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ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (EFLCH),

DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP).

ANA DANDARA BRASIL MIRANDA

Frankenstein no Primeiro Cinema: Ciência e Espetáculo

GUARULHOS, 2021
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (EFLCH),
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP).

Ana Dandara Brasil Miranda

Frankenstein no Primeiro Cinema: Ciência e Espetáculo

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Departamento de História da Arte da Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da
Universidade Federal de São Paulo (campus
Guarulhos) como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em História da
Arte.

Orientadora: Profª. Drª. Yanet Aguilera Viruez


Franklin de Matos.

GUARULHOS, 2021
MIRANDA, Ana Dandara B.
Frankenstein no Primeiro Cinema: Ciência e Espetáculo. Ana Dandara Brasil Miranda. –
Guarulhos, 2021.
45 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em História da Arte) – Universidade
Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2021.
Orientadora: Profª. Drª. Yanet Aguilera Viruez Franklin de Matos.
Frankenstein in the Early Cinema: Science and Spectacle.
1. História da Arte 2. Arte e Ciência 3. Cinema Silencioso. I. MATOS, Yanet Aguilera.
II. Frankenstein no Primeiro Cinema: Ciência e Espetáculo.

2✼
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (EFLCH),
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP).

Ana Dandara Brasil Miranda


Frankenstein no Primeiro Cinema: Ciência e Espetáculo

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Departamento de História da Arte da Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da
Universidade Federal de São Paulo (campus
Guarulhos) como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em História da
Arte.

Orientadora: Profª. Drª. Yanet Aguilera Viruez


Franklin de Matos.

Aprovada em 09 de Março de 2021

___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Ilana Seltzer Goldstein (UNIFESP)

_____________________________________________________________________
Profo. Dro. Jens Michael Baumgarten (UNIFESP)

GUARULHOS, 2021

3✼
Resumo

Este trabalho se dedica à análise interpretativa do filme Frankenstein, produzido em


1910 no contexto dos nickelodeons estadunidenses. Concentra-se no tema da criação do
monstro pelo cientista, observando no filme e na metáfora frankensteiniana a imbricação entre
os artifícios científicos e espetaculares.

Palavras-chave: Cinema Silencioso, Arte e Ciência, Primeiro Cinema, Frankenstein.

Abstract

This work applies to the interpretative analysis of the film Frankenstein, produced in
1910 in the context of American nickelodeons. It focuses on the subject of the monster
creation by the scientist, observing in the film and in the frankensteinian metaphor, the
overlap between scientific and spectacular artifices.

Keywords: Silent Movie, Art and Science, Early Cinema, Frankenstein.

4✼
Agradecimentos

Aproveito meu último trabalho da graduação para agradecer à minha mãe, pelo apoio
e confiança de sempre. Também aos amigos da Unifesp, especialmente aos Ratos; aos
funcionários e professores da instituição que se dedicam a manter a universidade viva, e a
todos que lutaram pela educação pública, por permitirem a minha formação.

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Lista de Figuras

Fig. 1 Frame do filme Frankenstein (1910),


Minutagem 1:37.
p. 20

Fig. 2 Retrato de John Adams (1735-1826).


Gravado por Alonzo Chappel. Imagem
disponível em site dedicado ao artista:
https://www.alonzochappel.org/Portrait-Of-
John-Adams-1735-1826.html. Acesso em: 11
nov. 2020. John Adams foi diplomata, advogado
e segundo presidente dos Estados Unidos da
América.
p. 21

Fig. 3 Retrato de James Madison (1751-1836).


Gravado por Alonzo Chappel. Imagem
disponível em: https://www. alonzochappel.org/
James-Madison-1751-1836.html. Acesso em:
11 nov. 2020. Madison foi advogado e quarto
presidente dos Estados Unidos da América.
p. 21

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Fig. 4 Retrato de Alexander Hamilton (1755-
1804). Gravado por Alonzo Chappel. Uma
reprodução em preto e branco da gravura está
disponível em: https://www.alonzochappel.
org/Portrait-Of-Alexander-Hamilton-1755-
1804.html. Acesso em: 11 nov. 2020. Hamilton
escreveu a maioria dos “Federalist Papers” e foi
um dos principais promotores da Constituição
dos Estados Unidos.
p. 21

Fig. 5 Retrato de Gotthold Ephraim Lessing,


gravado por A.H. Payne. Publicado pela London
Printing & Publishing Company, cerca de 1860.
Disponível em: https://www.lindisfarneprints.
com/gotthold-ephraim-lessing-antique-stipple-
engraved-portrait-print-c-1860-11908-p.asp.
Acesso em: 11 nov. 2020.
p. 21

Fig. 6 Vanitas com máscara, c.1650-1655,


Hendrick Andriessen, óleo sobre tela.
Ashmolean Museum of Art and Archaeology,
University of Oxford, Reino Unido.
p.21

7✼
Fig. 7 Vanitas, Simon Renard de Saint-André,
óleo sobre tela. Coleção privada. Imagem
disponível na Web Gallery of Art:
https://www.wga.hu/index1
.html. Acesso em: 20 nov. 2020.
p. 22

Fig. 8 Frame do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 02:38.
p. 24

Fig. 9 Frame do filme Le Spectre Rouge (1907)


de Segundo de Chomón. Minutagem: 04:47.
p. 25

Fig. 10 Frame do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 00:59.
p. 26

8✼
Fig. 11 Gabinete de Curiosidades, c.1666,
Johann Georg Hinz, óleo sobre tela. Museu de
Artes Decorativas SMBPK, Berlim.
p. 26

Fig. 12 Frontispício do De humani corporis


fabrica, de Andreas Vesalius. Gravado por John
of Calcar (John Stephen Calcar) 1499–1546/50.
Publicado por Johann Oporinus em 1555. MET
Metropolitan Museum Nova York. Disponível
em: https://www.metmuseum.org/art/collection/
search/358129z. Acesso: 17 jan. 2021.
p. 26

9✼
Fig. 13 Ilustração do livro Essai théorique et
expérimental sur le galvanisme, avec une série
d'expériences. Faites en présence des
commissaires de l'Institut National de France, et
en divers amphithéâtres anatomiques de
Londres par Jean Aldini, Paris, 1804.
Digitalizado pela Open Knowledge Commons
and Harvard Medical School, disponível na
biblioteca archive.org: https://archive.org/
details/essaithoriqueete001aldi/page/n387/mode/
2up. Acesso em 20 dez. 2020.
p. 27

Fig. 14 A galvanized corpse, charge em


litografia de Henry R. Robison. Printed & pub:
by H.R. Robinson, no. 52 Cortlandt St. N.Y. &
Pennsa. Avenue Washington D.C. Imagem do
acervo da Library of Congress, Washington
D.C. U.S.A. Disponível em: https://www.loc.
gov/item/2008661296/. Acesso em 17 jan. 2021.
p. 27

Fig. 15 Frame do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 03:37.
p.29

10 ✼
Fig. 16 Frame do filme Frankenstein (1910).
Minutagem: 04:22.
p.29

Fig. 17 Estudo com Caranguejo Ermitão e


Bruxaria, 1602–3, Jacques de Gheyn II, pena,
tinta e aquarela. Städelsches Kunstinstitut,
Frankfurt am Main.
p.29

Fig. 18 Fantastic Heads, 1638, Jacques de


Gheyn III, aguaforte. Acervo da National
Gallery of Art, Washington D.C., disponível em:
https://www.nga.gov/global-site-search-page.
html?searchterm=1971.67.1. Acesso em: 17 jan.
2021.
p. 30

11 ✼
Fig. 19 Ilustração do livro Micrographia: Or
some physiological descriptions of minute
bodies made by magnifying glasses: With
observations and inquiries thereupon. Londres,
impresso por Jo. Martyn e Ja. Allestry, da Royal
Society, 1664, de Robert Hooke. Acervo da
Royal Society, disponível para consulta em:
http://ttp.royalsociety.org/ttp/ttp.html?
id=a9c4863d-db77-42d1-b294-
fe66c85958b3&type=book. Acesso em: 25 jan.
2021.
p. 30

Fig. 20 Cena do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 04:36.
p. 31

Fig. 21 Cena do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 04:58.
p. 32

12 ✼
Fig. 22 A criação de Adão, 1508-1512,
Michelangelo, afresco, teto da Capela Sistina,
Roma, Vaticano.
p. 32

Fig. 22 Frame do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 5:11.
p. 33

Fig. 23 Frame do filme Frankenstein (1910).


Minutagem: 05:30.
p. 34

Fig. 24 O Pesadelo, 1781, Johann Heinrich


Füssli, óleo sobre tela. Detroit Institute of Arts,
Detroit, Michigan.
p. 34

13 ✼
Sumário

1. Introdução ✽15
2. Frankenstein de 1910 ✽16
3. Análise descritiva
3.1 Sequência 1 ✽19
3.2 Sequência 2 ✽24
3.3 Sequência 3 ✽33
4. Criador e Criatura ✽35
5. Ciência e Espetáculo ✽41
Bibliografia ✽44

14 ✼
1. Introdução

O monstro criado por Victor Frankenstein é um dos personagens mais famosos da


história do cinema. A criatura eclipsou tanto o criador que, desde o filme de 1931, se
apropriou de seu nome. A atuação simpática de Boris Karloff e a caracterização plástica do
personagem – a cabeça quadrada, o parafuso no pescoço, os braços rígidos e costurados nas
articulações –, transformaram de maneira duradoura a imagem associada à narrativa. Mesmo
para aqueles que nunca assistiram ao filme, a figura da criatura se tornou uma referência por
si só, amplamente reproduzida nas mais diversas mídias, para as mais diferentes finalidades.
As relações básicas na história de Frankenstein também se desprenderam do livro que
Mary Shelley escreveu em 1818. Se transformaram em uma fórmula consistente para a ficção-
científica, ao mesmo tempo em que não cessaram de se transmutar, remetendo e
contradizendo às ideias do texto original. Mesmo sem contato com o romance de Shelley, é
comum saber se tratar da história de um cientista que pretende criar um ser vivo a partir da
combinação de corpos humanos mortos. Seu empreendimento resulta tanto em sucesso quanto
em fracasso: a criatura está viva – como comemora o cientista, ainda na cena famosa do filme
de 31, “It’s Alive! – Now I know how It’s like to be a God”. Mas este ser vivo é considerado
um monstro desde a sua primeira manifestação de vida. Também sabe-se que o monstro se
volta contra o criador, causando a morte de seus familiares e amigos.
Esse núcleo da história, o relacionamento trágico entre criador e criatura despertado
em um ambiente científico, funciona por vezes como uma espécie de referência alegórica
aplicável às práticas da ciência moderna. Ainda na metade do século XX, com as primeiras
especulações no campo da robótica acerca da inteligência artificial, Frankenstein foi muito
aproximado da computação. Em Frankenstein Meets The Space Monster (1964), para dar um
exemplo, “Frankenstein” já é apenas um apelido qualitativo, com o qual alguns cientistas do
exército decidem se referir a um robô. Isso acontece só depois que o robô “sai do controle”,
seguindo sua própria programação, ao agredir algumas pessoas.
Mais recentemente, em relação às técnicas de engenharia molecular, Frankenstein vira
metáfora para questões bioéticas. Como fala Bruno Latour no artigo Love Your Monsters, que
comentaremos neste trabalho, “We use the monster as an all-purpose modifier to denote
technological crimes against nature. When we fear genetically modified foods we call them
‘frankenfoods’ and ‘frankenfish’” (2012, s.n.). Em La jugada del peón – el agronegocio letal

15 ✼
(2015), um filme militante argentino que denuncia a exploração do agronegócio e as doenças
relacionadas aos pesticidas e alimentos transgênicos, encontramos o monstro em cartazes de
protestos de rua. As inúmeras apropriações do romance podem nos levar a diferentes
reflexões a respeito do poder da técnica.
Mary Shelley concebeu sua história tendo em mente uma apropriação alegórica – o
título completo do livro é Frankenstein; or, the Modern Prometheus. Além do fogo de Zeus,
dessa vez roubado pelo cientista, a autora também mistura referências cristãs e mobiliza, por
meio dos personagens, livros do romantismo e da alquimia renascentista. O romance não
separa a ciência e a magia, mas coloca as duas como catalisadoras da mesma vontade em
Victor Frankenstein, mesmo quando colocadas em comparação. A especulação em torno da
criação de vida artificial e a execução do experimento em laboratório produzem uma imagem
do poder do cientista. Esse trabalho se dedica especificamente à essa imagem da criação,
como foi representada na primeira adaptação cinematográfica do romance.

2. Frankenstein de 1910

Frankenstein foi produzido em 1910 pelos Estúdios Edison, nos Estados Unidos,
dirigido por J. Searle Dawley e protagonizado por Charles Ogle, Augustus Phillips e Mary
Fuller. Com a duração de 13 minutos, atendia à regulamentação do formato 1.000-foot, ou
300 metros de filme, o padrão então recém estabelecido para a circulação comercial.
A popularidade de um novo espaço de lazer – o nickelodeon, cresceu rapidamente a
partir de 1908 (KEIL, 2001). Diferentemente dos teatros de vaudeville, onde os filmes eram
uma atração entre os mais diversificados números, os nickelodeons eram dedicados quase
exclusivamente à projeção cinematográfica, com programações que mudavam praticamente
todos os dias, fazendo com que a demanda por filmes fosse bastante alta.
Ainda assim, as maiores produtoras se organizaram numa espécie de cartel para barrar
as produções independentes, formando a Motion Picture Patent Company (MPPC), ainda em
1908. A MPPC limitou a importação de filmes franceses (que dominavam as telas
inicialmente), e incentivou uma primeira industrialização do modo de produção dos filmes –
logo, a Biograph pôde se orgulhar de produzir no mínimo seis filmes por semana em seu
estúdio (SIMMON, 2009).

16 ✼
Nesse contexto, é comum narrar a história do cinema de 1910 como um período de
transição entre os espetáculos de vaudeville e o que viria a ser o feature film industrial. Sem
dúvida, foi nesse período que as produtoras começaram a se estabelecer no sul do país, à
procura do clima ensolarado, e, segundo Scott Simmon (2009), foi provavelmente em 1910
que o termo “estrela” passou a ser usado para adjetivar as primeiras celebridades do cinema,
como Mary Pickford e Florence Lawrence.
Mas, ao focarmos apenas nesse processo de transição comercial, acabamos por
facilitar o entendimento de que as produções do período se resumem a tentativas do que o
cinema viria a se tornar. Os pesquisadores do primeiro cinema, dedicados aos filmes
anteriores a 1907, precisaram se contrapor ao modo como se compreendia toda a produção
estadunidense anterior à década de 1910 como uma pré-história (MATOS, 2016).
As histórias do cinema estabelecidas por panoramas consagrados, como os de Georges
Sadoul e Jean Mitry, desconsideram em grande medida os filmes anteriores aos nickelodeons,
porque dedicam-se a elaborar uma evolução do cinema como forma de contar histórias. Nos
primeiros filmes, enxergava-se apenas as primeiras aparições de técnicas específicas que
pudessem ser associadas à “linguagem cinematográfica”, como o close-up e a edição paralela
(COSTA, 2005).
As primeiras “sessões de cinema” costumavam ser compostas por uma coleção de
frames autônomos, cuja sequência era decidida pelos encarregados da projeção, da maneira
que lhes conviesse. Os temas mais comuns eram vistas panorâmicas de lugares distantes,
números de dança, gags humorísticas e truques de mágica. Nos Estados Unidos, costumavam
ser apresentados como uma parte dos shows de vaudeville, um tipo de espetáculo de
variedades popular na virada do século XIX para o XX. Tom Gunning (2006) chamou essa
produção de cinema de atrações, onde o maravilhamento pela variedade, surpresa e
estranhamento ditava o interesse dos produtores e do público muito mais que a capacidade de
elaborar enredos. Em vez de tratar os primeiros filmes como obras incipientes de uma
linguagem unívoca, foi preciso enxergar o apelo de elementos que, para a história do cinema
“narrativo”, eram apenas ruídos.
Ao nos voltarmos para a produção da década de 1910, seria um tanto injusto
abandonar a reflexão em torno das atrações visuais, mantendo a partir daí a história do
processo evolutivo da linguagem cinematográfica. Nos jornais e revistas, o nascimento da
crítica especializada passou a incentivar a produção de adaptações de romances e peças de

17 ✼
teatro. Esse interesse pela potencialidade de contar histórias mais longas e elaboradas suscitou
diversas inovações formais no modo de filmar, mas os elementos “mostrativos” mais
característicos das vaudevilles, as gags e os truques, nunca deixaram de ser relevantes, ainda
que tenham sido rebaixados pelos estudiosos a sinais do que não deve ser levado a sério no
cinema.
Podemos considerar algumas estratégias de filmagem como “narrativas” ou
“mostrativas”, ainda, apenas a partir de um olhar histórico comparativo, que se fez necessário
aos pesquisadores do primeiro cinema para que eles pudessem fazer ver coisas que foram
ignoradas, após a primeira assimilação acadêmica dessa produção. O estilo dos filmes de
vaudeville é diferente dos inúmeros estilos de filmagem posteriores, mas, como diz W. J. T.
Mitchell (1994), ainda que possamos entender um livro como textual e uma pintura como
visual, todas as mídias são mídias mistas, nas quais o mostrar e o narrar podem ser
articulados de algum modo – o que interessa é o modo, que atende aos interesses enfáticos da
comparação.
Sendo assim, não é o caso de dizer que o cinema estadunidense, ao longo dos anos 10,
desenvolveu a arte do cinema narrativo, mas que um certo modo de narrar histórias adquiriu o
status de normatividade – se transformou em cinema “clássico”. Isso se deu em parte pelos
meios de validação da época, e em parte pelas escolhas da historiografia.
Na década de 1910, os filmes deixaram de ser um lazer restrito e se transformaram em
um programa acessível e amplamente frequentado. Como reação a essa rápida popularização,
recomendava-se nos jornais que os filmes servissem a propósitos educativos, já que os
nickelodeons passaram a ser vistos como culpados pelo crime juvenil, pelas crianças que
ateavam fogo em suas casas e pela desvirtuação das mulheres. Entretanto, essas denúncias
apenas revelam como o apelo cinematográfico estava para além do controle da censura: o
fenômeno do início do cinema não se resume ao processo de “narrativização”, nem à forte
veiculação de histórias conservadoras. Os nickelodeons foram um espaço de convívio, fuga e
troca cultural. E as imagens mobilizadas pelos filmes, vindas do senso comum, da literatura,
do teatro, das mais diversas artes e também da técnica industrial do início do século XX,
podem nos levar a diferentes percepções históricas e teóricas.
Podemos considerar que Frankenstein atende à demanda pela realização de adaptações
literárias – em 1910, as telas seriam ocupadas por uma pequena porção de adaptações de
Shakespeare nacionais e importadas, além de O Mágico de Oz, Ramona, entre outros

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(SIMMON, 2009) –, que podem ser atribuídas à pressão moralizante sobre os nickelodeons.
Ao mesmo tempo, há em Frankenstein uma continuidade da espetacularização do “primeiro
cinema” das vaudevilles. Faremos a seguir uma análise descritiva do filme, que se dedica a
três sequências: a anterior ao experimento do cientista, o experimento em si e a sequência
seguinte, em que o monstro persegue o cientista pela primeira vez. As três sequências foram
escolhidas porque concentram e expõem bem o ato da criação, que é o tema de nosso
trabalho. Depois, pensamos o filme com o auxílio das ideias de Bruno Latour sobre a ciência,
e retornamos brevemente ao contexto de produção de Frankenstein.
Junto à descrição, procuramos dar vazão à mistura entre ciência, magia e espetáculo
que se expressam nas imagens e no texto dos letreiros. As referências que buscamos
participam de algum modo do estabelecimento de estereótipos a longo prazo, como o do
cientista maluco ou das criaturas deformadas do body horror, que tanto perduraram nos filmes
de terror. Interessa menos provar a relevância direta desse repertório científico e artístico na
realização do filme (que, no contexto dos nickelodeons, foi provavelmente concebido em
questão de uma semana), e mais mostrar como a realização está imersa nesse repertório
mágico-científico, sendo também parte dele.
As referências ao lado esquerdo e direito do quadro são sempre a partir do ponto de
vista do espectador. A maioria das figuras foi incorporada ao texto, mas não todas. O total
está organizado na Lista de Figuras, constando a página em que são reproduzidas ou apenas
citadas. Estão sinalizadas, na lista e no texto, da seguinte maneira: (fig. xx).

3.1 Sequência 1.

A primeira sequência que comentaremos apresenta o quarto do cientista Victor


Frankenstein, um ambiente ocupado em grande parte por uma cortina preta, aberta dos dois
lados, como se costuma fazer para emoldurar janelas (fig. 1). A cortina é o dossel de uma
cama, da qual vemos uma faixa da colcha branca mais abaixo, e sua abertura dá para um
fundo sem definição, ainda mais escuro. Uma mesa está em primeiro plano, à frente da cama,
coberta por um tecido com franjas, e, como a cortina, as franjas dão vazão a uma região
indefinida. À esquerda está uma estante, cujos compartimentos quase não se destacam do
fundo. Os tons escuros trabalhados pela cenografia são sobrepostos por uma coloração
vermelha aplicada à película.

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Fig 1 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital da Library of Congress, Washington.
Essas características fazem com que o ambiente doméstico do quarto possa ser tomado
como apreensivo, já que os objetos criam espaços de indefinição, como embaixo da mesa ou o
fundo da cama – assim, algo inusitado pode surgir desses espaços a qualquer momento.
Venha o espectador a premeditar isso ou não, se trata de uma possibilidade aberta em cena,
que ainda será bem aproveitada pelo filme. A ambivalência entre sóbrio e sombrio provoca
um efeito de suspense.
Na estante, estão dispostos alguns objetos: livros, uma ampulheta, frascos e uma
caveira de perfil. Sobre a mesa, vemos alguns papéis, outra ampulheta, e uma vela em
castiçal. Em certo momento, Victor Frankenstein, interpretado pelo ator Augustus Phillips,
senta-se à mesa, de perfil para a câmera, e seu figurino cria uma silhueta de colete escuro,
colarinho branco e mangas brancas, enquanto escreve com uma pena.
Da composição dos objetos na mesa e gestos de Victor, podemos buscar uma
iconografia, encontrando semelhanças com uma série de retratos de juristas estadunidenses
que aparecem posicionados à escrivaninha, com um livro ou uma pena à mão. Por exemplo,
os retratos em gravura de John Adams (fig. 2), James Madison (fig. 3), e Alexander Hamilton
(fig. 4), dois presidentes e o primeiro secretário do tesouro dos Estados Unidos, conhecidos
como pais fundadores do país. Em todos eles, temos objetos semelhantes aos que vemos no
filme – a pena de escrever e os livros sobre a mesa, uma cadeira e uma cortina escura.

20 ✼
Essa convenção dos retratos traz à imaginação um cenário político, jurídico e
científico dos Estados Unidos nos anos de independência e escritura da constituição1.

Fig. 2 John Adams.


(alonzochappel.org) Fig. 3 James Madison. Fig. 4 Alexander Hamilton.
(alonzochappel.org) (alonzochappel.org)

Porém, objetos que podemos encontrar isoladamente nas gravuras dos juristas, como
uma ampulheta ou um castiçal, aparecem no filme em grande quantidade, somados à caveira
em cena. Eles aludem ao repertório simbólico das vanitas (fig. 6 e 7), um tipo de natureza
morta cuja função é alertar a brevidade da vida, nas quais figuram diversos objetos que
marcam a passagem do tempo2.
Na sequência, afinal, estão integradas uma certa imitação da sobriedade dos retratos
com a variedade ilustrativa das vanitas. Nos retratos, ainda, as cortinas pretas servem como
ornamento sóbrio, ora como fundo final, ora como moldura para uma estante de livros. No
filme, um pouco para além disso, a cortina pode ser pensada como uma passagem, que tem a
função de animar o fundo. Além de ocupar um espaço significativo no quadro, ela está

1 No site https://www.alonzochappel.org/ é possível ver dezenas de retratos feitos nesse estilo pelo
artista Alonzo Chappel. Eles podem ser associados a um repertório visual do iluminismo
estadunidense, que envolveu o processo de independência e a formulação da constituição e dos ideais
de nação, segundo a representação dos “founding fathers”. Retratos de pensadores iluministas
europeus podem ser mais ou menos semelhantes, porque a pose do intelectual sentado à escrivaninha é
abundante no século XVIII. Nas imagens, está incluída também uma gravura mais antiga, de Lessing
(fig. 4), para ilustrar esta questão.

2 O repertório iconográfico das vanitas é depois muito assimilado pelas diferentes produções artísticas
consideradas simbolistas, na virada do século XIX para o XX, que configurou um repertório de
imagens “sombrias” que serviam a charges e ilustrações em jornais e revistas.

21 ✼
amarrada como uma entrada, por ser um dossel de entrada da cama, mas que se assemelha
também às bambolinas abertas de uma apresentação teatral.
Após o desenrolar de algumas atividades do
cientista, dá-se um corte e vemos um letreiro com a
imagem de uma carta, que supomos ser o conteúdo do
que Victor redigia em cena até então. Logo em seguida,
voltamos ao enquadramento anterior, e vemos que ele
solta a carta abruptamente. Frankenstein pega, então, o
castiçal que estava sobre a mesa, e sai de cena, altivo,
com o braço esticado, mantendo a vela à sua frente. É
um gesto que pode ser visto de duas formas, afinal, ao
mesmo tempo em que ele pode querer iluminar com
bravura, como um homem das luzes, o que está adiante,
Fig. 7 Vanitas, Simon Renard de Saint- a necessidade da vela indica que ele teme o ambiente e
André. Coleção Privada.
é dependente, para adentrá-lo, de uma fonte de luz – o
que é uma ambiguidade da metáfora iluminista como um todo.
A relação entre discernir o uso (ou conhecer os significados) dos objetos, mas, ao
mesmo tempo, experienciar uma apreensão do desconhecido ou sobrenatural pode ser vista
como uma manifestação de contrastes característicos do terror. É algo que encontramos em
certos contos de Edgar Allan Poe, como em O Gato Preto, onde a todo momento o narrador
nos fornece explicações lógicas para as estranhas aparições do gato. Mesmo ao entendermos
as explicações racionais, e talvez justamente por isso, a história se faz aterrorizante. A caveira
em cena, por exemplo, emana todas as questões em torno da morte, enquanto podemos tentar
nos convencer de que é um objeto instrumental para as investigações científicas.
Há, ainda, um elemento curioso: à extrema esquerda, no alto, está pendurada uma
máscara da comédia com nariz comprido, que sorri. Ela está em um canto talvez por acaso,
mas o acaso não diminui o seu efeito como um elemento interessante que ironiza o discurso
de Frankenstein. Se tomarmos a máscara e a caveira como rostos em cena, temos a atuação
tanto da farsa quanto da morte, como assombrações acima do cientista.
Na cena completa, Victor oscila entre otimismo e ansiedade com gestos precisos: anda
inquieto, excita-se com uma fotografia, redige votos de perfeição, abandona o texto, respira
levando a mão ao peito, estende os braços para frente, titubeia, empunha o castiçal com

22 ✼
altivez e sai de cena. Os letreiros que abrem e fecham a cena, e a carta que Frankenstein
redige, operam um contraste de palavras evocativas: “secret of life and death”, “perfect
human being”, “marvelous work”, “the evil in Frankenstein’s mind creates a monster”.
A imbricação das qualidades enunciadas nos letreiros soa como um lugar comum da
moral da história, mas para que sejam possíveis estas afirmações, está mobilizada uma
concepção de ciência oscilante. O texto expressa figuras ideológicas: O trabalho da ciência é
maravilhoso, a mente do homem, porém, é má. É um discurso corrente em que a ciência em si
é benévola, enquanto o homem que a produz a faz ruim. Poderia se dizer quase o contrário, ao
mesmo tempo, argumentando-se que o ser humano íntegro (o do humanismo) deve ser
protegido dos objetos maus e alienantes da técnica. Essa ideia de integridade é importante
para Victor, que quer fazer de sua criatura a perfect human being, fazendo com que o “erro”
esteja nas contingências objetivas/materiais do experimento e não em suas inspirações. Estes
dois argumentos distintos são mobilizados de maneira co-dependente, defendendo a ciência
de suas “falhas” relacionadas ora com a natureza humana, ora com a artificialidade dos
objetos3.
Os letreiros reiteram os gestos de Victor em todo o filme, que alternam entre uma
excitação com seu ofício e ataques de pânico, algo que já se encontra, como descrito, na
maneira como se prepara para o experimento ao longo desta cena, mas que veremos mais
vezes. O texto integral dos dois letreiros e da carta é:

“Just before the experiment”


“Sweetheart, Tonight my ambition will be accomplished. I had discovered the secret
of life and death and in a few hours I shall create into life the most perfect human
being that the world has yet known. When this marvelous work is accomplished I shall
then return to claim you for my bride”
“The evil in Frankenstein’s mind creates a monster”

3 Essa oscilação faz lembrar uma observação de Marilyn Strathern sobre a inversão nos construtos que
associam a dicotomia “cultura e natureza” com outras dicotomias, como uma maneira de manejar
hierarquias numa argumentação: “Certamente, em nossa cultura, para fazer o simbolismo masculino-
feminino ‘funcionar’ e embasar a dicotomia cultura-natureza, temos de modificar constantemente os
termos de referência dessas oposições (...) Assim, pode-se pensar que os homens estão em sintonia
com as necessidades culturais e as mulheres, com as biológicas – também invertemos essa equação na
imagem dos homens como espontâneos, capazes de mostrar uma natureza mais vulgar em relação à
sociabilidade e ao artifício da mulher, voltada para o outro.” (STRATHERN, p. 35, 2017), grifo da
autora.

23 ✼
3.2 Sequência 2.

Fig. 8 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital da Library of Congress, Washington.


Na sequência seguinte, Victor Frankenstein coloca seu projeto em prática (fig. 8). No
ambiente vemos uma câmara aberta, de estrutura fina, semelhante às usadas em truques de
mágica. Ela produz um reenquadramento dentro da cena, de modo que o fundo escuro da sala
é sobreposto pelo fundo escuro do interior da câmara, na qual vemos apenas um caldeirão.
Em primeiro plano há um esqueleto de corpo inteiro, sentado em uma cadeira e de
frente para nós. Este corpo é o elemento mais destacado da cena. Ele permanecerá voltado ao
espectador durante todo o procedimento realizado pelo cientista, e é impossível separar a
atuação de Frankenstein dessa figura, cujo riso sardônico está fixo em nossa direção.
Vemos além disso mais uma cadeira, uma mesa e sobre ela alguns utensílios, uma
caveira e alguns frascos no chão. Em meio a estes objetos transita Victor, entre o caldeirão
emoldurado ao fundo e o esqueleto sentado à frente. À esquerda há um feixe de parede clara e
alguns volumes, em especial um objeto do qual vemos praticamente apenas a silhueta, que
lembra uma lâmpada de óleo oriental, como as usadas para se invocar gênios. No canto
esquerdo, por fim, está a silhueta de um cálice ou suporte ornamentado com dois arabescos
que se cruzam. Esse tipo de enfeite serpentino é corriqueiro na cenografia dos primeiros
filmes onde ocorrem transformações (como na fig. 9). Essa silhueta lembra tanto o Caduceu

24 ✼
quanto o Cálice de Hígia, deusa da saúde e da assepsia, hoje o símbolo da farmácia. A soma
desses elementos descritos remete à alquimia, como uma zona indefinida entre amuletos e
substâncias naturais, assim, podemos interpretar o conteúdo dos frascos em cena como
reagentes químicos e como elixires mágicos ao mesmo tempo.
Uma cena anterior do filme reforça
esse aspecto ambíguo dos objetos
cenográficos (fig. 10), através do acúmulo
dessas silhuetas mágico-científicas. E ao
mesmo tempo em que alguns desses objetos
adquirem o significado de advertência quanto
à brevidade da vida nas vanitas, como visto,
eles também podem aparecer como
instrumentos atrativos ou objetos
colecionáveis dos gabinetes de curiosidades,
Fig. 9 Frame de Le Spectre Rouge (1907) de
Segundo de Chomón (YouTube). pelo modo de organização nas estantes, como
na pintura Gabinete de Curiosidades de
Johann Georg Hinz (fig. 11).
Victor Frankenstein começa seu experimento misturando um composto numa vasilha,
e a seguir transfere uma quantidade dessa mistura para dentro do caldeirão. Sua ação provoca
uma pequena explosão de gelo seco, mas a reação não agrada o cientista, que leva uma mão à
cabeça num gesto de questionamento. Ele adiciona algo mais à vasilha e repete a ação,
provocando agora uma grande explosão, que o satisfaz. Os gestos de Frankenstein em toda
cena estão ligados a um repertório próprio do primeiro cinema, onde truques são exibidos pelo
mágico, que também pode ser um bruxo, ou um demônio. É como em Le Chaudron infernal
(1903), de Méliès, onde um diabo invoca espíritos por meio de explosões de gelo seco em seu
caldeirão, ou Le Spectre Rouge (1907), de Segundo de Chomón, onde inúmeros truques de
mágica e montagem são exibidos em sequência pelo “espectro vermelho”, um esqueleto com
chifres e capa preta4.

4 Esses filmes franceses estão entre os chamados de féeries, um termo também usado para o teatro
burlesco francês de encenação fantástica característico do final do século XIX. Os truques mais
comuns nos primeiros filmes estadunidenses costumavam servir para encenar sobretudo situações
cotidianas, mas no início dos anos 10 toda a primeira produção, europeia e estadunidense, já era vista
com certo distanciamento e como “material de referência” para a consolidação da primeira indústria
cinematográfica, mediada por um circuito de crítica, segundo o que apresenta Charlie Keil no livro

25 ✼
Fig. 10 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital
da Library of Congress, Washington.

Fig. 11 Gabinete de Curiosidades,


c.1666, Johann Georg Hinz, Museu de
Artes Decorativas SMBPK, Berlim.

O cientista faz todo o procedimento com gestos demonstrativos, que implicam a


exibição do poder mágico (o truque), enquanto a história nos conta se tratar de uma atividade
universitária (como um letreiro anuncia, Frankenstein leaves for college). Ele exibe portanto
uma espécie de demonstração científica tal qual um truque.
Há tradições de demonstrações científicas em formato de espetáculo de palco: as
dissecações em teatros de anatomia praticadas desde o Renascimento em universidades
europeias, por exemplo, podem ser pensadas como uma prática de apresentação performática 5.
Também os shows de galvanismo, popularizados por Giovanni Aldini (sobrinho de Luigi
Galvani) no início do século XIX, que Mary Shelley muito provavelmente conheceu antes de
escrever Frankenstein. Aldini provocava diferentes contrações em animais mortos (incluindo

Early American Cinema in Transition (2001).

5 Em The Performative Corpse: Anatomy Theatres from the Medieval Era to the Virtual Age (2014),
Kristin Michelle Keating faz uma interpretação da história da exibição de cadáveres e da dissecação
do ponto de vista do teatro e das performances. A partir do Renascimento, as demonstrações
anatômicas em geral aconteciam nos mesmos palcos que a dança, peças e outras atividades artísticas.
A construção de teatros específicos para a dissecação seguiu o modelo do teatro renascentista. Em
Bologna, as demonstrações aconteciam durante o carnaval, com a presença de pessoas mascaradas e
bêbadas (KEATING, 2014, p. 59-60) A autora usa uma imagem para representar esse ritual
performático: “Vesalius’ De humani corporis fabrica perhaps conveys the sensational atmosphere of
the anatomical ritual better than any other, with its urgent crowds pressing to get near the body,
dissectors squabbling under the table over surgical instruments, and its ominously large skeleton
looming over the procedure” (KEATING, 2014, p. 60), essa imagem está inclusa nas figuras (fig. 12).

26 ✼
espasmos em cabeças decepadas, entre outros “números”), que eram tanto espetáculos de
curiosidade, quanto parte de uma argumentação científica ferrenha em torno da natureza da
eletricidade6. Abaixo está uma página do livro Essai théorique et expérimental sur le
galvanisme, de Aldini (fig. 13), e uma charge política estadunidense de 1836, utilizando a
galvanização como recurso satírico7 (fig. 14). Essas duas imagens servem para ilustrar como a
representação do experimento é feita com uma disposição de palco, e como, provavelmente
devido a toda essa veiculação exibicionista, o galvanismo é depois apropriado pelo humor
político.

Fig. 13 Essai théorique et expérimental sur le Fig. 14 A galvanized corpse, 1836, acervo digital da
galvanisme, 1804. Harvard Medical School. Library of Congress, Washington.
(archive.org)

Outro exemplo, intimamente ligado à realização do filme, é o das famosas e


diversificadas demonstrações elétricas de Nikola Tesla e de Thomas Edison, também
marcadas por disputas. Elas podem nos conduzir até a iluminação feérica das Exposições
Universais, e ao mesmo tempo à rápida incorporação da cadeira elétrica no sistema carcerário
6 A disputa entre Luigi Galvani e Alessandro Volta, a decidir se a eletricidade era um fenômeno
bioquímico ou físico. Hoje, as duas teorias são consideradas verdadeiras.

7 Nesta charge de 1836, o editor chefe do Washington Globe e relativamente influente personagem da
política estadunidense, Francis Preston Blair é ressuscitado por um processo galvânico enquanto dois
diabos discutem como o “retorno à vida” de Blair pode ser positivo ou não para os interesses deles. O
primeiro diabo lamenta perdê-lo, enquanto o segundo comemora: “Lose him! ha ha! . . . Rest you easy
on that score. But can't you see that it's all for our gain that he should be galvanized into activity
again? (...) Show me another man that can lie like him”. O personagem em pé, surpreendido, faz uma
série de exclamações: “...Hence! And yet it stays: can it be real. How it grows! How malignity and
venom are blended in cadaverous union in its countenance! It must surely be a galvanized corpse...". A
imagem e o texto estão disponíveis no site da Library of Congress, Washington D. C., dos Estados
Unidos: https://www.loc.gov/item/2008661296/. Acesso: 20 fev. 2021.

27 ✼
estadunidense, transformando também a aparência do espetáculo mórbido das execuções
legais nos Estados Unidos8. Esses espetáculos diversos estão enlaçados na história da
concepção e das adaptações do romance de Mary Shelley.
No prosseguir da cena, após a segunda explosão de gelo seco, Frankenstein fecha as
duas portas da câmara, trancando-as com uma barra de madeira. É o mesmo que os mágicos
fazem quando preparam um truque de fuga: é comum que se tranque alguém dentro de uma
pequena caixa revestida por inúmeras trancas, para que tente escapar, correndo algum tipo de
perigo mortal. No filme também teremos alguém dentro da câmara, caso o experimento seja
bem sucedido. O ato de trancar as portas pode também qualificar a ciência que Frankenstein
está desenvolvendo como perigosa, que precisa ser mantida sob controle.
Começa então uma edição alternada entre dois planos. Um deles é a sala descrita, na
qual o cientista observa através de uma pequena portinhola que existe em uma das portas da
câmara, que agora está fechada. O outro plano é uma visão interna da mesma, que pode ser
entendida como uma câmera subjetiva, ou seja, supõe-se que vemos o que Victor vê. Dada a
alternância, sempre temos a chance de ver a reação do cientista em vista das mutações do seu
experimento, o que produz um efeito de repetição cômica.
As reações de espanto se intensificam, mas não seguem de fato uma progressão,
porque Victor se assusta, mas volta a aparecer animado outras vezes. Sempre que o vemos,
também vemos em primeiro plano o esqueleto voltado para nós. Em alguns momentos, o
enquadramento fica um pouco mais fechado, destacando mais as expressões do esqueleto e de
Victor (fig. 15 e 16). O conselho de memento mori que o esqueleto poderia significar é
desafiado pelo cientista, mas o riso da caveira devolve o desafio com o sardonismo imutável,
que se sobrepõe às oscilações de Victor.
O recurso de filmar o que é visto através de um mediador é um elemento bastante
característico dos primeiros filmes, como olhar pelo buraco de fechadura – The Peeping Tom
(1897), ou pelo telescópio – As seen through telescope (1900), entre outros. Estes, diferente
dos exemplos franceses anteriores, são dois filmes do contexto de shows de vaudeville dos
Estados Unidos antes da disseminação dos nickelodeons. Esse recurso é comumente citado
pelos principais historiadores do primeiro cinema, segundo o levantamento historiográfico de
8 No artigo Electric Body Manipulation as Performance Art: A Historical Perspective (2002), Arthur
Elsenaar e Remko Scha abordam tanto os espetáculos de galvanismo quanto as demonstrações de
Edison, e mais um conjunto de exemplos de espetáculos de corpos eletrificados até os tempos atuais.
A cadeira elétrica foi colocada sob a perspectiva dos espetáculos pelos autores do artigo, com material
jornalístico da época onde se discutia o “assistir às execuções” como atividade cívica.

28 ✼
Fig. 15 e Fig 16 Frames de Frankenstein (1910),
arquivo digital da Library of Congress, Washington.

Flávia Cesarino Costa (2005), como uma explicitação da atração visual (a variedade de
movimentos, paisagens e cenários, os truques etc) enquanto motivo principal daqueles filmes.
A exibição do mundo a partir dos diferentes dispositivos ópticos é, ao mesmo tempo,
parte fundamental da espetacularização científica, se misturando com a própria ideia do
método empírico. No século XVII holandês, o “teatro da natureza”, como Christiaan Huygens
chamou a visualização das imagens microscópicas, era apresentado por inventores como
Cornelius Drebbel9 entre os Países Baixos e a Inglaterra (ALPERS, 1987, p.42). Segundo
Svetlana Alpers, essas demonstrações do microscópio, entre outras atrações científicas, assim
como a assimilação das teorias ópticas de Kepler na cultura neerlandesa, são fundamentais
para compreender aquela cultura visual. Nela, ao mesmo tempo, se fomentou uma gama de
desenhos científicos, de anatomia, catalogação e cartografia, e uma cultura lúdica onde
proliferaram ilustrações de criaturas fantásticas, como os desenhos de Jacques de Gheyn II 10 e
Jacques de Gheyn III (fig. 18). A primeira circulação organizada de ilustrações do mundo
microscópico aconteceu com a publicação do livro Micrographia, de 1664, pelo cientista

9 Cornelius Drebbel, “inventor así como animador ocasional de la corte inglesa” (ALPERS, 1987, p.
37), criou microscópios, um clavicórdio que tocava sozinho, e mesmo um submarino, enquanto
também era necromante místico.

10 Alpers exemplifica a questão com um desenho de Jacques de Gheyn II, pintor muito caro a
Constantijn Huygens: “Los límites entre realidad y fantasía no siempre son fáciles de señalar. En las
obras de De Gheyn encontramos yuxtaposiciones de imágenes que parecen ilustrar este punto. Un
cangrejo ermitaño, por ejemplo, dibujado en todo el pormenor de su espinosidad junto a una especie
de sabbath, expone en términos pictóricos la complejidad de las relaciones entre curiosidad e
imaginación” (ALPERS, 1987, p 37-38). A ilustração está incluída nas figuras (fig. 17).

29 ✼
inglês Robert Hooke (fig. 19), e por mais técnico que seja o livro, também podemos pensá-lo
como uma espécie de entretenimento visual11.
A seguir no filme, vemos o interior da câmara, na qual pouco a pouco emerge do
caldeirão um amontoado de farrapos em chamas, que vai formando um torso. Em seguida,
surge uma cabeça, ainda sem os olhos, orelhas e boca. Assistimos a constituição de um corpo,
se animando. Após a montagem já citada, que alterna imagens de Victor Frankenstein na sala

Fig. 19 Ilustração do livro Micrographia de


Robert Hooke. 1664, Acervo da Royal Society,
Londres.
Fig. 18 Fantastic Heads, 1638,
Jacques de Gheyn III. Acervo da
National Gallery of Art,
Washington.

de experimento com a cena interna à câmara, o corpo em formação passa de esquelético para
robusto. Apesar da robustez ele é frágil e disforme, constituído de trapos onde contrastam
partes claras e partes escuras. Os braços estão flexionados em todas as articulações, criando
ângulos quase incoerentes com a anatomia. As mãos são dedos compridos e espetados, uma
voltada para cima e a outra para baixo, enquanto os braços se movimentam alternadamente,
sustentados por fios transparentes (fig. 20).

11 Embora Drebber e Huygens sejam holandeses e Hooke inglês, os três pertenciam ao mesmo círculo
científico e cultural em torno da Royal Society na Inglaterra. As ilustrações no Micrographia, algumas
enormes, vinham dobradas e saltavam aos olhos como um truque para revelar “pela primeira vez” as
pequenas criaturas, logo após descrições apaixonadas como a que Hooke faz para a pulga: “The
strength and beauty of this small creature, had it no other relation at all to man, would deserve a
description. For its strength, the Microscope is able to make no greater discoveries of it then the naked
eye, but onely the curious contrivance of its legs and joints (...) but, as for the beauty of it, the
Microscope manifests it to be all over adorned with a curiously polished suit of sable armour, neately
joined, and befet with multitudes of sharp pins…” (HOOKE, 1664, p. 210).

30 ✼
Fig. 20 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital da Library of Congress, Washington.

O rosto da criatura é brilhante, porque está iluminado de baixo para cima por uma luz
intensa que vem do caldeirão. A criatura tem uma expressão fixa, com olhos arregalados. A
testa é prolongada por uma espécie de faixa, dela sai um cabelo emaranhado, que pouco se
distingue do fundo escuro.
O efeito foi produzido a partir da queima controlada de um boneco até as cinzas: a
filmagem é exibida revertida e com pequenos lapsos. É curioso como o truque contém a
metáfora de reversão da morte no próprio funcionamento técnico, mostrando a reconstituição
do boneco por meio de chamas que o envolvem, com um movimento sobrenatural.
Formado o monstro dentro do caldeirão, o filme retorna para Frankenstein com uma
variação de enquadramento, a câmera deslocada para a direita do cenário. O esqueleto à
esquerda sai de cena, dando lugar a uma porta maciça à direita. A cena continua com Victor
olhando uma última vez pela portinhola. O cientista reage de forma mais exacerbada que
antes, caminhando de um lado ao outro do quadro, estendendo e contraindo os braços, com
gestos de pavor.
A criatura, então, empurra uma das portas da câmara e derruba a barra de madeira que
a segurava. O monstro estende um de seus braços lateralmente, ultrapassando a porta aberta,
repetindo um movimento circular de “pegar” na direção do cientista. Victor, por sua vez,

31 ✼
estende o braço como um gesto desesperado em direção à criatura, então contrai levando a
mão ao rosto e estende novamente. Destaca-se o seu nervosismo, enquanto ele se afasta para a
direita, até sair de cena. A mão comprida e torcida do monstro, como de bruxas, querendo
pegar Victor, é um gesto ameaçador, mas, assim como o esqueleto em cena durante o
experimento, acontece outra dinâmica de terror e comédia em torno da morte e da vida,
devido ao desencontro gerado pela interação dos personagens (fig. 21).
O jogo entre as mãos do criador e da criatura pode lembrar uma das representações
mais canônicas da criação do homem por Deus, a Criação de Adão de Michelangelo (fig. 22).
Essa relação com o afresco ou com noções correntes da cena da criação de Adão pode ser
feita pela mediação do romance, uma vez que em Frankenstein; or, the Modern Prometheus
Mary Shelley introduz alegoricamente a criação de Adão descrita no Gênesis de diferentes
maneiras, especialmente a partir das reflexões que o monstro faz sobre si mesmo 12. Com essa
associação podemos pensar que o cientista assume o papel de um Deus criador, com o qual a
criatura procura estabelecer algum contato. A ideia do homem assumindo poderes divinos por
meio da técnica é apresentada, não tanto em um enfraquecimento da religião e fortalecimento
separado da ciência, mas por uma exacerbação das ferramentas mágicas e do comportamento
espetacular que caracterizam os experimentos científicos.

Fig. 21 Frame de Frankenstein (1910), arquivo Fig. 22 A criação de Adão, 1508-1512,


digital da Library of Congress, Washington. Michelangelo, Capela Sistina.

A tentativa de contato da criatura é frustrada, já que o criador está prestes a sair de


cena. A gestualidade da criatura, dada como ameaçadora, e a consumação do experimento
12 No livro, o monstro aprende a ler e entra em contato com o O Paraíso Perdido de John Milton.
Então, começa a indagar a sua própria natureza como um indivíduo criado por um Deus, em seus
questionamentos ao sentir-se abandonado: “I remembered Adam’s supplication to his Creator. But
where was mine? He had abandoned me, and in the bitterness of my heart I cursed him.” (SHELLEY,
p. 156, s. i.)

32 ✼
como algo fora de controle também frustram Victor, o que é reforçado pelo letreiro, que surge
após o cientista fugir da cena pela direita: “Frankenstein appalled at the sight of his evil
creation”, em contradição com o seu ideal de um ser humano perfeito que havia anunciado
dois letreiros antes.

Sequência 3.

Fig. 23 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital da Library of Congress, Washington.

A próxima cena acontece novamente no quarto de Victor Frankenstein, mas com um


enquadramento diferente. A câmera está mais baixa e deslocada para a direita (fig. 23). É
visível agora o chão e a extensão completa da cama, coberta com uma colcha branca. A
abertura do dossel está agora mais aparente, com as cortinas amarradas a cada lado. À
esquerda está a mesa, a cadeira e a estante, que agora é praticamente imperceptível, porque
não está mais iluminada. Sobre a mesa, papéis brancos e uma ampulheta bem destacada. O
foco da cenografia é o leito branco da cama, enquanto todo o resto pouco se vê, quase
confundindo-se com o tecido do dossel.

33 ✼
Victor entra em cena pela direita do quadro13, e deixa o corpo cair sobre a cadeira.
Aponta, agitado, na direção por onde entrou, se levanta e desmaia sobre a cama. De repente,
duas mãos abrem uma segunda cortina ao fundo: entra em cena a criatura, interpretada pelo
ator Charles Ogle. O corpo do personagem é robusto e suas mãos são como descritas
anteriormente, grandes e com dedos muito compridos, que gesticulam movimentos sinuosos
acima do corpo de Victor. O rosto é branco e seus olhos possuem um contorno preto bem
marcado, enquanto o cabelo é escuro, comprido e arrepiado para cima, sustentado por uma
faixa branca que prolonga a testa.
O monstro se debruça, corcunda, sobre o corpo desmaiado de Victor, ambos
emoldurados pelas cortinas do dossel (fig. 24). A composição é muito semelhante à do quadro
O Pesadelo, de Johann Heinrich Füssli fig. 25), e assim como a égua (mare, dialogando com
o título the nightmare) entra em cena no quadro de Füssli a criatura do filme entra no quarto
de Victor. Ao mesmo tempo, seu corpo curvado lembra a postura do incubus sobre a mulher

Fig. 24 Frame de Frankenstein (1910), arquivo digital Fig. 25 O Pesadelo, 1781, Johann Heinrich
da Library of Congress, Washington. Füssli. Detroit Institute of Arts.

deitada na pintura. A presença desse quadro na vida intelectual de Mary Shelley é comentada
ocasionalmente em textos sobre o romance, e foi investigada por Maryanne C. Ward14. Ao
13 Segundo os pesquisadores do primeiro cinema, cenas de fuga e perseguição formaram um dos
primeiros “gêneros” fílmicos a incluírem mais de um cenário. Nesses filmes, os personagens saíam de
cena e entravam na cena seguinte sempre pelo mesmo lado – quando saíam pela esquerda, entravam
correndo pela esquerda novamente. Posteriormente, o cinema convencionou mostrar a continuidade do
movimento com o personagem andando na mesma direção – quando um personagem sai pela
esquerda, entra pela direita na cena seguinte (GAUDREAULT, 2009).

14 Em A Painting of the Unspeakable: Henry Fuseli’s “The Nightmare” and the Creation of Mary
Shelley’s “Frankenstein” (2000), Ward conta que a mãe de Mary Shelley nutria uma paixão platônica

34 ✼
relacionar o quadro com o livro, a autora destaca a semelhança com a passagem em que
Shelley descreve a entrada do monstro no quarto de Elizabeth (a noiva de Frankenstein) pela
janela. Mas, se trocarmos a mulher pelo cientista, a composição também se assemelha com a
passagem diretamente representada no filme: após fugir de seu laboratório, Victor desmaia em
sua cama e sonha com Elizabeth se transformando no corpo morto de sua mãe. Então, o
monstro surge ao abrir as cortinas da cama, e estende as mãos ao criador, que foge
novamente15. A relação com o quadro, direta ou mediada pelo livro, é interessante se
pensarmos essa iconografia como uma contraparte ao repertório mágico-científico acumulado,
a perturbação como característica implicada desse poder.
No decorrer da cena, Frankenstein abre os olhos, e se percebe abaixo das mãos
inquietas do monstro. Ele se levanta para fugir, mas desmaia novamente, caindo no chão.
Enquanto isso, o monstro sorri e gesticula, e depois se retira de cena andando para trás,
ficando visíveis apenas as suas mãos suspensas por alguns instantes.
Segundos após a saída do monstro, um homem entra pelo lado esquerdo do quadro.
Ele socorre Frankenstein, levantando-o do chão, e segue-se o letreiro “The Return Home”,
que acontecerá na cena seguinte.

4. Criador e Criatura

O artifício é a ideia comum das diferentes definições que podemos dar para as ciências
e as artes. Ao mesmo tempo, costuma-se falar de arte e ciência não por meio do que elas têm
em comum, mas como pólos antagônicos – misturadas com as noções de imaginação e razão,
criatividade e lógica etc. Logo após assumirmos que elas são categorias opostas, entretanto,

pelo artista (ou que mantinham relações), além de outros indícios de que Mary conhecia de maneira
íntima a pintura. Na maioria de filmes sobre Mary Shelley, a pintura também é introduzida, muitas
vezes apresentada a ela por Lord Byron (embora, na realidade, seria mais provável que ela tivesse
apresentado a pintura a ele, como a autora argumenta). A grafia do nome do artista adotada no artigo é
a anglófona (Fuseli).

15 No capítulo V do romance, o personagem Victor Frankenstein descreve da seguinte maneira: “I


started from my sleep with horror; a cold drew covered my forehead, my teeth shattered, and every
limb became convulsed; when, by the dim and yellow light of the moon, as it forced its way through
the window shutters, I beheld the wretch – the miserable monster whom I created. He held up the
curtain of bed; and his eyes, if eyes they may be called, were fixed on me. His jaws opened, and he
muttered some inarticulate sounds, while a grin wrinkled his cheeks. He might have spoken, but I did
not hear; one hand was stretched out, seemingly to detain me, but I escaped and rushed downstairs.”
(SHELLEY, p. 59, s.i.).

35 ✼
começamos a precisar dizer que, em todo canto, aparecem misturadas nas mais diferentes
práticas humanas.
A crítica de Marilyn Strathern (2017) ao pensamento excessivamente dicotômico,
estabelecido na intelectualidade europeia a partir do século XVIII, guiou o nosso olhar a
respeito de Frankenstein. A noção que temos hoje da ciência demandou um processo de
purificação de outras práticas, livrando-a gradualmente de tudo o que era magia ou ilusão,
enquanto algo semelhante aconteceu com a noção de arte, na procura pela arte pura. Mas a
ciência e as práticas espetaculares estiveram sempre imbricadas, e ainda estão, embora hoje
em dia apresentemos essa interação em tom de surpresa: fazer “inusitada” a interação entre a
física e o design na captação e coloração das imagens do telescópio Hubble, por exemplo, faz
parte do espetáculo.
Na sequência do filme em que Victor Frankenstein planeja seu experimento,
começamos com a maneira como os intelectuais foram representados nos Estados Unidos
durante a consolidação da nação. Essa representação de sobriedade intelectual pode nos
parecer oposta à figura de um diabo alquimista, como o do filme Le Spectre Rouge. Ainda
assim, Frankenstein mistura ambas as referências – busca ao mesmo tempo o ludismo do
diabo de féerie, provocando explosões para o público, e uma caracterização do cientista como
um intelectual iluminista. Disso, poderíamos dizer que um intelectual nos apresenta a ciência
de maneira inusitada, com truques de mágica, talvez por conta de resquícios da vaudeville, em
vias de ser superada (como nos contaria uma perspectiva progressista do cinema). Mas
também podemos escolher pensar que o diabo apenas trocou de fantasia.
No ensaio Jamais Fomos Modernos, Bruno Latour mostra como um processo de
separação entre o que cabe às ciências e o que cabe às humanidades, ou que é natural e o que
é social etc. é associado a um processo de entrelaçamento desenfreado entre práticas e
criaturas, promovendo uma proliferação de monstros (LATOUR, 2008, p.17).
Para Latour, “modernidade” designa duas práticas diferentes que se sustentam: a
purificação e a tradução. O processo de purificação se assemelha à produção de dicotomias e
categorias diversas, cria zonas ontológicas separadas para as atividades humanas. Dessa
maneira, a ciência foi purificada até se transformar numa prática imune à política, e a
sociedade se veria desgarrada da natureza. Cada setor trabalharia apenas com o seu próprio
mundo, deixando de misturar as coisas como fazem os que não são modernos. A antropologia,
então, seria capaz de estudar a relação entre as variadas práticas humanas em todas as

36 ✼
culturas, menos no mundo moderno, onde a ciência trabalha para colocar cada coisa em seu
lugar, onde os enlaces estariam perdidos (a crença nisso poderia levar ao otimismo
progressista, ou à saudade de uma comunhão perdida). Ao mesmo tempo, enquanto o
pensamento se distrai nesse processo de escrutínio, as misturas acontecem de maneira cada
vez mais desenfreada, com a prática da tradução: cada novo experimento científico seria um
monstro a ligar os cientistas, ecologistas, empresários, políticos, acadêmicos, em uma rede de
proporções inimagináveis.
A relação entre o laboratório (o método científico controlado praticado por Boyle) e o
Leviatã hobbesiano, ainda, servem a Latour como uma expressão exemplar do duplo artifício
que caracteriza a purificação: um ocupado com as coisas e o outro com a humanidade, a
separação entre o objeto e o sujeito se aprofunda, enquanto ambos se ocupam, na prática, da
política e da ciência. Acontecem assim duas argumentações opostas que se sustentam como
dois pesos numa balança, e que encontramos em toda parte, mesmo no filme Frankenstein:
com a ciência, Victor poderia alcançar um ser humano perfeito, mas os letreiros advertem que
a mente do cientista está corrompida pelo mal, o problema está na sociedade. Ao mesmo
tempo, “As experiências nunca funcionam bem. A bomba vaza. É preciso ajeitá-la”...
(LATOUR, 2008, p. 27), e passamos a dizer que a vontade do cientista é boa, mas as forças da
natureza estão para além do nosso controle. Argumentando dessa maneira, é mais difícil
observar a dinâmica dentro do laboratório, onde a sociedade e a natureza configuram cenários
inéditos. Criam-se desse modo os fatos, que são ao mesmo tempo inventados no laboratório e
verdadeiros, porque a matéria e os conceitos se transformam. O homem emula o
“construtivismo” de Deus (LATOUR, 2008, p. 24). Latour também trabalha com essa imagem
do cientista como um Deus criador no artigo Love your monsters, onde aplica as ideias da sua
tese, enquanto usa Frankenstein como parábola para pensar a ecologia política.
A premissa em Love your monsters é a de que a sociedade deve ser cuidadosa com os
objetos e contextos criados na interação ativa com a natureza, em lugar de condenar essa
interação. Em vez de culparmos o cientista apenas por ter criado o monstro – que acaba por
carregar, no fim das contas, toda a responsabilidade pelos maus acontecimentos –, devemos
observar que a responsabilidade maior do cientista está em abandonar sua criatura até que ela
se transforme em uma ameaça. É difícil não condenar os objetos da ciência tendo em vista as
consequências que nos preocupam em escala global, mas Latour argumenta que essa
multiplicação sem controle só foi permitida devido a uma crença muito específica da

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modernidade, a ideia de que a ciência caminha em direção à emancipação do homem. Ao
contrário, Latour dirá, a prática científica apenas enlaça o ser humano cada vez mais em
trocas e correspondências, relações delicadas de dependência entre humanos, os outros seres
vivos, as máquinas e os componentes inorgânicos da terra. Ao culpar o monstro (todas as
misturas naturais-artificiais), a ecologia reitera a noção moderna de que a sociedade e a
natureza estão para sempre separadas, e que devem radicalizar essa separação. O problema
mais objetivo dessa posição é a sua impotência, propagando uma abnegação que tem
dificuldade em combater os discursos radiantes da emancipação e do desenvolvimento.
Ao acreditar na emancipação, o pensamento moderno enxergou em cada invenção
científica um desligamento, enquanto fazia uma sensível ligação. Por esse motivo, toda a
reação perigosa da natureza é assimilada em tom de espanto, como se fossem absolutamente
contraditórias, quando são simplesmente ordinárias. A maneira visual que o iluminismo
encontrou para conceber o pensamento, através das luzes e das sombras, já ilustra a
insustentabilidade da atividade moderna, que se surpreende com as consequências mais
previsíveis de sua intervenção. Passa-se então a denunciar os erros ou as sombras da razão,
mas mantém-se o princípio de assepsia e segregação das luzes. No filme, podemos visualizar
esse espanto da modernidade diante da reação violenta dos monstros com o encontro de duas
imagens canônicas, mobilizadas desde o romance de Mary Shelley, a Criação de Adão e O
Pesadelo. O ideal de uma realização perfeita e organizada, de uma criação à imagem e
semelhança de Deus, é intolerante a todas as criaturas imperfeitas que são o fruto de qualquer
atividade criativa. Parte da graça do filme está na mistura entre dois mundos pretensamente
tão incompatíveis: o incubus atreve-se a se colocar no lugar de Adão, enquanto o cientista
desmaia no leito como a mulher em meio aos monstros. Também na história da arte e da
cultura costumamos aceitar muito rapidamente as oposições entre a luz do Renascimento e as
sombras góticas, mas as figuras sempre se misturam enquanto as separamos.
Ao condenarmos apenas o obscuro, o híbrido, o objeto ou o monstro, sacrificamos o
lado mais fraco da equação para proteger a viabilidade da razão no sentido moderno. Latour
sugere que a ecologia deve se colocar de maneira ativa no processo de mistura. Em vez de
condenarmos todas as coisas naturais-artificiais, devemos contar com a imperfeição e
reformular nossa maneira de interferir, trocando a emancipação pelo cuidado – a relação
impura com a natureza, afinal, é inevitável.

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A imagem de cuidado que Latour coloca em seu texto, entretanto, pode servir ao
cientista que aprendeu a lição, mas é insuficiente do ponto de vista do monstro. Latour propõe
que devemos assumir o papel de um pai que cuida de suas crianças: se o cientista assume o
lugar de Deus, ele deve proteger e educar as suas tecnologias com a responsabilidade de Deus.
Ainda que se proponha a isso, essa imagem não é capaz de pensar as vontades do monstro,
que sempre serão desconhecidas do cientista – ficaríamos presos à discussão do que é boa
ciência, como se pudessem haver consensos sob um mesmo regimento, um parlamento das
coisas. Mas ainda que a criatura exista pela vontade do criador e esteja ligada a ele, ela não
necessariamente compartilha o seu mundo.
O cinema já experimentou manter a criatura sob o cuidado do criador. Nos diversos
“Frankensteins” da Universal e dos Estúdios Hammer, é comum que o cientista tente educar o
monstro para obedecer os seus comandos, transformando-o em uma máquina de guerra.
Dentre as incontáveis apropriações da história, podemos chegar a exemplos como
Frankenstein’s Daughter (1958), onde uma garota bonita é assassinada pelo cientista, para
depois ser revivida como um monstro deformado, ao qual é ordenado matar os seus antigos
colegas. Essas versões da história têm desfechos ainda mais nefastos, porque negam à criatura
o direito de se rebelar. A única resolução para a imagem de um cientista enquanto Deus, ao
menos segundo a sensibilidade que Mary Shelley nos legou, é uma tragédia gótica, sejam os
monstros amigos ou inimigos.
A sugestão de Latour de que mantenhamos ativamente o nosso contato com os
monstros parte da sua observação dos grupos humanos que não foram considerados
modernos:
“Ao saturar com conceitos os mistos de divino, humano e natural, [os pré-
modernos] limitam a expansão prática destes mistos. É a impossibilidade de
mudar a ordem social sem modificar a ordem natural – e inversamente – que
obriga os pré-modernos, desde sempre, a terem uma grande prudência. Todo
monstro torna-se visível e pensável e expõe explicitamente graves problemas
para a ordem social, o cosmos ou as leis divinas” (LATOUR, 2008, p. 46).
Mas nas culturas não modernas os seres perigosos não parecem ser tratados como
filhos. É preciso uma constante intervenção, mas a noção de controle não necessariamente
dita as rédeas. O que parece agir em muitos dos casos é o respeito pela imprevisibilidade da
vontade dos seres mágicos e dos objetos, com os quais devemos travar mediações que

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precisam ser sempre renovadas. Mesmo que criemos algo, a vida desse algo nos escapa: a
“prudência” dos cientistas deve levar em conta a impossibilidade de que possuam suas
próprias tecnologias, do modo como a vida da obra de arte está para além da vontade do autor.
Essa comparação entre cientista e autor não é absurda, porque a maneira como Latour pensa
os monstros da tecnologia é semelhante ao modo como os estudos visuais têm tratado das
imagens. Assim, W. J. T. Mitchell perguntou “o que querem as imagens?”, buscando
substituir a leitura que fazemos delas como veículos malignos da ideologia, por uma
abordagem que considere as suas agências.
A procura por definir a postura ecológica que devemos assumir é longa e inconclusiva,
mas podemos inverter a questão e nos valer da sugestão de Isabelle Stengers, de que usemos
uma ferramenta que ela chamou de “ecologia das práticas” (as diversas atividades que
interligam os seres e as coisas, ou, continuando com a metáfora, lidam com os monstros).
Stengers parte da física: para que a física deixe de se apoiar no papel de detentora da realidade
objetiva, tornando-se mais apta a cultivar o seu contexto (ou ter uma ecologia), não é
suficiente reduzi-la à igualdade de todas as ficções humanas, da maneira como as ciências
modernas reduziram as outras práticas. É preciso assumir que nenhuma prática é igual à outra,
entendendo a verdade do relativo, sem nivelar as verdades. Como praticantes, fazemos a
manutenção e modificamos as ligações e as barreiras entre as práticas segundo as definições
necessárias e parciais de cada caso.
Mas, para que possamos fortalecer e transformar as práticas, não é suficiente ser Deus,
porque elas não se mobilizam por uma boa conduta, mas pelo que Stengers chamou
simplesmente de “obrigação” do pertencimento, uma noção do vínculo que está para além da
vontade, mas também para além da indiferença. Stengers trabalha com a mesma ideia de
ligações dependentes entre os seres, os objetos e os contextos que Latour: “In other words,
addressing people as they belong means addressing them in the terms which Bruno Latour
called ‘attachments’”. (STENGERS, 2005, p. 190). No último parágrafo do artigo, depois de
apresentar como as bruxas encontram no conceito de magia uma maneira de ativar e situar as
suas práticas, Stengers fala sobre como o seu próprio pensamento é fruto de uma intervenção
ligada ao seu pertencimento – e reforça que a ferramenta não é usada pela nossa vontade, mas
é co-produtora de nossas intervenções:
“I started with the problem of ecology of practices as a tool for thinking, the
need of which I felt while working with physicists. Physicists feel weak and

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they protect themselves with the weapons of power, equating their practice
with claims of rational universality. But the tool, as it is not an instrument to
be used at will, co-produces the thinker, as shown by the very fact that it led
me from physics to the art of the witches. Doing what I did, my own practice
was that of a philosopher, a daughter to philosophy, thinking with the tools of
this tradition, which excluded magic from the beginning and which, rather
unwittingly, gave its weapons to physicists and to so many others presenting
themselves in the name of universality. Maybe this is why I had to go back to
this very beginning, since as a daughter, not a son, I could not belong without
thinking in presence of women, not weak or unfairly excluded women but
women whose power philosophers may have been afraid of.” (STENGERS,
2005, p. 196).
Algo que sempre se esquece a respeito de Frankenstein é a sua origem no pensamento
de uma garota, e não de um cientista. Ao colocarmos o nosso pensamento sempre a serviço do
que o “humanista moderno” deve fazer para resolver o problema, esquecemos que talvez
sequer conseguiríamos (ou nos interessaria) assumir esse papel. Nós podemos nos identificar
diversas vezes com os monstros nas emulações da metáfora frankensteiniana – como criaturas
machucadas pelas vontades modernizadoras, por exemplo. Ao se dizer filha, e não filho ou pai
da ferramenta que utiliza, Stengers transmite que é mais provável fazermos intervenções
criativas por meio do que está situado, do que assumindo a perspectiva de um arquiteto
divino. Misturando um pouco das ideias de Mary Shelley, Stengers e Latour, ficamos com a
sugestão inicial de levarmos a sério a nossa filiação com os monstros/técnicas, sabendo que os
criadores (cientistas, artistas...) e as criaturas se co-produzem e trocam de lugar, enquanto
procuramos intervir, fomentar e desafiar sem a pretensão de dominarmos o mundo ao nosso
redor.

5. Ciência e Espetáculo

A indiscernibilidade entre magia e tecnologia foi um tema constante nos primeiros


filmes. Em The X-Ray Fiend (1897) de George Albert Smith, um casal se transforma
“magicamente” em dois esqueletos por intermédio do raio-x, que ainda era uma novidade; em
Le Raid Paris-Monte Carlo en deux heures (1905), de Méliès, um carro desenfreado anda em
linha reta, causando acidentes surreais com uma série de trucagens; em El hotel eléctrico

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(1908), de Segundo de Chomón, um casal aproveita inúmeros benefícios de uma hospedagem
totalmente automatizada, onde os pertences se guardam sozinhos, as roupas se abotoam
sozinhas, até que, por acidente na rede elétrica, todos os objetos entram em confusão e
terminam num emaranhado caótico. O perigo mortal dessas novas tecnologias está
conscientemente incluído como um elemento lúdico, mas que não deixa de carregar traços de
ansiedade. No filme inglês Is Spiritualism a Fraud? (1906), por sua vez, um médium
performa um truque ao estilo de Méliès, mas é desmascarado por seus convidados, que
decidem então punir o charlatão: amarram-no, trancam-no dentro de uma caixa e empurram a
caixa até o meio de uma estrada. Podemos observar como o interesse por depurar a ciência da
bruxaria sempre se manifesta de maneira violenta, ao mesmo tempo em que a ciência acumula
novos poderes mágicos.
O caráter espetacular das práticas científicas costuma ser sublimado pela exposição de
um traidor, de um cientista impuro. Na efervescente cultura científica neerlandesa do século
XVII, toda a comunidade intelectual não se continha em maravilhamento diante das suas
próprias monstruosidades. Ao mesmo tempo, exigia a condenação das ilusões: Christiaan
Huygens, inspirado por Bacon, condenava todas as ideias científicas dos antigos como
exageros e confusões. Ele apreciava as demonstrações de Cornelius Drebbel (que
comentamos durante a descrição do filme), mas outros contemporâneos o consideravam um
enganador (ALPERS, 1987). Drebbel não podia ser visto como exemplarmente rigoroso
enquanto fazia demonstrações de câmara obscura e exibia traquitanas automáticas que o
faziam pender para um artista de corte. Robert Hooke, que também comentamos, tinha muito
mais prestígio, mas os cientistas do futuro riram da maneira como ele escreveu com paixão as
descrições das criaturas que viu pelo microscópio.
A condenação do artifício parece ter estimulado nos cientistas um esquecimento ou
cinismo durante o aperfeiçoamento dos seus truques, verdades cada vez mais aprimoradas. A
verdade científica parece afastar o senso de responsabilidade pela invenção: “The contrast
between technology and the power of Truth is an ethical one. With technology comes a sense
of responsibility that Truth permits us to escape.” (STENGERS, 2005, p. 188). Também
pode-se acrescentar que há um sentido de tecnologia que carrega a ideia de verdade na
“garantia de melhoria”, que muitas vezes substitui a noção de tecnologia como um artifício
em geral. Quanto à arte, Svetlana Alpers deixa claro como a produção de verdade e de

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maravilhamento visual operam de maneiras parecidas, em sua exposição da arte descritiva dos
pintores neerlandeses (ALPERS, 1987).
Frankenstein, afinal, foi realizado nos estúdios de Thomas Edison, o cientista, e
podemos voltar a questão da ciência e do espetáculo para o contexto de produção do filme.
Aparentemente, Edison quase não participou da concepção dos filmes que vendia. A
responsabilidade artística durante a consolidação dos Estúdios Edison era de seu sócio,
William K. L. Dickson, que depois migrou para a produtora concorrente, Biograph. Em
muitas introduções ao primeiro cinema comenta-se que a visão técnica de Edison o teria
incapacitado de perceber a potência dos filmes, o que explicaria o seu pouco interesse inicial
pelas tecnologias de projeção (SPEHR, 2009). Em outra direção, Noel Burch argumenta que
muitos dos primeiros filmes foram movidos por um sonho “frankensteiniano” de produzir
uma vitória da vida sobre a morte, que ele associa a ideais burgueses de representação e a
Thomas Edison. Ele destaca a maneira como Edison vendeu o seu produto buscando sempre o
aperfeiçoamento da ilusão, e o entusiasmo do cientista com a possibilidade de fundir o filme
com o fonógrafo, atingindo uma experiência audiovisual. Burch tenta separar essa procura
pela ilusão total de realidade de um outro cinema, afirmando interesses verdadeiramente
“científicos” na produção dos irmãos Lumière (BURCH, 1990). O autor usa a metáfora
frankensteiniana (evidente no próprio nome das produtoras como Biograph e Vitagraph), mas
a compreende apenas como o sinal de um uso ilusório da tecnologia, que corrompe ciências
mais verdadeiras.
Mas se encontramos, ao mesmo tempo, defesas de que Edison era pouco e muito
interessado pelo cinema, isso se dá justamente porque ele era um cientista: precisava se
afastar da ilusão o suficiente para fazer a manutenção do seu rigor, mas não muito, porque era
com o encantamento que ele fazia os seus negócios. Os irmãos Lumière também eram homens
de negócios, que exibiam a análise “científica” do movimento enquanto faziam propaganda da
sua fábrica aos empresários a quem primeiro exibiram Sortie d’Usine (1985)
(GAUDREAULT; GUNNING, 2009). Quando tentamos separar, na origem do cinema, o que
cabe à ciência e o que cabe ao espetáculo, caímos num verdadeiro emaranhado de opções
narrativas, porque as referências de espetáculo e ciência sempre mudam de lugar: podemos
falar da distinção entre o teatro e a câmera, ou entre o efeito especial e o naturalismo, ou entre
o entretenimento e a análise do movimento, e assim por diante. Elas são muitas vezes úteis,

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porque nos ajudam a enxergar contrastes, mas são sempre momentâneas, ou entram em
contradição.
Se nos inspiramos na observação de Latour sobre o duplo artifício da purificação para
pensar a história do cinema, não nos serve defender a liberdade do espetáculo atacando o
cientificismo, nem atacar a alienação do espetáculo defendendo as verdades das ciências
sociais. Considerando Edison ao mesmo tempo cientista, empresário e de algum modo
cineasta, chegamos mais próximos de compreender o impacto cultural das suas atividades,
que foram historicizadas de maneira tão fragmentada. As invenções (ou apropriações) que
passaram pela figura de Thomas Edison, da lâmpada às patentes científicas, do telégrafo à
indústria do cinema, constituem o mito de criação de inúmeros monstros que nos aterrorizam
hoje, em uma série de catástrofes – ainda bem que o cinema é um monstro um pouco mais
rebelde em relação ao criador.

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