialógicas e investigativas de modo a
puro espectador dos conteúdos oportunizar aos alunos experiências que
proferidos em aula. O modelo de ensino permitam extrair, por si mesmos, os
centrado na transmissão vertical de significados e os resultados das
informações não valoriza os saberes e as atividades realizadas. Portanto, torna-se
experiências adquiridas pelos alunos fundamental ajudar as crianças a pensar
dentro e fora do contexto escolar. Como mais e a serem mais reflexivas. A ação
alternativa ao paradigma tradicional de reflexiva reorganiza e reconstrói a
educação, a proposta metodológica experiência humana, proporcionando o
alavancada pelo Programa de Filosofia desenvolvimento das capacidades
Para Crianças e Jovens7 prevê o cognitivas. De acordo com Lipman
(2001, p. 32), as crianças “não captarão
7
esses significados simplesmente
O Programa de Filosofia Para Crianças e
Jovens foi concebido pelo professor norte-
aprendendo os conteúdos do
americano Dr. Matthew Lipman com vistas a conhecimento adulto. Elas precisam ser
viabilizar o desenvolvimento de habilidades ensinadas a pensar, e, em particular, a
cognitivas dos alunos mediante discussão de pensar por si mesmas. O pensar é a
assuntos filosóficos. Para atender a esses habilidade por excellence que nos
propósitos, Lipman e seus colaboradores
desenvolveram um material específico,
habilita a captar os significados”.
composto de livros de leitura (Novelas Por esse motivo, para que a escola
Filosóficas) para serem utilizadas pelos alunos e
consiga manter sua relevância diante de
os Manuais do Professor para auxiliar a
mediação dialógica na comunidade de um mundo dinâmico, acrescido
investigação. Os conteúdos dos romances constantemente de novas descobertas,
discorrem sobre temas das áreas clássicas da as práticas de ensino precisam estar
filosofia: linguagem, lógica, ética, estética, amparadas numa concepção
epistemologia, metafísica, educação e filosofia
metodológica que possibilite a formação
da ciência. Lipman desenvolveu o primeiro
material de Filosofia para Crianças no final da de cidadãos autônomos, aptos a pensar e
década de 1960 intitulado Harry Stottlemeier’s agir de forma reflexiva. Tendo em vista
Discovery, que traduzido para o português isso, não basta simplesmente exigir que
recebeu a dominação de A descoberta de Ari os alunos memorizem os conteúdos
dos Teles. O Programa conta com uma série de
referentes a cada disciplina. Um ensino
novelas filosóficas, cada uma delas, destinada a
idades e graus de escolaridade diferentes, centrado quase exclusivamente na ação
incluindo: Rebeca, destinada à Educação do professor, descontextualizado da
infantil e 1º ano do Ensino Fundamental, realidade e das necessidades dos alunos,
trabalha o imaginário infantil e a iniciação não desperta a curiosidade
filosófica; Issao e Guga, destinada ao 2º e 3º
indispensável à busca de novos
anos do Ensino Fundamental, envolvendo temas
como natureza, água, ecologia, realidade, conhecimentos. A mera aquisição de
guerras, amizade, verdade e beleza; Pimpa,
geralmente utilizada no 4º e 5º anos do Ensino
Fundamental, cujo foco de trabalho é a filosofia incoerência, verdade, amizade e sentimentos;
da linguagem, ética e antropologia, explorando Luiza, indicado para 8º e 9º anos, trabalha
temas como identidade, justiça, deveres, sobretudo com temas de ética e moral,
direitos, tempo, família, relação e analogias; A incluindo: ética e moral, direito e dever, hábitos,
descoberta de Ari dos Teles, indicado para os 6º fatos e valores, livre arbítrio e determinismo,
e 7º anos do Ensino fundamental, leis e regras, consciência e decisão, identidade,
problematizando temas de ontologia, teoria do certo e justo; além de duas novelas destinadas
conhecimento, ética, lógica, política, estética e ao Ensino médio: Suki, trabalha estética; e
educação, incluindo temas como liberdade, Mark, cujo foco é a problematização de temas
cultura, costumes, indução, dedução, hipóteses, de filosofia social e política.

115
palavras mediante o auxílio de práticas linguagem, a matemática também
e materiais condizentes com a poderá contribuir para o pensar bem.
metodologia passiva – por fornecer Mas, segundo o filósofo (2001, p. 40),
soluções já prontas às atividades “essas disciplinas isoladas são
realizadas – não propicia as condições insuficientes. O fato de uma criança
adequadas ao eficaz desenvolvimento somar, subtrair, multiplicar, dividir e
da reflexão, como também embaraça o poder ler corretamente revistas em
raciocínio. A produção do quadrinhos - ou mesmo livros infantis –
conhecimento em sala de aula requer a não quer dizer que possa raciocinar com
execução de práticas que incentivem o clareza”. È preciso algo mais que
pensamento reflexivo e, programas de linguagem e de
consequentemente, a participação ativa matemática para incentivar as crianças a
dos alunos no decorrer do processo pensarem de um modo mais eficaz e
pedagógico. Além disso, a formação de imaginativo.
mentes abertas e reflexivas constitui um
dos pressupostos fundamentais para a O desenvolvimento das capacidades
construção de uma nova sociedade. Sem intelectuais dos alunos – entre as quais,
o desenvolvimento dessas capacidades a capacidade de pensar, de raciocinar,
intelectuais os sujeitos seriam de refletir, de analisar, de criticar, de
facilmente manipulados pelos sistemas argumentar e de produzir
políticos e ideológicos. conhecimentos - requer a execução de
práticas que possibilitem a construção
Para Lipman, o desenvolvimento das do diálogo crítico. Nessa perspectiva,
habilidades de pensamento8 é de duas condições básicas se fazem
extrema importância para que os necessárias para a concretização desse
estudantes sejam capazes de pensar importante desafio: a primeira refere-se
bem. Nesse caso, o raciocínio torna-se à valorização das experiências
uma habilidade fundamental. Quando as subjetivas dos alunos; a segunda, não
crianças conseguem raciocinar melhor menos importante, prima pelo
são capazes de absorver com mais questionamento e pela problematização
facilidade o significado do que leem. dos conteúdos propostos. A
“Ajudar as crianças a pensarem pode problematização, ao fortalecer a
muito bem conseguir ajudá-las a ler. (...) interação e o embate de ideias, rompe
As crianças que não conseguem ver o com a normalidade das coisas,
significado do que leem simplesmente possibilitando que os alunos
deixam de ler” (LIPMAN, 2001, p. 37). reconstruam e enriqueçam suas
Assim como o raciocínio contribui para experiências de forma intersubjetiva.
melhorar a leitura, o uso da linguagem Cabe ao professor dirigir o ensino no
literária também contribui para o sentido de estimular o pensamento
desenvolvimento das habilidades de reflexivo por meio de situações que
pensamento. São duas habilidades que despertem e favoreçam o fluxo de
se reforçam mutuamente. Além da ideias. Por meio da reflexão, provocada
pela dúvida e pela curiosidade, os
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Lipman trabalha com quatro habilidades envolvidos na ação pedagógica
cognitivas básicas: habilidades de investigação, buscarão novas informações para
de raciocínio, de organização de informações e resolver as questões que cada um se pôs
de tradução. Para melhor compreender essas
quatro habilidades recomenda-se ler a seguinte
durante o processo educativo. O
obra: LIPMAN, Matthew. O Pensar na processo pedagógico de cunho reflexivo
educação. Petrópolis: Vozes, 1995. desperta o desejo pela pesquisa,
116
contribuindo para que cada ser humano cognitivo dos participantes. Para o
seja sujeito produtor de conhecimentos. precursor do Programa de Filosofia
Para Crianças e Jovens, a filosofia e as
Aprender a raciocinar requer a crianças possuem uma característica em
internalização do diálogo na prática comum: seu caráter questionador.
pedagógica. O processo de reflexão e Diferentemente da maioria dos adultos,
diálogo estabelecido em sala de aula elas têm curiosidade sobre o mundo.
promove inúmeros benefícios aos Querem a toda hora saber as causas e os
alunos. Quando a criança é incentivada propósitos das coisas. Ao questionar se
a expressar suas experiências e seu é possível fazer filosofia com crianças,
ponto de vista pessoal, há uma grande Lipman (2001, p. 50) parte do
probabilidade de que esses recursos pressuposto de que “se a principal
venham “reforçar consideravelmente o contribuição da criança ao processo
conceito que tem de si mesma, e este, educacional é seu caráter questionador,
por sua vez, aumenta seu senso de e se a filosofia é caracteristicamente
propósito e direção” (LIPMAN, 2001, uma disciplina que levanta questões,
p. 29). As crianças que não conseguem então a filosofia e as crianças parecem
perceber por si mesmas os significados ser aliadas naturais”. Contudo, se para
de suas experiências, dos Lipman o fazer filosófico é capaz de
acontecimentos e dos problemas que as ajudar as crianças a pensar mais e
envolvem, são facilmente manipuladas, melhor, a serem mais reflexivas ao
vulneráveis às drogas e a outras tomar suas decisões, para Piaget o
soluções desesperadas. O desenvolvimento da inteligência
desenvolvimento do raciocínio torna-as encontra-se submissa a três ou quatro
aptas a absorver o significado das fases gradativas de sofisticação. Isto é, o
experiências realizadas dentro e fora da desenvolvimento das estruturas mentais
escola. As crianças que são levadas a e da autonomia depende da faixa etária
refletir, que participam de ambientes em que as crianças se encontram.
onde o diálogo e a problematização
preponderam, são motivadas a serem De acordo com o psicólogo suíço, não é
mais criteriosas em suas escolhas e possível padronizar um suposto
ações. Dando ênfase a essa concepção, progresso intelectual quando as crianças
Lipman salienta que um programa de são levadas a refletir sobre questões
habilidades não só lhes permite serem genuinamente filosóficas. As respostas
“mais discretas e ponderadas ao lidarem divergentes, próprias da filosofia, não
com os problemas que enfrentam, como representam a maneira como as crianças
também mostram-se capazes de decidir pensam. Elas podem sofrer variações
quando é apropriado adiar ou evitar tais por influência da socialização. Numa
problemas em vez de enfrentá-los discussão filosófica a criança pode
diretamente” (2001, p. 35). inventar uma resposta que não acredita
realmente. Piaget classifica tais
Ao contrário da concepção piagentiana, comentários de mero romanceamento.
Lipman afirma que a prática dialógica e Não é possível identificar as verdadeiras
reflexiva, própria do fazer filosófico, convicções das crianças quando os
não é um processo reservado apenas aos comentários provêm de uma exploração
adultos. Pessoas de qualquer idade coletiva de conceitos. Ao desconsiderar
podem refletir sobre os temas as respostas discrepantes, ele
filosóficos e discuti-los quando são desestimula a filosofia. Piaget visa
levados em conta a faixa etária e o nível “corroborar suas afirmações sobre as
117
fases de desenvolvimento por meio da processo Piaget chama de equilibração.
descoberta dos mesmos padrões de Quanto mais o organismo for desafiado
resposta em todas as crianças. Essa a adaptar-se às mutações da realidade
descoberta seria uma comprovação de física e cultural, mais complexas serão
que a reflexão das crianças realmente se suas estruturas cognitivas. Lipman não
desenvolve dessa maneira” trabalha com os mesmos conceitos, mas
(MATTHEWS, 2001, p. 46). é convicto ao afirmar que as habilidades
de pensamento serão desenvolvidas
Piaget é insensível ao aturdimento somente se houver solicitação do meio.
próprio da reflexão filosófica. Com a De acordo com o filósofo, fazer bons
tentativa de defender a importância da julgamentos e agir de forma racional
filosofia em meio a tantas críticas não são habilidades inatas nos seres
piagentianas, Matthews busca humanos. Há diferenças entre o simples
comprovar que as pesquisas realizadas pensar e o pensar de ordem superior. O
pelo psicólogo, sobre a concepção de desenvolvimento do raciocínio crítico e
pensamento da criança, são permeadas criativo precisa de ambientes e de
de ideias filosóficas. Essas ideias, por práticas pedagógicas que incentivem o
sua vez, são descartadas por não irem ao exercício do pensamento. “Fazer com
encontro de sua concepção que os alunos filosofem é um exemplo
epistemológicas. Os resultados obtidos de como o pensamento de ordem
em suas pesquisas devem estar em superior pode ser estimulado em uma
consonância com as fases do sala de aula, fazendo uso da
desenvolvimento cognitivo. Por isso, comunidade de investigação”
Piaget desconsidera as diferentes (LIPMAN, 1995, p. 38).
posições filosóficas defendidas pelas
crianças. De acordo com Matthews Na concepção lipminiana, a filosofia
(2001, p. 64), essas considerações exerce um papel importante na
contrárias a filosofia são injustificáveis: promoção do pensar reflexivo. Por estar
“o fato de ser possível começar a fortemente arraigada ao problemático,
filosofar com uma criança de maneira ela desafia os conhecimentos vigentes,
tão simples constitui um dado causando desequilíbrio nas diferentes
importante sobre a filosofia e um dado formas de pensar. “O significado dessa
importante sobre as crianças. È algo que procura pelo problemático é que gera o
Piaget não percebeu”. pensamento” (LIPMAN, 1990, p. 52). A
interação reflexiva, própria do fazer
Apesar das divergências entre Lipman e filosófico, incentiva o processo de
Piaget sobre quando as crianças equilibração defendido por Piaget em
começam a raciocinar, há um ponto em sua Epistemologia Genética. Quando as
comum entre os dois pesquisadores. crianças participam de uma prática
Para ambos, o desenvolvimento dialógica, onde todos têm o direito de
cognitivo depende, necessariamente, da opinar e o dever de ouvir as colocações
interação entre organismo e meio. De dos colegas, suas ideias são
acordo com Piaget, o meio físico e constantemente reformuladas. Para
social sofre constantes mutações, Lipman (1990, p. 51) “a filosofia não
rompendo com o estado de equilíbrio do nos motiva a pensar, mas nos faz pensar
organismo. Nesse momento, inicia-se melhor porque fortalece nossas
um processo natural de adaptação do habilidades de raciocínio, de
sujeito às solicitações do meio. investigação e de formação de conceitos
Conforme já havia sido salientado, esse (...)”. Por isso, pode-se dizer que o
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desenvolvimento das habilidades de meio ambiente em que esse está
pensamento defendidas pelo filósofo inserido. No campo pedagógico,
americano, também depende da também há uma grande proximidade
interação entre organismo e meio. entre as duas teorias. Para eles, as
crianças devem ser instigadas a
Mesmo não tendo por principal socializar suas experiências e a serem
propósito apontar respostas sobre o que sujeitos ativos na busca por novos
e como ensinar, Piaget afirma que as conhecimentos. Sobre isso, Piaget
habilidades cognitivas ou o próprio (1996, p. 21-22) descreve que para
conhecimento não são repassados aos “adquirir o sentido da disciplina, da
sujeitos de forma mecânica. Em sua solidariedade e da responsabilidade, a
obra, “Cinco estudos de educação escola “ativa” se esforça em colocar a
moral”, encontra-se mais um ponto em criança numa situação tal que ela
comum à concepção lipminiana. O experimente diretamente as realidades
adulto não deve oferecer respostas espirituais e discuta por si mesma,
prontas aos problemas evidenciados na pouco a pouco, as leis constitutivas”. As
escola. Cabe ao educador criar as crianças que participam ativamente das
condições pedagógicas que possibilitem aulas, dos problemas da escola e ajudam
o debate, a reflexão e o cultivo sério de a criar as leis que regulamentarão a
uma pluralidade de pensamentos. disciplina escolar, aprendem por si
Segundo Piaget (1996, p. 19), “longe de mesmas a agir moralmente. Suas ações
intervir de fora, correndo o risco de não tornam-se autônomas, não dependem
ser ouvido, ele intervém a pedidos e mais da repreensão para agirem bem.
suas palavras adquirem toda a
significação”. Assim como Lipman, ele Com o intuito de desenvolver nos
crítica o método tradicional de ensino educandos a capacidade de pensar por si
baseado na mera transmissão de mesmos, o Programa de Filosofia Para
conhecimentos. A escola deve Crianças e Jovens apresenta uma nova
incentivar a investigação e a proposta educacional segundo uma
comunicação entre os alunos. Nesse metodologia dialógico-investigativa. Na
sentido, Piaget apresenta seu ideal de acepção de Lipman (2001, p. 14), “um
escola, nomeado por ele de “escola dos melhores meios de estimular as
ativa”. Essa escola “baseia-se na ideia pessoas a pensarem é envolvê-las no
de que as matérias a serem ensinadas à diálogo”. Para isso, é indispensável que
criança não devem ser impostas de fora, os alunos venham a participar
mas redescobertas pelas crianças por ativamente das aulas. Enquanto a teoria
meio de uma verdadeira investigação e piagentiana prevê a necessidade de um
de uma atividade espontânea” sujeito intelectualmente ativo, capaz de
(PIAGET,1996, p. 19). procurar por si mesmo compreender o
mundo que o rodeia, Lipman tem por
Em meio a tantas divergências entre propósito apresentar meios que
Lipman e Piaget, o conceito de possibilitem o desenvolvimento da
interação possibilitou aproximar autonomia de pensamento nas crianças.
algumas ideias referentes aos dois Para o filósofo (2001, p. 61), “o
pesquisadores. A organização mental importante é que a imaginação se
em Piaget e o desenvolvimento do desprofissionalize: que as crianças
pensar de ordem superior em Lipman sejam incentivadas a pensar e criar por
pressupõem um constante estado de si mesmas, em vez de o mundo adulto
relação entre sujeito cognoscente e o continuar sempre a pensar e criar por
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elas”. Em suma, não restam dúvidas de ______. O Pensar na educação. Petrópolis:
que são muitos os empecilhos que Vozes, 1995.
dificultam a aproximação entre as duas ______. Filosofia vai à escola. São Paulo:
teorias, porém, com a análise dos Summus, 1990.
principais conceitos que as envolvem MATTHEWS, Gareth B. A Filosofia e a
foram identificados diferentes pontos Criança. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
em comum entre Piaget e Lipman. Os PIAGET, Jean. et al. Cinco estudos de
conceitos de interação, de aluno ativo e educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo,
de escola ativa têm sido essenciais para 1996.
diminuir o abismo existente entre o PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. São
ideal pedagógico lipminiano e a Paulo: Martins Fontes, 1990.
concepção genérica piagentiana. Documentos obtidos via internet
PIAGET, Jean. Saberes e ilusões da Filosofia.
1969. Disponível em:
Referências
<http://www.filoczar.com.br/filosoficos/Piaget/
CHIAROTTINO, Ramozzi. Psicologia e PIAGET,%20Jean.%20Sabedoria%20e%20Ilus
epistemologia genética de Jean Piaget. São %C3%B5es%20da%20Filosofia.pdf> Acesso
Paulo: E.P.U, 1988. em: 09 jan. 2015.
LIPMAN, Matthew; OSCANYAN, Frederick
S.; SHARP, Ann Margaret. A Filosofia na Sala
Recebido em 2015-01-09
de Aula. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.
Publicado em 2015-07-09

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