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Notas sobre as categorias da

“resistência” e do “retrocesso de
direitos”1

José Vicente Santos de Mendonça


Doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Master of Laws (LL.M.) pela Harvard Law School. Professor adjunto da UERJ. E-mail: jose.
vicente@terra.com.br.

Resumo: O artigo busca entender o que é a ideia de resistência, tanto em suas acepções gerais quanto
em seu sentido mais próximo ao Direito. Discute-se quem resiste, contra o que resiste, como resiste,
se há um direito e um dever de resistência, e quais os limites e a utilidade da resistência. Ao final,
discute-se o argumento jurídico da vedação do retrocesso, em possíveis aproximações e distanciamentos
em relação à ideia de resistência.
Palavras-chave: Direito de resistência. Resiliência. Vedação ao retrocesso.
Sumário: 1 Introdução – 2 O que é a resistência? – 3 Quem resiste? Contra o quê? – 4 As diversas
resistências – 5 Existe um direito de resistência? Qual seu fundamento? – 6 Existe um dever de
resistência? – 7 Limites e utilidade da resistência – 8 Retrocesso de direitos e direito de resistência:
recapitulando e identificando pontos em comum – 9 Encerramento – Referências

1 Introdução
Há duas formas de endereçar temas contemporâneos: uma é tratá-los de
modo explícito. A segunda forma é pela ausência. É dizer por entrelinhas, fazer
esperar um Godot que prenuncia, mas jamais realiza. Adota-se, neste artigo, a
elipse. É que, se bem-sucedido, o silêncio se faz sentir por bom tempo. Dizia Isaac
Babel que nenhum punhal pode ser cravado no coração com a força de um ponto
no lugar certo.
O texto se propõe a analisar a categoria política – e possivelmente jurídica – da
resistência. Num primeiro momento, indaga-se a respeito do que ela viria a ser,
em contraste a categorias próximas – a resiliência, a antifragilidade, a reforma.
Em seguida, discutem-se: contra o que ou contra quem se resiste, e as possíveis
formas de resistência. Ingressa-se, então, no punctum saliens de saber se existe
um direito de resistência e, quiçá, um dever de resistir. Indica-se a existência de

1
O autor agradece aos alunos Stela Huhne, André Tosta e Felipe Romero pela leitura de uma primeira versão
do texto.

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limites à resistência, discute-se sua utilidade e, ao final, conecta-se a resistência à


categoria do retrocesso de direitos, por análise do tema da vedação do retrocesso,
em seus desusos cotidianos e em seus usos possíveis.

2 O que é a resistência?
No dicionário, ‘resistência’ é a capacidade que tem uma força de se opor
a outra, a defesa contra uma investida, a recusa ao que se considera contrário
ao interesse próprio.2 A palavra saltou do uso na física ou na eletricidade – a
resistência das forças, a resistência do motor, a resistência do chuveiro – para o
uso em manifestações políticas e nas redes sociais. Segundo o Google Trends, a
expressão “resistência política” despertou zero interesse entre janeiro de 2004
e junho de 2008, tendo dois picos em junho e outubro de 2008 e, a partir de
2012, nunca mais deixou de figurar, em trajetória crescente, nas buscas, com alta
histórica em 2020.3
Apesar da recente popularidade, não é fácil saber do que estamos tratando
quando falamos em ‘resistência’. Trata-se de conceito difícil, para usar termo da
teoria da argumentação,4 rico em expressividade emocional e, em regra, associado
a conotações positivas. Quem é resistente tem, no mínimo, alguma força. Tentemos
aproximação segura por entre categorias próximas, destacando que nosso interesse
limita-se à abrangência jurídica ou política do termo.
Resistência não é resiliência. Os conceitos são próximos. A resiliência é a
propriedade de ser resistente ao longo do tempo; é a capacidade de opor resistência
continuada, sem quebra ou deformidade permanente.5 Mas, para além disso, há
diferenças de tom. A palavra ‘resistência’ remete a usos imediatamente políticos,
ao passo que ‘resiliência’ afeta ares técnicos, soando – ainda – próxima da física
dos materiais, das forças newtonianas, da psicologia,6 ou, contemporaneamente,

2
Segundo definição do Dicionário Michaelis, em sua versão on-line. RESISTÊNCIA. In: DICIONÁRIO ONLINE DE
LÍNGUA PORTUGUESA MICHAELIS. 2021. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/
busca/portugues-brasileiro/resistencia. Acesso em: 15 mar. 2021.
3
Informação obtida a partir de pesquisa realizada por meio do seguinte link: RESISTÊNCIA DE POLÍTICA. In:
GOOGLE TRENDS. 2021. Disponível em: https://trends.google.com.br/trends/explore?date=all&geo=BR
&q=resist%C3%AAncia%20pol%C3%ADtica. Acesso em: 15 mar. 2021.
4
PERELMAN, Chaïm. Retóricas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
5
O mesmo Michaelis define resiliência como “elasticidade que faz com que certos corpos deformados voltem
à sua forma original, capacidade de rápida adaptação ou recuperação”. Cf.: RESILIÊNCIA. In: DICIONÁRIO
ONLINE DE LÍNGUA PORTUGUESA MICHAELIS. 2021. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/resili%C3%AAncia/. Acesso em: 15 mar. 2021.
6
A ideia de resiliência é especialmente desenvolvida pela logoterapia de Viktor Frankl. Cf. SILVEIRA, Daniel
Rocha; MAHFOUD, Miguel. Contribuições de Viktor Emil Frankl ao conceito de resiliência. Estudos de
Psicologia, Campinas, v. 25, n. 4, p. 567-576, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/estpsi/
v25n4/a11v25n4.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

dos coaches. Mas não se iluda: quem fala de resiliência está, na verdade, falando
de resistência.
Resistência não é antifragilidade, embora todo sistema antifrágil seja, antes
de tudo, resistente. Antifragilidade é a propriedade de buscar ativamente a que-
bra, a deformação, tornando-se mais forte com isso (um músculo é antifrágil).7 A
resistência é o elemento passivo da antifragilidade: é o não vergar. Claro que, em
muitos casos, resistir pode gerar efeitos de fortalecimento, de si ou de outrem.
Falando em fortalecimento chega-se ao tema das reformas. A resistência não
gera, necessariamente, reformas. Há ambiguidade em seu uso recente: a resistên-
cia pode pretender conservar estados anteriores (aqui, de sistemas políticos, de
status civil, de nível de direitos), que estejam na iminência da perda. Entretanto,
no uso brasileiro contemporâneo, a palavra está correlacionada ao campo político
do centro-liberal à centro-esquerda, em que a ideia de conservação pode não
soar simpática, associando-se à noção de reacionarismo. Ora: embora tanto a
resistência quanto o reacionarismo possam estar insatisfeitos com o status quo,
a resistência pode querer, por exemplo, manter conquistas liberais, ao passo que
o reacionarismo quer retroagir no tempo, tornando despiciendas tais discussões.
A resistência, aqui como bon mot de uma posição política, pode ser a luta pela
conservação de direitos liberais.
Assim, pode-se definir resistência, para os fins deste artigo, como a postura
política de busca ou de conservação de situações jurídicas ou de níveis de direitos.

3 Quem resiste? Contra o quê?


Seguindo em nossa investigação, pergunta-se: quem pode resistir ou, ao
menos, quem usualmente resiste? Numa primeira leitura, são os indivíduos ou os
grupos de indivíduos os sujeitos da resistência. Um indivíduo pertencente a nação
indígena resiste ao que entende como usurpação de terras ancestrais; uma asso-
ciação de consumidores resiste a nova regra, que, em sua compreensão, permite
etiquetagem imprecisa de alimentos.
Mas vem a pergunta, não de todo destituída de interesse prático: um estado
pode resistir? Um grupo de estados? A outros estados, a resposta é simples: tanto
pode que se trata do caso clássico da situação de guerra, que faz nascer o direito
estatal de resistência à invasão. Mas parece que um estado também pode resistir
a, por exemplo, ditadores ou tiranos,8 que negam a identidade política do ente. A

7
TALEB, Nassim. Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. São Paulo: Best Business, 2014.
8
STRAUSS, Leo. On tyranny. Londres: The Free Press of Glencoe. Disponível em: https://www.bard.edu/
library/arendt/pdfs/Strauss-Tyranny.pdf. Acesso em: 9 mar. 2021.

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própria comunidade internacional pode resistir a indivíduos ou grupo de indivíduos


– por exemplo, a comunidade internacional resistiu historicamente a um grupo de
indivíduos – o partido nazista.
Se temos sujeito, haveremos de ter objeto. Pois bem: contra o que se resiste?
É possível descrever o objeto de modo analítico: é a situação resistida. A situação
resistida pode ter diversos conteúdos: autoritarismo, abuso de poder, violação a
direitos. E, naturalmente, a situação resistida pode não ser um algo, mas um quem,
por meio do qual a circunstância se opera. Esse quem é, frequentemente – mas
não apenas –, um governo estabelecido, um grupo étnico ou religioso.

4 As diversas resistências
Há diversas resistências. Analisar quais são as diversas resistências é
responder à pergunta sobre como se resiste. Uma taxonomia simplificada e não
exaustiva das resistências poderia dividi-las do modo a seguir.
Resistência interna e resistência externa. Têm a ver com o espaço territorial em
que se manifesta o ato de resistir. A resistência interna se faz dentro da unidade:
estado nacional, ente federativo, órgão, grupo; a externa, como parece evidente,
realiza-se fora de tais unidades.
Resistência parcial e resistência total. Resiste-se a aspecto limitado do sistema
político ou administrativo; ou se resiste a ele todo.
Resistência passiva e resistência ativa. A resistência passiva manifesta-se de
modo tendencialmente neutro, um não agir deliberado, mas expressivo. Se não há
expressividade, há apatia, mas não resistência. O escriturário Bartleby não resiste
no seu cotidiano de personagem literário, mas apenas depois, na leitura da obra de
Melville, em que se encontra narrativa de resistência à alienação da sociedade (mas
os gestos propriamente ditos de Bartleby são, repita-se, apatia).9 A resistência ativa
manifesta-se de modo mais explícito: é ação que se percebe de modo saliente. Há
paralelos entre a resistência passiva e a noção de sabotagem (a sabotagem pode
ser resistência passiva, mas também ataque industrial, vandalismo etc.), e entre a
resistência ativa e a ideia de guerra de resistência. Toda guerra ou guerrilha é ativa.
Merece destaque, dentro da resistência passiva, a resistência burocrática.10
Trata-se da prática sistemática de atos de resistência por parte de agentes públicos
em relação ao que se percebe como desvios de finalidade ou abusos de poder

9
MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street. São Paulo: Ubu, 2018.
10
INGBER, Rebecca. Bureaucratic resistance and the National Security State. Iowa Law Review, Boston, v. 104:
139, 2018. Disponível em: https://scholarship.law.bu.edu/faculty_scholarship/266?utm_source=scholarship.
law.bu.edu%2Ffaculty_scholarship%2F266&utm_medium=PDF&utm_campaign=PDFCoverPages. Acesso em:
9 mar. 2021.

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

praticados nos elos superiores da hierarquia. A resistência burocrática, como prática


individual, pode assumir a forma jurídica do descumprimento de ordem manifes-
tamente ilegal, prevista, por exemplo, no Código Penal Militar (art. 38, §2º)11 ou
no Estatuto dos Servidores Públicos Federais (art. 116, inciso IV).12 Aqui, cumprir
o dever funcional é que corresponde ao ilícito (exemplo é a escusa burocrática de
Adolf Eichmann).13 A recusa, pelo cidadão, do cumprimento de atos públicos tidos
por inválidos, é a desobediência civil.
Por fim, pode-se pensar, e aqui já num uso mais alargado do conceito, numa
resistência simbólica e numa resistência institucional. A simbólica opera fora da
institucionalidade – assim, novamente, a desobediência civil, apelando a categorias
ou noções ideais; a segunda, associa-se à noção de instituições agindo para con-
servar a institucionalidade face a demandas por ruptura – é o tipo de resistência
que se espera do Judiciário ou da burocracia em cenários de disrupção democrática
– sem, necessariamente, buscar ou debater o ideal.14

5 Existe um direito de resistência? Qual seu fundamento?


Resistência é fenômeno essencialmente político. Seus propósitos são polí-
ticos: evitar ou promover mudanças. Daí que se aplica, à resistência, aquilo que
Nietzsche dizia da história: é uma procissão de vencedores. Muito da resistência
legítima advém de uma narrativa construída ex post, por insurgentes triunfantes,
que encontram fundamentos jurídicos ou morais nas ações passadas. A fonte social
imediata de um direito à resistência costuma ser o triunfo na luta política. Um orde-
namento jurídico que reconhecesse direito amplo à resistência seria provavelmente
um ordenamento suicida, incapaz de gerar a ficção interna de sua coatividade.
Mas há outra perspectiva a se considerar. É que, ainda quando vitoriosos,
ordenamentos jurídicos não totalitários, talvez justamente por tal qualidade, descon-

11
Art. 38. [...] 2º Se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há
excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior.
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, DF: Presidência
da República, 1969. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso
em: 9 mar. 2021.
12
Art. 116. São deveres do servidor: [...] IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente
ilegais.
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos
civis da União, das autarquias e das funções públicas federais. Brasília, DF: Presidência da República,
1990. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm. Acesso em: 9 mar. 2021.
13
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um estudo sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
14
Pode-se associar as duas noções de resistência aos dois conceitos indianos de justiça, a justiça niti e a
niaya; a primeira seria a justiça transcendental; a segunda seria a justiça institucional, de realizações com
base em critérios já postos. Cf. SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
A observação me foi sugerida por André Tosta.

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fiam de suas pretensões – inerentes e necessárias – de completude, de certeza, de


cogência e de legitimidade. As dúvidas de completude e de certeza se remedeiam
com o uso de princípios e de conceitos indeterminados. Já as dúvidas quanto à
coatividade e à legitimidade plena do Direito são resolvidas por meio do acolhimento
de manifestações de algo próximo a um verdadeiro direito de resistência. Eis aqui
uma quebra da quarta parede no ordenamento jurídico; um momento em que o ius
se comporta como um Papa-Léguas prudente, que escolhe olhar para o abismo
enquanto o atravessa – ainda que a observação possa não durar muito tempo.15
Excluindo-se discussões de filosofia política (que remetem, por exemplo, a
Hobbes ou aos jusnaturalismos), a identificação de fontes dogmáticas converte-se
na busca por instanciações deste direito.16 Seguindo José Carlos Buzanello, pode-se
encontrar o direito de resistência na objeção de consciência (cf., por exemplo, art.
5º, inciso VIII c/c art. 143, §1º, CRFB; para os advogados, art. 33, parágrafo único,
da Lei nº 8.906/1994), na greve política (art. 9º, CRFB – as greves gerais costumam
ser políticas), na desobediência civil17 e, talvez, no princípio da autodeterminação
dos povos (art. 4º, III, CRFB).18
Apesar de o último exemplo ser, em nosso sentir, amplo demais para permitir
conclusão acerca da existência de um direito de resistência, e de a desobediência
civil ser hipótese extrema de tensionamento político, os primeiros casos (a objeção
de consciência e a greve política) parecem constituir indícios do que seria o conteúdo
possível de um direito de resistência institucional no Direito Positivo brasileiro.
Última observação: ainda que se conclua que não existe propriamente um
direito de resistência, há, decerto, diversas e diferentes formas de se resistir com
o uso do Direito – uma delas será vista no tópico 8.

6 Existe um dever de resistência?


A todo direito corresponde um dever. Essa afirmação, corriqueira, mas
imprecisa, leva-nos à seguinte cogitação: o direito de resistir – acaso existente
um – corresponde a qual dever? Num primeiro momento, a resposta é evidente: o

15
Seria o direito de resistência um espaço de conexão possível entre direito e moralidade crítica? Ou, sob
ótica inversa, seria o direito de resistência uma antítese? A questão dá o que pensar.
16
A inclusão de um direito de resistência literal no texto da Constituição de 1988 foi rejeitada pela Assembleia
Constituinte.
17
Atualmente, entende-se que o ente federativo pode deixar de aplicar lei que repute inconstitucional, ainda
que sob o risco, por parte do chefe do Executivo, de crime de responsabilidade (o que se minora pela
manifestação da advocacia pública acerca da inconstitucionalidade do ato). Embora a discussão seja tratada
sob a ótica do exame de constitucionalidade, é possível enxergar, aí, aspectos de uma “desobediência
federativa” (deixar de cumprir uma lei, assumir riscos), com o que se traz mais um elemento de apoio à
tese de que também o estado pode resistir.
18
BUZANELLO, José Carlos. O direito de resistência como problema constitucional. 2001. Tese (Doutorado)
– Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001. p. 184.

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

direito de resistência se correlaciona a um dever de não gerar a situação resistida.


Mas podemos abordar a questão sob outros ângulos.
Existe um dever jurídico de exercer o direito de resistência? Não, sob pena
de totalitarismo ético impensável numa democracia contemporânea. Santiago Nino
talvez chamasse a proposta de perfeccionismo ético.19
Existe um dever de denunciar a situação resistida? Em certos usos, aliás, as
perguntas podem ser as mesmas, já que denunciar a situação resistida pode ser o
próprio ato de resistência. Para a mesma pergunta, a mesma resposta: não há dever
jurídico. Mas pode haver – e eis aqui uma das mais eminentes questões da ética
prática – dever ético, ao menos em sentido fraco. Talvez, o exercício pleno deste
dever seja o non plus ultra que defina o intelectual público. Desenvolva-se o ponto.
Há antecessores clássicos na cogitação (Antígona denuncia Creonte pela
negativa de sepultura a Polinice). Marx, ao escrever suas teses sobre Feuerbach,
identifica a atividade prático-crítica como essencial,20 chegando à sua famosa
conclusão: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferen-
tes; a questão, porém, é transformá-lo”.21 Ora, não se transforma sem denúncia.
Evidente que há conhecimento abstrato e conhecimento aplicado, e é duvidosa a
limitação do intelectual à figura do intelectual público – mas, se esse possui dever
em sentido forte (sem denúncia não há, por definição, intelectual público), aceitar
de modo silencioso uma situação resistida (tão grave que justifica um direito a
resistir à sua própria existência) não parece eticamente aceitável, salvo em casos
de risco à vida ou a bens jurídicos de quase igual valia.22 Não se trata de esperar
heroísmo do ser humano, mas, para certas posições públicas, apenas a evitação
da covardia crassa.

19
NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: ensayo de fundamentación. 2. ed. Buenos Aires: Editorial
Astrea, 1989.
20
“A questão de saber se ao pensamento humano pertence à verdade objetiva não é uma questão da teoria,
mas uma questão prática. É na praxe que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o
poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento
que se isola da praxe é uma questão puramente escolástica”. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. 1845.
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000081.pdf. Acesso em: 2 mar.
2021.
21
Trata-se da décima primeira tese. Cf.: MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. 1845. Disponível em: http://
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000081.pdf. Acesso em: 2 mar. 2021.
22
Dante colocou às portas do Inferno uma multidão de indecisos, rejeitados igualmente pelo Inferno e pelo
Paraíso. “É mísero o valor daquelas almas tristes em seu choro que foram sem infâmia nem louvor”. Cf.,
sobre o ponto, MANGUEL, Alberto. Onde estão os intelectuais? In: MANGUEL, Alberto. Notas para a definição
de um leitor ideal. São Paulo: SESC, 2021.

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José Vicente Santos de Mendonça

7 Limites e utilidade da resistência


O primeiro limite à resistência é, por assim dizer, consequencialista: ele não
pode ser parte do problema cuja cura pretende ser. Além desse, há os limites,
formais e materiais, atinentes aos casos de manifestação da resistência (que
seriam, no mínimo, a objeção de consciência e a greve política). É claro que falar
em limites jurídicos de algo que pode ser, e frequentemente é, antissistêmico, pode
soar ingênuo, quase como a norma de guerra que proíbe o ataque a paraquedistas
no ar.23 Em todo caso, que se faça o registro: se algo é um direito, está sujeito a
limites.
A resistência é útil? Depende do que se considera útil. Nem toda resistência
será imediatamente apta a impedir a redução de níveis de direitos (ou a conquistar
novos), mas muita resistência poderá tornar mais difícil, no plano concreto ou
imagético, a empreitada. Assim, uma resistência simbólica pode se considerar
bem-sucedida se despertar a consciência de determinado problema; ao passo que
a resistência institucional será bem-sucedida se promover ou demover, no todo ou
em parte, a mudança.

8 Retrocesso de direitos e direito de resistência:


recapitulando e identificando pontos em comum
Se um dos propósitos do direito de resistência é evitar a redução de direitos,
vem a calhar revisitar o tema da vedação do retrocesso.
O problema é que a existência de um princípio da vedação do retrocesso é
objeto de acirrada polêmica. Em artigo anterior,24 identificou-se uso generalizada-
mente ametodológico e acrítico do argumento por parte da jurisprudência. Viram-se
alegações de vedação do retrocesso em decisões sobre voto em urna eletrônica,
mudança de local de posto de saúde, férias de prefeito, matrícula em escola, em-
bargos infringentes no Mensalão, corte de água, altura de prédio, auxílio-moradia
de subprocurador da república, desconto em colégio para o segundo filho, surdez

23
Quem perde a guerra responde por tais violações, mas isso, a essa altura, é o que menos importa; quem
vence alegará que teve de agir assim, talvez com razão.
24
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: melhor quando tínhamos medo? Uma proposta
para um uso controlado do argumento. In: FERRARI, Sérgio; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito
em Público: estudos em homenagem ao professor Paulo Braga Galvão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
O artigo, por sua vez, revisitava minha monografia de graduação no curso de Direito, no ano de 2002,
que também redundou em texto sobre o tema. A referência ao primeiro artigo é a seguinte: MENDONÇA,
José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. In: BINENBOJM, Gustavo.
Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v.
XII (Direitos Fundamentais), p. 205-236, 2003.

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

unilateral em concurso público, obrigação de o poder público fornecer fraldas


geriátricas.
Como trazer algum grau de inteligibilidade racional à vedação do retrocesso?,
era a pergunta do artigo mencionado. Em primeiro lugar, indicando o que ela não
é. Recapitulemos, assim, as conclusões do texto.
Vedação do retrocesso não é teoria do fato consumado. O retrocesso de
que ela cuida ou é um retrocesso relativo ao nível de eficácia jurídica da norma
constitucional, ou, em incidência polêmica, diz da qualidade do direito. Nada disso
são fatos. São direitos. Vedação do retrocesso não é proibição de interpretação
retrospectiva. Não se deve interpretar lei nova com os olhos na antiga porque o
tempo passa, e, a partir daí, mudam-se os métodos, o contexto, os intérpretes (isso
não significa que se deve ignorar a história constitucional).25 Ora, mas a sugestão
de que não se deve interpretar lei nova (ou ato administrativo) com olhos velhos
é, no máximo, recomendação hermenêutica. Não é princípio jurídico. Vedação do
retrocesso não é vedação da regressividade dos resultados de políticas públicas.
A ser isso, ela implicaria exigência supra-rogatória. Políticas públicas são necessa-
riamente mutáveis, e seus resultados, relativamente indeterminados.
O que, então, a vedação do retrocesso pode ser para que faça sentido?
Novamente, vamos às propostas já feitas.
Em seu uso político ela é estratégia de utilização da linguagem jurídica com
vistas à produção de um estado de empatia na sociedade.
Quanto ao retrocesso de eficácia jurídica, o uso pode ser pleno. Não há,
em princípio, riscos democráticos que não se compensem pelos benefícios do
argumento. O legislador e o regulamentador, quando tornam aplicável, pela lei ou
pelo regulamento, dispositivo constitucional carente de norma, não podem voltar
inteiramente atrás. Podem regular de modo diferente e, até, reduzir direitos, mas
não podem revogar seus atos sem colocar nada no lugar. Simples assim.
O problema está no retrocesso de efetividade, isto é, na vedação do retrocesso
que significa vedar a redução da qualidade dos direitos fundamentais já efetivados.
Vão-se, aqui, propor (i) uma circunscrição material, (ii) uma abrangência formal, (iii)
uma abrangência material e (iv) requisitos para o uso.
(i) Circunscrição material: o princípio da vedação do retrocesso só se aplica
a situações extremas. Os termos utilizados pelo STF permitem que se intua sua
circunscrição material, ou seja, o progresso em relação ao qual há que se vedar

25
A respeito do tema, seja permitida mais uma autorreferência (embora, agora, em ilustre coautoria): LYNCH,
Christian Edward Cyril; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Por uma história constitucional brasileira: uma
crítica pontual à doutrina da efetividade. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 08, n. 2, p. 974-1.007,
2017.

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José Vicente Santos de Mendonça

o retrocesso. É sobre aquilo a respeito do que há “consenso básico profundo”; o


que está “radicado na consciência jurídica geral”; as “conquistas históricas que
acrescentam o cabedal de direitos da cidadania”; “um retrocesso histórico que
não se pode presumir desejado”. Decisões fundamentais, portanto, e não direções
ideológicas conjunturais, que se espera que mudem e que devam mudar ao longo
do tempo.
Concretamente, o nível de exigência de sua circunscrição material é tão alto
que faz com que a vedação ao retrocesso de efetividade constitucional não possua
autonomia conceitual plena.26 Quase sempre que se verificar violação ao retrocesso,
provavelmente antes já houve violação a outros princípios constitucionais.
Por exemplo: seria retrocesso inconstitucional se se aprovasse, mesmo que
por emenda à Constituição, o voto censitário ou exclusivamente masculino. Já o
voto impresso, por patético e inadequado que soe em 2021, não parece que ofenda
o princípio da vedação do retrocesso (ainda que possa violar outros princípios, por
exemplo, o da economicidade). O voto eletrônico não é algo que esteja incluído
num consenso básico sobre a democracia brasileira. E note-se como a vedação do
retrocesso possui duvidosa autonomia conceitual: antes de violada a vedação do
retrocesso, nessas hipóteses, teria havido violação a um sem-número de outros
princípios – isonomia etc.
(ii) Abrangência formal: em princípio, a vedação do retrocesso não se aplica
a emendas à Constituição, veículo legislativo que goza de forte presunção de de-
mocraticidade. Ele também não se aplica à estrutura da organização de serviços
públicos, eis que o controle do que é retrocesso seria inexequível.27 Assim, não
há retrocesso inconstitucional no fechamento de posto de saúde por prefeito. O
caminho é político-institucional – eleger prefeitos que não fechem postos de saúde
– e não jurídico-constitucional.
De modo próprio, a vedação do retrocesso só incide, portanto, em relação a
leis e regulamentos.28

26
Em sentido próximo, cf.: BOTELHO, Catarina Santos. Os direitos sociais em tempos de crise: ou revisitar
as normas programáticas. Coimbra: Almedina, 2015.
27
Na pergunta de Thiago dos Santos Acca: “Por exemplo, o poder público distribui gratuitamente um coquetel
de remédios composto por três medicamentos distintos. Imagine que ele reduza essa distribuição a um
medicamento. Imagine ainda que outros dois, embora excessivamente caros, são os mais importantes no
combate à doença. Há supressão ou não do direito à saúde?” (ACCA, Thiago dos Santos. Teoria brasileira
dos direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 102).
28
O professor Fábio Gomes, meu colega de docência na UERJ e quase contemporâneo de doutorado, faz
críticas a meu artigo mais recente sobre vedação do retrocesso – base desta última seção – em seu livro:
GOMES, Fábio Rodrigues. O retorno ao positivismo jurídico: reflexões críticas de um juiz desencantado.
Niterói: Arthe Comunicação Gráfica, 2020. De início, elogia o texto, diz que é “leve e bem escrito”. Mas não
se iluda, prezada leitora: quem elogia quer pedir algo ou vai criticar o elogiado em seguida. Pois logo vem a
crítica: diz que retomo os “conceitos melífluos” de Vieira de Andrade (consenso básico e consciência jurídica
geral), e que, após haver excluído as emendas à Constituição da órbita de incidência do princípio, mercê de

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

(iii) Abrangência material: a vedação do retrocesso de efetividade, como trata


de questões constitucionais elementares, não se restringe aos direitos sociais. Ela
pode abranger direitos eleitorais (v. exemplo anterior), de nacionalidade (exemplo:
lei que excluísse estrangeiros de relações de compra e venda), ambientais etc.
(iv) Requisitos: há três requisitos para uma incidência constitucionalmente
adequada da vedação do retrocesso de efetividade, quais sejam: (a) apresentar-se
justificativa plausível para a alteração; (b) preservar-se o núcleo do direito alterado;
(c) observar a imparcialidade política.
(a) Apresentar-se justificativa plausível para a alteração. Há pouca consis-
tência na alegação de que, na vedação do retrocesso, deve-se prever medidas
compensatórias. Não há como se “compensar” decisões, contratos, leis, atos
administrativos e políticas públicas umas com as outras. Isto leva a problemas de
incomensurabilidade.29 Veja-se, por exemplo, o comentário do ministro Fux no caso
do prazo para se reclamar a indenização do FGTS:30 será que, tal como afirmado no
voto, o valor depositado na conta vinculada do ex-empregado é compensado pela
existência do seguro-desemprego e dos programas Bolsa Família e Minha Casa
Minha Vida? De que forma se dá tal compensação? Sob quais parâmetros? Elas
se compensam porque elas existem?
De resto, não há como exigir-se “compensação” em relação a retrocessos
inconstitucionais. Se são tão graves que justificam o disparo do argumento – e
o argumento é argumento in extremis –, serão inconstitucionais tout court. O

seu índice de democraticidade, incluo nele as leis ordinárias. Anota Fábio: “Mas veja que interessante: para
as leis ordinárias, pobres coitadas, não haveria presunção de democraticidade e perigo real de ativismo
judicial descontrolado. Por quê? Sinceramente, eu não sei” (p. 528). Ora, é mais fácil aprovar uma lei
ordinária em relação a uma emenda à Constituição. É a primeira diferença. Quanto ao risco de ativismo,
creio que é mais grave quando se trata de declarar inconstitucional uma emenda do que em relação a
uma lei ou a um regulamento justamente à conta do diferencial de dificuldade de aprovação de uma e de
outra. Quanto à crítica de fundo, isso se deve a diferenças em relação a premissas profundas de teoria do
Direito cuja discussão fugiria ao escopo do artigo. Em todo caso, Fábio afirma que “José Vicente Santos
de Mendonça, assim como os demais professores referidos, seguiram a cartilha pós-positivista portuguesa
[...]. Esta maneira de pensar o direito constitucional, apesar de esmagar a democracia que o acompanha,
ganhou o coração e as mentes dos juízes brasileiros”. Não sei quanto ao coração e às mentes dos juízes
brasileiros, mas gostaria ao menos de ser isentado da culpa por esmagar a democracia brasileira. Vamos
combinar que há melhores suspeitos por aí.
29
CHANG, Ruth. (org.) Incommensurability, incomparability, and practical reason. Cambridge: Harvard University
Press, 1998.
30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário com Agravo nº 709.212/DF.
Recurso extraordinário. Direito do Trabalho. Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Cobrança de
valores não pagos. Prazo prescricional. Prescrição quinquenal. Art. 7º, XXIX, da Constituição. Superação de
entendimento anterior sobre prescrição trintenária. Inconstitucionalidade dos arts. 23, §5º, da Lei 8.036/1990
e 55 do Regulamento do FGTS aprovado pelo Decreto 99.684/1990. Segurança jurídica. Necessidade
de modulação dos efeitos da decisão. Art. 27 da Lei 9.868/1999. Declaração de inconstitucionalidade
com efeitos ex nunc. Recurso extraordinário a que se nega provimento. Recorrente: Banco do Brasil S/A.
Recorrido: Ana Maria Movilla de Pires e Marcondes. Relator: Min. Gilmar Mendes, 13 de novembro de 2014.
Lex: jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Distrito Federal, 2014. Brasília, DF: Supremo Tribunal
Federal, 2014.

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José Vicente Santos de Mendonça

Judiciário não é gestor de um equilíbrio social geral dos direitos e das políticas
públicas brasileiras.
Se se vai exigir, no entanto, algo da linha de uma compensação, ela só poderá
ser, no máximo, uma fundamentação plausível da alternativa que se oferece em
relação ao direito que se altera. Exemplo: ao se trocar o sistema de aposentadoria,
do regime de repartição para o de capitalização, há que se justificá-lo.
(b) Preservar-se o núcleo do direito alterado. Pode-se até reduzir a efetividade
de um direito constitucional que está “radicado na consciência jurídica geral”, mas,
se ele é assim tão importante, não poderá morrer. Então, deve ser preservado, ainda
que sob outra forma. Retomando o exemplo: na troca do regime de aposentadoria,
da repartição para a capitalização, preservou-se, afinal, o direito à aposentadoria.
(c) Observar a imparcialidade política. A vedação do retrocesso é, por vezes,
cavalo de Troia por onde saem argumentos ideológicos. Nada contra, desde que
se assumam como tais. A vedação do retrocesso de efetividade constitucional,
como argumento jurídico, deve ser filtrada pelo dever de imparcialidade política do
Judiciário. O risco do mascaramento da política sob as vestes jurídicas do retrocesso
é do descrédito institucional e do esvaziamento da experimentação democrática:
se o Judiciário é o guardião de um caminho único, esse, necessariamente, não
será o caminho de todos.
Pois bem: se a vedação do retrocesso é princípio jurídico que, aplicado a
leis e regulamentos que tratem de matérias associadas a consensos básicos da
sociedade brasileira, exige justificativas plausíveis nas mudanças, preserva o núcleo
dos direitos alterados, e opera segundo a lógica da imparcialidade, talvez o princípio
seja simultaneamente pouco e muito para ser inteiramente operado junto a um
direito de resistência. Pouco, porque sua órbita de incidência escapa de muitas
situações em relações às quais se pode querer resistir. Ele, por exemplo, nada diz
sobre mudanças administrativas no nível inferior ao ato (mudanças de gestão que
não sejam formalizáveis por ato administrativo, mas que podem suscitar, por ex.,
objeção de consciência do agente público). Muito, porque pretende imparcialidade,
o que talvez escape à abrangência mais aguerrida da resistência.
Em todo caso, há pontos de contato: ao violar consensos básicos da socie-
dade, certas normas jurídicas podem ser enfrentadas pela vedação do retrocesso,
em exercício de resistência plena com o Direito.
Assim, se o retrocesso de direitos é situação de fato que pode disparar um
direito de resistência, a vedação do retrocesso é argumento normativo para que, em
certos casos, haja o exercício jurídico da resistência política.31 O círculo se fecha.

Ainda que a vedação do retrocesso não seja, em si mesma, argumento político.


31

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

9 Encerramento
Ao longo do texto, discutiu-se a categoria jurídico e política da resistência, e,
ao final, ingressou-se no debate acerca da vedação do retrocesso como categoria
jurídica. O tema está longe de haver sido resolvido, e novos trabalhos merecem
ser desenvolvidos, tanto mais que, no Brasil de 2021, resistências e retrocessos
adquiriram destaque científico.

Abstract: The paper aims to understand the meaning of a “right to resistance”, both as a general and
as a legal concept. It analyzes who resists, against what she resists, how she resists, and whether there
is a meaningful right (and a duty) to resist. By the end, it discusses the legal meaning of a “principle of
prohibition of legal/social step-back”.
Keywords: Right to resistance. Resilience. Prohibition of legal/social step-back.

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Notas sobre as categorias da “resistência” e do “retrocesso de direitos”

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Notas sobre as categorias da “resistência”


e do “retrocesso de direitos”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo
Horizonte, ano 20, n. 76, p. 67-81, jan./mar. 2022.

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