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O SATÃ DE MILTON NAS ILUSTRAÇÕES DE WILLIAM BLAKE

Patrícia Ribeiro Dantas de Melo e Bertin (PIC – voluntário)


Unespar/Campus I – Escola de Música e Belas Artes do Paraná, patibertin@hotmail.com

Prof. Dr. Fabricio Vaz Nunes (Orientador)


Unespar/Campus I – Escola de Música e Belas Artes do Paraná, fvaznunes@hotmail.com

Palavras-chave: Ilustração de livros. William Blake (1757-1827). Paraíso Perdido.

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa aborda a representação de Satã nas ilustrações do gravador, pintor, poeta e
ilustrador William Blake para o poema épico Paraíso Perdido, escrito pelo poeta inglês John Milton,
buscando estabelecer relações entre o texto e a imagem e analisar a interpretação de Blake,
considerando o conceito de mal presente em suas outras obras. Publicado originalmente em 1667 e
dividido em 12 livros em 1674, o Paraíso Perdido tem como tema primordial a queda de Satã após
insurgir-se contra Deus, assim como a queda de Adão e Eva, expulsos do Paraíso após cederem à
tentação do Diabo e comerem o fruto proibido. Para o poema, Blake produziu três séries de ilustrações
em aquarela: duas séries completas produzidas em 1807 e 1808, primeira a pedido do reverendo
Joseph Thomas; a segunda, encomendada por Thomas Butts, além de uma terceira série incompleta,
para John Linnell. Dentre as ilustrações das primeiras duas séries, foram selecionadas algumas
imagens para a análise proposta na presente pesquisa.
Blake, como já mencionado, além de gravador era poeta e produzia poemas iluminados, ou
seja, poemas que eram impressos a partir de matrizes de metal em que o texto e a imagem conviviam
de forma análoga aos manuscritos medievais, com sua associação muitas vezes íntima e direta entre a
escrita e a iluminura. Através da associação entre o texto e a imagem, Blake expressava as suas visões
políticas e sociais. Munido de uma iconografia e ideologia próprias, ele acabava por trazer referências
de seus trabalhos ao produzir ilustrações para obras de outros artistas, como é o caso de sua
representação do Satã para o poema de Milton.
O destaque dado a esse personagem se justifica, conforme evidenciado por Allyson Knirk, em
seu artigo “The image of Satan in the 1688 edition of John Milton´s Paradise Lost”, porque na
narrativa de Milton Satã se sobressai por ser a figura mais complexa e rica, cheia de ambiguidades,
contradições e características humanas, com as quais o leitor pode se identificar (KNIRK, 2013, p.

1
127). No início do texto, Satã é um anjo caído, com emoções de remorso, empatia e orgulho, porém ao
longo da narrativa sofre uma degradação de caráter, confirmando-se no mal.

Ao longo de Paradise Lost, Satã é exposto como um anjo vaidoso, incapaz


verdadeiramente de frustrar os desígnios divinos, e cujas ações são toleradas por
Deus somente para serem punidas quando bem lhe aprouver [...]. Satã é
progressivamente degradado [,..], ou (o que seria mais ao gosto de Milton) se
degrada a si mesmo (FERNANDES, 2012, p.129).

Nas ilustrações realizadas anteriormente à interpretação visual de Blake, “Satã era geralmente
representado de três formas: como monstro demoníaco, como a serpente, ou como outra forma híbrida.
Raramente era visto semelhante a um humano ou anjo” (KNIRK, 2013, p. 129 [T.L.])1. Essa
degradação do caráter de Satã, conforme menciona Pamela Dunbar em seu livro William Blake´s
Illustrations to the Poetry of Milton, era visualmente representada pela incorporação gradativa de
elementos típicos das representações góticas do
Imagem 1 - The Fall
diabo, como “[...] chifres, cascos, cauda, orelhas
pontudas, asas com espigões” (1980, p. 40 [T.L.])2.
Assim, nas ilustrações da edição de 1688, por
exemplo, Satã é retratado em alguns momentos com
formas humanas, como um anjo, para depois adquirir
determinadas características demoníacas, como se
pode observar na ilustração de John Baptist Medina
(Imagem 1).
Segundo James Treadwell, em seu artigo
“Blake, John Martin, and the illustration of Paradise
Lost”, o poema de Milton nega os recursos visuais ao
leitor, limitando suas possibilidades imaginativas,
pois trata-se de uma história divina que transcende a
compreensão humana através dos sentidos, os quais
estariam ligados ao pecado. Essa ausência de
recursos visuais possivelmente fez com que alguns
ilustradores se voltassem para essas iconografias
John Baptist Medina, 1688
bíblicas tradicionais na criação de suas

1
“[...] Satan was generally depicted in one of three forms: a demonic monster, as the serpent, or as some other
hybrid form. Rarely was Satan seen resembling a human or angel”. No corpo do texto, em tradução livre da
autora, doravante indicada por [T.L.].
2
“[...] Horns, hooves, tail, pointed ears, spiked wings.”

2
representações do poema (TREADWELL, 2012, p. 365-367), enquanto que a interpretação de Blake
diverge dessa tendência, principalmente em se tratando do personagem do anjo caído.
Fala-se em interpretação porque a ilustração literária gera uma relação intermidiática em que a
imagem é produzida a partir do texto; não, porém, como uma tradução, mas sim como uma
transposição, ou seja, uma interpretação na qual o ilustrador seleciona momentos da obra para
representá-los de acordo com suas referências. Segundo Irina Rajeswky (2012, p. 23), em seu texto
“Intermidialidade, intertextualidade e ‘remediação’ – uma perspectiva literária sobre a
intermidialidade”, os casos de intermidialidade podem ser divididos em três categorias: a transposição
intermidiática, também chamada de tradução intersemiótica, quando há o transporte de uma mídia para
outra (da literatura para o cinema, por exemplo); a combinação de mídias, quando uma mesma obra é
formada por diferentes mídias (como no uso do texto combinado com a imagem nas histórias em
quadrinhos); e a referência intermidiática, quando uma mídia faz referências a um produto realizado
em outra mídia (uma pintura com o título de uma poesia, por exemplo). O que ocorre na ilustração
literária é que ela pode ser enquadrada nestas três categorias, pois o ilustrador, interpretando
visualmente o texto, realiza uma transposição intermidiática que, no livro ilustrado, se configura como
uma combinação de mídias e que pode também fazer referência a outras obras, como pinturas, por
exemplo.
O professor Joseph H. Schwarcz, citado por Nikolajevna e Scott (2011, p. 23), por sua vez,
esclarece que dentre as várias modalidades de relações entre o texto e a imagem, a mais rica é a de
contraponto, noção que permite compreender aproximações e afastamentos entre a obra literária e a
obra criada pelo ilustrador, incluindo assim os casos em que a ilustração traz uma interpretação
diferente do texto que pode, inclusive, ser contrária à intenção original do autor literário. Essas
questões relativas à transposição, referência a outras mídias e relação de contraponto podem ser
verificadas nas ilustrações de Blake para o Paraíso Perdido, quando analisada a representação singular
que ele faz do personagem Satã, o qual não sofre alteração corporal, mantendo-se a figura de um
homem heroico e assim relacionando-se não apenas com o texto, mas também com o conceito de mal
apresentado por Blake em seu próprio universo artístico.

O SATÃ DE WILLIAM BLAKE PARA O PARAÍSO PERDIDO

A riqueza nas produções imagéticas de Blake para a obra de Milton deve muito ao fato de que
elas carregam todo um arcabouço de referências artísticas e estilísticas e também de seu próprio
trabalho. Através de seus poemas iluminados, Blake construiu toda uma mitologia que representava
suas ideologias sobre o homem e a sociedade em que vivia. Suas iluminuras não apenas

3
complementavam aquilo que o artista queria transmitir com seus poemas, como também funcionavam
de forma independente, desenvolvendo uma narrativa própria, o que também acontece com suas
ilustrações para os trabalhos de outros artistas (DUNBAR, 1980, p. 8).
Dentre as referências artísticas de Blake, Alcides Cardoso dos Santos, em seu livro Visões de
William Blake, destaca “[...] a arquitetura e a pintura góticas, a representação pictórica do corpo na
Renascença e a tradição medieval das iluminuras” e também o apreço pelo trabalho de Michelangelo e
Rafael (SANTOS, 2009, p. 57).
O enfoque desta pesquisa se dá sobre a Imagem 2 - Satan arousing the rebel angels
representação que o ilustrador faz do personagem de
Satã, por ele ser retratado “como uma figura humana
ao longo de todo o poema, exceto nos últimos dois
Livros em que ele é a serpente. Não há degradação
visual do personagem de Satã” (KNIRK, 2013 p. 156
[T.L.])3. Isso pode ser identificado na análise das
imagens com relação ao texto.
A primeira ilustração a ser analisada representa
o momento, narrado no Livro I, em que Satã conclama
suas hostes de anjos após a queda no Estige, o lago de
fogo do inferno, para que continuem lutando contra a
tirania divina. Milton menciona que o inferno é curvo
de cantos como um forno, escuro, seco, desolado e com William Blake, 1808.

chamas que não emitem luz. Um ambiente sufocante e


cheio de fumaça, condizente com a representação feita por Blake. O próprio recorte da composição
confere esse caráter claustrofóbico ao ambiente. Outros elementos mencionados ao longo do Livro I
também estão representados, como a lança e escudo de Satã, os grilhões adamantinos que prendem os
anjos caídos e suas faces de dor e sofrimento que refletem à descrição de Milton do inferno. A
referência textual para a ilustração é o seguinte trecho:

Contudo persistia, e na praia


Desse fervente mar chamou seus anjos,
Legiões em transe, bastos como folhas
De outono que percorrem cursos de água
[...]
Cobriam a maré, e rebaixados
Sob o assombro de tão dura mudança.

3
“[...] Satan as a human figure throughout the entirety of the poem, except for the last two Books in which he is
the serpent. There is no visible degradation of Satan´s character.”

4
Chamou num grito e o fundo infernal
Ressoou (MILTON, 2016, p. 57).

Essa primeira imagem já demonstra a singularidade na representação do personagem. O Satã


de Blake apresenta-se como uma figura altiva, de braços estendidos e com um corpo musculoso que
inspira vitalidade, saúde e força. A própria composição da imagem, com a figura de Satã centralizada
e em escala maior que os demais anjos caídos, confere essa dimensão heroica ao personagem segundo
a interpretação do ilustrador. Tal representação pode gerar um estranhamento inicial levando em
consideração a ideia comum de que o Diabo seria o representante do mal, e, por sua vez, não poderia
ser um herói.
Pode-se dizer que Blake não apenas representa um herói épico, mas também um símbolo, um
ideal. A representação extrapola a forma humana, mesmo que idealizada, para também expressar algo
além do visual, uma ideia revolucionária, uma força que não pode ser negada e um modelo a ser
seguido. A presença de uma figura que representa um símbolo é corroborada pela mitologia de Blake,
rica em simbolismos. Essa figura será repetida por diversas vezes na série feita por Blake preservando
essas mesmas características, o que evidencia a particularidade da sua interpretação.
Blake provavelmente teve contato com as ilustrações feitas anteriormente por John Baptist
Medina, Henry Aldrich e Bernard Lens, pois é perceptível uma
referência com relação à composição destas. Outra influência Imagem 3 – David
decisiva, já mencionada e que se estende por toda sua obra, é a de
Michelangelo Buonarroti:

Para Blake, o modelo do artista “sublime”,


quase um demiurgo entre céu e terra, é
Michelangelo: com seu michelangelismo
rigoroso, ele se opõe ao classicismo
eclético, rafaelesco e correggiano, de
Reynolds. Na verdade, é de Michelangelo
que ele capta a profunda tendência
anticlássica, isto é, o antinaturalismo e a
inclinação ao simbolismo (ARGAN, 2006,
p. 36).

A pose de Satã, bem como seu físico antinatural são


similares à escultura de David (Imagem 3) feita pelo artista
italiano e ao ideal estético característico do Renascimento, Michelangelo Buonarroti, 1501-
1504.
derivado do naturalismo greco-romano. É uma estética que

5
permanece na atualidade e que por diversas vezes se faz presente quando são retratadas figuras
heroicas nas diferentes mídias. Essa anatomia perfeita é uma forma de representar um ser ideal,
superior ao humano, como os heróis da própria mitologia greco-romana ou figuras divinas.
Assim como nessa primeira ilustração, Dunbar (1980, p. 36) evidencia que metade das
ilustrações para o Paraíso Perdido concordava com cenas específicas da narrativa, enquanto que nas
demais Blake trazia elementos diversos presentes no texto, compondo imagens que buscavam refletir a
complexidade de referências cruzadas presentes nele. A autora esclarece que o objetivo de retratar um
único incidente seria conferir maior dramaticidade à imagem, como no caso do clamor de Satã aos
seus pares, ou ainda do confronto entre Satã, Morte e Pecado, quando o Diabo decide sair do inferno e
se depara com essas duas figuras guardando os portões.
A segunda ilustração, referente ao Livro II
Imagem 4: Satan, sin and Death: Satan (Imagem 4), representa, então, o exato trecho desse
comes to the gates of hell
confronto, em que Satã e Morte miram suas lanças um
na cabeça do outro na iminência de uma tragédia,
quando Pecado intervém gritando, conforme pode-se
verificar no trecho abaixo:

À cabeça
Ambos visam o alvo, e as mãos frias
Tinham um golpe só
[...]
Tanto franziam testas os maus púgeis
Que o inferno fechou de tão renhidos;
Pois nenhuma vez mais a não ser uma
Veriam tal rival. E grandes atos
Repercutidos no orco se dariam,
Não fosse a serpentil bruxa assente
Junto aos portões, que a chave fatal guarda,
Se erguer, e interpor gritos terríveis (MILTON, 2016, p.
William Blake, 1808. 161).

A dramaticidade da cena é corroborada pelo recorte que Blake faz, ao focalizar a cena no
embate entre os personagens. É perceptível a tensão do momento pela iminência de um confronto
entre Satã e Morte, as duas figuras nas extremidades da imagem e pelo desespero de Pecado,
colocando-se entre os dois, para impedi-los. Tanto pelos elementos que compõem o ambiente da cena,
como o Portão atrás de Morte e o fogo infernal atrás de Satã, quanto pela concepção corporal dos
personagens, a fidelidade da representação fica evidente.
Morte é descrito por Milton como uma existência sem forma, com uma coroa na cabeça,
brandindo um dardo negro e Blake o representa como o espectro da figura de um homem, descartando

6
a tradicional representação da Morte como um esqueleto. Segundo Dunbar, “A intenção é claramente
transmitir não os horrores da morte, mas sua relevância para a condição humana e o fato de que no
momento do encontro com Satã ela ainda era inapreensível, e inconcebível para o homem” (1980, p.
51, [T.L.])4. Trata-se de uma referência para o fato de que a morte, até aquele momento, não era algo
presente para a existência humana.
Interessante notar a atenção aos detalhes dada pelo ilustrador, uma vez que ele representa a
chave do portão do inferno acorrentada junto ao ventre de Pecado, cuja imagem também é muito
próxima da descrição de Milton, conforme consta no trecho a seguir:

E portentosas
Formas de ambos os lados as velavam:
Uma, mulher até a cinta grácil,
Porém era no mais grosseira, escâmea,
Convoluta, vultosa, serpe armada
Com cúspide mortal; cingido ao ventre,
Um ninho de infernais mastins ladrando
Com suas cavernais goelas de Cérbero
Tetro repique davam; mas, reptantes,
Se estranhos ecos soassem, regressavam
À casota do ventre a uivar
No seio cego. (MILTON, 2016, p. 155)

Imagem 5 - Satan and Death with Sin Intervening


A figura de Satã mantém-se inalterada,
como um homem heroico, altivo, com traços bem
definidos. Essa imagem remete a vários artistas
contemporâneos de Blake que fizeram
composições muito semelhantes, como por
exemplo William Hogarth. No entanto,
possivelmente, a imagem que teria sido usada
como referência para o trabalho do gravador seria
a composição feita por Henry Fuseli (Imagem 5),
amigo de Blake e com o qual mantinha uma
reconhecida relação de mútua influência
(DUNBAR, 1980, p. 7).
John Henry Fuseli, 1799-1800
Outro exemplo da inalterabilidade da
imagem de Satã nas ilustrações de Blake é a representação do momento em que Satã observa Adão e
Eva trocando carícias (Imagem 6), que faz menção ao seguinte trecho do Livro IV:

4
“The intention is clearly to convey not the horrors of death but its relevance to the human condition and the fact
that ate the time of the encounter with Satan it was still unrealized, and inconceivable to man.”

7
Falou a nossa mãe, e com olhar
De atração conjugal sem repreensão,
Com mansa submissão, meio abraçada
Imagem 6 - Satan watching the endearments Tombou no nosso pai, e em parte o túrgido
of Adam and Eve Peito o seu peito achou, sob o ouro fluído
Das suas tranças soltas clandestino.
Ele da sua beldade e encantos dóceis
Cheio sorriu de amor celso, qual Júpiter
Que a Juno sorri, quando impregna as nuvens
Que efundem flores de Maio; e atou o lábio
Da mulher a alvos beijos. (MILTON, 2016, p. 293).

Essa imagem traz elementos de diferentes


momentos do Livro IV. Mais especificamente, é
possível mencionar duas cenas mescladas como fontes
textuais para a ilustração: a cena em que Satã se
encanta ao ver pela primeira vez Adão e Eva e a cena
em que ele, transformado em onça, vê Adão e Eva se
beijando.
William Blake, 1808. O texto menciona que Adão e Eva estariam
sentados numa cama de rosas; também descreve a
Imagem 7 - The rout of the rebel angels,
vegetação e a passagem do tempo, com a noite caindo
e do sol se pondo, elementos que são incorporados na
imagem e que novamente demonstram o diferencial do
ilustrador: sua atenção aos detalhes textuais mais
discretos, que escapariam a outros ilustradores
(DUNBAR, 1980, p. 37). Interessante também é
pontuar que a cobra – que envolve Satã – é
reproduzida de maneira antecipada, como uma
prolepse ao que ocorrerá no futuro da narrativa.
Percebe-se uma certa semelhança entre a figura de
Adão e de Satã, que se diferenciam apenas pelas asas e
pela cobra, o que pode ser um recurso utilizado pelo
artista justamente para estabelecer a diferenciação
William Blake, 1808.
entre os personagens.

8
Em outra ilustração da mesma série, referente ao Livro VI, em que o anjo Rafael conta sobre a
guerra no céu, Blake escolhe representar o momento em que Cristo usa suas flechas para expulsar os
anjos caídos (Imagem 7):

Porém não avançou metade à força,


Mas restringiu o tiro a meia salva,
Pois não queria abatê-los, mas do Céu
Extirpá-los. Levantou-os, e qual fato
De cabras ou rebanho em tropel trêmulo
Levou-os fulminados, perseguidos
Com fúrias e terrores ‘té às raias
E ao muro de cristal do Céu, que abrindo,
A viseira arrolou, e extensa fenda
Destapou p´ra o abismo; a visonha
Fê-los recuar de medo, mas de trás
Pior os impeliu; precipitaram-se
Orla do Céu abaixo (MILTON, 2016, p. 467).

Novamente o personagem de Satã se mantém inalterado, no centro inferior da imagem, a qual


possivelmente traça uma referência à composição barroca, podendo ser divida em duas partes: acima o
divino, limpo e claro; e abaixo o inferno caótico e obscuro. Da mesma forma as poses acabam por
evidenciar essa representação musculosa do Diabo e seus seguidores.
Na ilustração de Blake (Imagem 8) referente ao
Imagem 8 - Satan spying on Adam and Eve
Livro V, são colocadas duas cenas: a cena em que Rafael and Raphael descending to paradise
desce ao paraíso a pedido de Deus, para alertar Adão e Eva
sobre a presença de Satã, e a cena em que Satã espiona Adão
e Eva. A imagem apresenta simetria, com duas figuras
centrais destacadas pelo conjunto de nuvens que se abrem
em “V” e duas figuras tanto do lado direito quanto do lado
esquerdo: à direita Adão e Eva, e à esquerda Satã e a
serpente.
Segundo Dunbar (1980, p. 38), provavelmente Blake
faz a figura de Adão muito semelhante a Satã de forma
proposital, porque Satã é o alter-ego de Adão em sua
mitologia. Esses dois personagens seriam duplos. Na
imagem, Adão se relaciona com Eva, aquela que se origina a William Blake, 1807.

partir de sua costela, ou seja, de seu interior; e Satã se


relaciona com a serpente que também viria de seu interior, considerando-se que ela representaria essa
confirmação psicológica de Satã no mal.

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Um aspecto curioso apontado por Pamela Dunbar (1980, p. 62) é que a paisagem em que os
personagens das laterais estão situados identifica-se com sua dimensão psicológica. Satã é situado
numa paisagem inóspita com a serpente, refletindo os pensamentos tortuosos de sua mente; e Adão e
Eva são colocados numa paisagem de natureza, representando sua pureza e inocência. Satã se
assemelha à figura de Adão para possivelmente evidenciar uma relação que o ilustrador quer
estabelecer, em que Satã faria parte de Adão, podendo equivaler a um aspecto da personalidade do
homem.
Através desses elementos de representação percebe-se uma possível intenção do ilustrador em
representar algo para além do poema, no caso, a sua interpretação do que o mal presente em Satã
representaria. Então, além do artista ilustrar o personagem de Milton, ele também faz uma figura
imbuída do seu conceito de mal e da sua mitologia. Dentre os livros iluminados que o gravador fez,
aquele que mais evidencia esse conceito de mal defendido por ele é O Casamento do Céu e do
Inferno:

Sem contrários não há progresso. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e


Ódio, são necessários à existência humana.
Desses contrários decorre o que os religiosos chamam de o Bem e o Mal. Bem o
passivo que obedece à Razão. Mal o ativo que emana da Energia.
O Bem é o céu. O Mal, o inferno.
[...]
Nota: A razão pela qual Milton estava agrilhoado quando escreveu sobre os Anjos e
Deus, e em liberdade quando sobre os Demônios e o Inferno, é que era um
verdadeiro Poeta e do partido do Demônio sem saber (BLAKE, 2008, p. 23-27).

O mal, para Blake, diverge do conceito convencionado pela Igreja; trata-se não de algo
negativo, mas sim de um agir, de uma energia revolucionária dirigida contra as opressões. Seria um
ataque à moralidade e religiosidade ortodoxa que destrói a liberdade sexual, artística e política. A
nomenclatura de “mal” com que essas entidades opressoras caracterizam aquilo que ameaça seu
poderio, é subvertido por Blake como algo a ser usado contra elas (DUNBAR, 1980, p. 40).
Tanto o mal quanto o bem, seriam, portanto, elementos que fazem parte do ser humano, e que
devem estar em equilíbrio para uma plenitude de vivência, sem a ameaça de repressão por outros
homens ou instituições sociais. Segundo Blake (2008, p. 25) “A Energia é a única vida e emana do
Corpo, e a Razão é o limite ou círculo exterior da Energia”, ou seja, para uma vivência plena é
necessária essa existência equilibrada da energia vital limitada pela razão.
Blake era um crítico do que ele chamava de religião oficial, um sistema criado pela religião
cristã, que, ao pregar a separação de Deus e do homem, criava um ser místico a ser alcançado e um
indivíduo que deveria obedecer às suas leis sem questionar. E esse sistema se valia da dualidade entre
bem e mal ‒ o bem como algo a ser alcançado pelo homem, para se aproximar de Deus, e o mal como

10
a prática de atos reprováveis – para manter a dominação do homem sobre seus semelhantes (SANTOS,
2009, p. 41). Então, para Blake, o mal seria o agir que vem da energia, e o bem a passividade que vem
da razão. Possivelmente por esse motivo, as suas representações visuais do Satã trazem uma figura
heroica, que não se altera. Trata-se do representante da energia revolucionária, capaz de se contrapor a
essas estruturas de opressão que se valem da passividade. É nesse sentido, assim, que se estabelece a
relação de contraponto entre a obra de Milton e a imagem produzida por Blake.
Em seu poema épico intitulado Milton, Blake constrói uma narrativa na qual ele se apresenta
como um personagem, dentre vários outros presentes em sua mitologia, assim como Satã. O poema
conta a jornada de Milton, guiado por Blake, para corrigir seus erros. O autor estabelece que para
redimir os contrários, possivelmente referindo-se à dualidade entre bem e mal, seria necessário
destruir a negação, relacionada à racionalidade:

Há uma Negação, & há um Contrário


A Negação deve ser destruída para redimir os Contrários
A Negação é o Espectro; o Poder Raciocinador no Homem
Este é um Corpo falso: uma Incrustação sobre o meu Espírito
Imortal: um Ego, que deve ser despido & aniquilado para sempre
Limpar o Rosto do meu Espírito em Exame de Consciência (BLAKE, 2014, p. 217).

No Casamento do céu e do inferno, Blake explicita que quando o indivíduo permite que a
razão cresça ao ponto de restringir sua liberdade, ele passa a ser governado por opressores (BLAKE,
2008, p. 27). Blake via seu tempo como de exacerbada razão, sendo necessário um equilíbrio, o qual
apenas poderia ser alcançado com uma força enérgica que enfrentasse a passividade predominante.

CONCLUSÃO

A figura de Satã, como representante do mal de acordo com os conceitos de Blake,


simbolizaria um dos elementos que compõem essa dualidade presente no homem, que engloba a
passividade e o agir, bem e mal. Satã seria, conforme a visão de Blake, o herói, representante do agir,
que vem libertar o homem da sua condição de opressão das instituições dominantes, proporcionando-
lhe a energia necessária para que ele se apodere da razão e não seja dominado por ela.
Isso justifica a representação singular dada pelo artista a esse personagem, o qual se mantém
como a figura de um homem, altivo, imponente, heroico e semelhante a Adão. Ele seria um reflexo da
energia necessária para eliminar o excesso de passividade presente na sociedade. Seria o representante
do ideal revolucionário que ressignifica o conceito de mal adotado pela Igreja para dominar os
homens, transformando-o numa força contrária à opressão e que busca reestabelecer o equilíbrio. Em
um cenário de exacerbada racionalidade, o representante da energia, capaz de restaurar o equilíbrio e

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conferir autonomia ao homem, seria visto como um grande herói.
Portanto, é possível perceber que a representação de Blake diverge das demais e confere um
novo espírito ao personagem de Satã, pois ele não é, nestas imagens, apenas o personagem criado por
Milton e por este motivo não haveria representação visual da sua degradação. Através da
representação heroica e ideal feita por Blake, Satã é ressignificado para se torna também um símbolo
da energia revolucionária, representante do conceito de mal defendido por ele.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. 3. ed.. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

BLAKE, William. Milton. Trad. Manuel Portela. São Paulo: Nova Alexandria, 2014.

_____. O Casamento do Céu e do Inferno. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Hedra, 2008.

DUNBAR, Pamela. William Blake´s Illustrations to the Poetry of Milton. New York: Oxford
University Press, 1980.

FERNANDES, Fabiano Seixas. O Satã de John Milton. In: MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo
et al. (orgs.). O Demoníaco na Literatura. Campina Grande: EDUEPB, p. 125-137, 2012.

KNIRK, Allyson. The image of Satan in the 1688 edition of John Milton´s Paradise Lost. Oakland
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http://www2.oakland.edu/oujournal/files/24_the_image_of_satan.pdf. Acesso em: 18, jun., 2019.

MILTON, John. Paraíso perdido. Trad. Daniel Jonas. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2016.

NIKOLAJEVNA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. Trad. Cid Knipel.
São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

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sobre intermidialidade. Trad. Thaïs Flores Nogueira Diniz e Eliana Lourenço de Lima Reis. In:
DINIZ, Thaïs Flores Nogueira (org.). Intermidialidades e estudos interartes: desafios da arte
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SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake: imagens e palavras em Jerusalém a
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TREADWELL, James. Blake, John Martin, and the illustration of Paradise Lost. Word & Image: A
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Fontes das imagens

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dpedagogy.com/pedagogy/category/assignments/3. Acesso em: 18, jun., 2019.

12
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Imagem 3: BUONARROTI, Michelangelo. David. 1501-1504. 1 fotografia.


Disponível em: http://www.culturagenial.com/davi-de-michelangelo/. Acesso em: 18, jun., 2019.

Imagem 4: BLAKE, William. Satan, Sin and Death: Satan comes to the gates of hell. 1808. 1
ilustração. Disponível em: http://www.bl.uk/collection-items/william-blakes-illustrations-for-paradise-
lost-1808. Acesso em: 18, jun., 2019.

Imagem 5: FUSELI, John Henry. Satan and Death with Sin Intervening. 1799-1800. 1 pintura.
Disponível em: http://gallerix.org/album/Lacma/pic/glrx-1670604. Acesso em: 18, jun., 2019.

Imagem 6: BLAKE, William. Satan watching the enderments of Adam and Eve. 1808. 1 ilustração.
Disponível em: http://www.bl.uk/collection-items/william-blakes-illustrations-for-paradise-lost-1808.
Acesso em: 18, jun., 2019.

Imagem 7: BLAKE, William. The rout of the rebel angels. 1808. 1 ilustração. Disponível em: http://
www.bl.uk/collection-items/william-blakes-illustrations-for-paradise-lost-1808. Acesso em: 18, jun.,
2019.

Imagem 8: BLAKE, William. Satan spying on Adam and Eve and Raphael descending to
paradise. 1807. 1 ilustração. Disponível em: http://www.blakearchive.org/copy/but529.1?descId=but5
29.1.wc.04. Acesso em: 18, jun., 2019.

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