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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Psicologia
PSI01052 – Desenvolvimento Humano I-A
Giana Bitencourt Frizzo

O animismo infantil

Eduarda Mercanti Azambuja


Fábio Luiz Viegas
Guilherme Lannig de Souza
Luísa Canfield de Castro
Introdução

De acordo com Piaget (2005 [1926]), o termo “animismo” é utilizado para designar as
crenças segundo as quais os primitivos preencheriam a natureza de “almas”, “espíritos”
etc., a fim de atribuir causas aos fenômenos físicos. No que se refere ao
desenvolvimento intelectual infantil, o animismo é aplicado como um sistema de
explicação dos eventos, muito mais do que uma crença conscientemente esquematizada.
Nota-se uma tendência natural de se buscar explicações através do movimento. Isso se
expressa de forma muito clara nas perguntas que costumam fazer. Atribuir uma
concepção animista às coisas tem, na criança, a função de explicar a regularidade dos
acontecimentos por meio do enquadramento de regras mais morais e sociais do que
propriamente físicas. O sol, por exemplo, assume o papel de um ser vivo por ter uma
utilidade (“não deixar escuro”). Estudos de Stanley Hall apontam essa identificação de
vida com movimento. Os seres naturais são vivos à medida que possuem uma função a
cumprir na organização dos eventos, principalmente em situações associadas ao
cotidiano da criança, em uma manifestação do egocentrismo cognitivo atribuído por
Piaget às crianças.
De maneira a tentar compreender melhor o animismo infantil, Piaget identificou a
evolução desse tipo de representação em quatro etapas, levando em consideração
conceitos como “vida” e “consciência”. Para o conceito de vida, objeto deste estudo, em
um primeiro estágio, a criança considera vivo tudo que tem uma atividade, função ou
mesmo uma utilidade. Ao longo do segundo estágio, a vida estaria presente somente em
entes com movimento, independentemente da autonomia do objeto em relação ao
movimento. Evoluindo para o terceiro estágio, somente aos corpos com propulsão
própria é atribuída a vida. No quarto e último estágio, é reservada a vida às plantas e aos
animais.
O método clínico, desenvolvido por Piaget para endossar suas idéias sobre a evolução
do imaginário infantil, entre outras teorias, baseia-se na formulação de perguntas com
uma intervenção constante do experimentador em resposta à atuação do sujeito, com a
finalidade de descobrir como se formula seu pensamento. Em outras palavras, o foco
não está nas respostas, mas na relação dos conteúdos encontrados com a forma de
pensar da criança.
No presente estudo, buscaremos, dentro dos moldes propostos por Piaget, instigar uma
menina de 8 anos a falar sobre conceitos relacionados à vida. De forma que tenhamos,
em nossas análises, um contraponto ao material obtido, entrevistaremos também uma
menina de 4 anos.

Entrevista 1: Izabela (8 anos)

Você sabe o que é um ser vivo? – Sei. – O que é um ser vivo? – É como um animal,
uma pessoa, um inseto. As plantas são vivas. – Por que você acha que as plantas são
vivas? – Eu não sei. – Um cavalo é vivo? – Sim. – Por que um cavalo é vivo? – Porque
ele tem órgãos internos que fazem o corpo dele funcionar e fazem a vida. – E uma
planta é viva também? – Acho que sim. – Ela não tem órgãos internos como os do
cavalo, né? – Não. – Então por que você acha que ela é viva? – Eu não sei. A minha
mãe me disse que elas têm vida. – E uma pedra? – Uma pedra não tem vida. – Por que
uma pedra não tem vida? – Isso eu não sei. – O fogo tem vida? – Não tem; se ele tivesse
vida estaria morto! – Por quê? – Porque ele estaria no fogo então estaria morto. – A
água é viva? – Não sei. Não sei o que ela faz. – Mas você acha que ela é viva ou não é
viva? – Acho que não. – A água de um rio tem vida? – Se tiver peixes nesse rio ela pode
ter vida. – Então, num rio com peixes, ele está vivo? – Sim. – Digamos que eu encha
uma bacia com água; ela estará viva? – Pode estar; se você colocar um ser vivo, como
nós falamos, ou uma planta. – A água vai estar viva ali? – Acho que não. – Por que
você acha que quando colocamos um ser vivo num rio a água se torna viva? – Não sei;
tenho um pressentimento. – E o Sol? Você acha que ele está vivo? – Acho que não. –
Por quê? – Acho que, se ele fosse vivo, ele estaria num espaço sideral e não tem ar lá;
como todo ser humano precisa de ar acho que ele estaria morto. – As nuvens têm vida?
– Não, porque elas não têm ar dentro delas. – O próprio ar, ele tem vida? – Não sei,
acho que tem. Meus amigos me falam que acham que tem. Um amigo meu, meio
religioso, disse que tem harmonia dentro do ar. – A montanha tem vida? – Se tiver
plantas sim; se tiver só pedras e terra, não. – Essa água num copo? Ela tem vida? –
Não. – E se eu a tomar? Ela vai ter vida? – Sim, porque você tem vida. Então, dentro de
você a água tem vida.

Análise da entrevista 1

A entrevista com Izabela foi bastante curiosa em alguns aspectos. Percebemos uma forte
tendência a atribuir vida somente a plantas e animais, apesar da incerteza em relação às
justificativas. Nota-se uma influência marcante de aspectos ambientais na distinção
entre o que é e o que não é vivo, ocorrendo uma mistura entre suas convicções e as
influências educacionais. Ao ser indagada, por exemplo, sobre o motivo de um cavalo
poder ser considerado um ser vivo, Izabela menciona aspectos biológicos (órgãos
internos, provavelmente fruto de aprendizado escolar ou mesmo convívio com os pais,
que são médicos). Quando questionada sobre as plantas, ela traz um referencial materno
para seu saber (“porque minha mãe disse”).
Uma contradição no discurso de Izabela ocorre quando ela define a água como um ser
vivo dependendo de seu contexto. Para ela, quando em uma bacia, a água não é viva,
porém quando ela encontra-se em simbiose com outros componentes vivos (quando em
um rio ou quando ingerida, por exemplo), a água assume status de ser vivo. Essa
distinção de idéias e dificuldade em justificá-las pode ser explicada pela dificuldade,
nesse processo de desenvolvimento cognitivo, de tomada de consciência do próprio
pensamento.

Entrevista 2: Rafaela (4 anos)

O gato é vivo? – Sim. – Por que o gato é vivo? – Ele é vivo porque ele se mexe. – E o
fogo é vivo? – Sim. – Por que o fogo é vivo? – É para ele fazer comida. – Se o fogo é
vivo, a água é viva também? – Sim. – Por que a água é viva? – É para todo mundo
tomar água. – E o rio? – Ele é vivo também, para todo mundo tomar água do rio. – O
vento é vivo, ou não? – É vivo também porque ele pode ser amigo da gente e ele gosta
de passarinhos para serem amigos dele. – O passarinho é vivo também? – É. – Por
quê? – É para ele voar. – E os chinelos são vivos? – Sim. – Por quê? – É para todo
mundo caminhar no chinelo. – Essa caneca é viva? – Canecas não são vivas. – Por que
você acha que canecas não são vivas? – Porque elas gostam de ficar paradas e quietas.
– E quando eu estou tomando café com ela, é viva ou não? – Sim, ela é viva. – Por quê?
Ela é viva quando você toma café. – E quando ela está sobre a mesa? – Ela não é viva.

Análise da entrevista 2

Referente à entrevista de Rafaela, distinguimos um relacionamento maior entre a noção


de vida vinculada à utilidade dos objetos aos serviços cotidianos, presentes em seu
convívio. A atribuição de vida está condicionada tanto ao movimento (o gato é vivo
porque se move) quanto às funções que os objetos representam para as pessoas (o fogo é
vivo porque cozinha os alimentos e a água é viva porque serve para beber). Movimento
e utilidade ficam mais evidenciados na experiência com a caneca. Enquanto repousada
sobre a mesa, a caneca não está viva. Porém, quando utilizada para beber café, passa a
estar.
Rafaela desenvolve uma necessidade de atribuir vida aos entes, fundamentalmente, pelo
uso que fazemos dos mesmos. Tal característica fica ressaltada pela utilização contínua
da preposição “para” (o chinelo é vivo porque serve para nós caminharmos nele). O
raciocínio desenvolvido aponta para um egocentrismo cognitivo a medida que tudo que
é vivo está condicionado às relações de necessidade.

Considerações finais

A partir das análises, pode-se visualizar o progresso do desenvolvimento cognitivo


através do intervalo entre 4 e 8 anos das crianças entrevistadas. Encontramos diversos
elementos similares aos estudos de Piaget possibilitando, inclusive, a identificação dos
estágios propostos em sua teoria. A necessidade animista em nossas crianças busca uma
explicação para as causas em diferentes aspectos como, por exemplo, a movimentação
dos corpos e a utilização dos objetos. Contudo, ao conversarmos com Izabela, pudemos
notar, em suas convicções, marcada influência de fatores culturais, advindas
principalmente de seu convívio familiar e educacional. A teoria de Piaget sobre o
animismo infantil poderia, portanto, ser ainda mais abrangente, se tivesse destinado uma
importância maior para esses fatores.

Referências bibliográficas

PAPALIA, Diane e WENDKOS OLDS, Sally (1998). Desenvolvimento Humano


Artmed.
PIAGET, Jean (2005). A Representação do Mundo na Criança: com o concurso de
onze colaboradores (1926) Ideias & Letras.

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