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PARTE 1

Compreendendo as altas
habilidades/superdotação
Autores:
Isabela Sallum – Psicóloga e Mestre em Medicina Molecular pela UFMG
Leandro F. Malloy-Diniz – Psicólogo. Professor universitário (UFMG),
Doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular (UFMG); Mestre em Psicologia (UFMG)
PARTE 1:
Definindo
Inteligência
Superdotação é um daqueles termos que todo mundo já ouviu sobre, mas que, no geral, temos pouco conhecimento
do que isso significa efetivamente. Talvez você já tenha ouvido falar sobre “crianças prodígio” ou pessoas que apre-
sentam algum talento muito acima da média esperada. Com frequência alguns desses indivíduos são evidenciados
nos diferentes meios de comunicação, e criamos um certo fascínio por conhecer mais sobre pessoas que diferem
tanto daquilo que estamos acostumados a ver rotineiramente.
Ainda assim, será que podemos categorizar pessoas com desempenho elevado em diversas áreas do conhecimento,
ou com um talento específico, ou mesmo as tais “crianças prodígio” como tendo altas habilidades ou sendo superdo-
tadas?
A verdade é que a classificação dentro desta terminologia é complexa, uma vez que não há um consenso definidor
do que é a superdotação. As definições podem ser complexas porque diferentes autores abarcam o tema de maneira
distinta. No Brasil, segundo a definição do Ministério da Educação e Cultura (MEC), superdotação e altas habilidades
seriam termos análogos e representariam qualquer pessoa com habilidades superiores em um ou mais domínios. Já
como você verá ao longo deste texto, existem diversos outros modelos que tentam compreender este fenômeno, mas
todos eles têm em comum um fator necessário para se definir um superdotado: a presença de nível intelectual eleva-
do. Para o conceito de altas habilidades, há ainda a proposta de que o indivíduo poderia possuir nível de habilidade
muito acima da média em uma área específica de conhecimento ou atividade (o que comumente chamamos de ta-
lento), e não necessariamente um desempenho elevado na capacidade intelectual geral.
Sendo assim, antes de apresentarmos os modelos de superdotação, precisamos compreender o que define a inte-
ligência. Esta cartilha é dividida em três partes: nesta primeira, compreenderemos melhor o conceito de inteligência
para em seguida tratarmos, na segunda parte, sobre os modelos de superdotação e, na terceira parte, as característi-
cas associadas a tal perfil, aspectos relacionados à saúde mental e intervenções.
O que é inteligência?

Difícil responder, não apenas para quem é leigo no assunto. Mesmo os psicólogos e pesquisadores
sobre esse tema ainda apresentam muitas dúvidas sobre o que é exatamente a inteligência. E essa
discussão não é nova. Há mais de 100 anos, psicólogos que estudam as diferenças individuais em
relação às funções cognitivas humanas tentam explicar o que é inteligência, quais são seus compo-
nentes, como ela se desenvolve e o que explica como ela varia entre as pessoas, além do porquê
existem os casos extremos: a deficiência intelectual e a superdotação.
Para começar, vamos atribuir a definição consensual sobre o que é inteligência. A inteligência se re-
fere à capacidade cognitiva geral. Envolve, dentre outras coisas, a habilidade de raciocinar, planejar,
resolver problemas, pensar de forma abstrata, compreender ideias complexas, aprender rapidamen-
te e a partir da experiência1.
O estudo da inteligência é amplo, e por isso existem diversas abordagens e modelos que buscam
explicar este construto. Atualmente, dois tipos de modelos de inteligência são os mais conhecidos e
utilizados: os modelos fatoriais e os modelos globais.
Modelos fatoriais de inteligência

Os modelos fatoriais avaliam aptidões e capacidades fluida e cristalizada. A inteligência fluida envolveria a
ligadas à cognição geral e se baseiam em estudos psi- capacidade de abstrair novas compreensões a par-
cométricos destas habilidades (que envolvem a aná- tir de situações ou eventos apresentados, e diria res-
lise estatística do desempenho em testes cognitivos). peito à nossa capacidade de raciocínio mais básico.
A ideia desses modelos é que, ao medirmos diferen- Estaria, desta forma, relacionada com a capacidade
tes processos e habilidades, verificamos que estes se de resolver problemas novos, com os quais não se
estruturam de maneira a observamos um fator geral teve contato anteriormente, e com a aquisição de no-
de inteligência, que chamamos de fator g. Muitos des- vas aprendizagens. Já a inteligência cristalizada di-
tes modelos apontam1 que o fator g é composto por ria respeito à capacidade de reutilizar informações já
outros fatores e facetas de habilidades, que variam de aprendidas – reproduzir um conteúdo adquirido pre-
nível mais amplo até mais específico. viamente. Envolve o acúmulo de conhecimento e ha-
Os estudos psicométricos da inteligência e seus mo- bilidades aprendidos ao longo da vida. Neste sentido,
delos fatoriais são os mais comprovados cientifica- seria como um produto do investimento da inteligên-
mente, e um dos modelos mais famosos sobre inte- cia fluida nos domínios de aprendizagem2. A figura 1
ligência, proposto por Raymond Cattell, afirma que abaixo apresenta uma representação da divisão entre
a inteligência geral seria subdividida em inteligência inteligência fluida e inteligência cristalizada2.
Capacidade mais básica de raciocínio Capacidade de reutilizar informações

e de abstração. Relacionada à capaci- já aprendidas. Diz respeito ao acúmu-

dade de resolver problemas novos. lo de conhecimentos e habilidades


aprendidas. Dependente do ambiente
e da cultura.

FATOR G

Inteligência Inteligência
Fluida Cristalizada

Fonte
Sendo assim, por exemplo, ao estar frente a situações novas com as quais você nunca lidou, você precisará de habilidades fluidas para pensar em soluções para os problemas apresentados. Já quando alguém lhe pergunta, por exemplo, para definir o que é inteligência, você irá buscar seus conhecimentos já
aprendidos sobre esse conceito e irá dizer que “a inteligência diz respeito à nossa capacidade cognitiva geral e está relacionada com a nossa capacidade de raciocinar, planejar, resolver problemas e pensar de forma abstrata”. Este conceito lhe foi ensinado agora há pouco, por isso não se trata de uma situação
nova que você deve resolver.
Embora esses dois componentes de inteligência contenham uma base genética importante, alguns autores sugerem que este impacto genético é maior sobre a inteligência fluida, sendo que ela é menos impactada por fatores ambientais ou culturais. Além disso, estas habilidades fluidas também começam a
decair mais rapidamente ao longo do desenvolvimento quando comparadas às habilidades ligadas ao componente da inteligência cristalizada. A inteligência cristalizada, por sua vez, é mais dependente de fatores ambientais e sofre mais efeito da aprendizagem formal e experiências de vida. Ao longo do de-
senvolvimento, estas habilidades tendem a se desenvolver por mais tempo e demoram mais a decair com a senilidade3.
Podemos distinguir esses dois tipos de habilidade através dos estudos fatoriais, mas é importante lembrar que os dois compõem a capacidade de inteligência geral (fator g), e por isso também dividem alguns aspectos em comum. Também é importante considerar que o mais frequente é que precisemos utilizar
esses dois componentes em conjunto. Por exemplo, ao realizar uma prova de matemática, a criança muitas vezes se depara com questões novas com as quais ainda não teve experiência, mas ela já havia estudado e guardado informações quanto a procedimentos necessários para realizar a atividade deman-
dada. Neste sentido, ela depende tanto de aspectos fluidos quanto cristalizados para resolver as questões apresentadas.
O modelo Cattell-Horn-Carroll (CHC)

Um pouco depois de Cattell, John Horn expandiu o modelo de Inteligência fluida - Inteligência cristalizada. Ele identifi-
cou, além destas habilidades, a existência de outros fatores cognitivos, como a organização visual, organização auditiva
e velocidade perceptiva, memória episódica, armazenamento de longo-prazo, raciocínio espacial e raciocínio quantita-
tivo3. Em seguida, John Carroll expandiu a ideia desses autores propondo que a inteligência se organiza de forma hie-
rárquica, como se fosse em estratos ou camadas. Assim, teríamos uma camada mais abrangente, a camada 3, contendo
apenas um fator (inteligência geral, ou fator G). Em seguida uma mais específica, contendo domínios cognitivos como
os descritos por Cattell e Horn (exemplo: inteligência fluida e inteligência cristalizada). Por último, na camada 1, aspectos
bem mais específicos de cada uma dessas camadas intermediárias (Figura 2)5.

ESTRATO III

ESTRATO II Gf Gc Ga Gv Gg Gy Gs Gt

ESTRATO I
A evolução desses modelos teóricos deu origem a uma teoria integra- disso deve ter uma base biológica bem definida e uma plausibilidade
dora que leva o nome desses três grandes nomes da Psicologia - Cat- do ponto de vista da evolução da nossa espécie (isto é, foi importante
tell-Horn-Carrol, ou modelo CHC de inteligência. Esta proposta enfatiza para a nossa existência e passou a ser parte da natureza humana. E,
a natureza multidimensional da inteligência, e afirma que esta capaci- por último, deve estar relacionado a habilidades que executamos no
dade estaria distribuída de maneira hierárquica em três níveis ou estra- nosso dia a dia: ou seja, deve ter um respaldo quanto à sua aplicabi-
tos. O nível mais complexo, chamado de terceiro estrato, diz respeito à lidade na nossa vida. Deve, por exemplo, predizer sucesso na escola,
inteligência geral. O segundo nível, ou segundo estrato, diria respeito a nos relacionamentos sociais e em vários outros fatores, dependendo
habilidades mais gerais. No modelo inicial, foram definidas 10 capaci- do fator em questão.
dades que comporiam este segundo estrato: a inteligência fluida, cris- Como é um modelo científico de inteligência, ele não está acabado e
talizada, conhecimento quantitativo, leitura e escrita, memória de cur- vai se modificando de acordo com os avanços da ciência. Um recente
to-prazo, processamento visual, processamento auditivo, capacidade livro publicado em 2018 propõe a existência de outros componentes
de armazenamento e recuperação da memória de longo-prazo, velo- que comporiam o segundo estrato. Estes componentes e suas defini-
cidade de processamento e rapidez de decisão. Nota-se que estas ha- ções estão apresentados na tabela 1 deste documento, associadas a
bilidades formam fatores que integram a inteligência geral. Além disso, seus respectivos componentes do primeiro estrato6.
haveria um terceiro nível que comporia o primeiro estrato, que consiste De maneira geral, o modelo CHC consegue englobar a perspectiva da
nas habilidades específicas associadas a cada um dos domínios cog- existência comprovada de uma inteligência geral, mas esta seria com-
nitivos5. O mais legal desse modelo é que não basta pensar em definir posta por domínios cognitivos mais amplos, seguidos de habilidades
o que seria uma inteligência. Há critérios bem definidos para isso. Um específicas que compõem esses domínios. Assim, da mesma forma
fator deve ser definido de forma clara, deve ser mensurável e devem como observado nos estudos fatoriais iniciais sobre inteligência, ob-
existir evidências científicas fortes de validade convergente e discrimi- serva a presença de um fator geral de inteligência, mas também abra-
nante que o sustentem como um fator digno de entrar no modelo. Além ça seu perfil multidimensional.
TABELA 1. MODELO CATTELL-HORN-CARROLL (CHC)6
Estrato 2 Estrato 1 Definição
Gf (raciocínio fluido) 1. Indução Uso deliberado e controlado da atenção para resolver problemas que estão em foco e que não podem ser resolvidos usando conheci-
2. Raciocínio sequencial (dedutivo) mentos automatizados previamente, como hábitos, scripts, e outros esquemas cognitivos e comportamentais.
3. Raciocínio quantitativo
4. Velocidade de Raciocínio
5. Raciocínio Piagetiano

Gwm (memória operacional) 1. Armazenamento auditivo de curto prazo Habilidade de codificar, sustentar e manipular informações verbais e visuais evitando distratores para resolver problemas diversos.
2. Armazenamento visual de curto prazo
3. Controle atencional
4. Capacidade da Memória Operacional

Gl (eficiência da aprendizagem) 1. Memória associativa Habilidade de aprender, armazenar e consolidar informações na memória de longo prazo.
2. Memória para significados
3. Memória de reconhecimento livre

Gr (fluência de evocação) 1. Fluência de ideias Taxa e fluência na qual o indivíduo consegue evocar conhecimentos verbais e não verbais armazenados na memória.
2. Fluência de expressão
3. Fluência de Associação
4. Fluência de soluções alternativas
5. Originalidade/Criatividade
6. Velocidade de acesso ao léxico
7. Facilidade de nomeação
8. Fluência de verbal
9. Fluência para figuras
10. Flexibilidade para figuras

Gs (velocidade de processamento) 1. Velocidade perceptiva Habilidade de controlar a atenção e, de forma fluente, responder a estímulos em tarefas cognitivas simples e repetitivas.
2. Velocidade na busca perceptiva
3. Velocidade na comparação perceptiva
4. Facilidade numérica
5. Velocidade de escrita
6. Velocidade de leitura
Estrato 2 Estrato 1 Definição
Gt (velocidade de reação e de decisão) 1. Tempo de reação simples Velocidade com a qual o indivíduo processa, discrimina, julga e decide sobre estímulos simples.
2. Tempo de reação com escolha
3. Tempo de inspeção
4. Velocidade de processamento semântico
5. Velocidade de comparação mental.

Gps (velocidade psicomotora) 1. Velocidade de movimento dos membros Habilidade de usar a imaginação visual, armazenar imagens na memória de curto prazo, fazer análises visioespaciais e transformações
superiores e inferiores mentais de imagens.
2. Velocidade de escrita (também descrita
nos fatores Grw e Gps)
3. Velocidade articulatória
4. Tempo do movimento

Gc (habilidade cristalizada; conheci- 1. Conhecimento (verbal) geral O nível de conhecimento adquirido a partir de uma determinada prática cultural. Conhecimento de palavras, fatos e eventos, desenvolvi-
mento - compreensão) 2. Desenvolvimento da Linguagem dos e acumulados ao longo da experiência de vida.
3. Conhecimento Lexical
4. Compreensão auditiva
5. Habilidade comunicacional
6. Consciência gramatical

GKn (conhecimento de domínio espe- 1. Conhecimento científico Profundidade e abrangência de conhecimentos declarativos e procedurais aprimorados ao longo da prática (carreira, laser etc.).
cífico) 2. Conhecimento cultural
3. Conhecimento mecânico
4. Proficiência em língua estrangeira
5. Conhecimento da linguagem dos sinais
6. Conhecimento da leitura labial

Grw (leitura e escrita) 1. Compreensão da leitura Profundidade e abrangência do conhecimento declarativo e procedural relacionado às habilidades de leitura e escrita.
2. Decodificação da leitura
3. Velocidade da leitura
4. Velocidade da escrita (também descrito em
Gps)
5. Uso do idioma

Gq (conhecimento quantitativo) 1. Conhecimento matemático Profundidade e abrangência do conhecimento declarativo e procedural relacionado às habilidades de leitura e escrita.
2. Desempenho matemático
Estrato 2 Estrato 1 Definição
GV (processamento visioespacial) 1. Visualização Habilidade de usar a imaginação visual, armazenar imagens na memória de curto prazo, fazer análises visioespaciais e transformações
2. Rotação visual mentais de imagens.
3. Imaginação visual
4. Flexibilidade de fechamento (identificação
de padrões)
5. Velocidade de fechamento (velocidade de
identificação de padrões)
6. Memória visual
7. Busca espacial
8. Integração serial perceptiva
9. Estimativa de tamanho
10. Identificação de ilusões perceptivas
11. Alternâncias perceptivas
12. Velocidade perceptiva

Ga (processamento auditivo) 1. Codificação fonética Habilidade de perceber, discriminar e manipular sons e informação captada pelos canais auditivos. Envolve o processamento da informa-
2. Discriminação dos sons da fala ção auditiva, evocação e reestruturacão de informações auditivas a partir de informações armazenadas de natureza semântica e fonológi-
3. Resistência à distorção dos estímulos audi- ca.
tivos
4. Sustentação e julgamento de ritmos
5. Memória para padrões sonoros
6. Discriminação e julgamento musical
7. Tom absoluto
8. Localização de sons

Gh (tátil) Habilidade de detectar e processar informações táteis relevantes.

Gk (processamento cinestésico) Habilidade de detectar e processar informações proprioceptivas relevantes.

Go (processamento olfatório) 1. Habilidades olfatórias Habilidade de detectar e processar informações olfativas relevantes.
2. Memória olfativa
Estrato 2 Estrato 1 Definição
Gp (habilidades psicomotoras) 1. Destreza manual Habilidade de executar movimentos corporais motores com precisão, coordenação e tenacidade.
2. Destreza dos dedos
3. Força estática
4. Equilíbrio corporal grosso
5. Coordenação de múltiplos membros
6. Coordenação Braço-Mão
7. Controle da precisão
8. Pontaria

Gei (inteligência emocional) 1. Percepção emocional Habilidade de perceber expressões emocionais, compreender comportamento emocional e resolver problemas envolvendo componen-
2. Conhecimento sobre emoções tes emocionais.
3. Gerenciamento das emoções
4. Uso das emoções

Fonte
Sendo assim, por exemplo, ao estar frente a situações novas com as quais você nunca lidou, você precisará de habilidades fluidas para pensar em soluções para os problemas apresentados. Já quando alguém lhe pergunta, por exemplo, para definir o que é inteligência, você irá buscar seus conhecimentos já
aprendidos sobre esse conceito e irá dizer que “a inteligência diz respeito à nossa capacidade cognitiva geral e está relacionada com a nossa capacidade de raciocinar, planejar, resolver problemas e pensar de forma abstrata”. Este conceito lhe foi ensinado agora há pouco, por isso não se trata de uma situação
nova que você deve resolver.
Embora esses dois componentes de inteligência contenham uma base genética importante, alguns autores sugerem que este impacto genético é maior sobre a inteligência fluida, sendo que ela é menos impactada por fatores ambientais ou culturais. Além disso, estas habilidades fluidas também começam a
decair mais rapidamente ao longo do desenvolvimento quando comparadas às habilidades ligadas ao componente da inteligência cristalizada. A inteligência cristalizada, por sua vez, é mais dependente de fatores ambientais e sofre mais efeito da aprendizagem formal e experiências de vida. Ao longo do de-
senvolvimento, estas habilidades tendem a se desenvolver por mais tempo e demoram mais a decair com a senilidade3.
Podemos distinguir esses dois tipos de habilidade através dos estudos fatoriais, mas é importante lembrar que os dois compõem a capacidade de inteligência geral (fator g), e por isso também dividem alguns aspectos em comum. Também é importante considerar que o mais frequente é que precisemos utilizar
esses dois componentes em conjunto. Por exemplo, ao realizar uma prova de matemática, a criança muitas vezes se depara com questões novas com as quais ainda não teve experiência, mas ela já havia estudado e guardado informações quanto a procedimentos necessários para realizar a atividade deman-
dada. Neste sentido, ela depende tanto de aspectos fluidos quanto cristalizados para resolver as questões apresentadas.
Modelo das Inteligências Múltiplas: podemos
observar vários tipos de inteligência?
Agora que definimos a inteligência conforme as pesquisas fatoriais e psicométricas, vamos falar um
pouco dos modelos globais de inteligência. Estes modelos afirmam que se pode definir inteligência
como diversos tipos de aptidões e habilidades distintas, como se houvesse diversas modalidades de
inteligência. Neste sentido, uma das teorias mais conhecidas dentro deste tipo de modelo é a Teoria
das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner. Segundo a primeira proposta do autor, existiriam oito
tipos de inteligência: linguística, lógico-matemática, musical, visioespacial, corporal-cinestésica, intra-
pessoal, interpessoal e naturalista. Posteriormente à sua primeira proposta quanto à inteligência, o au-
tor também propôs que poderiam existir inteligências existencial e moral7. Gardner justifica sua teoria
dizendo que cada uma dessas habilidades seria distinta entre si, e que não haveria uma habilidade
mais geral, como o fator g abarcado nas teorias fatoriais. Segundo o autor, os testes de inteligência (ou
testes de Coeficiente de Inteligência, o QI) apenas conseguiriam medir as capacidades linguísticas
e lógico-matemáticas, e isto não abarcaria globalmente todo o perfil de habilidades que uma pessoa
possa ter. Embora essa crítica seja pertinente, existem muitos questionamentos quanto à Teoria das
Inteligências Múltiplas.
A primeira delas diz respeito ao próprio conceito abarcado por Gardner. Segundo muitos críticos e es-
tudiosos da inteligência, Gardner não expandiu a definição de inteligência, apenas pegou os termos
já conhecidos em outros modelos – como habilidades e aptidões – e sugeriu que estes eram tipos de
inteligência. De fato, a própria escolha dos tipos de inteligência, segundo alguns autores, é bastante
arbitrária, subjetiva e sem embasamento empírico. Segundo estas críticas, o modelo de Gardner ape-
nas dá o rótulo de “inteligência” a habilidades que já vem sendo estudas há muito tempo8. Uma outra
crítica contundente ao modelo é que, da forma como proposta, esta teoria não pode sequer ser tes-
tada e não se submete à premissa de falseabilidade que qualquer teoria científica deve se submeter.
Neste sentido, não há evidência empírica que baseia a proposta de Gardner9.
Ainda que não seja uma teoria comprovada, o uso da Teoria das Inteligências Múltiplas vem sendo
cada vez mais difundido e este é um modelo bastante popular. Por quê? Possivelmente a proposta
de Gardner contempla um modelo que é visto como mais inclusivo, e enfatiza a ampla variedade de
habilidades nas quais alguém pode se destacar, sem se concentrar apenas na noção de um perfil
específico de pessoas classificadas como “inteligentes”. Embora essa ideia realmente pareça mais in-
clusiva – e, em certo sentido, contempla até uma visão romântica sobre as nossas aptidões–, ela não
condiz com o que observamos cientificamente.
Além disso, conforme você pode ver ao longo desta cartilha, o modelo CHC também abarca a carac-
terística multidimensional da inteligência. Neste modelo, observa-se a existência de distintas aptidões
e habilidades específicas nos estratos I e II. Sendo assim, de acordo com o modelo CHC, também po-
deríamos observar perfis diferentes de habilidades em pessoas distintas, e o nível de capacidade em
cada um dos domínios seria variável para cada pessoa. A questão é que há também a evidência de
existência do fator g, que comporia um índice de cognição geral do indivíduo.
Juntando tudo: como podemos
compreender a inteligência?
Conforme você observou, existem propostas diferentes quanto à definição de inteligência. Esta
cartilha não tem como função apresentar toda a base teórica de discussão sobre o tema. Não
abarcamos aqui temas importantes, como os modelos computacionais da inteligência; as bases
neurobiológicas deste construto; os estudos de genética comportamental que avaliam o efeito
da herdabilidade e da contribuição ambiental para a inteligência; e as evidências quanto ao efeito
Flynn – que descreve o aumento sistemático do escore em testes de inteligência na população
ao longo dos anos. Por isso, deixamos ao final do texto uma lista de referências para quem quiser
compreender mais sobre os estudos tão ricos que existem acerca deste tema.
Atualmente, o modelo mais aceito na psicologia e no meio científico para compreendermos a in-
teligência é o modelo CHC, que abarca tanto a existência de um fator geral de inteligência (fator
g), quanto os distintos fatores que o compõem. Uma das grandes vantagens deste modelo sobre
as teorias globais quanto à inteligência é o fato de ele ter grande base de comprovação científi-
ca, com estudos robustos que reiteram a proposta inicial do modelo, mas que também buscam
complementá-lo à luz de novas evidências científicas.
É importante que conheçamos estes modelos para que possamos compreender o conceito de
altas habilidades/superdotação. Na parte 2 desta cartilha, vamos tratar sobre os modelos de su-
perdotação.
Referências
1Gottfredson, L. S. (1997). Mainstream science on intelligence: An editorial with 52 signatories, history, and bibliography.
2Cattell, R. B. (1987). Intelligence: Its structure, growth and action (Vol. 35). Elsevier.
3Horn JL, Blankson N. Foundation for better understanding cognitive abilities. In: Flanagan DP, Harrison P, editors. Contemporary intellectual assessment. 2.
New York, NY: Guilford Press; 2005. pp. 41–68.
4Craik, F. I., & Bialystok, E. (2006). Cognition through the lifespan: mechanisms of change. Trends in cognitive sciences, 10(3), 131-138.
5Primi, R. (2003). Inteligência: avanços nos modelos teóricos e nos instrumentos de medida. Avaliação psicológica, 2(1), 67-77.
6Kaufman, A. S. (2018). Contemporary intellectual assessment: Theories, tests, and issues. Guilford Publications.
7Gardner, H. E. (2008). Multiple intelligences: New horizons in theory and practice. Basic books.
8Sternberg, R. J. (Winter 1983). “How much Gall is too much gall? Review of Frames of Mind: The theory of multiple intelligences”. Contemporary Education
Review. 2 (3): 215–224.
9Visser, B. A., Ashton, M. C., & Vernon, P. A. (2006). g and the measurement of Multiple Intelligences: A response to Gardner. Intelligence, 34(5), 507-510.

Indicações de leitura
Barbey, A. K. (2018). Network neuroscience theory of human intelligence. Trends in cognitive sciences, 22(1), 8-20.
Flores-Mendoza, C., & Colom, R. (2009). Introdução à psicologia das diferenças individuais. Artmed Editora.
Flynn, J. R. (2009). O que é Inteligência?: Além do Efeito Flynn. Artmed Editora.
Ma, C., & Schapira, M. (2017). The bell curve: Intelligence and class structure in American life. Macat Library.

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