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Ministério da Educação

Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP


Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - EFLCH
Curso de História da Arte

Laboratório de Pesquisa e Práticas em História da Arte I: descrição e linguagens


visuais (Professoras Elaine Dias e Flavia Galli Tatsch)

Aluna: Patricia Pinheiro Antunes de Paula


R.A. 85299

FICHA DESCRITIVA E EDUCATIVA DE OBRAS

[LEGENDA DA OBRA]

O Almoço na relva (Le Déjeuner sur l'herbe)


Édouard Manet (1832-1883)
1863
Óleo sobre tela, 207 x 265 cm.
Doação Etienne Moreau-Nélaton, 1906
©RMN-Grand Palais (Musée d’Orsay) /Benoît Touchard / Mathieu Rabeau
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BIOGRAFIA DO ARTISTA

Édouard Manet nasceu em uma família abastada de Paris. Seu pai, Auguste (1797-1862) foi
um juiz de prestígio no Ministério da Justiça e sua mãe, Eugenie-Marie (1811-1885), era
filha de um vice-cônsul da Suécia. Sua família idealizou um futuro diferente para o seu
primogênito: inicialmente uma carreira no direito e, quando isso falhou, sua integração à
Marinha francesa. Após uma segunda tentativa frustrada no projeto de ser aceito pela
Escola Naval, em 1849, sua família finalmente aceitou seu desejo de ser artista, um anseio
que nutria desde tenra idade e cuja inclinação havia sido adquirida pelas visitas ao Museu
do Louvre na companhia do tio. Com o apoio da família, ele entra para o ateliê do pintor
classicista Thomas Couture, um mestre radicado na Escola de Belas Artes de Paris,
aprofundando seus conhecimentos e técnicas de pintura ao longo de seis anos. Para
incrementar seu repertório, Manet realizou também diversas viagens pela Europa e teve
contato com vários estilos de arte. Em 1856, Manet decidiu deixar o ateliê de Couture por
divergências artísticas, optando por criar seu próprio espaço de produção. Seus trabalhos
nessa época possuíam características próximas ao realismo de Gustave Coubert (1819-
1877) e retratavam cenas cotidianas da contemporaneidade, como touradas, pessoas em
cafés e outros artistas. Suas obras apresentavam pinceladas soltas, com detalhes
simplificados e sem transição tonal entre luz e sombra. Outras influências nesses trabalhos
foram Ticiano (1489-1576), Caravaggio (1571-1610), Diego Velázquez (1599-1660),
Rembrandt (1606-1669) e Johannes Vermeer (1632-1675).

LINHA DO TEMPO

Ao longo do século XIX na França, havia uma relação intrínseca entre a arte e o Estado,
sendo este patrocinador e comprador de obras expostas no Salão de Paris. O Estado
também exercia controle sobre a Escola de Belas Artes e sobre a Academia Francesa, duas
instituições referenciais de técnica na produção artística da época e pilares da pintura
classicista. A exatidão do desenho, a erudição do tema escolhido e a articulação
compositiva do quadro eram o resultado de um rigor técnico quanto à racionalidade e
requisitos da boa arte.
Existia uma hierarquização de importância dos temas abordados nas obras: os temas
históricos, passíveis de representação em telas de grandes dimensões; retratos; de
gênero/cotidiano; de paisagem; e por último de natureza morta.
Nas composições mais prestigiadas no Salão, existia a recorrência de temas relacionados à
História Clássica, como as cenas relacionadas à mitologia greco-romana e a religião cristã.
Isso porque, haveria uma percepção geral de que determinadas escolhas estilísticas, como
representações de nudez, violências ou tópicos ligados à sexualidade, só seriam razoáveis
se apresentadas com distanciamento temporal, associando-a um passado clássico ou da

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religião. Diante de fortes protestos de artistas que foram impedidos de participar do Salão e
por determinação do imperador Napoleão III, foi organizada uma exposição paralela: o
Salão dos Recusados.

VER A OBRA

1. Descrição dos elementos presentes

O primeiro aspecto mais notável desta obra são suas dimensões, com mais de dois metros
de altura e largura. De acordo com o rigor academicista da época, tais dimensões somente
seriam razoáveis em uma pintura de tema histórico e não uma pintura do cotidiano, como é
o caso. A paleta utilizada por Manet contempla cores fortes e outonais, em tons de preto,
marrom, verde escuro, verde claro, azul claro acinzentado, vermelho, rosa claro, amarelo
pálido e branco. A composição apresenta contrastes intensos de luz brilhante e sombra, com
figuras mais bem delineadas no primeiro plano e pinceladas rápidas, imprecisas e sem
muitos detalhes no segundo plano.
Inicialmente denominada “O Banho”, a obra de Manet criou forte repercussão na sociedade
com uma representação de quatro personagens contemporâneas à época, duas femininas e
duas masculinas em um cenário quase bucólico e emoldurado por árvores. Essas
personagens estão dispostas em um agrupamento triangular no centro da tela, sendo que
cada delas está voltada para uma direção diferente e não direcionada umas às outras. O
mais desconcertante na representação é o fato de que, enquanto as figuras masculinas estão
completamente e cuidadosamente vestidas, as personagens femininas trajavam apenas
vestes íntimas ou se encontravam totalmente nuas.
A composição pode ser dividida em planos e em três faixas horizontais. No primeiro plano
na diagonal inferior esquerda (faixa horizontal próxima a base da tela) existem
representações de natureza morta classicamente executadas: sobre o que aparenta ser o
vestido azul claro da personagem nua e suas roupas íntimas brancas, jaz uma cesta de
piquenique contendo pêssegos e ameixas. Ao lado desta, cerejas, um brioche e uma garrafa
transparente vazia repousam sobre a relva. Próximo a estes, um chapéu de palha com uma
fita na mesma cor do vestido. Na faixa horizontal central, a mulher completamente nua
reluz na tela, sentada sobre parte de seu vestido, com um discreto adorno preto na cabeça a
prender os cabelos. Sua tez branca é muito iluminada, e sua postura é prostrada a fitar o
observador com um olhar direto. Em um plano um pouco mais afastado, ao lado direito da
mulher, existem dois homens elegantemente trajados com chapéu casquete, paletó escuro,
gravata, camisa, calças, sapatos e uma bengala. Os detalhes e a nitidez dessas figuras são
menos trabalhados que os da personagem feminina do primeiro plano. No segundo plano,
ainda mais afastado, na terceira faixa horizontal, existe a segunda mulher, também
intensamente iluminada, trajando roupas íntimas brancas, ela se apresenta agachada em um
raso trecho de água, a segurar suas vestimentas para possivelmente não se molhar em
demasia. Acima desta mulher, é possível visualizar um limitado fragmento de horizonte,
com o céu azul e água esverdeada.

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Por fim, existem ainda distribuídos pela tela um sapo verde (próximo ao vestido da
mulher), um pássaro vermelho em pleno voo sobre a mulher que se banha na água e um
pequeno barco marrom, ainda com os remos, atracado na beira do rio.

2. Interpretação

Notavelmente, Manet tinha intenção de provocar: provocar a sociedade parisiense da época,


o senso de belas artes, as instituições de arte e suas tentativas de controle. Advindo de um
momento em que o rigor acadêmico cerceava as escolhas estéticas e estilísticas dos artistas,
Manet subverteu as regras vigentes ao utilizá-las ao seu prazer e escandalizou juris e
público.
Manet teve a ideia da obra Almoço na Relva após ver mulheres banhando-se nuas no Sena,
em Argenteuil. Ao imaginar uma representação pictórica para a cena, ele se apoiou em seu
treinamento acadêmico e na sua habilidade técnica, amplamente exercitados no ateliê de
Couture e nas cópias das obras dos mestres da pintura. Deste modo, as escolhas aplicadas
foram conscientes e comunicam a apropriação de conceitos clássicos, utilizando-os em um
contexto moderno.
A tela é baseada em alegorias presentes nas obras “Concerto Campestre” de Ticiano e
“Julgamento de Páris” de Rafael, ambos trabalhos com temáticas mitológicas e de mestres
reconhecidos, sendo que tal inspiração sugeriria conhecimento e aptidão do artista na
época. Por esses quesitos, a obra de Manet poderia ter sido muito bem-vista aos olhos dos
connoisseurs se não tivesse sido aplicada em um tema aparentemente vulgarizado. Além do
prestígio menor da pintura de cotidiano e paisagem (ainda mais nessas proporções), a
presença de uma mulher completamente nua com um olhar inquisidor e sem o
distanciamento temporal exigido, a idealização da situação e o caráter onírico da
representação, causaram desconforto e reações hostis tanto da Academia quanto do público.
O incômodo geral com olhar direto da mulher nua é particularmente evidente já que as
representações femininas do cotidiano não dispunham dessa potência pois eram sempre
caracterizadas com pudor, recato e timidez.
Com esta obra, Manet conferiu uma escala de arte clássica à vida boêmia urbana, desafiou
os cânones e inspirou outros artistas a também se desvencilharem de amarras invisíveis.
Do aspecto técnico, outras provocações da obra consistem na não utilização de sutilezas
tonais, inexistência de acabamento esmaltado e apresentação de plano de fundo
aparentemente apenas esboçado, com pinceladas rápidas espessas ou leves. Os críticos
também apontaram problemas de composição: as personagens parecem planas, sem
sombreamento, o que garantiria volume, como se tivessem sido inseridas em um cenário.
O fato de cada personagem focar em uma direção, transmite a ideia de ausência de
interação e reforça o aspecto de montagem. Além disso, ao não utilizar da perspectiva
tradicional renascentista, a obra cria um horizonte alto e sem profundidade que, associado a
inexatidão proporcional do tamanho da banhista em relação ao barco ou aos outros

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personagens, remete a uma impressão de que o plano de fundo não passa de uma tela
criada em forma de cenário.
O humor e a ironia de Manet ficam ainda mais evidentes quando observados o sapo e o
pássaro. O sapo camuflado na relva seria algo sensato para a ambientação, porém,
representa um toque muito ordinário para uma peça de rigor com homenagens e inspirações
clássicas. E o pássaro em vôo alto, emulando a postura da pomba do espírito santo, seria
um outro traço de sarcasmo, já que essa iconografia era usada em obras religiosas cristãs,
com a personagem pairando por cima dos acontecimentos sagrados.

PISTAS EDUCATIVAS

Considerando as provocações realizadas por Manet referentes a presença de uma mulher


completamente nua com um olhar inquisidor e sem o distanciamento temporal exigido, a
idealização da situação e o caráter onírico da representação, reflita sobre o desconforto
provocado no público e nos críticos. Quais são as razões para este mal estar? O que a
sociedade do século XIX entendia como arte? O que a nudez representa nesse sentido? Na
sua opinião, qual a razão para o artista explorar somente a nudez feminina e não masculina?
Existe um contraponto a ser demonstrado nessa retratação?
Em outro aspecto, em qual forma a obra dialoga com os cânones? Você considera que essa
abordagem foi boa uma estratégia? Discorra sobre os possíveis desdobramentos desta
tática.
Por fim, reflita sobre a trivialidade da cena retratada. A cena da obra é representada de
forma verossímil? Existe alguma idealização e, se sim, em quais aspectos? E os corpos
representados, foram idealizados? Se sim, quais são as semelhanças e diferenças com a
atualidade?

REFERÊNCIAS

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BOIS, M. C. M. S. (2008). “Charles Baudelaire e Édouard Manet: Por uma arte da vida
moderna”. In: Humanidades Em diálogo, 2(1), 137-152. Disponível em:
https://doi.org/10.11606/issn.1982-7547.hd.2008.10615. Acessado em 06/02/2022.

DAMISCH, H. (2018). “Uma mulher, portanto: Le déjeuner sur l’herbe”. In: ARS (São
Paulo), 16(32), 59-72. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2178-
0447.ars.2018.144714. Acessado em 06/02/2022.

GRAHAM-DIXON, A. (2011). “Impressionismo: Edouard Manet”. In: Arte: O Guia Visual


Definitivo, traduzido por Eliana Rocha, São Paulo: Publifolha, 342-347.

SEM AUTORIA, ano indefinido. “Le Déjeuner sur l'herbe”. In: Musee D’Orsay Site.
Disponível em https://www.musee-orsay.fr/fr/oeuvres/le-dejeuner-sur-lherbe-904. Acesso
em 06/02/2022.

SMARTHISTORY. “Manet, Le Déjeuner sur l'herbe”. Youtube, 14/04/2017. Disponível


em https://youtu.be/3xBGF8H3bQ4. Acesso em 06/02/2022.

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