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São João Clímaco - A escada santa - Degraus 1 a 10

SÃO JOÃO CLÍMACO

A ESCADA SANTA

OBSERVAÇÕES INICIAIS

São João Clímaco viveu entre os anos de 580 e 650 na região do Sinai. Até os 35
anos viveu como cenobita, mas com a morte de seu Pai espiritual decidiu se
tornar anacoreta, retirando-se para o deserto, onde viveu até os 70 anos. Nos
últimos quatro anos de sua vida dedicou-se a escrever "A Escada Santa", onde
resume em trinta degraus o caminho espiritual que deveriam seguir os monges
de sua época. O texto a seguir foi traduzido da versão francesa, e deve ser lido
com a consciência de que se trata de uma obra dirigida eminentemente a pessoas
que seguem a vida monástica, e cuja aplicação aos dias de hoje é quase
inteiramente impossível. Mas a "Escada Santa" permanece sendo uma referência
para os que desejam se aprofundar no caminho da oração, e aprender um pouco
sobre as armadilhas com as quais os demônios infestam a alma dos que almejam
o Reino dos Céus.

PRIMEIRO DEGRAU

1. Antes de falar aqui dos Servidores de Deus, convém começar meu discurso por
seu nome santo e adorável. Assim é que Deus, nosso rei supremo, dotou de livre
arbítrio todas as criaturas racionais, às quais Ele concedeu ser e existir;
entretanto, devemos lembrar que elas são diferentes umas das outras. Com
efeito, algumas mereceram ser amigas de Deus para todo o sempre; outras são
bons e fiéis servidores; outras não passam de maus servidores; outras se
separaram inteiramente Dele; e outras, enfim, tornaram-se inimigos declarados e,
embora nada possam contra Ele, não deixam de Lhe fazer uma guerra sacrílega.

2. Ora, meu Pai, malgrado minhas poucas luzes, eu penso que os amigos de Deus
são as inteligências sublimes e espirituais que cercam seu trono eterno; que seus
verdadeiros e fiéis amigos são aqueles que, com grande ardor e perfeita exatidão,
cumprem sua santa Vontade em todas as coisas; que seus servidores inúteis são
estas pessoas que, tendo sido purificadas e santificadas pela graça do batismo,
não guardaram a promessa que lhe haviam feito, e violaram indignamente a
augusta aliança que haviam contratado com Deus; que os que se separaram
Dele, ou que caminham longe Dele, são ou os heréticos que corromperam a fé, ou
os infiéis que jamais a tiveram; enfim, que seus inimigos são pessoas que não
apenas se subtraíram à sua lei transgredindo-a com insolência, como ainda
suscitam e exercem cruéis perseguições contra os que servem a Deus com amor e
observam a santa lei com inviolável fidelidade.

3. Mas como seriam precisos muitos livros para dizer tudo o que há para ser dito
sobre estas diferentes espécies de criaturas, e que um homem ignorante como eu
seria incapaz de tamanha empreita, creio ser melhor que, para obedecer aos
verdadeiros servidores de Deus, cuja amável piedade é uma violência para mim e
cujo zelo e boa vontade me pressionam, eu me limite e me detenha nas coisas que
podem servir de edificação às suas almas; que, por incapaz que eu me considere,
eu tome a penas em minhas mãos e que, molhando-a com simplicidade na
humilde submissão a seus votos declarados, eu possa, apesar de minha
impotência e incapacidade, esperar e receber de minha obediência algumas
graças e algumas luzes, a fim de que, traçando sobre o papel de admirável
brancura as regras de uma vida santa e pura, possa também escrever em seus
corações bem preparados e santamente purificados como quem escreve sobre
misteriosos cadernos vivos. É desta maneira e com estas disposições que irei
começar.

4. Deus é a vida e a salvação de todas as criaturas racionais que Ele tirou do


nada, quer elas creiam Nele, quer neguem sua Existência; quer sejam justas ou
desonestas; quer pratiquem a piedade ou se entreguem à irreligiosidade; quer
tenham se libertado de suas paixões ou que sejam delas vis escravos; quer
tenham entrado para uma comunidade religiosa ou que vivam no século; quer
possuam a ciência ou vivam nas trevas da ignorância; quer desfrutem de boa
saúde ou definhem sobre um leito de sofrimentos; quer estejam na flor da idade
ou tenham chegado à velhice última. Todas essas pessoas estão destinadas à
graça da salvação e dela poderão usufruir, assim como usufruem da efusão da
luz, da vista e das benesses do céu, da variedade das estações e de todas as
demais coisas que existem e que foram feitas para elas; pois, diante de Deus “não
existe favoritismo[1]”.

5. Ora, chamo de “ímpio” aquele que, embora de natureza mortal e tendo recebido
a inteligência, evita e foge de Deus, que apesar de tudo é sua vida; que não se
ocupa de seu Criador, como se ele não existisse. Insensato, ele diz em seu
coração: “Não existe Deus algum![2]”.

6. Chamo de “desonesto” aquele que corrompe e obscurece a lei de Deus,


interpretando conforme seu próprio espírito, e que, mesmo seguindo sua opinião
errada e às vezes até herética, prefere sua própria autoridade àquela de Deus, às
suas luzes a as do Espírito Santo.

7. Chamo de “cristão” o fiel que, na medida de suas forças, coloca em suas


palavras, suas ações e toda sua conduta caminhar sob os estandartes de Jesus
Cristo, e que, por meio de uma fé pura, sincera e ardente, por uma vida santa e
uma inflamada caridade, devota-se inteiramente à Santíssima Trindade.

8. Chamo de “amigo de Deus” aquele que, de acordo com as regras de justiça e de


temperança, se utiliza das coisas que recebeu de Deus na ordem da natureza, e
que não negligencia nenhuma boa obra que possa fazer.

9. Chamo de “homem casto” aquele que, em meio às tentações, armadilhas e


agitações, toma precauções tão sábias, que segue em sua conduta as normas
daqueles que estão fora de perigo.

10. Chamo de “monge” aquele que, num corpo terrestre e corrupto, se esforça,
como se estivesse livre deste corpo, por imitar o estado e a vida das inteligências
celestes.

11. Chamo de “monge” ao homem que, em todos os tempos, em todo lugar e em


todas as coisas, segue exatamente a lei do Senhor e se conforma perfeitamente
com sua santa vontade.

12. Chamo de “monge” ao homem que, violentando sua natureza, não cessa de
vigiar seus sentidos e doma seus apetites desregrados.
13. Chamo de “monge” ao homem que conserva seu corpo com santidade, sua
língua com pureza, e que orna seu espírito com as luzes do Espírito Santo.

14. Chamo de “monge” ao homem que, dia e noite, detesta e chora seus pecados,
e não perde de vista o salutar pensamento da morte.

15. E por “renúncia ao mundo” eu entendo a aversão a tudo o que os mundanos


amam e louvam, ao abandono voluntário dos bens caducos e perecíveis, no
desejo e na esperança de obter e de possuir os bens sobrenaturais.

16. Três motivos principais levam a fazer generosa e prontamente o sacrifício das
comodidades e dos prazeres da vida presente: um violento desejo de merecer o
reino dos céus; um amargo e sincero arrependimento das enormes e numerosas
faltas cometidas; um ardente amor a Deus. Ora, podemos assegurar que uma
pessoa que tenha renunciado ao mundo sem ter algum dos três motivos de que
falamos o fez sem prudência e sem reflexão; mas Deus, que é a própria Bondade
e o soberano remunerador dos que agem e combatem por Sua glória, presta
menos atenção aos motivos que primeiro nos levaram a entrar na carreira da
virtude do que ao resultado a que chegamos afinal.

17. Assim, que aquele que entra para a vida religiosa com a intenção de chorar e
gemer por seus pecados imite as pessoas que saem das cidades para ir a sentar-
se e chorar sobre o túmulo de seus próximos. Que ele não deixe jamais secar a
fonte de suas lágrimas amargas, nem fraquejar o fervor de seu arrependimento, e
que arranque sem cessar de seu coração despedaçado longos gemidos e
profundos suspiros, a fim de merecer ver a Jesus Cristo vir a ele para, desde o
alto, aliviar da funesta pedra do endurecimento seu coração e escutar a este
divino Salvador ordenar aos anjos que o libertem das amarras que o mantinham
sob o jugo de Satanás; para que, liberto das perturbações e dos reproches de
uma consciência justamente alarmada, ele alcance esta paz preciosa que traz a
verdadeira felicidade. Ora, se ele agir de outra forma, que vantagem extrairá de
sua renúncia ao mundo?

18. Mas lembremos aqui que, se realmente quisermos sair do Egito e nos
livrarmos da servidão ao Faraó, precisaremos, assim como o povo judeu, de um
Moisés que seja nosso mediador diante de Deus, que estenda com fervor as mãos
suplicantes para o céu enquanto estivermos em combate, para conseguir para
nós as forças e a coragem necessárias, e para nos conduzir de tal modo que
possamos atravessar com sucesso o mar Vermelho de nossos pecados, e colocar
em fuga ao Amalec de nossas paixões tirânicas[3]. É apenas por uma deplorável e
funesta ilusão que alguns, cheios de confiança em sua próprias luzes, acreditam
poder dispensar um condutor para lhes mostrar o caminho da vida espiritual e
guiá-los por ele.

19. Os filhos de Jacó tiveram a Moisés para fazê-los sair da terra do Egito; a
família de Lot teve um anjo para sair de Gomorra. Os que fugiram do Egito
representam os pecadores que, para curar suas almas e purifica-las dos pecados,
necessitam dos cuidados e das luzes dos médicos espirituais. Os que fugiram de
Sodoma são a imagem das pessoas que desejam se ver livres das tendências de
seus corpos miseráveis; é por isso que elas precisam de um anjo para socorrê-las,
ou ao menos de um homem que, por assim dizer, não seja inferior a um anjo;
pois, pela grandeza e a corrupção das chagas que possuem, necessitam de um
cirurgião e um médico que sejam dotados de uma ciência e uma experiência
pouco comuns.
20. Mas certamente só devemos tomar como testemunhos aqueles que,
possuindo um corpo de pecado, decidiram-se por subir aos céus e se obrigaram
às maiores violências para consigo mesmos e aos maiores esforços, devotando-se
generosamente à mortificação mais austera e aos trabalhos mais difíceis,
sobretudo no começo de sua conversão, até que o amor pelos prazeres a que
estavam acostumados, que a preguiça na qual esmoreciam e que a
insensibilidade de seus corações em relação à virtude se transformaram, por meio
de uma penitência proporcional, num ardente amor por Deus e pelas boas obras,
e uma perfeita santidade.

21. Sim, repito, eles tiveram que suportar muitos trabalhos, engolir muitas
aflições, principalmente aqueles que tiveram a infelicidade de ter vivido sem
jamais pensar em sua salvação, se quisessem que seu coração, depois de se
assemelhar aos dos cães que só pensam em comer e ganir, possa atingir a
simplicidade, a doçura, a paciência, o zelo, o fervor, a temperança, a pureza e o
amor pela salvação eterna. Porém, por mais que sejamos dependentes de nossas
tendências, por mais graves que sejam as enfermidades de nossas almas, não
percamos a coragem; ao contrário, coloquemos nossa confiança em Deus, plena e
inteiramente. Assim, mesmo quando nos sintamos fracos, sustentados pela
firmeza de uma fé inquebrantável, apresentemo-nos diante de Cristo, e, como
grande simplicidade e profunda humildade, exponhamos a ele nossa fraqueza e
nossas misérias, o abatimento de nossas almas e de nossos corpos; e, por
indignos que sejamos, ele nos estenderá a mão com bondade, e nos tomará sob
sua poderosa proteção com terna caridade.

22. Que todos os que querem entrar para esta carreira que é bela, mas incômoda,
que é rude e estreita, mas adoçada e alargada pela graça de Deus, precipitem-se
com coragem no meio das chamas das mortificações e dos trabalhos espirituais,
se for o amor de Deus que os inflama e anima. Mas que cada um experimente a si
mesmo previamente, e somente depois coma o pão da vida religiosa com suas
alfaces amargas, e beba esta bebida misturada com suas lágrimas; e que ele tome
cuidado para que seu engajamento na milícia santa não se torne sua
condenação. É fácil ver as razões pelas quais nem todos os batizados alcançam a
salvação; não direi mais nada.

23. Querer servir a Deus séria e eficazmente por maio da vida religiosa equivale a
dizer adeus a tudo, a desprezar tudo, rejeitar tudo e a tudo pisotear. Este é o
único fundamento sólido do edifício espiritual. E este fundamento não será sólido
senão na medida em que o edifício que se erguer acima dele for sustentado por
três colunas: a inocência, a mortificação e a temperança. É pela prática destas
três virtudes que devem começar aqueles que pretendem se tornar crianças em
Cristo, pois as crianças serão seus modelos: nelas não vemos nem hipocrisia,
nem malícia, nem duplicidade; elas não se atiram sobre os alimentos com avidez
insaciável; em seus corpos inocentes a cupidez não se faz sentir com seus ardores
culposos; é apenas quando crescem em idade e já não moderam o comer e o
beber, que ficam sujeitas aos movimentos desregrados do corpo.

24. Um atleta que entra na arena sem força e sem coragem atrai o desprezo e a
aversão dos espectadores e se expõe a uma derrota iminente; todos consideram
que sua perda é certa. É-nos, portanto, importantíssimo e necessário começar
nossa carreira religiosa com coragem, zelo e fervor, mesmo que depois de um
tempo relaxemos um pouco. Com efeito, nossa alma, que durante um tempo se
viu cheia de coragem e de ardor, e que se vê agora débil e languescente, encontra
nesta comparação um verdadeiro aguilhão a excitá-la. É assim que muitos se
reanimaram e reaqueceram-se na piedade.

25. Mas todas as vezes que uma alma falta contra si mesma e percebe que já não
possui o santo fervor da devoção, ela deve se apressar em buscar a miserável
causa disto, e então fazer todos os esforços para destruí-la; ela deve estar
totalmente convencida de que o meio de restabelecer o fervor é fazê-la sair pela
porta pela qual entrou, expulsando-a.

26. Parece-me que podemos comparar o homem que só obedece pelo temor aos
perfumes que queimamos: primeiro eles espalham um odor agradável, mas
depois só resta uma fumaça fatigante. Aquele que se submete por motivo de
recompensa, podemos compará-lo à roda do moinho, que só gira de uma
maneira. Mas os que, por afeição e por amor a Deus, abandonam o mundo para
abraçar os estreitos caminhos da vida religiosa se veem logo abrasados pelo
sagrado fogo da caridade; e, assim como o furor e a atividade do fogo natural
aumentam na medida em que ele penetra na floresta em que se iniciou, também
a chama do amor divino se estende nos seus corações na mesma medida,
produzindo um incêndio feliz.

27. Mas prestem atenção, porque são três os tipos de trabalhadores que erguem o
edifício espiritual de sua salvação: uns trabalham colocando tijolos, depois de
terem usado pedras nas fundações; outros erguem colunas sobre a terra; e outros
enfim, vendo-se no local onde devem trabalhar, começam a correr com espantoso
ímpeto e, uma vez aquecidos, já não sentem a si mesmos nem são mais donos de
si. Quem tiver inteligência entenda este discurso alegórico.

28. Ora, como é Deus nosso rei supremo, que nos chama a seu serviço, corramos
com todas as nossas forças para atendermos ao seu apelo, de medo que, tendo
pouco tempo de vida, não nos encontremos, na hora derradeira, miseráveis e
privados dos méritos das boas obras; e que não pereçamos nos horrores da fome.
Semelhantes aos soldados que se estudam para se tornar agradáveis ao seu
general, não negligenciemos nada que possa nos tornar agradáveis a Deus; pois
ele nos pede que, depois de nos enrolarmos em seus estandartes, o sirvamos com
fervor e fidelidade.

29. Tenho vergonha de dizer, mas temamos ao menos o Senhor como tememos a
certos animais; já vi bandidos sobre quem o temor a Deus não tinha nenhum
poder, mas que, tendo partido a cometer roubos se detiveram e voltaram de mãos
vazias sem consumar o crime, apenas por terem ouvido latir os cães no local para
onde os conduzia sua desonestidade. Assim, aquilo que o temor a Deus não pode
fazer por eles, o medo dos cães os obrigou.

30. Amemos a Deus do mesmo modo como costumamos gostar de nossos amigos:
já conheci a muitos que, tendo ofendido ao Criador não experimentaram nenhum
desconforto, mas que, tendo fatigado seus amigos ficaram desolados,
empregaram mil maneiras e mil artimanhas para expressar seu arrependimento,
não temendo nem humilhações nem sacrifícios para acalmá-los, e, seja por si
mesmos, seja por amigos comuns, ofereceram grandes e penosas satisfações para
obter a reconciliação, acrescentando a todos estes meios ricos presentes, a fim de
poderem voltar à antiga amizade.

31. Não é senão com muitas penas e esforços que podemos praticar a virtude no
começo de nossa conversão; mas logo que fazemos algum progresso avançamos
quase sem dificuldade; e, a partir do momento em que temos a felicidade de nos
tornarmos mestres dos sentidos de nossos corpos, submetendo-os à nossa
consciência, ah!, então é com ardor, alegria, prazer e bom humor que nos
dedicamos à prática das boas obras; ficamos abrasados pelo fogo sagrado da
caridade.

32. É assim que devemos tanto louvar aqueles que, desde o princípio de sua
consagração a Deus, fazem todos os esforços para cumprir exatamente e com
alegria a santa lei do Senhor, como devemos condenar aos que, depois de passar
anos inteiros a serviço de Deus, não praticam a virtude senão com dificuldade e
repugnância.

33. Mas não temamos nem condenemos as pessoas que se entregaram a Deus
por algum acidente curioso que as tenha forçado a isto; pois já conheci alguns
que, enquanto faziam todos os esforços para não encontrar seu Rei Supremo,
Jesus Cristo, o encontraram contra a vontade e foram envolvidos a contragosto
em seus adoráveis estandartes, entrando em seu palácio e assentando-se à sua
mesa. Também vi a semente da graça, caída por assim dizer sem destino e ao
acaso nos corações, produzindo aí uma colheita abundante de excelentes
virtudes. Foi assim que uma pessoa que conheci, mesmo tendo ido a uma escola
de medicina espiritual por razões estranhas à sua consciência, caiu alegremente
nas mãos de um médico que bem soube prende-la, que lhe falou com afetuosa
benevolência, a tal ponto que ela se converteu e abriu seus olhos à luz. Assim,
acontece muitas vezes que uma conversão que parecia não ter acontecido senão
por acaso se tornar mais sólida e constante que uma outra ocorrida com
propósito deliberado.

34. Que ninguém, por considerar a enormidade e o número de suas faltas,


encontre nisto uma razão ou um pretexto para se crer incapaz de se converter e
de abraçar a vida religiosa; pois é para se temer que este julgar-se indigno
esconda um desejo de não renunciar aos prazeres de que desfrutava, de não
deixar a preguiça que o mantinha cativo, e que deste se possa dizer: “Eles
procuram desculpas para seus pecados[4]”. Não é assim? Meu Deus, não é
justamente quando existe mais pus e podridão numa ferida que se necessita de
um médico hábil e experiente, e não foi nosso divino Salvador quem disse que
“não são os saudáveis que precisam de médico”?

35. Quando um grande rei, pretendendo empreender uma expedição importante,


nos chama à sua presença e nos declara que intenta servir-se de nós, ah!,
obedecemos prontamente, não usamos de nenhum subterfúgio, não alegamos
nenhum pretexto; mas, abandonando tudo, apressamo-nos em nos apresentar
diante dele para receber e executar suas ordens. Ora, será com o mesmo zelo e a
mesma diligência que respondemos à voz do Rei do s reis, do Senhor dos
senhores e do Deus dos deuses, que nos chama e quer n os envolver sob os
estandartes de sua milícia celeste, fazendo-nos entrar nos caminhos da vida
religiosa? Não é de temer que nossa preguiça e nossa negligência em responder a
seu apelo nos coloque sem escusa e sem defesa quando formos citados para
comparecer diante de seu temível tribunal?

36. Não podemos negar que aquele que se acha ligado por cadeias de ferro devido
aos cuidados e embaraços da vida mundana não é capaz de caminhar com
facilidade pelas vias da salvação e, se caminha, o faz com grande dificuldade.
Eles se parecem com estes infelizes que estão sob o peso de correntes, ou em
cujos pés foram colocadas pesadas travas: a cada momento, tentando caminhar,
eles caem e se ferem cruelmente. É por isso que eu comparo o homem que, não
sendo casado, permanece na vida secular só para cuidar dos assuntos temporais,
a alguém que tem algemas nas mãos, pois, se ele quiser, poderá abraçar a vida
religiosa, enquanto que comparo o homem casado a alguém que tem as mãos e os
pés acorrentados.

37. Um dia, encontrei algumas pessoas que viviam no esquecimento de sua


salvação; eles me perguntaram: “Como nos será possível pensar na vida religiosa
e solitária, nós que somos obrigados a viver com nossas esposas e que somos
oprimidos sob o peso de nossos assuntos temporais?”. Eu me contentei com lhes
responder: “Não deixem de fazer todas as boas obras que puderem; fujam da
mentira com horror; que o orgulho não os faça desprezar a ninguém; não tenham
raiva de ninguém; assistam regularmente aos ofícios da Igreja; sejam caritativos e
benevolentes para com os pobres; jamais escandalizem seus irmãos; respeitem a
mulher do próximo, e que cada um se contente com sua esposa. Se vocês agirem
e viverem assim, vocês não estarão longe do Reino dos céus”.

38. Corramos com uma alegria mesclada de temor ao combate para o qual Deus
nos chama. É aos demônios que devemos fazer a guerra; não tenhamos medo
deles, pois, ainda que não os possamos ver, eles nos conhecem e penetram no
fundo de nossas almas; e se eles a encontrarem perturbada e medrosa, não
acharão que nos damos por vencidos? Não se precipitarão sobre nós
terrivelmente encarniçados, a fim de nos tornar seus miseráveis escravos? Ora,
como conhecemos suas armadilhas, armemo-nos contra eles com coragem; pois
quando alguém vê uma armada composta por soldados valentes e corajosos,
ansiosos por se medir com o inimigo, hesita em se lançar à luta.

39. De resto, Deus, em sua Sabedoria e Bondade infinitas, cuida em especial


daqueles que não tem outra coisa a fazer do que se engajar a seu serviço: Ele
mesmo adoça suas penas e seus trabalhos, a fim de que o primeiro choque e o
primeiro assalto que eles tenham que sustentar não sejam demasiado violentos e
os levem a retornar para o século. Generosos servidores de Deus, esta certeza não
os enche de alegria e felicidade? Não encontram vocês, nesta admirável conduta
do Senhor, uma prova incontestável de sua afeição e sua ternura por vocês, e um
testemunho seguro de que foi Ele quem os fez entrar neste gênero de vida?

40. Entretanto, já observamos que muitas vezes, encontrando Deus corações


fortes e generosos, Ele costuma entrega-los, já no começo de sua conversão, a
combates rudes e violentos; mas é para poder lhes dar logo a seguir a coroa e a
recompensa de uma vida feliz e cheia de méritos.

41. Mas também, por uma providência paternal, pode acontecer que Deus
esconda daqueles que ainda estão no mundo as penas e as dificuldades
encontradas na vida religiosa, não os deixando entrever senão os modos fáceis da
santificação; pois ele sabe que, se fossem conhecidos os penosos trabalhos que se
deverá suportar, não haveria quem se engajasse.

42. Assim, consagrem a Cristo a flor de sua juventude, e trabalhem para sua
Glória com zelo ardente; e, numa idade avançada, a lembrança de suas boas
obras os inundará de deliciosa alegria, pois aquilo que ajuntamos e recolhemos
na juventude, nutre e consola nas fraquezas e langores da velhice. Enquanto
estamos cheios de força e saúde, trabalhemos com nobre ardor, e percorramos a
carreira religiosa com sabedoria e prudência; pois a morte é incerta, e teremos
que nos haver como inimigos desonestos, cruéis, poderosos, vigilantes,
incorpóreos, invisíveis, e sempre armados com tochas incendiárias para reduzir a
cinzas os templos vivos do Senhor.
43. Que sobretudo os jovens evitem escutar a voz destes espíritos ciumentos e
mentirosos; pois eles lhes sugerirão sem cessar de não submeter a carne a tantos
rigores, a fim de evitar as doenças e enfermidades que eles inventam: “Será
possível encontrar, e sobretudo neste século em que vivemos, será possível
encontrar alguém que, por meio de imoderadas mortificações, haja triunfado
sobre seu corpo, matando suas paixões, privando-se de coisas necessárias? Não
basta se abster da intemperança, e se proibir os alimentos sofisticados?” Esta é a
linguagem insidiosa dos demônios. Mas não é evidente que sua intenção, falando-
nos assim, é de nos desencorajar e nos tornar tímidos, preguiçosos e negligentes
desde nossa entrada ao serviço de Deus, a fim de que estejamos tão pobres e
miseráveis no final da carreira quanto no começo?

44. Antes de tudo, é de extrema importância para os que querem servir a Deus
com ardor e fidelidade, que procurem e encontrem, seja pela prudência e a
sabedoria de alguns padres experientes, seja pelas luzes e o testemunho de sua
própria consciência, os lugares, o tipo de vida, a moradia e os exercícios que lhes
sejam mais convenientes e apropriados; pois eu creio que os que amam as
delícias não são feitos para a vida em comunidade, e os que tem um humor
irascível não devem abraçar a vida solitária. Cada qual deve examinar diante de
Deus o tipo de vida que melhor lhe convém.

45. Eu penso que todas as formas de vida religiosa se reduzem às seguintes três:
a primeira consiste em viver em perfeita solidão; a segunda, em viver no deserto,
mas com mais um ou dois monges; a terceira, em viver em comunidade. Mas em
tudo devemos observar este conselho que nos dá Salomão: “Não vá nem à direita
nem à esquerda[5]”: siga com perseverança o caminho real de Jesus Cristo. O
segundo tipo de vida religiosa parece convir a muitos; o mesmo Salomão nos diz:
“Infeliz do que é só, porque se ele cair ninguém o ajudará a que se levante[6]”.
Que acontecerá então ao monge que, estando só, tiver a infelicidade de se
aborrecer, de adormecer, de se tornar preguiçoso ou chegar ao desespero? Será
melhor lembrar as boas palavras de nosso Senhor: “Quando dois ou três
estiverem reunidos em meu Nome, Eu me encontrarei no meio deles[7]”.

46. Portanto, quem será o monge fiel e prudente? Eu respondo sem hesitar que é
aquele que conservou com perseverança o fervor de sua entrada na religião, e
que, até o final de sua carreira, não cessou de ajuntar chama sobre chama, fervor
sobre fervor, precaução sobre precaução, desejo sobre desejo. Portanto, vocês que
subiram este primeiro degrau, não olhem para trás.

SEGUNDO DEGRAU

Da necessidade de se despojar das afeições e dos cuidados com as coisas


do mundo.

1. Quem ama a Deus com todo seu coração, que deseja ardentemente o Reino dos
céus, que trabalha com coragem para se purificar das faltas que cometeu e para
se corrigir dos maus hábitos adquiridos, que não perde jamais de vista o juízo
final e os suplícios eternos, que alimenta em sua alma o pensamento e o temor da
morte, este não tem mais amor nem inclinação pelo dinheiro e as riquezas, por
seus parentes ou pela glória do mundo, por seus irmãos e amigos, enfim, por
todas as coisas frágeis e perecíveis; ele expulsou de seu coração todo sentimento,
toda ligação e todo cuidado; ele odeia sua própria carne, e, num estado de
perfeita nudez, ele estuda por seguir a Cristo com indizível ardor; ele não suspira
senão pela felicidade do céu, e é apenas de Deus que ele espera todo o socorro
necessário para alcançá-la. Ele diz com Davi: “Minha alma só está ligada a você,
ó meu Deus[8]”; e com o ilustre profeta: “Eu não canso de segui-lo, Senhor; eu
não busquei o julgamento dos homens nem suas consolações[9]”.

2. Mas certamente seria uma vergonha para nós se, depois de havermos
abandonado todas as coisas de que falamos, depois de nos termos devotado, não
a seguir um homem, mas a servir ao Senhor que nos envolveu em seus
estandartes, ainda nos divertíssemos buscando objetos incapazes de nos trazer o
menor alívio para a extrema necessidade em que nos veremos na hora da morte.
Comportarmo-nos assim não equivale a violar o preceito de Jesus Cristo que nos
proíbe de olhar para trás? Não é o mesmo que nos declararmos ineptos para o
Reino de Deus?

3. Para nos evitar esta infelicidade, nosso divino Salvador, que conhece bem até
que ponto nossa fragilidade nos expõe à inconstância e o quanto é fácil para
nosso coração se voltar para as coisas da terra a que havíamos renunciado –
basta conversarmos ou termos qualquer relação com as pessoas do mundo –,
para nos evitar esta infelicidade Ele nos dirigiu estas palavras memoráveis, ditas
ao jovem que pediu permissão para enterrar seu pai antes de segui-lo: “Deixe que
os mortos enterrem seus mortos[10]”.

4. Lembremo-nos que os demônios, depois que renunciamos às coisas do século,


procuram nos fazer crer que só são felizes os que, no mundo, fazem o bem aos
indigentes, e que somos infelizes na vida religiosa, porque não temos esta
facilidade. Ora, o que os inimigos de nossa salvação se propõem com esta
tentação, é nos levar a voltar para o século, ou nos atirar ao desespero se
perseverarmos em viver retirados.

5. Na vida religiosa, encontramos pessoas que, por orgulho, desprezam as


pessoas que vivem no mundo, e se colocam acima delas. Vemos também que eles
as desprezam com o único objetivo de sufocar em si próprios pensamentos de
desencorajamento que os assaltam, e de se fortalecer na esperança e na
confiança em Deus.

6. Portanto, escutemos com especial atenção o conselho que nosso Senhor deu
um dia ao jovem que até então bem observara a lei de Deus: “Só lhe falta uma
coisa, que é vender todos os seus bens, dar o dinheiro aos pobres e seguir-
me[11]”, a fim de que, fazendo-se voluntariamente pobre, você seja obrigado a
recorrer à caridade dos outros.

7. Nós, que resolvemos seguir nosso curso com ardor e prontidão, estejamos
atentos à condenação que o Senhor levantou contra os que vivem em mosteiros, e
que, vivos, estão como mortos, quando Ele disse: “Deixe os que estão no mundo e
que estão mortos, que enterrem os que estão corporalmente mortos[12]”.

8. Mas as riquezas que aquele jovem rico possuía não foram obstáculo para que
ele recebesse o batismo; é por isso que nós pensamos que se enganam os que
dizem que o Senhor lhe ordenara vender tudo o que tinha para então receber o
batismo. Na verdade, o divino Salvador quis com isto nos fazer compreender que
exigia mais dele para leva-lo ao estado de perfeição que lhe proporá, do que para
admiti-lo a receber o batismo. Esta prova deve nos convencer da excelência de
nossa profissão.
9. Podemos aqui examinar porque certas pessoas que, enquanto viviam no
mundo se entregavam a penosas vigílias, jejuns rigorosos, trabalhos fatigantes e
toda sorte de mortificações, chegadas à vida solitária abandonaram estas práticas
de piedade por as verem como falsas e más.

10. É que a vida religiosa permite distinguir as verdadeiras virtudes das que não
passam de virtudes hipócritas, mostrando-nos a carreira na qual podemos correr
e combater com sucesso e benefícios reais; pois estou quase afirmando que a
maior parte das boas obras praticadas por quem vive no século são plantas
regadas com a água gasosa e infecta da vanglória, cultivadas e nutridas em meio
à ostentação, os aplausos e os louvores; uma vez transplantadas para a solidão
dos anacoretas, inacessíveis aos olhares das pessoas do mundo, e não mais
encontrando a umidade mundana da água corrompida da vanglória, essas
pretensas boas obras, essas falsas virtudes, não tardam em perecer; pois essas
plantas, nascidas em terra úmida, não podem prosperar num terreno seco e
árido, privado de todos os louvores humanos, como o são as santas escolas da
solidão e dos desertos.

11. Aquele que odeia o espírito do mundo se livra alegremente de tudo o que pode
lhe causar penas e aflições; mas quem se deixa conduzir por este espírito e
conserva ainda a feição pelas coisas da terra não está certamente isento de
tristeza e aborrecimento. Como poderá este, sem penas, se ver privado das coisas
que ama?

12. Ah! Se em todas as coisas devemos ter muita prudência e circunspecção, aqui
mais do que em tudo devemos ser sábios e discretos; pois não é raro ver um
grande número de pessoas que,  mesmo agitadas no mundo por cuidados e
inquietações, sobrecarregadas de afazeres e de ocupações, enfraquecidas pelas
vigílias profanas, conseguiram se preservar da loucura e do contágio dos prazeres
carnais, mas que caíram vítimas da mais vergonhosa paixão assim que entraram
para o repouso e a tranquilidade da vida religiosa, ou para o silêncio da solidão.

13. Tomemos especial cuidado para evitar que, pensando e dizendo estarmos
caminhando pela via estreita e difícil, estejamos na verdade marchando pela via
larga e espaçosa. Ora, os sinais que nos permitem reconhecer que estamos no
caminho que conduz ao céu são a mortificação no comer, as vigílias, a privação
até de água para beber e de pão para comer, o amor às humilhações, a paciência
nas injúrias, nas zombarias e nos ultrajes, a renúncia às próprias vontades, a
mansidão nas reprovações e nas afrontas, o silêncio da boca e do coração quando
nos desprezam, a perfeita tranquilidade em meios aos piores tratamentos, a
coragem constante em suportar com bondade aos que nos fazem injustiças, que
nos difamam com maledicências, que nos cobrem de ignomínias e nos condenam
injustamente. Felizes os que, depois de entrarem na vida religiosa, seguem esta
via! Pois “o Reino dos céus lhes pertence[13]”.

14. Ninguém será recebido na sala nupcial do Paraíso para aí receber a coroa da
imortalidade se não tiver praticado as três renúncias de que falei: primeiramente,
se não tiver dito adeus a todas as coisas, a seus parentes e amigos e a todo o
mundo; depois, se não renunciar à sua própria vontade; e em terceiro lugar, se
não imolar a vanglória que costumamos buscar até mesmo nos deveres da
obediência.

15. Foi com esta finalidade que o Senhor nos mandou dizer por seu profeta:
“Saiam do meio deles, mantenham-se separados, não se sujem com as impurezas
do mundo[14]”. Será possível encontrar dentre os mundanos alguém que tenha
feito coisas dignas de ser admiradas, que tenha devolvido a vida aos mortos ou
expulsado os demônios? Procuraríamos em vão. Estas maravilhas normalmente
são recompensas que Deus concede aos que estão inteiramente a seu serviço; os
mundanos não são susceptíveis disto, e se pudessem aspirar a tanto, de que
adiantaria deixar o mundo e se consagrar aos penosos trabalhos de uma vida
religiosa?

16. Se, depois de deixarmos o mundo, os demônios nos perturbam e nos tentam
comas lembranças dolorosas e ternas de nossos pais e mães, de nossos irmãos e
irmãs, saibamos recorrer às santas armas da oração, ao pensamento das chamas
eternas, a fim de que a lembrança destas chamas terríveis extinga em nós o fogo
por meio do qual os demônios querem reduzir a cinzas nossas generosas
resoluções.

17. Lembremos aqui que aquele que se crê independente de tudo e que renunciou
a tudo vive uma funesta ilusão, se ainda experimentar um sentimento de tristeza
por não possuir aquilo que deseja.

18. As pessoas que, em sua juventude, tiveram a infelicidade de se deixar levar


pelo amor e pela fruição dos prazeres carnais, mas que apesar disso formaram o
desejo e tomaram a resolução de entrar para uma comunidade religiosa, devem
se dedicar com o maior cuidado às regras austeras da sobriedade e da
temperança, se entregar inteiramente aos sagrados exercícios da oração, recusar
severamente a seus corpos todo prazer e tudo o que possa lhe trazer bem-estar e
alegria, abster-se de toda espécie de desregramentos e sensualidades, no temor
que seu último estado não se torne pior do que o primeiro[15]. Pois a religião é
um porto no qual encontramos a salvação; mas nele também podemos encontrar
o naufrágio, e os que já viajaram por este mar espiritual podem atestar esta
verdade. É um triste espetáculo ver pessoas que, depois de atravessar o mar
raivoso do mundo, vêm naufragar miseravelmente e perecer no porto. Este é o
segundo degrau; se você subir nele, que em sua fuga imite a Lot, não à sua
esposa.

TERCEIRO DEGRAU

Da fuga do mundo.

1. A retirada, ou a fuga do mundo, consiste numa renúncia eterna a tudo o que


pode se opor aos desígnios de piedade que criamos; trata-se de uma mudança
feliz de hábitos e de conduta, uma sabedoria desconhecida, uma prudência que
foge com horror dos olhares dos homens, uma vida oculta, um fim e um objetivo
interior e secreto, uma meditação doce e tranquila, um zelo para com o desprezo
e as humilhações, um desejo ardente por austeridades e sofrimentos, um
fundamento sólido de afeição e amor a Deus, uma fonte fecunda de caridade,
uma renúncia perfeita à vanglória e um profundo silêncio.

2. Abandonar e deixar seus próximos e aquilo que eles possuem no mundo, eis o
projeto que no mais das vezes com mais violência agita aqueles que, desde o
começo de sua conversão, se ligam fortemente a Deus e ficam como que
abrasados por um fogo inteiramente celeste. Ora, o que os leva a este piedoso
desígnio, seus novos amantes de beleza nobre e excelente, é o desejo de se
devotar a todo tipo de humilhações e a toda espécie de penas e de sofrimentos.
Mas quanto mais esta resolução é generosa e louvável, mais é necessária
prudência e discernimento para cumpri-la; pois eu estou longe de dar minha
aprovação a qualquer retirada feita com a maior coragem.

3. Com efeito, se nosso divino Salvador nos assegura que “ninguém é bom profeta
em seu próprio país[16]”, é para nos advertir a que tomemos cuidado com que,
renunciando à nossa pátria, não o façamos apenas para reencontrá-la na
vanglória com que nos propusemos fugir ao mundo; pois a fuga do mundo não é
outra coisa que uma separação franca e verdadeira de todas as coisas da terra,
de modo a que nossa alma esteja invariavelmente unida a Deus sem mais
separar-se dele. Essencialmente, ela deve produzir em nós a dor e o
arrependimento por nossas faltas. Aquele que se separou do século é alguém que
renunciou a toda afeição carnal pelos seus e pelas coisas que são estranhas ao
seu novo estado.

4. A vocês que pensam em sair do mundo, eu lhes peço que, para fazê-lo, não
esperem que seus amigos tenham se desembaraçado de seus negócios: temam a
morte que poderá surpreendê-los antes de que tenham cumprido seu desígnio.
Pois muitos se enganaram! Eles queriam salvar a outros, preguiçosos e
negligentes; mas ao esperá-los, deu-se que o fogo do amor divino que os abrasava
extinguiu-se pouco a pouco em seus corações, e eles pereceram miseravelmente
junto com aqueles a quem pretendiam salvar. Ora, se vocês sentem em si os
ardores celestes do amor divino, e não sabem quando ele poderá desaparecer
deixando-os em meio às trevas, caminhem e corram para onde Deus os chama,
lembrando que o Apóstolo nos advertiu de que não estamos encarregados da
salvação de nossos irmãos: “Irmãos, cada qual prestará contas de si mesmo a
Deus[17]”; e ele acrescenta em outra parte: “Como? Vocês querem ensinar a
outras pessoas sem que tenham instruído a si mesmos?[18]”. É como se ele
dissesse: “no que se refere aos outros, eu nada sei; mas n o que toca a cada um
de nós em particular, sei bem que estamos obrigados a nos conhecer e nos
salvar”.

5. Vocês que empreendem a viagem que irá fazê-los sair do mundo, vigiem a si
próprios com o maior cuidado; pois o demônio tentará torna-los inconstantes e
sensuais, e sua própria retirada fornecerá a ele os meios e as ocasiões.

6. Existe o maior mérito diante de Deus em se despojar de toda afeição pelas


coisas da terra, e é a fuga do mundo que nos coloca neste estado feliz.

7. É por isso que quem, por amor ao Senhor, deixou o mundo, não deve mais ser
animado senão pelo desejo de agradar a este divino Salvador; de outro modo, ele
seguiria ainda cegamente as afeições e as paixões de seu coração.

8. Vocês que disseram adeus ao mundo deixem de se misturar aos afazeres do


mundo; lembrem-se de que os desejos que vocês sufocaram no coração tentam
novamente se estabelecer ali.

9. Foi pela força e contra sua vontade que Eva foi expulsa do Paraíso terrestre;
mas é por um ato de sua própria vontade que um monge deixa seu país para
encerrar-se num lugar distante. Se Eva ainda tivesse permanecido no delicioso
jardim onde tinha sido colocada ela não teria deixado de desejar comer o fruto
que a levara à primeira desobediência; e o monge, permanecendo no mundo,
encontraria inúmeros perigos de se perder no meio de seus parentes e de seus
amigos.
10. Evitem as ocasiões de cair e de pecar, no mínimo com o mesmo cuidado com
que evitariam uma pena ou um grave suplício que alguém lhes quisesse infligir.
Os frutos que não vemos não nos expõem à tentação e ao desejo de comê-los
como aqueles que vemos.

11. Conheçam bem as armadilhas e os artifícios que  os espíritos tenebrosos do


inferno utilizam para nos derrubar; eles procuram nos fazer crer que não
devemos nos retirar nem dos embaraços do século nem do meio dos irmãos,
porque fazendo-o estaremos perdendo uma grande recompensa e uma grande
glória; eles nos dizem interiormente, “que mérito não terá uma pessoa que
triunfar sobre si mesma reprimindo os fogos impuros quando encontra alguma
beleza terrestre?”. Ah! Cuidemos de não ouvi-los em circunstâncias análogas;
façamos o contrário do que nos sugerem.

12. Assim, se depois de havermos abandonado nossos próximos e nossa família,


depois de termos passado alguns ou muitos anos na vida monástica, depois de
termos feito progressos na piedade e na prática da virtude, depois de havermos
chorado amargamente e reparado o tempo de vida que passamos no pecado e no
contentamento de nossas paixões, depois de termos alegremente recebido os dons
da castidade e da continência, se depois de tudo isto nos vier ao espírito
pensamentos vãos e frívolos, como os de retornar à pátria sob o pretexto falacioso
de edificar com nossa nova e virtuosa vida aqueles a quem havíamos
escandalizado com nossa vida licenciosa e desregrada, e, com nossa eloquência,
nosso saber e nossos talentos, nos tornarmos os salvadores do povo, suas luzes,
seus doutores e condutores... Ah! Estejamos certos de que isto não passa de uma
armadilha que os demônios nos colocam: eles querem que percamos em alto mar
o tesouro que conseguimos adquirir longe das tempestades em nosso porto.

13. Nesta ocasião, devemos imitar a Lot e não à sua esposa; pois quem quer que
retorne ao lugar que deixou e às coisas que abandonou se tornará como o sal
insípido, e merecerá permanecer imóvel como a mulher de Lot, que foi
transformada em estátua de sal.

14. Fuja para longe do Egito e não conserve sequer o pensamento de retornar ali;
pois os que voltaram para o Egito em pensamentos e desejos perderam a paz e a
tranquilidade da Jerusalém celeste.

15. Mas aconteceu algumas vezes que pessoas que deixaram o mundo para
conservar sua influência, depois de terem fortificado solidamente sua virtude e
purificado santamente sua consciência, voltaram ao mundo produzindo grandes
benesses e contribuindo poderosamente para a salvação de outros, sem
negligenciar a sua própria. Assim foi que Moisés, depois de ter contemplado no
deserto a face de Deus, recebeu a ordem de voltar para o Egito para salvar ali os
de sua nação, coisa que ele fez em meio aos maiores e mais iminentes perigos e
as mais profundas trevas.

16. Vale infinitamente mais descontentar a nossos pais do que descontentar a


Deus; pois ele é o Mestre soberano de nossos próximos, e foi ele quem nos criou e
resgatou. De resto, não é raro que os pais causem a perda de seus filhos, mesmo
os amando, atirando-os aos suplícios eternos.

17. Dizemos que alguém está verdadeiramente separado do mundo quando já não
fala nem compreende a linguagem do mundo.
18. Quando deixamos o mundo para abraçar a vida solitária, isto não é devido ao
ódio que sentimos por nossos próximos nem à aversão         que sentimos por
nossa pátria: tão horrível crime está longe de nós. Quando deixamos o mundo
para abraçar a vida solitária é unicamente para evitar que nos percamos
eternamente.

19. Nisto como em todas as coisas é ao Senhor que escutamos, e cujas pegadas
seguimos; pois sabemos que Ele mesmo abandonou muitas vezes seus pais
segundo a carne. Com efeito, tendo um dia alguém o advertido de que sua mãe e
irmãos o procuravam, o divino Mestre, para nos mostrar que existem ocasiões
nas quais devemos fugir santamente dos parentes deu esta admirável resposta:
“Minha mãe e meus irmãos são aqueles que cumprem a Vontade de meu Pai que
está nos céus[19]”.

20. Reconheçam como pai aquele que pode e quer aliviá-los do peso enorme dos
seus pecados; e como mãe, a compunção do coração, capaz de purifica-los de
toda mancha; como irmãos, os que podem ajuda-los a obter os dons celestes,
trabalhar e combater com vocês; como esposa, unida indissoluvelmente a vocês, o
pensamento constante da morte; como únicos filhos amados, os gemidos do
coração; como escravos, seus sentidos e sua carne; e como amigos, as legiões
celestes, que lhes trarão mais benefícios na hora da morte na medida em que
durante a vida vocês tenham tido o cuidado de manter sua amizade. Este é o
santo parentesco dos que buscam sinceramente ao Senhor[20].

21. Que o desejo do céu faça pronta e facilmente desaparecer as afeições carnais
que sentimos pelos próximos! É um erro grosseiro imaginar que é possível ao
mesmo tempo amar a seus parentes segundo a carne e amar o céu segundo
Deus, porque nosso divino Salvador emitiu esta sentença condenatória: “Ninguém
pode servir a dois mestres[21]”.

22. Em outra passagem, ele nos declarou positivamente não ter vindo à terra
“para trazer a paz, mas a guerra e a espada”, ou seja, que ele não veio trazer aos
pais e irmãos um amor carnal por seus filhos e irmãos que quisessem se
consagrar a seu serviço, mas que ele veio para separar os que amam e servem a
Deus dos que amam e servem o mundo; os que estão ligados à terra dos que
colocam sua atenção nos céus; os que buscam o orgulho dos que só se sentem
bem na humildade: pois Ele ama esta divisão e separação espirituais.

23. Cuidado, eu repito, para que o afeto que vocês sentem pelos próximos e pelas
coisas da terra não os faça naufragar em meio às águas de pecado de que o
mundo está inundado. E se vocês não quiserem chorar eternamente, não sejam
sensíveis às lágrimas de seus pais e amigos.

24. Assim, se para detê-los em seus piedosos desígnios eles os cercarem como
moscas ao redor do mel, ou melhor, como marimbondos, e para fazê-los desistir,
eles se rasgarem em lamentações, coloquem prontamente em seus espíritos o
pensamento da morte e os terríveis perigos a que vocês estarão expostos, e, sem
desviar sua atenção destes dois objetos, comparem a pena que lhes propõem seus
próximos com a que farão a si próprios expondo-se à infelicidade eterna, como
quem fecha um buraco com outro buraco.

25. Estas pessoas que parecem ser devotadas aos nossos interesses e que
realmente não querem nos fazer mal nos prometem montanhas de ouro e nos
asseguram com zelo que só farão coisas que nos sejam agradáveis e úteis. Mas
todos estes testemunhos são enganosos: tudo o que eles propõem é que nos
desviemos do caminho que nos conduzirá à felicidade eterna, e nos levar a seguir
suas próprias vontades.

26. Quando finalmente deixarmos o mundo, é importante nos retirarmos para


lugares onde encontremos o mínimo de consolações humanas, o mínimo de
ocasiões de vanglória, onde estivermos menos expostos à funesta celebridade; de
outro modo nos pareceremos aos pássaros que mudam de ares: nosso coração
permaneceria o mesmo e nossas paixões continuariam a imperar sobre nós.

27. É ainda de muito proveito esconder o esplendor de seu nascimento ou o


brilho do seu nome, a fim de que sua vida e suas ações não anunciem outra coisa
que o amor a Deus e sua salvação.

28. Dificilmente encontraremos alguém que tenha abandonado sua pátria e seus
próximos com uma generosidade e uma perfeição semelhantes às do santo
patriarca Abraão. Mal ele havia escutado as palavras de Deus: “Deixe seu país,
seus pais e o seio de sua família[22]”, e se pôs a caminho, sem hesitar, ainda que
fosse para se colocar no meio de povos bárbaros cuja língua ele ignorava.

29. Existem assim alguns a quem o Senhor cobriu de glória por haverem imitado
esta grande personagem, deixando generosamente tudo o que possuíam neste
mundo. Entretanto eu creio que, embora esta glória venha de Deus, devemos
evitá-la, e não nos propormos a ela senão com um espírito de humildade.

30. Quando os demônios, ou mesmo os homens, louvam nossa retirada como


sendo uma ação forte e generosa, é para nos fazer conceber um sentimento de
orgulho. Expulsemos imediatamente esta tentação, pensando que por amor a nós
e para nossa salvação o Filho de Deus se rebaixou a deixar os esplendores
eternos de sua Glória para vir habitar humildemente sobre a terra; e saberemos
que, ainda que vivêssemos toda uma eternidade, seríamos incapazes de fazer algo
semelhante para lhe testemunhar nosso reconhecimento.

31. A afeição que conservamos interiormente por nossos próximos, e mesmo


pelos estranhos, pode se tornar funesta para nós; ela nos levaria pouco a pouco a
retornar para o mundo, ou no mínimo poderia extinguir em nós o fervor da
piedade e da compunção.

32. Assim como é impossível mirar o céu com um olho e ao mesmo tempo fixar o
outro na terra, também é impossível a uma pessoa que não se retirou do meio de
seus próximos e de todas as pessoas que lhe são caras segundo a carne, por uma
separação perfeita de espírito e de corpo, deixar de se expor ao perigo evidente de
uma perda espiritual.

33. Saibamos assim que só com muitas penas e trabalhos conseguiremos


reformar nossos hábitos e nossa conduta, e que pode muito bem acontecer de
perdermos num instante tudo o que adquirimos com um trabalho longo e penoso;
pois os discursos vãos e profanos, e sobretudo os maus, rapidamente corrompem
os bons hábitos[23].

34. Portanto, aquele que, tendo renunciado a tudo, não deixa de seguir os
costumes e frequentar as pessoas do mundo, cairá nas mesmas armadilhas que
eles e manchará seu coração com o pensamento de coisas profanas; ou, se não
encher sua consciência de coisas mundanas, a encherá com juízos temerários
que fará a respeito de quem achar que está sujo por maus pensamentos. É assim
que, de um lado ou de outro, ele não se preservará de pecar com os seculares.
São sonhos que costumam perturbar o sono de quem deixou o mundo.

35. Seria vão eu tentar esconder o quanto meu espírito é pouco sutil e
penetrante, o quanto meus conhecimentos são limitados e minha ignorância
profunda. Assim como o palato da boca julga o gênero e a natureza dos
alimentos, assim como os delicados ouvidos dos auditores julgam a beleza dos
pensamentos do orador, assim como o brilho do sol nos faz ver a fraqueza dos
olhos, também minhas palavras ilustram minha pouca capacidade; mas às vezes
o amor nos leva a empreender coisas que estão acima de nossas forças. Assim é
que eu penso, sem ousar afirmá-lo, que, depois de ter falado – ou melhor, falando
da fuga do mundo – convém dizer algumas coisas a respeito dos sonhos, a fim de
que se saiba que os demônios se servem deles coo armadilhas para perder as
almas.

36. Digo que o sonho não é outra coisa do que um movimento e uma agitação do
espírito, enquanto os sentidos do corpo estão em suspenso.

37. Uma visão imaginária é uma ilusão por meio da qual a imaginação sozinha,
sem poder julgá-la, crê perceber certos objetos no momento mesmo do despertar:
trata-se de uma representação de coisas que não têm nem ser nem existência.

38. O motivo que nos leva a falar dos sonhos, depois de termos dito algumas
coisas sobre a fuga do século, deve parecer evidente. De fato, a partir do
momento em que, por amor ao Senhor, renunciamos a nossos bens e a nossos
próximos, e que, no exílio voluntário, nos consagramos e como que nos vendemos
a seu serviço e ao amor dos bens celestes, os demônios, invejosos de nossa
felicidade, tratam de espalhar a perturbação e a inquietude em nossas almas por
meio dos sonhos. Assim é que eles nos representam nossos próximos, às vezes
em prantos, às vezes estendidos num leito de morte, ou mergulhados em
amargura por nossa causa, ou atormentados por alguma infelicidade; aquele que
acredita nos sonhos como sendo algo real se assemelha a uma pessoa que corre
atrás de sua própria sombra esforçando-se para apanhá-la.

39. Lembremos aqui que os demônios, para nos vender qualquer fumaça de
vanglória, se fazem de profetas para nós: eles nos anunciam em sonhos coisas
futuras que adivinharam pela sutileza de suas conjecturas; e, vendo acontecer
aquilo que víramos em sonhos, ficamos surpresos e admirados. E assim eles nos
conduzem ao orgulho, fazendo com que pensemos que é Deus quem nos faz
conhecer as coisas futuras.

40. É preciso confessar aqui que, para os que acreditam nas coisas do demônio,
este espírito de malícia revela coisas que acabam acontecendo; mas para os que
desprezam os sonhos que ele dá, ele não passa de um mentiroso; pois, sendo um
puro espírito, ele pode com mais facilidade conhecer as coisas que acontecem no
universo. Assim, por exemplo, sabendo que uma pessoa está perto de morrer,
eles podem em sonhos anunciar esta morte aos que se prestam às suas
insinuações.

41. Quanto às coisas futuras, disto nada sabem: sua presciência não chega a
tanto. E do mesmo modo, médicos hábeis e experientes poderiam também fazer
as mesmas previsões sobre a morte de certos doentes.

42. Saibamos que estes espíritos das trevas se transformam muitas vezes em
anjos de luz, aparecendo-nos em sonhos, sob a figura de algum mártir, a fim de
que, ao despertarmos, nos façam experimentar uma funesta alegria, inspirando-
nos uma opinião orgulhosa a nosso próprio respeito.

43. Eis a marca pela qual vocês poderão reconhecer a fraude e os artifícios dos
demônios em relação aos cuidados que os anjos têm para conosco: estes últimos,
nos sonhos de que são autores, não nos fazem ver outra coisa do que os suplícios
eternos, o juízo final, a temida separação dos bandidos e das pessoas de bem,
inspirando-nos um temor e uma tristeza salutares ao despertarmos.

44. Se acreditarmos nas coisas que os demônios nos inspiram durante o sono
eles brincarão conosco mesmo durante a vigília. Assim, devemos dizer que quem
crê nos sonhos não tem luz nem discernimento, e que é prudente e sábio que ele
não lhes dê nenhuma fé.

45. Não respeitem senão os sonhos que representam as penas eternas e os


julgamentos de Deus. Ser, ao contrário, os sonhos os levarem ao desespero,
tenham mais certeza ainda de que se trata de obra dos demônios. Este terceiro
degrau completa o símbolo da santíssima Trindade; e, se você tiver a felicidade de
ter subido nele, não olhe nem à direita nem à esquerda.

QUARTO DEGRAU

Da bem-aventurada e sempre louvável Obediência.

1. É apenas aos que combatem sob os estandartes de Jesus Cristo que


dirigiremos a palavra daqui por diante, de acordo com a ordem que
estabelecemos; pois assim como a flor antecede o fruto a fuga do século antecede
a obediência, seja porque renunciamos ao mundo por uma separação real, seja
porque o deixamos renunciando a seu espírito e suas máximas. É em cima destas
duas separações do mundo que a alma, sobre asas de ouro, se esforça para subir
aos céus; é o que o salmista cantava nestes versos tão doces e agradáveis: “Quem
me dará, dizia ele, asas semelhantes às da pomba, para que eu possa voar até o
céu e aí repousar deliciosamente depois de haver trabalhado, meditado e
praticado uma humildade profunda e uma obediência perfeita?[24]”.

2. Mas eu creio que cabe considerar aqui quais são as armas espirituais de que
se servem os generosos soldados de Jesus Cristo de que falamos aqui, e de
conhecer de que maneira eles seguram o escudo da fé e da confiança em Deus,
para afastar para longe deles todo pensamento de infidelidade e de desobediência:
como eles sempre mantêm a espada do espírito de Deus fora da bainha para
imolar todos os movimentos de sua própria vontade, como eles estão inteiramente
cobertos com as couraças da paciência e da doçura para amaciar todas as pontas
perigosas das injúrias, das zombarias e das palavras ultrajantes, e como eles
trazem sobre a cabeça o capacete da salvação, que consiste nas preces ferventes
de seu superior, que os defende das flechas incendiárias de seus inimigos. Vocês
verão como eles são firmes e inamovíveis em suas posições, e como apesar disso
eles desfrutam da deliciosa liberdade das crianças de Deus; pois enquanto eles
estão imóveis em suas preces contínuas, eles não deixam de exercer os deveres
da caridade em favor de seus irmãos em Deus.

3. A obediência é assim uma renúncia perfeita à própria vontade, que se faz


presente em ações exteriores; ou antes, é uma mortificação completa das paixões
numa alma cheia de vida, é um movimento que nos faz agir com uma perfeita
simplicidade e sem nenhuma preferência, é uma morte voluntária, uma vida
isenta de toda curiosidade, uma segurança no meio dos perigos, um excelente
meio de defesa para aparecer diante de Deus, uma segurança desejável na hora
da morte, uma navegação sem recifes nem tempestades, uma viagem feita em
segurança e sem dificuldade. Sim, a obediência dá à alma a paz e a calma contra
o temor da morte, enterra a vontade e faz viver a humildade; ela não resiste e não
contradiz jamais; ela não pronuncia nenhum julgamento e vê com igual
indiferença os bens e os males da vida presente. O homem que tiver mortificado
santamente seu coração sob o jugo da obediência nada temerá em suas ações, e
aparecerá diante de Deus com uma confiança segura. Enfim, a obediência é uma
renúncia completa às próprias luzes e ao próprio julgamento, pela submissão
perfeita às luzes e ao julgamento de um superior.

4. Entretanto, é preciso confessar, o começo desta mortificação, ou antes, desta


morte religiosa com a qual é preciso crucificar a vontade do coração, os sentidos
da carne, são acompanhados de muitos trabalhos e de penas; os progressos feitos
na obediência são ainda seguidos de alguns suores e algumas dificuldades; mas
ao final nos encontramos alegremente libertos de toda sensação penosa e
dolorosa, e entramos numa paz e numa tranquilidade perfeitas: pois a única pena
que experimenta este homem obediente , ao mesmo tempo morto e vivo, consiste
em saber que seguiu sua própria vontade em qualquer seja lá o que for: então ele
teme ter que responde a Deus pela determinação que tomou por conta própria.

5. Vocês, que para correr mais depressa e com mais desembaraço se descarregam
de tudo; que desejam carregar apenas o jugo de Jesus Cristo; que buscam por
meio da obediência se desfazer do pesado fardo que carregavam; que, para
usufruir da única verdadeira liberdade querem se tornar escravos da vontade de
outros; que, sustentados e protegidos pelo socorro de outros, se decidem a
atravessar o mar imenso que separa o tempo da eternidade: saibam, e não
esqueçam jamais, que escolheram o caminho mais curto e mais seguro, embora
seja o mais difícil e mais áspero, e que, seguindo-o, vocês não se perderão a
menos que se deixem confiar em seu próprio julgamento e se recusarem a se
deixar conduzir por seus superiores. Com efeito, todos eles chegaram ao final feliz
a que se propuseram, tendo sido, nas coisas boas, religiosas e agradáveis a Deus,
dirigidos pelas luzes e pela sabedoria de seus diretores: pois a obediência consiste
essencialmente em desconfiar de si mesmo em todas as coisas.

6. Assim, quando enfim tomamos a resolução de carregar o jugo de Jesus Cristo,


e de confiar a um pai espiritual o cuidado e a conduta de nossa alma, devemos,
se nos resta um mínimo de julgamento e sabedoria, ver e pesar bem quais são as
luzes e a prudência daquele a quem iremos confiar uma tarefa de tão grande
importância; e, se posso me expressar assim, devemos empregar todos os
recursos para conhecer o diretor que escolhemos, a fim de não termos a
infelicidade de cair nas mãos de um mau imediato, em lugar de um piloto
experiente; de um homem ignorante e doente, em lugar de um médico sábio e
prudente; de uma pessoa cheia de vícios, em lugar de um de virtude consumada,
e de um escravo das paixões ao invés de alguém perfeitamente liberto; e que
assim, pretendendo evitar Sila, não caiamos em Caribde, naufragando
lamentavelmente. De resto, uma vez entrados na carreira da piedade e da
obediência, devemos nos proibir absolutamente todo julgamento sobre o virtuoso
diretor que escolhemos, e de modo algum censurar sua conduta, ou suas ações,
ainda que possamos notar nele algumas imperfeições ou quedas; ora, nenhum
homem sobre a terra está isento! Mas se agirmos de outro modo, não obteremos
nenhum fruto de nossa obediência.
7. Que esta consideração nos faça compreender o quanto é necessário, para que
tenhamos uma perfeita e constante confiança em nossos diretores, gravarmos
profundamente em nossos espíritos e nossos corações as boas obras e as virtudes
que os vemos praticar; que nada possa apaga-las de nossa memória, e que,
quando os demônios nos tentarem nos levar a desconfiar das luzes e da
sabedoria dos diretores que nos conduzem, afastemos vitoriosamente esta
tentação por meio das lembranças de suas boas e santas ações. Pois não
podemos anular pela dúvida aquilo que nos decidimos a fazer sob suas ordens, e
com maior zelo e prontidão na medida em que tenhamos mais confiança naquele
que está no comendo. Podemos assegurar que aqueles que não têm confiança em
seus diretores estão muito perto de cair, se é que já não caíram, pois “tudo o que
não vem da confiança é pecado[25]”.

8. Assim, se lhes vierem pensamentos no sentido de julgar ou condenar seu


diretor, rejeitem-nos com tanto horror como devem fazer a um pensamento
desonesto com uma virgem. Esta tentação é uma víbora do inferno à qual vocês
devem fechar toda entrada, toda abertura, e recusar qualquer espaço em seus
corações. Digam a este dragão, com santo orgulho: “Saiba, infame impostor, que
não fui eu quem recebeu o poder de julgar as ações de meu pai espiritual, e que
eu sei perfeitamente que é ele quem tem o direito de julgar as minhas”.

9. Nossos ancestrais nos ensinaram que podemos encontrar nossas armas


espirituais no canto dos salmos, que os exercícios da oração são muralhas para
nos defendermos, que as lágrimas de penitência são um banho em que nossa
alma se purifica de suas manchas, e que, sem obediência, que é a confissão do
Senhor, ninguém, carregando seu pecados, verá a Deus.

10. Quem é perfeitamente submisso e obediente, proclama contra si mesmo; e se,


para agradar a Deus, ele obedece perfeitamente, ainda que o que faça não esteja
isento de imperfeição, de nada precisará prestar contas apo soberano Juiz. O
mesmo não podemos dizer de quem segue sua própria vontade em qualquer
coisa, ainda que lhe pareça estar cumprindo as ordens de seu superior; pois ele
prestará contas a Deus daquilo que fez, em seu ato de obediência, conforme sua
própria vontade. Se, nestas circunstâncias, o superior do mosteiro não cessar de
corrigi-lo e repreende-lo, nem tudo está perdido para ele; mas se por infelicidade
o superior ficar em silêncio, já não ouso dizer aqui o que eu penso.

11. Todos aqueles que, no Senhor, obedecem com simplicidade de coração,


percorrem alegremente a carreira religiosa; pois, evitando pela obediência toda
busca curiosa sobre as coisas que lhes são ordenadas, escapam das armadilhas e
dos embustes dos demônios.

12. A primeira coisa que devemos fazer em relação ao diretor que escolhemos é
fazer-lhe uma confissão exata de todos os pecados de nossa vida, e, se ele julgar a
propósito que façamos uma confissão pública, nos submetermos a esta ordem de
bom coração; pois esta confissão de nossas faltas, seja secreta, seja pública,
contribuirá em muito para cicatrizar e curar as feridas que elas produziram em
nossa alma.

História de um ladrão penitente.

13. Tendo eu ido um dia a um mosteiro cujo abade era um juiz e um pastor
excelente, ouvi ser pronunciado um julgamento terrível. Eis o que se passou:
enquanto eu estava no mosteiro, chegou nele um ladrão famoso, que pedia com
grandes brados para entrar e abraçar a vida monástica. O abade, como bom pai e
bom médico, lhe ordenou descansar por sete dias, para que também conhecesse
os usos e o modo de vida do mosteiro. Passado este lapso de tempo, chamou-o
em particular e lhe perguntou se ainda desejava permanecer no mosteiro e viver
segundo as regras da casa; Como ele respondeu afirmativamente com candura e
franqueza admiráveis, o abade lhe disse que seria preciso que ele fizesse uma
confissão completa e detalhada dos crimes com que manchara sua vida. Mal
tinha o abade lhe dado esta ordem, o ladrão apressou-se a executá-la,
declarando-lhe todos os seus pecados com sinceridade e prudência espantosas.
Mas para prová-lo ainda, o abade perguntou se ele consentiria em fazer a mesma
confissão diante da comunidade. O homem não hesitou um segundo,
respondendo afirmativamente, tão viva e sincera era sua aversão e a contrição
que sentia por seus pecados, e tamanha vergonha de declará-los tinha na alma;
ele chegou até a dizer que, se preciso fosse, os proclamaria no meio de
Alexandria. O santo abade, vendo tão feliz disposição, reuniu todos os monges na
igreja do mosteiro. Eram trezentos, e isto aconteceu no domingo após o
Evangelho. Ele fez vir o ladrão, que já estava justificado. Este tinha as mãos
amarradas às costas, o corpo vestido de cilício, a cabeça coberta de cinzas;
alguns irmãos o levavam por uma corda enquanto outros lhe batiam levemente
com varas. Como nem todos sabiam o que se passava, este espetáculo atemorizou
de tal modo os religiosos, que eles não puderam conter os gritos e os gemidos.
Quando o ladrão chegou à porta da igreja, o superior, cheio de zelo e de
sabedoria, lhe disse com voz forte e terrível: “Detenha-se, pois você não é digno de
entrar na casa de Deus!”. Estas palavras, saídas da boca deste prudente diretor,
que estava no interior do lugar santo, impuseram ao ladrão tamanho terror, que
ele pensou não ouvir uma voz humana mas um golpe de trovão e, tomado de
temor e de horror, caiu com o rosto por terra; isto ele nos assegurou muitas vezes
depois sob juramento. Ora, enquanto o ladrão penitente estava assim
prosternado, lavando o chão com uma torrente de lágrimas, o abade, que com
estas ações só buscava a salvação deste infeliz, e que queria apresentar a seus
monges um modelo eficaz de uma profunda e salutar humildade, lhe ordenou que
declarasse em ordem, com detalhes e diante de todos, os crimes que cometera e
as faltas que fizera; ele o fez, tremendo, e causando nos que o ouviam confessar
crimes horríveis um espanto e um terror inexprimíveis: pois ele confessou não
apenas os pecados que cometera violando as leis ordinárias da natureza e
levando a brutalidade além do razoável e racional, mas ainda envenenamentos,
homicídios e outros atos tão execráveis que não é dado aos ouvidos escutar, nem
à pena escrever. Quando ele terminou, o abade ordenou que cortasse o cabelo
que fosse recebido em meio aos irmãos.

14. Cheio de admiração pela sabedoria deste santo homem ousei perguntar-lhe
em particular quais eram as razões que o haviam levado a dar a seus monges um
espetáculo tão extraordinário. Eis a resposta que me deu este excelente médico
de almas: “Agi assim, disse ele, por duas razões principais. A primeira, para que
este penitente, pela vergonha temporal e passageira que sofreu confessando
publicamente seus pecados, se preservasse da confusão futura e eterna; e foi isto
que felizmente lhe aconteceu, pois ele ainda não havia se levantado do chão e
Deus generosamente o perdoara de todos seus crimes; e você não deve duvidar
disto, caro abade João, pois um dos nossos monges que estava presente e muito
atento me garantiu ter visto um homem de aspecto terrível que em uma das mãos
tinha um papel escrito e na outra uma pena com a qual riscava sobre o papel
cada pecado, na medida em que este penitente, prosternado por terra, ia
confessando. E isto não deve nos surpreender, pois está escrito: ‘Tão logo, ó
Deus, tomei a resolução de confessar minhas iniquidades diante de meu Deus e
de mim mesmo, você me perdoou do negrume e da impiedade de minhas
faltas[26]’. A segunda razão para eu ter me comportado deste modo é que tenho
em minha comunidade alguns monges que ainda não confessaram suas faltas, e
aproveitei a ocasião para incentivá-los a fazê-lo; pois, sem a confissão, ninguém
pode receber o perdão dos seus pecados”.

Outras mostras de virtude.

15. Mas, além daquilo que contei, eu vi neste abade e no mosteiro que ele dirigia
com tanta prudência e sabedoria muitas outras coisas que me deixaram
espantado e admirado, e que merecem ser contadas. Tentarei ao menos contar as
principais; pois fiquei muito tempo nesta casa, para me instruir exatamente na
vida, na disciplina e na conduta dos monges que a habitavam; e lhes asseguro
que considerando o ardor com que esses pobres mortais se esforçavam para
imitar a vida e a perfeição das inteligências celestes, ficava fora de mim, e meu
espanto não tinha limites.

16. Uma santa amizade os mantinha estreitamente unidos, a caridade que


tinham uns pelos outros os ligava por cadeias indissolúveis; e o que me
espantava era que sua afeição era isenta de toda familiaridade e toda leviandade,
seja em suas relações com outros, seja em suas conversas. Acima de tudo, eles
tinham o maior cuidado em nunca ferir a consciência dos irmãos. Se alguma vez
um irmão deixava transparecer qualquer aversão por outro, o abade o purgava do
mosteiro, enviando-o em exílio para outra casa, como um miserável. Ora, eis o
que aconteceu diante de meus olhos: um dia um monge disse algumas palavras
injuriosas a outro; logo que o abade soube disso, ordenou que ele fosse expulso
do mosteiro, dizendo-lhe que não era possível manter dois demônios na mesma
casa, um visível e um invisível, ou seja, um demônio real e um homem que era
semelhante a um demônio.

17. Dentre estes respeitáveis monges vi outras coisas que podem ser úteis a nós e
nos encher de admiração: por exemplo, lembro de uma sociedade de irmãos,
formada no espírito de Deus e fortificada na mais perfeita caridade. Eles
partilhavam tudo o que tinham de mais excelente, fosse na ação ou na
contemplação; eles se dedicavam com tanto ardor aos exercícios da vida religiosa
que quase não precisavam de opiniões nem conselhos de seu superior, pois tanto
eles estimulavam uns aos outros no fervor e numa diligência quase divinos. Eles
haviam combinado, regrado e determinado algumas práticas de piedade muito
especiais; assim, por exemplo, se durante a ausência do abade um deles falasse a
outro de modo inconveniente ou o condenasse por um julgamento inconsiderado,
ou mesmo dissesse palavras inúteis, logo um irmão o advertia de sua falta por
um sinal secreto e o reconduzia ao dever; se este monge parecesse não entender
ou não se visse o sinal, o que o advertira devia se prosternar e se retirar. Nos
momentos de recreação o pensamento da morte e do juízo era o objeto habitual
de suas conversas.

18. É impossível não lhes falar aqui da virtude rara e singular do irmão
encarregado de preparar os alimentos. Como nas ocupações tumultuadas de seu
cargo eu o via num recolhimento admirável e sempre banhado em lágrimas, pedi-
lhe que não me censurasse por lhe perguntar de que maneira teria ele obtido de
Deus tão grande favor. Vencido pela minha insistência, ele me deu enfim esta
resposta: “É que em meu posto eu nunca me vejo servindo os homens, mas a
Deus mesmo; eu me considero indigno de qualquer repouso, qualquer
tranquilidade; e, vendo diante de mim todos os dias o fogo material, eu me lembro
sem cessar do fogo eterno”.
19. Vejamos ainda outra prática de piedade não menos rara e espantosa. À mesa,
estes fervorosos monges não interrompiam suas santas meditações e, com sinais
particulares advertiam uns aos outros a que renovassem o espírito de prece e
oração; e não era só aí que agiam assim, mas todas as vezes em que se
encontravam e se reuniam.

20. A caridade entre eles era admirável; pois, se acontecia a um deles cometer
alguma falta, os outros o procuravam pedindo-lhe com insistência que
descarregasse sobre eles o cuidado e a pena de prestar contas ao superior de tal
fraqueza, para que recebessem a reprimenda e a punição. Desta forma o abade,
que conhecia quais eram os sentimentos de caridade que reinavam nos corações
de seus monges, não podendo ignorar que o culpado não estava entre os que se
apresentavam diante de si, os repreendia com menos severidade e os punia com
menos rigor; em algumas ocasiões ele nem tentava descobrir o autor da falta.

21. De resto, nunca os ouvi conversar sobre assuntos vãos, ridículos ou cômicos.
Quando acontecia que alguém tivesse um pequeno contencioso com um irmão,
outro irmão que se achasse presente, prosternando-se por terra, colocava fim à
questão; se este método não funcionasse e não fizesse cessar o azedume e o
ressentimento, o padre que substituía o abade era avisado, a fim de que tomasse
as medidas eficazes para conseguir uma reconciliação perfeita antes do por do
sol. Enfim, se este último recurso fosse inútil e o coração dos irmãos ofendidos
permanecesse inflexível, era-lhes proibido todo alimento até que se
reconciliassem perfeitamente; em último caso, os irmãos contendores era
impiedosamente expulsos do mosteiro e da comunidade dos irmãos.

22. Ora, esta disciplina, tão regular e louvável, não era estéril, como se pode
pensar: ela produzia grandes benesses e trazia as maiores vantagens; pois a
maior parte dos irmãos faziam grandes progressos tanto na vida ativa como na
contemplativa, e, cheios de luz e discernimento, eram de uma modéstia perfeita e
de uma humildade profunda. Via-se assim no mosteiro um espetáculo celeste,
capaz de trazer a maior admiração. Ali estavam anciãos, cujo rosto brilhava com
venerável majestade, correr como crianças para receber as ordens do superior,
colocando toda sua glória e toda sua felicidade em executá-las com escrupulosa
exatidão e inteira submissão.

23. Penetrado de re3speito pelos monges que já haviam passado de cinquenta


anos em exercícios constantes de obediência, um dia não pude me impedir de
lhes perguntar que consolo extraíam da prática tão penosa e dolorosa desta
virtude. Ora, uns me responderam que pela prática da obediência haviam descido
a um tal ponto de humildade que se tornaram isentos de qualquer outro combate
e experimentavam continuamente as doçuras de uma profunda paz; outros me
confessaram que eles tinham a felicidade de não experimentar a menor
perturbação em meio a injúrias e ultrajes.

24. Dentre esses homens respeitáveis e dignos de eterna memória, ainda observei
alguns anciãos cuja cabeça era branca pela idade e que mais se assemelhavam a
anjos do que a homens. Ora, estes anciãos, conduzidos e dirigidos pelo espírito
de Deus, santificados pelos esforços contínuos de sua boa vontade, haviam
atingido o mais alto grau de inocência, simplicidade e sabedoria; pois, enquanto
que os hipócritas apresentam duas faces, uma que podemos ver e outra oculta e
invisível, o homem amigo da simplicidade não apresenta senão uma única e
mesma face que manifesta o que ele é. Estes anciãos estavam ainda bem longe de
anunciar o enfraquecimento da razão e de apresentar o menor sinal que
mostrasse o caráter desta leviandade pueril que, no século, censuramos aos
velhos. Neles não víamos senão uma mansidão encantadora, uma bondade
arrebatadora e uma alegria cheia de gravidade; em sua conduta e em suas
conversações nada percebíamos de dissimulado, estudado, falso ou pouco
sincero, coisa raríssima de encontrar entre os homens. Suas santas almas não
tinham senão uma ambição, a de repousar em Deus e de obedecer a seu
superior; é por isso que para seus superiores eles eram como filhos sem malícia e
sem fraude, ao mesmo tempo em que estavam cheios de vigor e de coragem
contra os demônios e os vícios, perseguindo a uns e outros quase com furor.

25. Mas oh! pai santo, e vocês, rebanho fiel tão amado por Deus, toda minha vida
não seria bastante se eu quisesse contar aqui todas as virtudes e as ações
verdadeiramente celestes desses monges; entretanto, acho importante repassar a
vocês seus trabalhos e seus suores: esta visão será capaz de inflamar seus
corações com um nobre ardor pelo céu, mais do que as instruções que lhes dou e
as exortações que dirijo a vocês. De resto, todo mundo sabe que muitas vezes as
coisas defeituosas são corrigidas por aqueles que são mais perfeitos. O que eu
lhes peço que me concedam, é que acreditem que tudo o que eu lhes contar aqui
não contém nem fábula nem ficção, mas que é a exposição da mais exata
verdade: pois eu sei que uma simples dúvida sobre a veracidade de um fato basta
para impedir que dele se retirem frutos e benefícios. Mas retomemos nosso
discurso.

História de Isidoro.

26. Nos tempos em que estive no mosteiro conheci um homem de qualidade que
se chamava Isidoro. Ele havia sido um dos principais magistrados de Alexandria;
mas tendo generosamente renunciado aos negócios do século, em cuja gestão
fizera grande renome e uma brilhante reputação, ele se retirou para esta casa
religiosa. O santo abade que o recebeu percebeu logo que toda a vivacidade de
seu espírito e todo o ardor de seu coração haviam sido voltados para o mal; que
ele era violento, impiedoso, arrogante e cheio de si. Mas a sabedoria e a
prudência deste excelente superior permitiram-lhe romper as amarras com que
os demônios mantinham cativo a este homem; e eis de que maneira ele o fez:
“Isidoro, disse-lhe ele, se você tomou a firme resolução de levar o jugo de Jesus
Cristo, quero antes de mais nada que você se exercite na prática da obediência”.
Isidoro respondeu: “Santíssimo Pai, eu me entrego a você para ser tão submisso
quando o ferro na mãos do ferreiro”. Esta resposta satisfez e encorajou o abade,
que, encantado com a comparação, colocou-o a seguir como sobre uma bigorna.
“Muito bem, meu caro irmão, lhe disse o abade, eu considero conveniente e lhe
ordeno que se mantenha à porta do mosteiro e que se ponha de joelhos diante de
todos os que entram e saem, dizendo: meu Pai, ore por mim, que não passo de
um epilético espiritual”. Isidoro obedeceu ao abade com a mesma submissão e a
mesma exatidão com que os anjos obedecem a Deus. Assim ele passou sete anos
consecutivos. Ora, depois de ter passado este tempo neste duro e penoso
exercício e de ter adquirido uma obediência perfeita, uma humildade profunda e
uma viva compunção por seus pecados, o abade, do alto de sua sabedoria,
considerou que por estas sólidas virtudes este homem se tornara digno de ser
recebido entre os irmãos e de poder entrar para a ordem sagrada; mas Isidoro,
que durante todo este tempo havia praticado uma paciência extraordinária e uma
submissão generosa, fez inúmeras instâncias, por si, pelos outros, por mim
próprio, no sentido de que lhe fosse permitido terminar sua carreira naquele
mesmo lugar e nos mesmos exercícios, dando a entender que ele acreditava não
ter mais muito tempo de vida e que ele estava a ponto de deixar este mundo, e,
conforme se conta, o abade lhe concedeu aquilo que solicitava com tanto zelo e
ardor. E dez dias depois, este ilustre penitente entrava na posse da glória eterna
que havia merecido pelo desprezo perfeito que tivera pela glória temporal; e sete
dias depois de sua morte, conforme prometera a ele, chamou para o céu o
porteiro do mosteiro, pois lhe havia dito logo antes de morrer: “Se eu tiver
qualquer poder diante de Deus no céu, logo estaremos reunidos junto dele, para
não nos separarmos mais”. Ora, foi isto que aconteceu, porque o Senhor quis
mostrar, de um modo sensível e dramático, a excelência e o mérito da obediência
pela qual ele não teve vergonha de fazer exatamente e de coração as coisas baixas
e humilhantes que lhe haviam sido ordenadas, e a excelência e o mérito de sua
profunda humildade, com a qual imitara com tanta perfeição o Filho de Deus.

27. Ora, enquanto Isidoro ainda vivia assim à porta do mosteiro, eu me permiti
um dia lhe perguntar quais eram os pensamentos que enchiam seu espírito e
quais sentimentos agitavam seu coração. Como ele viu que, respondendo,
contribuiria para minha salvação e me seria útil de alguma maneira, ele não
hesitou em me dar a seguinte resposta: “No primeiro ano, disse-me ele, eu repeti
para mim mesmo que haviam sido os meus pecados que me haviam vendido e me
tornado escravo. Esta consideração me perfurava o coração de amargura e dor, e
me levava a me violentar para cumprir as ordens que me haviam sido dadas; é
por isso que, me prostrando aos pés dos meus irmãos, eu os lavava de lágrimas, e
algumas vezes com sangue. Depois deste primeiro ano, tive esperança de que
Deus recompensaria minha submissão e minha paciência, o que me fez cumprir
sem esforço minha penitência. Enfim, nos cinco últimos anos eu não senti em
mim mesmo senão um vivo sentimento de minha indignidade, que me fazia
considerar-me indigno não apenas de entrar no mosteiro, mas até de permanecer
aonde estava; de gozar da presença e da conversa dos irmãos; de ser admitido a
participar dos santos mistérios; e até mesmo de ser visto pelas pessoas, quem
quer que fossem. É por isso que, mantendo meus olhos e meu coração voltados
para a terra, eu pedia aos que entravam ou saiam, que orassem a Deus por mim”.

História de Lourenço.

28. Um dia em que eu estava à mesa junto ao superior, ele se inclinou docemente
para mim e me disse ao ouvido: “Quer que eu lhe mostre, num ancião
extremamente velho, uma razão e uma sabedoria totalmente celestes?”. Como eu
lhe fiz sinal de que o desejava e lhe pedi que o fizesse, ele chamou um bom padre
chamado Lourenço, que estava sentado em outra mesa. Este respeitável monge
passara quarenta e oito anos no mosteiro e era o segundo em dignidade na igreja
da comunidade. Ele se colocou imediatamente ao lado do superior e pôs-se de
joelhos, segundo o costume da casa, para receber a bênção; depois se levantou
para receber suas ordens, mas o abade não lhe disse nada e o deixou em pé
diante da mesa, sem lhe dar de comer. Isto aconteceu no início da refeição. Ele
passou assim uma hora ou mais, imóvel e sem movimento, o que me causou tal
confusão que eu não conseguia nem olhar este bom padre todo branco de velhice,
pois ele tinha oitenta anos. Quando a refeição terminou, seu superior lhe ordenou
que fosse encontrar Isidoro, o grande penitente de que falamos, e lhe recitasse
estas palavras do salmista: “Eu esperei um longo tempo pelo Senhor, e não deixei
de esperá-lo[27]”.

29. Ora, como eu sou muito malicioso, não perdi ocasião para falar com este
venerável ancião e perguntar-lhe em que pensava ele durante o tempo em que
permaneceu de pé diante da mesa. “Eu vi, respondeu-me, o próprio Jesus Cristo
na pessoa de meu superior, e assim não considerei que a ordem me tivesse sido
imposta a partir de um homem, mas de Deus; é por isso, caro padre João, que eu
estava bem longe de me ver em pé diante de uma mesa ao redor da qual estavam
reunidos simples mortais; mas imaginando estar diante do altar do Senhor, eu
lhe dirigi fervorosas preces, tanto quanto pude; e posso lhe assegurar que sequer
me veio ao espírito um mau pensamento contra meu superior, tamanha é a
confiança que tenho nele, e tamanha afeição lhe dedico; pois, acrescentou ele, ‘o
amor não pensa mal de ninguém[28]’. De resto, meu Pai, saiba que o demônio
não encontra por onde entrar num coração que está inteiramente devotado e
consagrado à simplicidade, à inocência e à bondade”.

História de um ecônomo.

30. Como Deus, em sua Misericórdia e sua Justiça, havia dado aos religiosos
deste mosteiro que era um sábio pastor e um terno salvador, também dera um
ecônomo, um administrador admirável; pois se tratava de um homem cheio de
moderação e prudência, de doçura e de paciência, como poucos podemos
encontrar. Ora, como o abade queria que o exemplo de sua humildade e
paciência servisse à salvação dos irmãos, repreendeu-o um dia severamente,
ainda que ele fosse inocente, e levou esta severidade a ponto de expulsá-lo
vergonhosamente da igreja. Sabendo eu que não tinha sido ele quem cometera a
falta pela qual o estava punindo com tanto rigor, chamei à parte o superior para
me colocar como advogado de seu ecônomo; mas este sábio diretor me
respondeu: “Sei tão bem como você, meu Pai, que ele é inocente; mas assim como
não convém a um pai, e é até uma coisa condenável, negar ao filho que tem fome
um pedaço de pão, também o pai espiritual prestará a si mesmo e a seu inferior
um mau serviço, se não buscar nele a todo momento novos méritos e novas
coroas, fazendo-lhe reproches e apresentando-lhe humilhações, seja cobrindo-o
de desprezo, seja lhe fornecendo mortificações, seja enfim exercitando-o nas
repreensões e nas condenações, na medida em que o saiba capaz de suportar a
tudo com paciência e resignação. Do contrário, este inferior será privado de três
grandes benefícios: o primeiro será o de não receber a recompensa de uma
correção caridosa sofrida com paciência; o segundo, que seus irmãos sejam
privados dos bons efeitos que seu exemplo produzirá neles; enfim o terceiro, que
é também o pior mal que lhes pode acontecer, será que os inferiores percam
pouco a pouco a doçura e a paciência, pois muitas vezes acontece que estes, que
em seus trabalhos espirituais e em suas humilhações parecem ser em verdade
homens de paciência, se não forem de tempos em tempos exercitados,
repreendidos e humilhados por seu superior, que os vê como pessoas virtuosas e
perfeitas, caem depressa num funesto relaxamento; e suas almas, embora seja de
boa terra, úmida e fértil, se não forem regadas periodicamente com a água da
humilhação, perdem depressa e facilmente sua fertilidade, acabando por produzir
não mais do que os arbustos e espinhos de orgulho, do desregramento dos
costumes e de uma confiança presunçosa, que expulsa todo temor a Deus. Isto
não era ignorado pelo grande Apóstolo, quando deu este conselho a seu querido
Timóteo: ‘Insista, dizia ele, no tempo oportuno e no inoportuno.’[29]”

31. A todas estas razões eu repliquei que poderia acontecer por circunstâncias
infelizes e sobretudo pela fraqueza da natureza humana que muitos, vendo-se
repreendidos sem razão – e até com razão – poderiam abandonar o mosteiro; mas
a resposta deste tesouro de sabedoria não se fez esperar: “Uma alma, respondeu
ele, que Jesus Cristo ligou a seu pastor pelas cadeias do amor e da fé, conservará
invariavelmente esta santa união; ela preferirá derramar todo o seu sangue a
rompê-la, sobretudo se Deus dele se serviu para curá-la das feridas que o pecado
fez nela; pois ela se recorda que está escrito: ‘Nem os anjos, nem os principados,
nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que é nosso
Senhor Jesus Cristo[30]’; e se esta alma não está ligada, amarrada e unida
inseparavelmente de seu diretor, não consigo conceber como ela poderá, de um
modo útil, permanecer num lugar aonde não a retém senão uma obediência falsa
e enganadora”. É preciso confessar que este homem não se enganava, porque,
pelos meios de que se utilizava, ele dirigia e conduzia seu mosteiro com sucesso,
oferecendo e consagrando a Jesus Cristo um grande número de almas, que eram
como hóstias vivas.

História de Abacir.

32. Consultemos assim a Sabedoria de Deus, pois ela se encontra até mesmo nos
vasos de barro; é isto o que deve nos causar a maior admiração. É a resolução
que me fez tomar a conduta de alguns jovens religiosos, pois eu fiquei fora de
mim ao ver com que vivacidade de fé, com que constância, com que paciência e
força de alma eles sofriam ser repreendidos, mortificados e desprezados, não
apenas por seu superior, mas também por irmãos que estavam bem abaixo deles.
Havia no mosteiro um irmão que chamava minha atenção de maneira especial:
ele se chamava Abacir e tinha pouco mais do que quinze anos. Eu percebi que ele
era quase sempre maltratado pelos outros monges, e não se passava um dia sem
que aqueles que serviam a mesa o expulsassem do refeitório, porque ele era
naturalmente falador. Procurei uma ocasião para conversar com ele e, tendo-o
encontrado, perguntei-lhe insistentemente por que razões o expulsavam assim do
refeitório e o mandavam dormir sem ter comido nada. “Creia-me, padre,
respondeu-me com simplicidade, os monges me tratam assim para conhecer
minhas disposições interiores e para saber se eu estou pronto para levar uma
vida solitária; não é por severidade, mas pelo caridoso desejo de me testar que
eles agem assim. É por isso que, conhecendo perfeitamente as piedosas intenções
de nosso excelente superior e dos outros padres, eu sofro tudo com alegria e
prazer. Faz quinze anos que estou no mosteiro, e me tratam como você viu.
Quando cheguei a esta casa, os padres esconderam de mim que eles testam
durante trinta anos aqueles que renunciaram ao mundo; e certamente, caro
padre João, não é sem boas razões que eles mantêm esta conduta; pois não é no
cadinho e pelo fogo que se passa o ouro para o depurar e polir?”.

33. Este corajoso Abacir viveu ainda por dois anos durante minha estada nesta
comunidade e, como ele estava a ponto de deixar este mundo, disse aos irmãos
que cercavam seu leito de morte: “Eu lhes agradeço, irmãos, e dou graças a Deus,
por me haverem tratado como fizeram; pois há dezessete anos vocês me puseram
ao abrigo das provas e das tentações do demônio”. Estas palavras causaram uma
viva impressão no espírito do abade, este justo apreciador das virtudes de seus
irmãos, que ele colocou Abacir no grupo dos confessores e fez com que
colocassem seu corpo junto aos dos santos padres que repousavam no interior do
mosteiro.

História de Macedônio.

34. Seria uma verdadeira pena para todos os que têm zelo e amor pela prática da
virtude, se eu não dissesse nada aqui dos santos exercícios e dos grandes
trabalhos de Macedônio, primeiro diácono deste mosteiro. Este grande servidor de
Deus, tão favorecido por seu divino Mestre, solicitou ao abade, dois dias antes da
solenidade de Reis, a que os gregos chamam de Teofania, permissão para ir a
Alexandria por causa de negócios importantes que exigiam sua presença. Foi-lhe
dada a permissão, mas com a condição expressa de retornar ao mosteiro em
tempo de preparar tudo o que  era necessário para a solenidade. Mas o demônio,
inimigo jurado da virtude, dez surgir tantos obstáculos, que Macedônio não
conseguiu retornar no prazo estipulado, chegando no dia seguinte à festa. Para
puni-lo pela desobediência, o abade suspendeu-o de suas funções e o condenou a
servir entre os noviços. Ora, este santo diácono, grande por sua paciência e maior
ainda por sua constante humildade, recebeu esta ordem e aceitou a penitência
com a mesma calma e tranquilidade de espírito como se as coisas não se
passassem com ele. Depois de ter passado quarenta dias entre os noviços, o
abade resolveu devolver-lhe o cargo e suas honoráveis funções; mas no dia
seguinte, quando o abade o restabeleceu em sua dignidade, ele foi procurar seu
superior para pedir-lhe insistentemente a que o deixasse naquele estado de
humildade e penitência, e que o deixasse viver no meio dos irmãos mais jovens
até o fim de sua vida. Para obter esta graça, ele assegurou ter tido a infelicidade
de cometer uma grande falta durante sua viagem a Alexandria, que o tornava
indigno de perdão. Embora o santo abade soubesse perfeitamente que isto não
acontecera, e que seu diácono só alegava isto como pretexto para poder
permanecer no estado de rebaixamento em que se encontrava, cedeu ao louvável
desejo, feito com fervor e humildade. Assim é que víamos então, no meio dos
jovens monges, um homem venerável pela dignidade de sua idade, pedindo-lhes o
auxílio e a assistência de suas orações, a fim de obter de Deus o perdão pela
execrável desobediência de que se tornara culpado em sua viagem a Alexandria.
Este santo diácono, por indigno que eu fosse, ensinou-me um dia a razão
particular que o tinha feito desejar permanecer neste estado tão humilhante:
“Jamais, disse-me ele, me vi menos atacado por perturbações interiores, nem
menos agitado pelos trabalhos da guerra espiritual que fazemos ao demônio, nem
jamais experimentei tão deliciosamente as doçuras abundantes da luz celeste,
como a partir do momento em que fui posto no exercício desta penitência”.

História do ecônomo do mosteiro.

35. “É característico dos anjos, acrescentou ele, não estar mais expostos a
quedas, e mesmo, conforme alguns doutores ensinam, não poderem cair; é típico
dos homens cometerem faltas, mas pela graça de Deus eles podem se levantar
todas as vezes em que lhes acontece estas infelicidades. Ao contrário, os
demônios caíram para nunca mais se levantarem desta queda”. Eis agora o que
me contou o ecônomo deste mosteiro célebre: “Quando eu era jovem, ele disse,
era encarregado de cuidar dos animais de uma casa, e tive a infelicidade de
cometer uma falta enorme; mas, como eu tinha por costume jamais manter
oculto em meu coração a serpente que nele se escondera, tomei-a pela cauda
assim que a percebi e a mostrei ao médico espiritual de minha alma; eu lhe
contei a enganadora ação da qual fui considerado culpado. Olhando-me com um
rosto sorridente e me dando um tapinha, ele me dirigiu estas palavras: ‘Vai, meu
filho, continue com seus exercícios costumeiros como dantes, e nada tema’. Eu
confiei inteiramente nas suas palavras; e alguns dias depois tive a certeza de
minha cura. A partir daí caminheis pelas vias do Senhor com grande alegria,
embora sempre com temor e com tremor”.

36. Alguns doutores observaram sabiamente que, como existem certas diferenças
essenciais entre todas as criaturas às quais Deus deu existência, também nas
casas religiosas vemos diferentes modos de caminhar e de avançar na carreira e
na prática da virtude, e diversas inclinações más que é preciso combater e
mortificar. É assim que o sábio médico que presidia este mosteiro, tendo
percebido que alguns monges se deliciavam, por ostentação e vaidade, em
aparecer diante dos seculares quando estes vinham ao mosteiro, os humilhava
severamente em sua presença, tanto lhes ordenando o que havia de mais baixo e
mais desprezível quanto reprovando-os ignominiosamente, de modo que estes
monges eram obrigados, para evitar esta afronta, a se esconder assim que viam
chegar as pessoas do mundo. Ora, esta conduta produzia m efeito espantoso,
pois ela fazia com que a vanglória perseguisse a vanglória, impedindo estes
monges de dar espetáculo aos outros.

História de são Menas.

37. Como Deus, por uma graça insigne, não quis me privar do auxílio das orações
de um santo padre que se encontrava nesse mosteiro, ele o chamou sete dias
antes de minha partida. Este santo homem se chamava Menos. Ele havia
passado cinquenta e nove anos nesta casa, e havia exercido sucessivamente
todos os cargos aí estabelecidos, sendo então o primeiro depois do abade. Ora, no
terceiro dia depois de sua morte, enquanto celebrávamos seus funerais e
fazíamos as orações de costume, o lugar onde estava seu santo corpo foi
subitamente tomado por um perfume doce e de suave odor. O abade, que estava
presente, nos ordenou que abríssemos o caixão e então vimos que de seus
veneráveis pés saíam como que duas nascentes de óleo odorífico. Então este
excelente mestre das vias religiosas nos dirigiu estas palavras: “Vocês todos são
testemunhas, disse-nos ele, deste milagre; mas saibam que seus trabalhos e seus
suores tiveram também um perfume delicioso e agradável a Deus”.

38. Ele tinha razão; pois os padres se puseram a contar algumas excelentes ações
deste santo homem, e, entre outras, que um dia o abade resolvera colocar à prova
sua paciência celestial. Eis o fato: retornado de fora numa tarde, ele tinha ido se
prosternar aos pés do abade, a fim de lhe pedir a bênção, conforme o costume;
mas o abade deixou-o assim prosternado até a hora do ofício, quando o abençoou
e permitiu que se levantasse. Depois disto ele lhe fez severas admoestações sobre
sua ostentação, sua vaidade e sua pouca mansidão e paciência. Ora, o abade só
se comportava assim por saber com quanta coragem e generosidade este santo
ancião sofreria este tipo de humilhante mortificação, e o quanto seu exemplo
serviria à edificação dos outros. Foi o que me assegurou em particular um dos
discípulos deste santo monge, acrescentando que lhe perguntara em outra
ocasião se ele não tinha adormecido enquanto se encontrava prosternado aos pés
do abade; e ele lhe respondeu candidamente que não, mas que ele havia recitado
o saltério inteiro.

39. Não cometerei nenhuma falta se enfeitar aqui meu discurso com o relato de
um fato que o fará brilhar como uma esmeralda faz brilhar uma coroa. Aconteceu
que, enquanto eu vivia no meio dos ilustres padres deste mosteiro, a conversa
caiu sobre a vida dos anacoretas; então eles me disseram com o rosto cheio de
doçura e benevolência: “Quanto a nós, caro padre João, por sermos tão grosseiros
e tão pouco espirituais, acreditamos que não devemos abraçar senão a vida que
mais nos convém. É por isso que empreendemos uma guerra proporcional à
nossa fraqueza, e consideramos que é mais vantajoso para nós não termos que
combater senão contra homens que se enraivecem e agridem, mas que depois
voltam a si e se acalmam, do que demônios que estão em permanente furor e
armados contra o gênero humano”.

40. Ora, dentre estes homens de eterna memória, que me amava muito em Deus
e que me falava com grande liberdade. Um dia ele me disse, com afeição especial:
“Se você, meu pai, que é um sábio, experimentar a força daquele que, no
arrebatamento de seu coração, exclama: ‘tudo posso naquele que me fortalece!
[31]’; se o Espírito Santo descer sobre você como um orvalho de graças e pureza,
como desceu antes sobre a santa Virgem, e se a força do Altíssimo o rodear de
paciência, cinja os rins, a exemplo do Homem-Deus, com o linho branco da
obediência e, como Ele, levante-se da mesa, ou seja, saia da solidão; para lavar os
pés dos seus irmãos na água pura da compunção e da penitência, ou de se atirar
a seus pés com o sentimento da humildade mais profunda; coloque nas portas de
seu coração sentinelas que não dormem jamais e que jamais são coniventes com
o inimigo; detenha a instabilidade e a leviandade de seu espírito, fixando
invariavelmente, malgrado as distrações e a dissipação que lhe causam sem
cessar a agitação dos negócios e das importunações dos sentidos; conserve um
repouso perfeito no meio dos movimentos e cuidados com a vida se agita
continuamente; e, o que é mais difícil e mais admirável, permaneça firme e imóvel
no seio das perturbações e das tempestades que se sucedem todo o tempo.
Prenda sua língua com as cadeias de um silêncio perfeito, e impeça-a de cair em
disputas ácidas e em contradições audaciosas; combata setenta e sete vezes por
sai  contra esta soberana impiedosa e tirânica; carregue a cruz de Jesus Cristo
em seu coração, e, assim como ´pregamos um prego na madeira, pregue seu
espírito nela, de sorte que ele seja capaz de resistir a todos os golpes, a todas as
tentações, a todas as afrontas, a todas as calúnias, a todas as intrigas e a todas
as injustiças que possam lhe acontecer, de modo a nunca ser ferido, nem
ofendido, nem agitado, nem afligido, nem desencorajado, nem abatido, mas
persevere imutavelmente na paz e na calma. Despoje-se de toda sua vontade,
como de uma veste de ignomínia, e entre nu na carreira celeste; e, o que é bem
mais raro e mais difícil, permaneça numa confiança total e inquebrantável
naquele que deve e que vai coroá-lo após a vitória, e que esta seja tal que não
possa ser penetrada nem pelas flechas da dúvida nem pela lanças da
desconfiança. Mortifique seus sentidos com as austeridades da temperança, e
cuide para não sofrer com seu furor audacioso e insolente. Sirva-se
vantajosamente da meditação da morte para combater e vencer a curiosidade dos
olhos, que pedem sem cessar a contemplação da beleza das criaturas sensíveis.
Faça de modo a reter a indiscrição e a injustiça de seu espírito, que, enquanto
você se entrega à negligência mais condenável, o leva a julgar mal as ações e a
conduta dos seus irmãos; e se esforce para exercer sempre uma caridade sincera
para com todos. É por meio dessas coisas que saberemos que você é realmente
discípulo de Jesus Cristo, segundo a palavra: ‘Todo o mundo saberá, disse Ele,
que são meus discípulos, se na sociedade em que se reúnem amarem uns aos
outros e derem testemunho de uma afeição mútua[32]’. Venha, venha, venha
para cá, acrescentou este excelente amigo, fixe aqui sua moradia, beba conosco
da água amarga das admoestações e das humilhações; ela logo se tornará doce e
salutar. Lembre-se de que Davi buscou por longo tempo aquilo que pudesse ser
mais doce e mais agradável ao homem, sem poder encontrar; e foi perguntando a
si mesmo que coisa seria esta que ele deu a si mesmo esta admirável resposta:
‘Como é bom e agradável viver em meio aos meus irmãos![33]”. Mas se Deus não
considerar a propósito nos fazer participar da excelente benesse desta paciência e
desta obediência, ao menos nos será benéfico reconhecer nossa fraqueza e nossa
miséria, a fim de que, se tivermos que passar nossa vida longe desta carreira,
permaneçamos cheios de estima pelos que a percorrem, e, por intermédio de
nossas preces, peçamos a Deus as graças de que eles necessitam para combater
corajosamente e obter a vitória”. É assim que este bom padre, este excelente
mestre da vida espiritual me convenceu por passagens e autoridades extraídas do
Evangelho e dos Profetas, e pela terna afeição que ele demonstrava, que nada
havia de comparável à recompensa e à coroa que se pode obter vivendo sob o jugo
da obediência. Antes de partir deste paraíso de delícias para regressar aos
arbustos e espinheiros das minhas palavras, que não podem senão lhes
desagradar e ser-lhes inúteis, quero ainda lhes dizer algumas coisas dos
religiosos deste mosteiro, e das raras virtudes que eles praticavam vocês
encontrarão grandes benefícios espiritais.

41. Tendo o abade deste mosteiro avisado que durante o ofício, ao qual eu
assistira muitas vezes, alguns irmãos haviam andado trocando palavras, lhes
ordenou em tom severo que permanecessem na porta da igreja durante uma
semana, prosternando-se diante de todos os que entravam e saíam para lhes
pedir perdão. Ora, os que ele condenara assim eram clérigos, e dentre eles havia
alguns que tinham sido honrados com o sacerdócio.

42. Observei um dia que durante o canto dos salmos havia um monge que era
mais atento do que os outros, que tinha uma devoção extraordinária e que,
sobretudo no começo dos salmos e dos hinos parecia falar a alguém. Perguntei-
lhe porque agia assim. “É para que, respondeu-me ele, desde o começo, eu reúna
todos os meus pensamentos e as faculdades de minha alma para lhes dirigir
estas palavras: venham adorar a Jesus Cristo, nosso rei e nosso Deus, e
prosternem-se a seus pés[34]”.

43. Prestei também especial atenção ao que era encarregado do refeitório, e vi


com espanto que ele trazia pequenas tabuinhas à cintura, sobre as quais escrevia
a cada dia todos os pensamentos que tinha, a fim de prestar contas exatas ao
abade que comandava o mosteiro. Aquilo que ele fazia outros também faziam, e
entendi que era porque o superior lhes havia ordenado.

44. Um irmão, por haver falsamente acusado a outro de se entregar a conversas


vãs e tolas, foi impiedosamente condenado pelo superior a ser vergonhosamente
expulso do mosteiro, e a permanecer por sete dias inteiros no vestíbulo que ficava
à porta da casa, durante os quais ele não devia fazer outra coisa do que suplicar
que lhe deixassem entrar e que lhe perdoassem a falta cometida. Ora, ele
cumpriu esta penitência de tão bom coração que o abade, sabendo-o, e sabendo
também que durante os seis primeiros dias ele não comera nada, mandou dizer-
lhe que, se ele tinha um desejo verdadeiro de retornar ao mosteiro, deveria estar
resoluto em viver daí por diante dentre os penitentes, o que este irmão, tocado de
verdadeiro espírito de compunção, aceitou de bom grado. O abade então ordenou
que o reintroduzissem e o encaminhassem ao lugar destinado aos que choravam
e expiavam seus pecados, o que foi executado imediatamente.  E como a ocasião
nos leva a falar deste mosteiro dos Penitentes, contarei algumas coisas deste.

45. Este local ficava a aproximadamente uma milha do mosteiro e era


comumente chamado de Prisão. Todas as consolações humanas estavam ali
banidas; jamais se via ali fogo algum, o óleo e o vinho não entravam nos
mantimentos consumidos, que consistiam em pão e alguns legumes insípidos. O
abade enviava para esta triste casa todos os monges que, depois de sua profissão
religiosa, caíam em alguma falta considerável, e eles eram de tal modo
encerrados, que não lhes era possível sair nem viver juntos, mas apenas a sós ou,
no máximo, em dois. Eles aí permaneciam até que o Senhor desse a conhecer ao
abade que suas faltas haviam sido perdoadas e que eles estavam reconciliados
com Deus. O superior geral lhes havia dado como superior específico um
excelente homem chamado Isaías, que deles exigia uma oração quase constante e
praticamente não lhes dava descanso. Entretanto, para impedi-los de cair no
abatimento e no desânimo, ele distribuía entre eles uma certa quantidade de
folhas de palmeira, com as quais eles teciam pequenas cestas. Assim era a vida e
a disciplina dos penitentes, que buscavam com ardor ver a face do Deus de Jacó.
46. É belo admirar seus trabalhos e sua penitência, mas é salutar imitá-los; mas
seria tolice não reconhecer a fraqueza humana e pretender imediatamente seguir
suas pegadas.

47. Assim, se nossa consciência nos dirige admoestações merecidas,


consideremos com dor os pecados que cometemos, até que Deus queira lançar
um olhar favorável à penitência que fazemos, aos esforços que nos conduzem a
desejo violento de nos reconciliarmos com Ele, de recebermos o perdão por
nossas faltas, de transformarmos o arrependimento e a dor dilacerante de nossos
corações em deliciosa alegria, conforme as palavras do rei-profeta: “Suas
consolações, meu Deus, encheram meu coração de alegria, segundo a multitude e
a grandeza das dores que afligiam meu coração[35]”. Lembremos ainda, segundo
nossa necessidade, destas outras palavras de Davi: “Senhor, foram grandes,
numerosas e cruéis as aflições com que você me oprimiu! Mas enfim você se
voltou para mim, deu-me a vida e me retirou do abismo em que eu havia
caído[36]”.

48. Feliz, portanto, quem, no desejo de agradar a Deus, se violenta todos os dias
e suporta com paciência e resignação o desprezo e as injúrias! Este participará
abundantemente, não duvidemos, da glória dos mártires e da alegria dos
supliciados. Feliz o monge que, em sua profunda humildade, não se vê senão
como o mais vil e desprezível dos homens, e não crê merecer senão a humilhação
e o rebaixamento! Feliz aquele que soube deixar morrer sua própria vontade, e se
abandonar sem reservas à conduta do diretor que Deus lhe deu como pai e
mestre espiritual! Seu lugar será à direita de Cristo crucificado.

49. Mas observem bem que o homem que não quer sofrer nenhuma correção,
justa ou injusta, age diretamente contra os interesses eternos de sua salvação,
enquanto que aquele que a recebe com paciência e alegremente obtém
incontestavelmente o perdão de seus pecados.

50. Assim, apresentem a Deus, em espírito e verdade, a confiança e o afeto que


vocês têm para com seu pai espiritual; e, por uma graça singular, Deus o fará
conhecer o amor e a ternura que vocês têm por ele, e este conhecimento os
inspirará a tratá-lo com doçura e respeito; e, conforme vocês o queiram, ele se
tornará seu amigo devotado.

51. Não é pequena prova de confiança em seu superior apresentar-lhe todas as


tentações que você experimenta: desta forma você seguirá o caminho da salvação,
mas dele se afastará terrivelmente se esconder nas trevas interiores do coração
estas serpentes cruéis e funestas.

52. Se vocês querem saber se têm pelos irmãos um amor sólido e verdadeiro e
uma afeição terna e sincera, verifiquem se os pecados dos quais você os
considera culpados o entristecem e desolam, e se as graças abundantes que eles
recebem de Deus, e o progresso que fazem na virtude o enchem de alegria e de
prazer.

53. Numa discussão, quem quer sustente obstinadamente uma opinião, mesmo
verdadeira, e um sentimento fundamentado, demonstra estar enfermo da doença
do demônio, que é o orgulho. Se for diante de seus iguais que ele age assim,
talvez ainda possa se curar pela correção que irá receber de seus superiores; mas
se for diante de seus superiores, cremos, humanamente falando, que sua doença
é incurável.
54. De fato, como poderá observar as regras e os deveres de obediência em suas
ações alguém que os viola com tanta insolência em suas palavras? E não agirá ele
nas outras coisas mais necessárias e mais importantes tal como o faz nas que
são menores e menos necessárias? Vemos assim que ele trabalha em vão e que
não colherá, com sua pretensa obediência, senão um julgamento terrível e uma
sentença de morte.

55. Quem, com disposição santa e intenção pura e reta, se submete e se dedica
inteiramente à vontade de um diretor sábio e zeloso, não vê a morte chegar senão
como um doce sono, ou melhor, ele a espera e a deseja todos os dias como sendo
o começo de uma nova vida; pois ele confia em que não será dele, mas do diretor
de sua alma, que Deus cobrará explicações.

56. Quem recebe com prazer e por haver solicitado, das mãos de seu superior,
alguma função ou cargo a exercer, e que em seguida comete alguma falta ou
tropeça no exercício desta tarefa, será a si mesmo e não a seu superior que
deverá culpar, pois as armas que recebeu, recebeu por seu próprio movimento e
por sua própria vontade. Ele deveria usá-las contra o inimigo e desastradamente
se serviu delas para ferir seu próprio coração. Mas se, ao contrário, foi contra sua
vontade, depois de lembrado seu superior de sua fraqueza e de sua incapacidade
e depois de ter rogado humildemente e com insistência que este não pensasse
nele, se apesar disto ele foi obrigado a receber este encargo e a se dedicar a
executá-lo, deve fazê-lo com coragem; pois se ele vier a cair, sua queda não será
mortal.

57. Mas eu ia esquecendo de lhes apresentar, caros amigos, um pão delicioso e


salutar para alimento de suas almas; quero lhes falar da virtude admirável desses
monges que, para se acostumar a receber com a maior paciência e a mais perfeita
caridade as injúrias, as afrontas e o desprezo dos outros, se reuniram para
exercitar a resignação sob toda espécie de humilhações, ultrajes e admoestações.

58. A alma que pensa sem cessar em confessar seus pecados encontra em cada
pensamento um antídoto eficaz contra o perigo de cometê-los novamente; pois
nós nos entregamos com muita facilidade às faltas que escondemos nas trevas.

59. Assim, ainda que não estejamos na presença de nosso superior, se, por meio
de uma viva representação, o imaginamos no meio de nós, esta imagem de sua
presença em muito contribuirá para que evitemos com cuidado tudo o que
sabemos desagradá-lo em nossas tarefas, nossas conversas, nosso repouso,
nossa alimentação e em todas as coisas; se nos conduzirmos desta maneira,
praticaremos uma verdadeira obediência. De resto, os discípulos verdadeiros e
sinceros veem a ausência de seu superior como uma infelicidade real, e se afligem
com isto, enquanto que os maus discípulos se alegram.

60. Um dia eu perguntei a um dos mais virtuosos padres do mosteiro como ele
tornara a obediência uma companheira fiel e inseparável da humildade; eis a
resposta que ele me deu: “Quem pratica a obediência, disse-me ele, não é apenas
obediente, mas é ainda cheio de reconhecimento. Assim, mesmo que ele
ressuscite os mortos, que ele possua o dom das lágrimas, que ele desfrute da paz
soberana do coração, ele sempre pensará que só possui estes benefícios por
intermédio de seu superior, que ele só desfruta deles em virtude de suas
orações”.

61. “Por isso ele estará isento de todo sentimento de presunção e de vanglória.
Como poderá ele se orgulhar, sabendo que não é por seu mérito nem por suas
virtudes que ele possui todas estas coisas, mas apenas pelo auxílio de seu
superior? É isto que faz com que o hesiquiasta seja de certo modo incapaz de
partilhar desta humildade interior em meio às coisas de que falamos, pois é mais
fácil para ele crer que é por suas forças e seu trabalho que ele consegue levar a
cabo as boas obras que pratica”.

As duas armadilhas do demônio.

62. Assim, quando um monge que está submetido a um superior evitar as duas
armadilhas do demônio, ele permanecerá, como um verdadeiro discípulo de Jesus
Cristo, sob o jugo de uma obediência eterna.

63. O demônio não cessa de tentar de mil maneiras diferentes aos que fazem
profissão de obediência: tanto ele procura perturbar e manchar sua imaginação
com pensamentos e imagens impuras, a fim de revoltar a carne contra o espírito,
quanto ele enche seus corações de penas, sofrimento e tristeza; aqui ele os
incentiva à irritação e ao mau humor, e procura todas as vias capazes de
paralisar sua vontade e de tornar sua virtude estéril e vã; lá ele leva à
intemperança nas refeições, à negligência na prece, à preguiça no sono; enfim ele
envolve seu intelecto em nuvens e trevas espessas, a fim de que, afadigando-os,
os faça crer que é inútil praticar a obediência, que eles não extraem nenhum
benefício espiritual de seus esforços e dos sacrifícios que fazem, e que, ao invés
de avançar na perfeição, dão marcha a ré. É assim que pouco a pouco ele os
desencoraja e os desgosta das santas ocupações comandadas pela obediência, e
os fazem abandonar miseravelmente o campo de batalha; muitas vezes ele sequer
lhes dá tempo de ver e reconhecer que Deus, para fornecer a seus servidores uma
ocasião favorável para praticar de modo mais perfeito a humidade e a obediência,
permite que o tesouro de suas virtudes lhes seja subtraído; mas este é um efeito
da Bondade de Deus, e ele nos devolverá este tesouro mais rico e mais precioso.

64. Porém, malgrado as longas importunações do demônio, acontece a alguns de


alcançar o objetivo, por sua corajosa paciência, vencendo-o e pondo-o em fuga.
Mas assim que acabamos de vencer este demônio da desobediência, já outro
aparece, com novos truques e novas tentações, para nos tentar e nos perder.

65. Com efeito, eu vi monges que, depois de se terem inteira e generosamente


entregues ao espírito da obediência, obtiveram de Deus, com o auxílio de seu
superior, grandes sentimentos de compunção e de penitência, alcançando um
estado de sublime doçura, modéstia, castidade, fervor e constância, vencendo e
submetendo seus apetites desregrados e vivendo num santo e fervoroso amor a
Deus. Ora, os demônios, invejosos de sua felicidade, para conseguir fazê-los cair
deste bem-aventurado estado, trabalharam por inspirá-los interiormente e para
que cressem que seriam capazes de viver na solidão daí por diante, e que eram
fortes o bastante na virtude para ousarem esperar, no repouso da solidão, a paz
soberana da alma e uma doce e celeste tranquilidade. Mas o que aconteceu?
Estes infelizes se deixaram enganar. Eles deixaram o porto e se fizeram ao mar; a
tempestade os surpreendeu sem condutor e sem piloto; as ondas furiosas dos
pensamentos impuros e das outras tentações logo atacaram e emborcaram a
frágil barquinha que carregava seu tesouro e a eles próprios. Foram-se assim
num triste naufrágio e pereceram da maneira mais miserável.

66. De fato, não é necessário que o mar se agite, se enfureça e se revolte para
rejeitar sobre a praia os restos e as imundícies que os rios e os córregos despejam
nele?  Do mesmo modo nossa alma é agitada de tempos em tempos para se
desembaraçar da sujeira que nossas paixões, que são como rios em relação a ela,
lhe trazem; e, se refletirmos bem, veremos que em nossa alma, como no mar,
uma grande tempestade é normalmente seguida de uma grande calmaria.

67. Quem tanto obedece como desobedece a seu superior é semelhante a alguém
que coloca sobre os olhos doentes ora um excelente colírio, ora cal viva. A
Escritura diz: “Se um edifica e outro destrói, o que poderá obter cada um, senão
trabalho e sofrimento?[37]”.

68. Portanto, vocês que são filhos e servidores obedientes do Senhor, não se
deixem confundir pelo demônio do orgulho e jamais confessem seus pecados ao
seu superior usando um nome falso; pois é a vergonha que vocês experimentam
neste mundo que evitará a vergonha eterna no outro. Mostrem, sim, mostrem a
nu todo seu mal a seu médico espiritual; digam-lhe sem temor e com
simplicidade: “Meu Pai, esta falta é toda minha; este ferimento é minha própria
obra; tanto um como outro me ocorreram por que vivi na negligência; não posso
culpar a ninguém: eu mesmo fui seu autor, é impossível eu me escusar por ter
sido levado pelos maus exemplos de meus irmãos, pelas tentações dos demônios,
pelas fraquezas e limitações de meu corpo ou por qualquer outra causa; foi
apenas em razão de minha tibieza, de minha preguiça e de minha negligência que
eu caí”.

69. Quando vocês se apresentarem para fazer a confissão de seus pecados,


adotem os modos, a postura e as maneiras de um criminoso; que seu rosto
anuncie modéstia e humildade e que você encham seu espírito com o pensamento
de seus pecados; que seus olhos não mirem senão a terra; se puderem, lavem os
pés de seu pai espiritual com lágrimas amargas e abundantes, como fariam se
estivessem diante do próprio Jesus Cristo. Porém, ao confessar os pecados,
cuidado e defendam-se de uma tentação muito funesta: os demônios redobram
então seus esforços para nos levar a não fazer uma confissão completa e sincera,
ou a nos confessarmos sob um nome inventado, ou para não colocarmos nossas
faltas sobre outro, como se tivessem sido a causa ou a ocasião.

70. Se o hábito que adquirimos de fazer uma coisa qualquer se torna tão forte e
tão poderoso que pode vencer e sobrepujar todos os obstáculos da natureza,
quanto mais não poderá o hábito de fazer boas obras, ajudados e sustentados
pela graça de Deus?

71. Creiam-me, meus filhos, se desde o início vocês se entregarem inteiramente


ao desprezo, aos sofrimentos e às humilhações, vocês não terão que combater
suas paixões por muitos anos, logo vocês as vencerão e encontrarão a preciosa
paz do coração.

72. Portanto, não negligenciem em fazer a confissão de seus pecados ao seu


diretor com disposições tão santas e humildes como se fosse ao próprio Deus.
Oh! Já vi pecadores felizes que, por sentimentos de verdadeira contrição, por uma
confissão humilde e completa, por preces fervorosas, logo amoleceram a
severidade de seu juiz, que parecia inexorável e transformaram seu rigor e sua
indignação em misericórdia e ternura. É por isso que vemos no Evangelho que
são João, este digno precursor de Jesus Cristo, tendo de conferir o batismo aos
que se apresentavam para o receber, obrigava-os a fazer a confissão de seus
pecados. Ora, ele não tinha necessidade desta confissão, mas a exigia para
buscar a salvação dos pecadores que recorriam ao seu ministério.
73. Não devemos nos espantar se, depois de havermos confessado nossos
pecados com as disposições requeridas, ainda nos restem combates a sustentar;
pois devemos saber que é mais fácil lutar contra a corrupção de nossos corpos,
que nos humilha, do que contra o coração que se enche de si, que nos eleva.

74. Vão com calma e amansem seu ardor, quando lhes contarem a vida e as
virtudes dos anacoretas que vivem no deserto; e não creiam poder abraçar este
tipo de vida que estaria acima de suas forças, pois, pela obediência, vocês
caminham sob o estandarte do primeiro mártir.

75. Assim, se lhes faltar força e coragem durante o combate, não abandonem o
posto que ocupam, pois é nos momentos difíceis da vida que temos mais
necessidade de um médico esclarecido e hábil. Ora! É preciso dizê-lo? Aquele que,
ainda que protegido e dirigido pela sabedoria e a experiência de um superior,
mesmo assim se deixa cair, levaria um tombo mortal e não conseguiria mais se
levantar se estivesse a sós e privado de socorro!

76. Assim sendo, é verdadeiro afirmar que quando temos a infelicidade de cair em
alguma falta, os demônios, para aproveitar nossa queda e preparar nossa perda
eterna, nos sugerem e nos inspiram fortemente o desejo e o desígnio de nos
retirarmos para a solidão. Mas é evidente que por meio desta tentação, se eles
pudessem nos fazer sucumbir a ela, estes inimigos de nossa salvação querem
apenas acrescentar uma ferida sobre outra e nos desorientar eternamente.

77. Se o médico espiritual que temos no momento nos declara que é impossível
conseguir a cura que queremos para nossa alma, não devemos perder a coragem,
mas buscar um outro e nos confiarmos às suas mãos; pois devemos saber que
muito poucos doentes se curaram sem o socorro de um médico. Eh! Quem ousará
sustentar um sentimento contrário? Um navio que naufraga apesar de ser
dirigido por um bom e valente piloto teria se salvado da tempestade se ele não
estivesse ali? Quem ousará afirmá-lo?

78. É a obediência que produz a humildade e a humildade produz a paz e a


calma na alma; pois ela a liberta das tempestades das paixões e lhe leva à
perfeita vitória sobre seu próprio coração. É isto que o rei-profeta nos ensina com
estas palavras: “O Senhor se lembrou de nossa humilhação e nos libertou das
mãos dos nossos inimigos[38]”. Nada pode nos impedir de afirmar que a
obediência engendra a preciosa paz do coração, pois ela produz a humildade e a
humildade faz existir esta paz, que por sua vez aperfeiçoa e coroa esta
humildade. Assim, a obediência é o princípio e a causa da humildade, e a paz da
alma, que é filha da humildade, confere à sua mãe a perfeição última. É assim
que Moisés, que é a imagem da obediência, deu começo à lei, e que Maria, que é a
imagem da perfeita paz da alma, conferiu a perfeição final à humildade.

79. Merecem ser severamente punidos por Deus estes doentes que, conhecendo a
destreza e a sabedoria de seu médico pelos benefícios já obtidos, abandonam-no
com desdém, e recorrem aos cuidados de outro qualquer a quem preferem.

80. Não deixem as mãos de quem em primeiro lugar os apresentou ao Senhor,


pois vocês não encontrarão outro por quem possam ter uma afeição mais
respeitosa.

81. Assim como um soldado sem experiência se expõe a um grande perigo se se


separar de sua companhia para ir sozinho combater o inimigo, também se expõe
ao perigo o monge que, sem ter passado pelos exercícios espirituais e sem
conhecer o modo como são combatidas e vencidas as paixões, deixa a sociedade
dos irmãos para dirigir-se só, na solidão, fazer a guerra aos demônios. A
temeridade do soldado coloca-o em risco de perder a vida do corpo, e a do monge
de perder a vida da alma. É assim que o Espírito Santo nos diz que “vale mais
estarem dois juntos do que permanecer só[39]”; ou seja, para combater
eficazmente seus maus hábitos com o auxílio e a assistência do Espírito Santo, é
preciso que o filho seja assistido pelo pai espiritual.

82. Tirar de um cego seu guia; do rebanho, seu pastor; do passageiro, o condutor;
da criança, seu pai; do doente, seu médico; do navio, o piloto; não equivale a
colocar todas essas pessoas e coisas em perigo de morrer? Não estará exposto à
mesma infelicidade aquele que, sem o socorro de seu pai espiritual será temerário
o bastante para declarar e fazer a guerra aos demônios? Ora! Seus inimigos se
lançarão sobre ele, o perfurarão c om suas lanças e o deixarão estendido no
campo de batalha.

83. Aqueles que pela primeira vez se apresentam num lugar onde se cuida de
doentes, deve ter tomado precauções no sentido de conhecer as doenças que os
afetam; e os que pensam em se submeter ao jugo da obediência devem saber qual
a humildade que possuem no fundo do coração, pois, se os doentes percebem que
sua cura se opera na medida em que as dores diminuem, os doentes da alma não
podem sentir sua cura espiritual senão na medida em que vejam a humildade
crescer em seus corações, na medida em que envergonhem, se condenem e
detestem suas vidas passadas.

84. Portanto, consultem sua consciência para ver as marcas de suas almas,
assim como consultam o espelho para ver as marcas de seu rosto. Se agirem
assim, isto lhes bastará.

85. Os monges que vivem na solidão sob a direção de um pai espiritual só têm
por inimigos os demônios que se opõem normalmente à salvação dos homens;
mas os que passam sua vida num mosteiro têm que combater não apenas os
demônios, mas muitas vezes os homens. Os primeiros, por estarem sempre sob
os olhos de seu pai, cuidam de não transgredir suas ordens; os últimos, por
estarem raramente em presença de seu superior, estão expostos a viver na
negligência. Mesmo assim, estes últimos, caso estejam cheios de fervor e
paciência, podem vantajosamente suprir esta ausência pela doçura, a resignação
e a humildade com as quais suportarão tudo o que os pode mortificar e fatigar de
parte de seus irmãos, e assim merecer a dupla coroa da glória.

86. Estejamos atentos e tomemos todas as precauções possíveis; pois um


mosteiro é como um porto cheio de navios: é fácil que seus balanceios constantes
os joguem uns contra os outros, ferindo-os mutuamente. O mesmo pode ser dito
dos monges, ainda mais se em meio a eles existir alguns com humor bilioso e
irascível.

87. Quando estivermos em presença de nosso superior, mantenhamos o mais


escrupuloso silêncio, e não deixemos transparecer que o fazemos por sua causa,
mas porque aquele que ama e observa o silêncio é discípulo da sabedoria e atrai
para si as maiores luzes em todas as coisas.

88. Um dia observei um monge interromper seu superior; e lhes digo que desisti
de vê-lo alguma vez sob o jugo da verdadeira obediência, porque ele usava as
palavras de seu pai espiritual não para se humilhar, mas para se elevar.
89. Devemos distinguir com prudência e sabedoria, observar com toda atenção
possível e pesar com perfeita circunspecção o tempo, a maneira e as condições
em que devemos preferir à oração os exercícios de que nos encarregamos, pois
não devemos fazê-lo – preferir os exercícios à oração – nem sempre, nem nas
mesmas condições, nem da mesma maneira.

90. Quando você se encontrar no meio dos seus irmãos, cuidado para não
parecer mais justo nem mais sábio do que eles, seja no que for; do contrário, você
incorrerá em dois males: primeiro, você fatigará sensivelmente seus irmãos com
esta justiça falsa e que não passa de aparência; segundo, você não tirará para si
senão uma tola vaidade e um orgulho bobo.

91. Seja zeloso para com sua alma, mas jamais deixe transparecer exteriormente
sua regularidade; jamais se sirva, para este miserável fim, nem de ações, nem de
gestos, nem de palavras, nem de qualquer outro sinal secreto, e viva sempre com
esta precaução até sentir que se corrigiu desta paixão que o faz buscar os
louvores dos outros e que o leva a julgar e desdenhar seus irmãos. Se ainda
assim você notar que ainda está inclinado a desprezá-los, estude a si mesmo
fortemente para conformar sua conduta à deles, e para jamais se distinguir nem
se separar deles por um espírito de vaidade e de vanglória.

92. Conheci um discípulo que, em presença de outros, se servia dos louvores que
seu superior merecia, bem como de suas virtudes, para gloriar a si mesmo; mas
este miserável, por colher assim no campo de seu mestre, ao invés da glória e da
honra que imaginara colher, só encontrou vergonha e confusão, pois todos se
puseram a lhe dizer: “Como pode acontecer que uma árvore tão boa e excelente
produza um ramo tão ruim e marcado por tamanha esterilidade?”.

93. Não pensemos ter adquirido uma paciência perfeita apenas porque
aguentamos sem tremer, ou porque sofremos generosamente as admoestações e
as reprimendas humilhantes de nosso superior. Suportaríamos da mesma
maneira os ultrajes e as injúrias feitas por todo tipo de gente? Ora! Se sofremos
mansamente o que nosso superior nos faz suportar é porque o tememos, porque
não queremos desagradá-lo, nem faltar-lhe com o reconhecimento pelos serviços
que nos presta, o que aliás é o mínimo que lhe devemos.

94. O essencial para nós é receber humilhações e desprezo da mão de quem quer
que seja e fazê-las passar por dentro de nossa alma como uma água que dá
saúde e vida; pois esta bebida amarga não nos é apresentada senão para que dela
nos sirvamos para nos purificar dos humores malignos e corrompidos que
tornam nossa alma doente. Se você receber assim as contradições e o desprezo, é
porque uma pureza perfeita estará se tornando ornamento de sua alma e que o
brilho da luz divina não mais se eclipsará no seu espírito.

95. Quem quer que veja um grande número de monges repousarem


tranquilamente sobre a sabedoria e os cuidados que tenha por eles, este deve
cuidar para não se glorificar, mas deve se lembrar de que existe sempre uma
infinidade de ladrões e de bandidos ao seu redor e ao redor dos seus, prontos a
lhes estender armadilhas ocultas. Gravem profundamente em seus corações este
aviso que nos deu Jesus Cristo: “Depois que vocês tiverem feito tudo o que lhes
foi ordenado, digam ainda: Somo servidores inúteis, só fizemos o que devíamos
fazer[40]”; pois somente na hora da morte saberemos de fato o juízo que será feito
a respeito de nossas boas obras e de nosso trabalho.
96. Um mosteiro é nesta terra uma espécie de paraíso; convém, portanto, que
sendo assim imitemos os sentimentos e as afeições dos anjos que rodeiam o trono
de Deus no céu, e que cumprem com tanta perfeição suas adoráveis vontades.
Ora, neste paraíso terrestre, vemos monges cujo coração é tão seco e duro como
as pedras; em compensação, há outros que, por suas lágrimas de terna e sincera
compunção merecem as consolações divinas. Mas lembremos aqui da bondade
inefável do Senhor: os primeiros são duros e insensíveis para que não caiam no
orgulho, que lhes caberia se tivessem a sensibilidade dos segundos; e estes são
consolados pela abundância de lágrimas que espalham.

97. Um pequeno fogo é capaz de amolecer uma grande massa de cera; muitas
vezes uma pequena humilhação, um ligeiro desdém inesperado pode amansar,
corrigir e fazer desaparecer a rudeza de espírito, a dureza, a insensibilidade e o
endurecimento do coração.

98. Conheci dois monges que se escondiam num lugar secreto para examinar os
trabalhos e para escutar os gemidos de alguns santos atletas de Jesus Cristo. Um
deles agia assim com um coração direito e simples: era pelo ardente desejo de
imitá-los; o outro, ao contrário, tinha uma péssima intenção: ele o fazia a fim de
poder depois rir-se publicamente destes bons monges, ridicularizá-los e desviá-
los de seus santos exercícios de piedade.

99. O monge que vive numa comunidade não extrai tantos frutos do canto dos
salmos como da oração, pois a confusão das vozes dissipa a atenção e perturba o
intelecto.

101. Combata corajosamente a leviandade do espírito, quando os pensamentos


são vagabundos e voláteis, e force-o a retornar sobre si mesmo. De resto, Deus
não exige dos que ainda são crianças em relação à obediência que façam orações
isentas de toda distração. Não se desencorajem então se, durante suas orações,
seu espírito vague de lá para cá por causa de pensamentos involuntários; mas
conduza-o fortemente do recolhimento interior. Somente os anjos são capazes de
uma atenção sustentada e perseverante.

102. Quem quer que, no segredo de seu coração, tenha resolvido se expor mil
vezes à morte do que, por toda sua vida, não sustentar com vigor a guerra que
iniciou um dia para salvar sua alma, este não cairá facilmente nos
inconvenientes que acabei de assinalar. A inconstância e as mudanças de lugar
são fontes inesgotáveis de males e infelicidades; assim é que os que passam de
um lugar a outro, de um mosteiro a outro, não estão longe de receber o epíteto
vergonhoso de infames. Nada é melhor para produzir a esterilidade das boas
obras numa alma do que esta inconstância continuada.

103. Assim, se vocês chegarem a uma escola de medicina espiritual que lhes seja
totalmente desconhecida e se se colocarem sob a direção de um pai espiritual que
vocês não conhecem, o que devem fazer é examinar com atenção qual é o espírito
e qual a maneira de viver de todos os que estão reunidos naquele local. Se vocês
acharem que os operários e os ministros da salvação são capazes de lhes trazer
algum alívio e de contribuir para a salvação de sua alma, sobretudo se vocês
encontrarem aí um remédio singular e eficaz contra a vaidade e o inchaço do
coração aproximem-se deles sem temor e com confiança, reúnam-se com eles,
vendam-se a eles; e para passar o contrato de venda, apresente-lhes o ouro
precioso da humildade; como papel, a obediência; como lacre, seus serviços e
trabalhos; e por testemunhas os anjos. Rasguem diante deles a cédula
vergonhosa por cujo valor vocês se tornaram escravos de suas próprias vontades;
pois se vocês até então erraram por aí, sem se fixar em parte alguma, perderam o
preço pelo qual Jesus Cristo os resgatou. Que este mosteiro seja para vocês como
um túmulo, de onde os mortos não devem sair senão para comparecer diante do
soberano Juiz; e se alguns saem por outras razões, temo que seja porque estão
realmente mortos. É por isso que devemos pedir ao Senhor que nos afaste desta
espantosa infelicidade.

104. Os preguiçosos, para não fazer as coisas cansativas que lhes são ordenadas,
costumam alegar a necessidade de orar; mas quando as ordens são doces ou
agradáveis, têm tanta vontade de orar quanto de se queimar.

105. Existem monges que desistem dos encargos e dos empregos que exercem no
mosteiro, mas por motivos bem diferentes; pois uns os abandonam em favor de
um irmão, ou porque alguém lhes pede; outros não querem exercê-los por
preguiça e comodidade; estes renunciam por uma vã ostentação, aqueles os
deixam com grande prazer para serem mais livres.

106. Se você entrar para uma comunidade e perceber que sua alma, em lugar de
se iluminar com novas luzes, mergulha ao contrário nas trevas mais profundas,
não há outra coisa a fazer do que sair o mais depressa possível; pois ainda que o
homem de bem possa sempre e em qualquer lugar permanecer um homem de
bem, o bandido não se torna bom em parte alguma.

107. No mundo, as maledicências e as calúnias produzem normalmente


discussões e animosidades; num mosteiro a intemperança mata todas as virtudes
e inspira o horror à vida religiosa. Assim, se lhes foi dado reduzir à escravidão
este domínio tirânico, vocês desfrutarão da paz e da tranquilidade da alma em
qualquer lugar; mas se ela estabelecer seu império sobre vocês, sua salvação
estará em perigo iminente de agora até a morte.

108. Deus, por um favor singular, concede aos que são verdadeiramente crianças
obedientes de ver e contemplar as virtudes de seu superior, e lhes esconde
corretamente as más qualidades e as más ações. O demônio, que é o inimigo
declarado da virtude, faz tudo ao contrário.

109. Amigos, tomemos o mercúrio como imagem da perfeição da obediência; e


atentemos para o fato de que embora ele esteja continuamente em movimento e
se coloque sob os demais líquidos ele é sempre puro e não se mancha com
nenhuma impureza.

110. Portanto, quem praticar a virtude com santo ardor deve cuidar para não crer
que os demais se entregam à negligência; pois eles merecem ser julgados e
condenados mais severamente do que os que condenam e criticam a preguiça. Eis
por que eu penso que o bom patriarca Lot fui considerado digno de ser chamado
de justo, porque, vivendo no meio de ímpios, ele jamais condenou ninguém.

111. É verdade que sempre e em toda parte devemos trabalhar para preservar
nossa alma da dissipação, das perturbações e da inquietude; porém isto é ainda
mais importante no momento em que nos entregamos aos exercícios da prece e
ao canto dos salmos: pois é então que os demônios redobram seus esforços para
encher nosso espírito de distrações, a fim de que percamos o fruto de nossa santa
ocupação.
112. É verdadeiramente servidor de Deus aquele que, ao mesmo tempo em que
serve a seus irmãos, eleva seu coração ao céu e nele fixa seus votos, sua afeição e
seus sentimentos, e não cessa de bater à porta de Deus com preces fervorosas.

113. As injúrias, o desdém, as humilhações e todas as coisas duras e sofridas


produzem a amargura do absinto na alma de quem está devotado aos deveres da
obediência; enquanto que os louvores, os aplausos e as honras enchem de uma
doçura semelhante à do mel o coração de quem só busca as coisas doces e
agradáveis. Mas lembremo-nos de quais são as propriedades do mel e do absinto:
enquanto que este purifica o estômago e as entranhas dos humores malignos e
biliosos, aquele quase que só os faz aumentar.

114. Tenhamos uma confiança sem limites naqueles que, no Senhor, são
encarregados de conduzir nossa alma ao porto da salvação, ainda que nos pareça
que eles de nós exigem coisas contrárias à salvação; pois é sobretudo nestas
circunstâncias, nestas circunstâncias penosas, que nossa confiança em suas
luzes e em sua sabedoria é testada no fogo da obediência e da humildade; e a
marca menos equívoca que podemos dar da firmeza de nossa fé consiste em
cumprir sem hesitar aquilo que nossos superiores nos ordenam, ainda que suas
ordens nos pareçam opostas ao que esperamos e desejamos.

115. Já dissemos que a humildade nasce da obediência; e a prudência religiosa


tem sua origem na humildade. Os doutores a chamam de discernimento.
Cassiano disse desta virtude coisas admiráveis num excelente tratado específico
sobre o tema. Ora, esta excelente virtude orna o espírito com luzes e lhe
comunica até a faculdade de prever as coisas futuras. Considerando assim estas
vantagens, quem poderá se recusar a percorrer a bela carreira da obediência? Foi
ela que o salmista cantou: “Você preparou, meu Deus, em sua grande Bondade,
um tesouro para seu povo”; e este povo feliz, podemos assegurar que são os
monges obedientes, e que este tesouro preciosa é a presença de Deus em seus
corações.

116. Não percam jamais a lembrança deste grande servidor de Deus, deste
intrépido atleta de Jesus Cristo, o qual, durante os dezoito anos em que viveu em
perfeita obediência a seu superior, nunca recebeu dele uma só vez estas palavras
de consolo: Meu filho, desejo que você se salve! Mas, enquanto os homens lhe
recusavam esta consolação, o próprio Deus o consolava admiravelmente, pois ele
não dizia apenas no fundo do seu coração: “Desejo que você seja a sombra dos
meus eleitos”, palavras que parecem expressar algo incerto, mas ele assegurava
que ele de fato fora salvo; na verdade, o que ele lhe anunciava era um estado
certo e indubitável.

117. Dentre os que vivem sob o jugo da obediência, existem alguns que não dão
atenção ao fato de viver uma ilusão bastante funesta: trata-se daqueles que,
conhecendo a condescendência de seu superior, lhes pedem e obtêm cargos,
encargos e exercícios conforme a seus gostos e inclinações; mas que saibam e
compreendam estes infelizes que assim obtendo o que desejam perdem todo
direito à coroa e à recompensa destinadas à perfeita obediência: pois a obediência
consiste numa renúncia completa e absoluta a toda dissimulação ou vontade
própria.

118. Acontece às vezes que um monge, tendo recebido uma ordem de seu
superior, prevê que se a cumprir sofrerá, e assim, por este motivo, não a cumpre;
como também acontece que outro monge, prevendo a mesma coisa, executa sem
hesitar a ordem recebida. Pergunto: qual dos dois monges teve a conduta mais
santa e mais conforme ao espírito da obediência?

119. É preciso nunca pensar que o demônio possa agir de modo contrário à
vontade que ele sente de nos fazer mal; vocês devem estar convencidos desta
verdade pelo exemplo daqueles que, tendo vivido por algum tempo numa cela ou
num mosteiro, com doçura e paciência, caíram depois no relaxamento. Assim, se
experimentamos em nós o desejo de deixar um mosteiro para passar a outro,
devemos, a fim de saber o que Deus quer de nós, examinar seriamente se não lhe
agradará mais que permaneçamos aonde estamos; pois me parece que esta é
uma tentação que devemos combater; ao sermos atacados assim pelo demônio,
devemos nos defender.

História de santo Acácio.

120. Eu me tornaria culpado de malícia e crueldade se passasse em silêncio


certas coisas a respeito das quais não se pode calar. Ora, foi João Sabaíta, a
quem prezo muitíssimo, que me contou estas coisas maravilhosas; e você sabe
por experiência própria, caro pai, o quanto este grande homem foi isento de
paixões e de exaltação, e o quanto lhe aborrece a vanglória nas palavras. Eis o
que ele me disse: “Havia num mosteiro na Ásia onde eu vivi um tempo, um
ancião muito negligente e de má conduta; digo-o não para julgar as intenções
secretas de um homem, mas em honra da verdade. Aconteceu, não sei como, que
este ancião tinha como discípulo Acácio, jovem de admirável simplicidade e
espantosa prudência. Este jovem monge sofria de parte de seu mestre tantos e
tão maus tratos, que muitas pessoas recusariam crer; pois ele não se contentava
em cobri-lo e oprimi-lo com injúrias, ultrajes e humilhações, mas ainda o
espancava e enchia seu corpo de ferimentos e chagas por causa dos golpes que
descarregava sobre ele todos os dias. Acácio sofria todas essas indignidades com
uma paciência e uma sabedoria verdadeiramente espantosas. Ora, como eu via
que a cada dia este jovem era tratado mais cruelmente, como se fosse o mais vil
dos escravos, lhe dirigia algumas palavras de consolo quando o encontrava: ‘Caro
Acácio, dizia-lhe eu, com está você hoje? O que há de novo?’. Como resposta, este
bom monge me mostrava os olhos ternos e sem vivacidade, um pescoço
maltratado e uma cabeça cheia de feridas e contusões; e como eu sabia quão
grande e generosa era sua paciência, eu me contentava em lhe dizer, para
encorajá-lo: ‘Coragem, caro irmão, tudo vai bem, sim, tudo vai bem: sofra sempre
com doçura e resignação, e logo você colherá os frutos abundantes da paciência’.
Ora, depois de haver passado nove anos sob a ferocidade deste impiedoso ancião,
sua alma santa voou para o céu. Cinco dias depois da morte de Acácio, seu
mestre foi procurar um ancião solitário, homem muito recomendado por suas
virtudes, e, depois de tê-lo saudado, lhe contou da morte de seu santo e fervoroso
discípulo. Mas o bom velho lhe respondeu que em verdade ele não podia
acreditar. Então o mestre de Acácio acrescentou: ‘Venha comigo, e verá que não o
engano’. O ancião se levantou, e foi com este padre até o túmulo daquele grande e
valente atleta de Jesus Cristo. Quando ali chegou, como se Acácio estivesse vivo –
e, de fato, ele não estava morto, mas dormia o sono dos justos – ele lhe dirigiu
estas palavras: ‘Irmão Acácio, é verdade que você morreu?’. Então aquele nobre
filho da obediência, mesmo morto, deu este ilustre exemplo de submissão: pois
ele obedeceu àquele que o interrogava, e lhe respondeu: ‘Como poderia, meu Pai,
um discípulo sincero da obediência morrer?’. Estas palavras tocaram o mestre do
jovem monge com tão grande terror que, desmanchado em lágrimas, este caiu
com o rosto por terra e se apressou a pedir ao superior do mosteiro que lhe
permitisse fixar moradia junto ao túmulo de seu discípulo. Ele obteve esta
permissão e aí passou o resto de sua vida, praticando uma modéstia, uma
paciência e uma submissão perfeitas. Ele não cessava de repetir aos padres desta
comunidade: ‘Pais meus, eu cometi um homicídio’. Ora, meu pai, acho bom lhe
dizer que o ancião que falou com o jovem Acácio foi o próprio abade João, que nos
conservou e contou esta história, sob outro nome, até que eu descobri que fora
com ele mesmo que a coisa tinha se passado.

História de João o Sabaíta, ou de Antióquio.

121. Ele me disse que enquanto vivia ainda no mesmo mosteiro, notou um outro
monge que estava sob a disciplina de um padre, homem de idade avançada, de
espírito manso, paciente, razoável e moderado; mas como seu jovem discípulo
percebeu que seu mestre era cheio de respeito e precaução para com ele,
considerou sabiamente que esta conduta lhe seria tão funesta e daninha como
fora a muitas outras pessoas. Ele se permitiu solicitar ao bom monge que lhe
permitisse se retirar de sua companhia. Ora, como este tinha ainda um outro
discípulo, não viu dificuldade em atender ao pedido. Então o jovem deixou seu
mestre, que bondosamente lhe deu muitas cartas de recomendação, para que ele
pudesse entrar para outro mosteiro no Ponto. Na primeira noite em que ele
passou neste mosteiro, ele viu em sonhos pessoas que o pressionavam fortemente
a que lhes pagasse uma soma de dinheiro que ele lhes devia; estas, depois de
examinarem seriamente as coisas, convenceram-no de que ele era devedor de cem
libras de ouro. Ao acordar, ele entendeu o que significava esta visão. Por isso ele
não cessava de repetir para si mesmo: “Infeliz Antióquio (este era seu nome), é
bem verdade que lhe restam muitas dívidas a quitar”. Continuou ele: “Eu passei
três anos neste mosteiro obedecendo cegamente a tudo o que me ordenavam e,
como eu era estrangeiro, todo mundo me desprezava, me humilhava e me
maltratava. Depois de haver passado assim esses três primeiro anos, tive uma
segunda visão, na qual alguém me quitava apenas dez libras de outro das cem
que eu devia. Ao acordar, compreendi a advertência que me vinha do alto e disse
para mim mesmo: ‘Se durante três anos de trabalhos e penas você não pagou
mais do que dez libras de ouro, quando poderá você, miserável, quitar o restante?
É preciso, pobre Antióquio, que para se libertar inteiramente você suporte
trabalhos maiores e devore humilhações mais profundas’. Tomei a resolução
extraordinária de me fingir de louco, mas sem fazer crer que havia perdido
inteiramente a razão. Os padres do mosteiro, vendo-me neste estado, e
conhecendo por outro lado a prontidão com que eu cumpria as ordens que me
eram dadas, me encarregaram de todas as ocupações mais penosas e mais
difíceis da casa, considerando a mim como o dejeto da comunidade. Passei mais
treze anos neste estado, ao fim dos quais as mesmas pessoas que vira me
apareceram outra vez durante o sono e me quitaram enfim toda a dívida. Ora,
durante todos esses anos, quando os padres me oprimiam com maus tratos, o
pensamento da enorme dívida que eu tinha a pagar me enchiam de força e
coragem e me faziam a tudo sofrer com paciência e resignação”. Eis, meu caro
padre João, aquilo que João o Sabaíta, este tesouro de sabedoria, me contou a
respeito de si mesmo, sob o nome falso de Antióquio. Foi ele próprio quem por
sua heroica paciência, pode ser libertado de toda a dívida e mereceu o perdão de
todos os seus pecados.

122. Mas consideremos ainda qual foi sua rara prudência nos julgamentos que
fazia sobre as disposições internas dos homens, prudência admirável que ele só
adquiriu por causa de uma perfeita obediência. No tempo em que permaneceu no
mosteiro de São Sabas, três monges se apresentaram a ele para se colocar sob
sua disciplina. Ele os recebeu com afeto especial, e fez tudo o que sua caridade
lhe sugeriu para aliviá-los da fadiga da viagem; mas, depois de três dias este
santo ancião lhes dirigiu estas palavras: “Meus irmãos, ele lhes disse, eu não
passo de um miserável pecador; é impossível para mim fazer o que vocês me
pedem”. Porém, os monges não levaram em conta sua resposta nem as razões
que ele alegava, e lhe pediram insistentemente para que os recebesse como
discípulos, tão grande consideravam sua virtude. E, como viram que nada o
poderia fazer mudar de ideia, lançaram-se a seus pés e imploraram que ele lhes
desse ao menos algumas regras salutares de conduta e que lhes dissesse de que
modo e em que lugares deveriam passar o resto de suas vidas. Cedendo então à
suas ardentes súplicas e sabendo que eles receberiam seus conselhos com
submissão e humildade, este santo ancião disse a um deles: “Meu filho, agradará
a Deus que você viva na solidão sob a direção de um pai espiritual”. Depois,
dirigindo-se ao segundo: “Quanto a você, vá e consagre ao Senhor sua vontade,
sem nada reservar para si, carregue a cruz que ele lhe destinou: viva num
mosteiro, em sociedade com os irmãos, e você terá indubitavelmente um tesouro
no céu”. Enfim ele disse ao terceiro: “Quanto a você, é preciso que não haja um
instante sequer de sua vida em que você não pense nesta sentença do Senhor:
‘Aquele que perseverar até o final, este será salvo[41]’. Vão, então, e façam de
modo a que dentre todos os homens não haja ninguém mais severo do que
aqueles que vocês tomarem como mestres e condutores de suas vidas religiosas;
jamais se separem deles e a cada dia avaliem como leite e mel os desprezos e
humilhações que os fizerem passar”. A estas palavras, um dos irmãos respondeu
a este grande homem: “Mas, se este pai espiritual viver na preguiça e na
negligência, o que devemos fazer?”. Ele disse: “Ainda que você o veja cair em
alguma falta que lhe cause horror, permaneça com ele e contente-se em dizer
para si mesmo: ‘meu amigo, o que você veio fazer aqui?’. Então, triunfante da
tentação, você sentirá todo o balão do orgulho se esvaziar, e o fogo da
concupiscência diminuir e se extinguir”.

123. Todos nós que tememos ao Senhor devemos nos esforçar para combater sob
seus estandartes com toda a energia e coragem de que somos capazes, por medo
de, colocados numa escola de virtude, ao invés de aprendermos a ciência feliz das
boas obras, aprendermos a funesta arte de nos tornarmos viciosos e falsos,
astuciosos e enganadores, raivosos e coléricos; e não se espantem que estas
infelicidades ocorram às vezes: pois, na medida em que estamos neste mundo,
seja dentre tripulantes, seja dentre operários, seja onde for, os inimigos de nosso
rei, os demônios, não nos atacam com grande violência; mas quando eles nos
veem sob os estandartes de nosso divino General, e percebem que ele nos recebeu
a seu serviço, dando-nos armas, uma espada, um uniforme militar, então eles
fremem de furor, procuram e empregam toda sorte de meio de armadilhas para
nos derrotar; é por isso que estamos essencialmente obrigados a vigiar sem
cessar, por nós e ao redor de nós.

124. Eu vi crianças amáveis pela inocência e simplicidade de suas almas e pela


beleza de seus corpos que, enviadas para casas de educação para aí se formar na
ciência e na sabedoria e adquirir outros conhecimentos úteis, pelo comércio que
tiveram com condiscípulos viciosos e perversos, se perverteram também, e
infelizmente só aprenderam a mentira, a astúcia e a corrupção do coração. Quem
tiver inteligência que entenda porque falo isto.

125. É impossível que aqueles que se aplicam com todas as forças para adquirir a
ciência da salvação não façam nela grandes progressos. Mas admiremos aqui a
divina Providência: enquanto uns sabem o progresso que adquiriram, outros não
o percebem.
126. Um banqueiro que pretende gerenciar bem seus negócios não deixa de
verificar diariamente, a conta exata e circunstanciada dos ganhos e perdas que
fez durante a jornada. Mas ele não poderá saber com certeza aonde está, se, a
cada instante, não anotar os negócios que trata; é desta maneira que lhe será
possível ter um conhecimento exato daquilo que fez a cada dia.

127. Quando recriminamos um mau monge, o vemos em seguida triste e de mau


humor, ou então se atirando com baixeza aos pés do superior que o admoestou, a
fim de lhe apresentar mil desculpas. Mas ao se humilhar assim, o faz menos pelo
desejo de praticar a humildade e a submissão do que para por fim a uma coisa
que o afadiga. Assim, se vocês forem mortificados por reprovações amargas,
saibam guardar um silêncio salutar e suportem com paciência corajosa o ferro e o
fogo das correções severas aplicadas às suas almas, que os purificarão e
espalharão no seu espírito luzes abundantes; e quando seu médico espiritual
terminar sua operação prosternem-se aos seus pés para pedir-lhe perdão; porque
se vocês o fizerem no momento em que ele os repreende com zelo, ele poderá não
os escutar, e até rejeitá-los.

128. Os que vivem em comunidades devem sem dúvida travar uma guerra mortal
contra todos os vícios; mas existem dois, acima de tudo, que devem atacar todos
os dias com mais vigor e coragem do que todos os outros. Estes dois vícios são a
intemperança e a cólera. Ora, eu digo que estes dois vícios devem ser objeto
especial dos cenobitas, porque estas paixões encontram na sociedade dos
homens que vivem conosco os alimentos que melhor lhes convêm.

129. Ainda que estejamos bem longe de praticar virtudes raras e sublimes, o
demônio, para nos fazer quebrar o jugo da obediência sob o qual temos a
felicidade de viver, não deixa de nos sugerir isto em pensamento e nos inspirar
um desejo intenso disto. Penetrem no íntimo dos monges imperfeitos e temerários
e vocês verão que eles suspiram pela vida solitária, que eles desejam com ardor
os jejuns mais rigorosos, a prece mais contínua e mais recolhida, a humildade
mais profunda, a mais constante meditação da morte, a compunção mais viva, a
vitória mais completa sobre suas paixões, o silêncio mais absoluto e uma pureza
de anjo. Mas como, por uma conduta secreta da divina Providência, eles não
puderam, desde o começo de seu noviciado, praticar segundo seu desejo estas
belas e excelentes virtudes, logo se desencorajaram, abandonando as práticas
mais comuns e se retirando do mosteiro. O demônio os enganou, fazendo-os
desejar fora de hora a prática destas virtudes, a fim de que eles não pudessem,
pela perseverança, adquiri-las no tempo conveniente. Mas não são apenas os
monges cenobitas que o demônio busca enganar, ele ataca também os
anacoretas. É assim que, para desencorajar e derrubar os solitários, este inimigo
enganador e mentiroso lhes prega e exalta a felicidade dos monges que vivem em
comunidade; ele elogia a hospitalidade que eles exercem, os serviços de caridade
que fazem uns aos outros, sua afeição e sua união fraternais, os cuidados
afetuosos e assíduos que eles têm para com os doentes, e mil outras vantagens a
fim  de os fazer desgostar do gênero de vida que abraçaram, e fazê-los se
perderem por uma falsa via.

130. Mas é preciso confessar que a hesíquia só está alcance de um pequeno


número, e esta vida de perfeição não convém senão àqueles a quem o Senhor, por
graças especiais e consolações celestes, sustenta e fortifica nos trabalhos penosos
que eles têm que suportar e nos combates difíceis e cruéis que eles têm que
sustentar.
131. O conhecimento que temos de nossas más disposições e de nossos defeitos
deve nos fazer buscar e escolher de preferência o estado de obediência como
sendo o mais apropriado e mais conveniente. Por conseguinte, aquele que se
sente levado à intemperança e aos prazeres carnais cuide para se colocar sob a
disciplina de um superior experimentado e de inflexível rigor na prática da
temperança e da sobriedade, mais do que de um fazedor de milagres, de um
amigo da hospitalidade ou de um homem que goste de servir os outros à mesa.
Quem sente seu coração agitado pela vaidade e possui o orgulho escolha como
pai espiritual um homem de grande severidade e perfeita austeridade, que jamais
lhe mostre um rosto risonho e satisfeito, mas que seja constantemente sem
clemência nem doçura.

132. Jamais devemos procurar como diretor um homem que, por sua sabedoria e
luzes, seja capaz de predizer as coisas futuras e de prever o que vai acontecer.
Desejemos e procuremos os verdadeiros doutores, que, por seus bons exemplos
na prática da obediência e da humildade, e por sua sólida ciência, possam nos
curar de nossas enfermidades espirituais, nos dar regras de conduta, nos fazer
conhecer o estado e o lugar que são necessários para que nos santifiquemos.

133. Assim, se vocês têm o desejo sincero de se devotarem inteiramente à


obediência, não percam nunca de vista o exemplo que nos deu Abacir; como este
grande servidor de Deus, digam com frequência a si mesmos: “Meu superior quer
provar e conhecer a minha fidelidade; é por isso que ele me coloca à prova”. Este
pensamento os impedirá que se enganem, vocês não se afastarão da via a seguir;
e se vocês tiverem nele uma confiança tão mais completa e um amor tão mais
afetuoso quanto mais ele os repreender com rigor e severidade, esta será uma
marca certa e indubitável de que o Espírito Santo concedeu em visitá-los e que
ele habita secretamente em seus corações. De resto, observem bem que, se vocês
sofrerem com paciência corajosa e constante às admoestações e humilhações de
seu superior, longe de se glorificar e regozijar por isto, terão mil razões para
chorar e gemer; pois foi sua conduta que mereceu estas reprimendas ou estas
correções humilhantes, e que fez com que seu pai espiritual ficasse de mau
humor contra vocês.

134. Não se perturbem nem fiquem espantados com o que vou dizer, pois eu o
direi apoiado e fundamentado sobre uma autoridade sólida: Moisés. Eu lhes digo
que é menos funesto pecarmos contra Deus do que contra nosso pai espiritual. E
eis a razão: se com nossos pecados irritamos a Deus contra nós, nosso pai
espiritual pode acalmá-lo e nos reconciliar com ele; mas quando ofendemos nosso
pai em Deus, a quem poderemos recorrer para tornar Deus propício a nós?
Entretanto, parece-me que Deus acalmará nosso superior, assim como nosso
superior acalmou a Deus em nosso favor.

135. Em tudo o que dissemos, existe uma coisa que devemos examinar,
considerar e pesar com grande cuidado e sem paixão: é saber em que
circunstâncias somos obrigados a sofrer com amor e reconhecimento, com
paciência e sem nada dizer as admoestações feitas por nosso superior, e em que
circunstâncias nos é permitido, para nos desculparmos, explicar a ele o porquê
de nossa conduta merecedora de sua indignação e reprimendas. Quanto a mim,
penso que todas as vezes em que as humilhações não recaem senão sobre nós
devemos guardar silêncio; pois é uma excelente ocasião para enriquecer e
ornamentar nossa alma. Mas se estas humilhações são nocivas ao próximo, me
parece que, por caridade e pelo bem da paz, estamos autorizados a romper o
silêncio e defender nosso irmão, cuja inocência conhecemos.
136. Ninguém pode instruir tão bem sobre as vantagens da prática da obediência
como aqueles que não mais a praticam, pois eles compreendem bem em que
estado de felicidade viviam enquanto estavam sob o jugo da submissão.

137. Quem estiver verdadeiramente possuído do desejo de adquirir a paz e a


tranquilidade da alma, e de encontrar a Deus, sente uma grande perda quando
passa um dia em sua vida sem sofrer alguma humilhação.

138. Assim como as árvores mais lançam raízes fortes e profundas quanto mais
são agitadas pelo vento, também os que vivem na obediência se tornam fortes e
invencíveis quanto mais são testados e provados.

139. Podemos dizer que era cego e recobrou a visão que nos dá Jesus Cristo
aquele que, reconhecendo ser fraco demais para levar a vida eremítica, sai da
solidão e se dirige para um mosteiro para aí se consagrar e se dedicar
inteiramente aos salutares exercícios da obediência.

140. Generosos atletas do Senhor tenham coragem, tenham coragem, sim, eu


repito pela terceira vez: tenham coragem! Perseverem em correr nesta bela
carreira da obediência e escutem atentamente as palavras do Sábio: no mosteiro,
“o Senhor os testa como quem prova o ouro na fornalha e os recebe em seu seio
com as vítimas que são sacrificadas para serem oferecidas a ele nos
holocaustos[42]”. Até agora, tratamos dos degraus do paraíso que estão expressos
no número dos quatro evangelistas. Atleta, continue a correr sem temor!

QUINTO DEGRAU

Da verdadeira e sincera penitência.

1. Naquele tempo, João correu mais depressa do que Pedro[43]; é por isso que a
obediência vem aqui antes da penitência. Pois quem chega primeiro é a imagem
da obediência, e o outro a imagem da penitência.

2. A penitência é o restabelecimento do batismo. É uma espécie de contrato por


meio do qual prometemos a Deus corrigirmos as faltas de nossa vida passada e
viver melhor o futuro. A penitência, se eu ousar me servir desta expressão, esta
carregada com os interesses da humildade; trata-se de uma renúncia perfeita a
todos os prazeres dos sentidos, de um julgamento severo que fazemos contra nós
mesmos, da ocupação mais séria de uma alma que se aplica de bom grado aos
afazeres de sua salvação eterna. Ela é a filha mais velha da esperança e a inimiga
mortal do desespero. O verdadeiro penitente é um criminoso que confessa seus
pecados sem desculpar nenhuma infâmia. A penitência tem o dom de nos
reconciliar com Deus, fazendo com que pratiquemos as boas obras opostas às
faltas cometidas; é ela que descarrega. Purifica e santifica a consciência; é ela que
nos leva a sofrer generosamente todas as penas e todas as aflições que nos
acontecem. Aquele a quem ela anima se torna de uma atividade admirável no
sentido de buscar e empregar todos os meios capazes de puni-lo; é ela que
combate e supera a intemperança, e que acusa sem negociar no tribunal da
consciência.

3. Todos vocês que, com suas múltiplas ofensas, irritaram a cólera de Deus,
acorram, aproximem-se, venham e escutem: reúnam-se aqui e considerem
comigo as maravilhas que aprouve a Deus me permitir descobrir e me dar a
conhecer, para o exemplo e a salvação de todos. Comecemos por dizer algumas
coisas a respeito desses homens devotados a Jesus Cristo por meio de profundas
humilhações, dignos, por isso mesmo, dos nossos louvores e dos primeiros
lugares. Escutemos, contemplemos e imitemos estes belos modelos, nós todos
que tombamos em faltas mortais! Levantem-se e estejam atentos, vocês que ainda
estão sob o vergonhoso jugo do pecado! Irmãos, deem ouvidos às minhas
palavras; e vocês, quem quer que sejam, se desejam sinceramente se reconciliar
com Deus por meio de uma verdadeira conversão, não deixem de prestar aqui
toda a sua atenção.

4. Tendo eu sabido – eu, que não passo de um homem preguiçoso e imperfeito –


no tempo em que eu residi no grande mosteiro de que falei, que havia alguns
religiosos que, num outro mosteiro aos qual chamávamos de Prisão, levavam uma
vida especialmente extraordinária e que praticavam toda a perfeição da
humildade, pedi ao santo abade do grande mosteiro, ao qual estava submetida
esta outra comunidade, permissão para ir até lá, para ser testemunha do que lá
se passava. Ora, este grande luminar, este santo abade me permitiu de boa
vontade, até por que ele temia causar-me a menor pena.

5. Assim que cheguei ao mosteiro dos Penitentes (que poderíamos chamar de


região do choro e dos gemidos, a Prisão, para dizer numa palavra), fui
testemunha, se me é permitido dizer, de coisa que o olho de um moleirão e
preguiçoso jamais viu, que o ouvido de um negligente jamais escutou, e que o
espírito de um indolente jamais compreendeu; fui testemunha, repito, de ações e
de palavras capazes de fazer violência ao próprio Deus, de trabalhos e de
mortificações tão poderosas a ponto de merecer em pouco tempo sua Clemência e
sua Misericórdia.

6. Vi alguns destes culpados inocentes passar noites inteiras de pé, com os pés
imóveis, lutando vigorosamente contra o cruel e inoportuno sono, não se
concedendo o menor repouso, acusando a si próprios de lassidão e negligência,
instando a si mesmos na perseverança e fazendo a si próprios as mais
humilhantes reprimendas.

7. Vi outros que, com os olhos humildemente postos no céu, imploravam pela


Clemência e a Bondade de Deus com palavras e um tom de voz que penetravam a
alma de piedade e compaixão.

8. Vi ali outros que, como infames celerados, com as mãos amarradas às costas e
cobertos de opróbrio, presas da mais dilacerante aflição, curvavam humildemente
o rosto à terra, considerando-se indignos de olhar o céu, e que não ousavam
falar, nem soltar gemidos, nem fazer preces.

9. O pensamento aterrorizador de seus pecados, os remorsos abrasadores de sua


consciência terrificada, a vergonha e o opróbrio que sentiam, os preenchiam, e
atormentavam de tal maneira, que eles eram incapazes de ousar pronunciar o
santo nome de Deus para invocá-lo, eles não sabiam nem como começar nem
como terminar as preces que queriam lhe endereçar, e eram assim obrigados a
lhe apresentar uma alma muda, um espírito cheio de trevas, um coração quase
entregue aos horrores do desespero. Outros vi que, tristemente sentados no chão,
cobertos de cinzas e vestidos com um rude cilício, escondiam o rosto entre os
joelhos e arranhavam a face penitentemente.

10. Vi ainda outros que batiam no peito sem cessar, relembrando com
arrependimento inexprimível o estado de felicidade em que viviam quando
praticavam a virtude. Dentre estes ilustres penitentes, alguns inundavam a terra
com a abundância de suas lágrimas; outros, incapazes de chorar, feriam-se com
golpes; outros, não conseguindo comprimir a dor que lhes trespassava o coração,
o exprimiam por soluções semelhantes aos lamentos dos que assistem ao funeral
de seus próximos; outros, em suas celas, rugiam como leões em suas cavernas,
frementes de temor e medo, afogando-se em seus gemidos, ou, por vezes,
incapazes de conte-los, explodiam em gritos contundentes e lamentosos.

11. Vi alguns que por seus gestos pareciam estar fora de si, e que, pela dor que
suportavam, permaneciam numa estupefação indizível, e mantinham o mais
triste silêncio. Poderiam ser tomados facilmente por pessoas privadas de razão,
insensíveis e mortas para todas as funções da vida; e, no entanto, eles só se
achavam neste estado por terem descido às maiores profundezas da humildade, e
as lágrimas que derramavam não eram outra coisa que a expressão de sua
contrição viva e inflamada.

12. Observei outros que, com a cabeça encurvada para o chão, imóveis como
estátuas, estavam entregues a profundas meditações, e que, pelos muitos
movimentos de suas cabeças, anunciavam a grandeza de sua aflição, gemiam e
rugiam de tempos em tempos como leões. Encontrei ainda alguns outros, cheios
de uma deliciosa esperança, que conjuravam o Senhor com preces admiráveis
pedindo-lhe que lhes concedesse a remissão de todas as suas faltas. Outros vi
que, devido a uma inexprimível humildade, julgavam ser indignos de perdão, e
proclamavam em alta voz que lhes era impossível satisfazer à justiça de Deus, por
causa da grandeza e da enormidade de seus crimes. Alguns conjuravam sem
cessar a Deus que os punisse severamente neste mundo, mas que lhes
concedesse sua Amizade e os coroassem com suas Misericórdias no outro. Alguns
ainda, oprimidos sob o peso terrível da reprovação de suas consciências, oravam
com humildade e fervor ao Deus de toda bondade que ao menos os preservasse
dos suplícios eternos que eles mereciam, e se declaravam pública e sinceramente
indignos do Reino dos céus.

13. “Oh!, clamavam eles, desde que esta graça não nos seja recusada, devemos
estar contentes.” Isto foi o que vi destas almas verdadeiramente humildes,
mortificadas e varadas de dor, que conheciam e sentiam toda a enormidade de
seus pecados. E eles ainda soltavam gritos e lamentos, dirigindo a Deus preces
tão fervorosas e animadas, que teriam amolecido a dureza e a insensibilidade de
rochedos. Eu podia ouvi-los em seu santo estremecimento, humildemente
prosternado contra a terra, repetir sem cessar: “Sim, Senhor, nós reconhecemos e
confessamos que muito merecemos toda sorte de penas e castigos, e que, ainda
que o universo inteiro se reunisse a nós para chorar pelo número e a grandeza de
nossas ofensas, todas estas lágrimas não seriam suficientes para lavar nossas
almas e satisfazer sua Justiça; apenas uma graça lhe pedimos, suplicamos com
insistência e lhe conjuramos que não no-la recuse: de não sermos corrigidos por
sua Cólera, nem castigados por sua indignação[44], mas sermos recebidos nos
braços de suas Misericórdias. Basta-nos, Senhor, não precisarmos mais temer as
terríveis Ameaças, e que sejamos preservados dos suplícios inexprimíveis e
incompreensíveis que merecemos; pois não ousamos pedir que nos livre de todas
as penas que nos pecados atraíram, nem que nos conceda um perdão inteiro e
perfeito. Oh, Senhor, com que descaramento poderíamos nós solicitar tal favor –
nós que tivemos a audácia sacrílega de profanar e de violar os votos de nossa
santa profissão, e de pisotear indignamente a graça inestimável que recebemos –
que sejam perdoadas, tão generosamente e com tanta bondade, as faltas que
cometemos antes de deixar o mundo”.
14. Caros amigos, foi neste lugar, sim, neste lugar de penitência que eu vi
pontualmente a realização daquilo que Davi dizia de si mesmo[45], foi lá que tive
sob meus olhos o espetáculo enternecedor de pessoas mergulhadas na mais
desoladora aflição, e curvadas até o fim da vida sob o peso imenso de sua dor;
que todos os dias traziam a amargura de sua tristeza estampada em seus rostos e
expressa em seus movimentos e no seu caminhar; e que, pela horrível purulência
que exalava de suas chagas, anunciavam que seus corpos, com os quais não
tinham nenhum cuidado e nem sequer pensavam neles, estava coberto de
ulcerações. Aí eu vi homens que esqueciam de comer seu pão, que misturavam
suas lágrimas à agua que bebiam, que se alimentavam de cinzas em lugar do
pão; cujos ossos, secos, eram envoltos apenas por uma pele enrugada colada a
eles; e cujo coração havia secado como a erva batida pelos ardores do sol[46]. Não
os ouvi dizer senão estas palavras: “Infelizes de nós, os miseráveis! Infelizes de
nós!”; e também: “É com justiça, sim, com justiça, que estamos neste estado
destroçado”; enfim, também estas noutras: “Perdoe-nos, Senhor, nós lhe
pedimos, perdoe-nos”. Mais adiante, outros enchiam o ar apenas com estas
palavras: “Piedade, Senhor! Piedade!”, enquanto outros ainda não cessavam de
repetir, com a voz lamentativa: “Oh, Senhor, se ainda podemos esperar, perdoe-
nos! Sim, Senhor, queira nos perdoar!”.

15. Ora, dentre estes penitentes, havia alguns que, pelo ardor de sua dor, tinham
a língua tão inflamada e ardente que não a suportavam dentro da boca; você
encontraria os que, em busca de novos sofrimentos, permaneciam expostos aos
ardores do sol, enquanto outros se expunham aos rigores mais insuportáveis do
frio; outros só bebiam água o suficiente para não morrer de sede; outros comiam
com esforço um mínimo de pão, rejeitando o resto com justa indignação, e diziam
a si mesmos que, tendo estado desprovidos de sentimentos por tanto tempo a
ponto de viverem como vis animais, tinham se tornado indignos de se alimentar
como as criaturas racionais.

16. Ah! No meio desses homens, poderíamos encontrar o menor sinal de alegria?
Poderíamos ouvir aí sequer uma palavra inútil? Seríamos testemunha de
qualquer impaciência ou cólera? Eles haviam esquecido até que os homens
fossem capazes de se atirar aos enfrentamentos, tanto sua grande aflição havia
extinguido em seus corações todo movimento desregrado. Encontraríamos entre
eles a menor aparência de discussão, o menor relaxamento, a menor licença nas
conversações, o mais ordinário cuidado com o corpo, o menos aparente vestígio
de vanglória, a mais fraca inclinação peara as facilidades e as comodidades da
vida? Pensariam eles no vinho, nas frutas, nas comidas temperadas e nas carnes
preparadas? Teria o alimento que tomavam o menor sabor? Ora, eles haviam
perdido todo o sentimento por qualquer destas coisas. Ocupar-se-iam eles talvez
dos negócios do mundo? Teriam algum pendor para fazer julgamentos,
temerários ou fundamentados, a respeito de qualquer um dos irmãos? Jamais.

17. Eles não falavam senão por meio de seus gemidos e suas lágrimas, assim
como a Deus. Alguns, como se estivessem às portas do Paraíso, mortificando o
peito com golpes redobrados, clamavam: “Abra-nos, ó justo Juiz dos vivos e dos
mortos; abra-nos, nós o conjuramos, esta porta de felicidade eterna, que
fechamos com nossos pecados. Abra-nos!”. Outros não cessavam de repetir esta
oração admirável do Salmista: “Mostre-nos apenas, Senhor, um rosto favorável, e
seremos salvos das mãos cruéis de nossos inimigos[47]”. Você poderia encontrar
alguém que dizia sem cessar, como Zacarias: “Meu Deus, faça brilhar sua luz
sobre todos os infelizes que se assentam no meio das trevas e das sombras da
morte[48]”. Mais adiante você veria um que dirigia a Deus esta prece fervorosa:
“Que suas Misericórdias nos previnam prontamente, ó meu Deus[49]; pois
estamos reduzidos à última miséria, estamos perdidos sem você, nos deixamos ir
ao desespero e tombamos em total erro”. Noutra parte, você poderia escutar
alguém se perguntando esta triste questão: “Pensam vocês que o Senhor nos
mostrará jamais um rosto sereno e benevolente, e que ele derramará sobre nós as
luzes de sua glória?[50]”, enquanto outro indagaria com santa e penosa
inquietação: “Creem vocês que possamos esperar que nossa alma atravesse esta
torrente de trevas, cujas águas são intransponíveis[51], e que o Senhor nos
conceda alguma consolação?”. “Oh! – acrescentariam outros – estamos de tal
maneira ligados às cadeias do pecado, que na verdade poderíamos esperar que o
Senhor nos diga: ‘Saiam, sejam enfim libertos de suas correntes criminosas,
vocês que vivem os rigores da penitência’? Ah! Chegarão até ele nossos gemidos e
nossos gritos dolorosos?”.

18. Enfim, eu os via todos imóveis, fixados no pensamento da morte, dizendo a si


mesmos: que nos acontecerá no momento da última hora? Qual será nosso
julgamento?  O que nos tornaremos durante a eternidade? Passaremos desta
terra de exílio ao céu, nossa pátria querida? Pode ainda haver alguma esperança
para estes pobres pecadores imersos nas trevas e cobertos de confusão? Terão
nossas preces e nossas lágrimas conseguido subir até o trono da divina
Misericórdia? Ah! Quantos motivos temos para pensar e crer que elas foram
rejeitadas, desprezadas e feridas por um ignominioso desdém! E, ainda que
tenham sido recebidas favoravelmente, terão sido capazes de apaziguar a justa
Cólera de nosso Juiz? Quanto terão elas conseguido abreviar nossa reconciliação
com Deus? Em que estado nos terão elas colocado diante de sua santa Presença?
Que favores e que graças terão elas obtido para nós? Oh! Nossas bocas impuras e
criminosas, nossos corpos cheios de pecado certamente paralisaram sua eficácia.
Terão elas conseguido, seja muito, seja ao menos um pouco, nos reconciliar com
nosso soberano Juiz? Podermos nós ser aliviados da metade das nossas
iniquidades e curados da metade de nossas chagas espirituais? Ah! Como são
imensas as dívidas que contraímos! Quantos trabalhos não suportamos!  Que
satisfações teremos que prestar para ficarmos quites? Será que afinal nossos
anjos guardiões, que tão indignamente expulsamos, se reaproximarão de nós?
Não estarão eles demasiadamente afastados? Oh! Se estes espíritos celestes não
se dignarem retornas a nós, nossos esforços e nossos trabalhos de nada nos
servirão, estaremos para sempre sem esperança de sermos libertados e de
recuperar a preciosa liberdade dos filhos de Deus[52], nossas preces não poderão
inspirar nenhuma confiança bem fundamentada, elas não terão a santidade
necessária para alcançar o trono do Senhor, pois é preciso que nossos anjos,
tornando-se outra vez nossos amigos, as apresentem a Deus com suas mãos
puras e santas.

19. Indo adiante, ouvi outros que comungavam seus temores e suas esperanças,
dizendo entre si: pensam que fizemos algum progresso com nossas penitências?
Acham que obteremos enfim o objeto de nossos votos e de nosso desejo? Escutará
Deus as nossas orações? Creem que ele nos abrirá o seio de suas Misericórdias e
de sua Ternura? A todas estas questões, outros respondiam: quem sabe se, como
nossos irmãos habitantes de Nínive, não poderemos dizer que Deus revogará a
sentença terrível que pronunciou contra nós, e que nos livrará dos castigos
rigorosos que merecemos? Ah! Para receber este favor insigne, redobremos o zelo
e a coragem, cumprindo exatamente nossa penitência. Quanta felicidade será
para nós se ele abrir as portas de sua Ternura! E mesmo que ainda não no-las
abra, não deixemos de louvar e bendizer seu santo Nome, pois sua Conduta a
nossos olhos é sempre justa e cheia de equidade, e perseveremos até o fim de
nosso caminho, batendo na porta de seu Coração com nossos gemidos e nossas
lágrimas. Esta importunação constante e esta perseverança talvez lhe façam
alguma violência, e quem sabe obteremos o que buscamos com tanto ardor. Era
assim que eles encorajavam uns aos outros. Gritavam eles com santo
entusiasmo: corramos, caros irmãos, pois temos que correr, e correr com todas as
nossas forças, pois perdemos a companhia celeste na qual transcorriam nossos
dias tão doces e agradáveis, e agira estamos perdidos! Corramos, então,
corramos, e não poupemos esta carne de pecado e corrupção: matemos,
imolemos generosamente nossos corpos: eles causaram a morte de nossas almas!

20. Tal era a conduta, tais eram os sentimentos, e tais as palavras destes santos
penitentes que eram enviados à Prisão. À força de permanecerem de joelhos, eles
haviam coberto esta parte do corpo de espessas calosidades; seus olhos, de tanto
derramarem lágrimas, estavam ressecados, já não tinham cílios e afundavam nas
órbitas; as maçãs do rosto eram pálidas e tão magras que mais se assemelhavam
às de pessoas mortas; o peito estava ferido pelos repetidos golpes que se
infligiam, e estes golpes lhes causavam dolorosos sangramentos. Encontraríamos
neste mosteiro camas arrumadas? Veríamos roupas apropriadas e capazes de
proteger contra o frio? Tudo aí estava em farrapos, largado, feio e cheio de
vermes. Para finalizar, diremos que os tormentos daqueles que são possuídos
pelo demônio, a dor cruel dos que choram a morte de seus próximos, o coração
rasgado dos que são condenados ao exílio, o suplício dos parricidas, estas coisas
não passam de uma fraca imagem das dores, da aflição e dos sofrimentos destes
santos penitentes; as penas que essas pessoas que mencionamos tiveram que
suportar por necessidade nada são comparadas com aquelas que estes generosos
penitentes sofriam voluntariamente. E não pensem, irmãos, que estou relatando
uma fábula da imaginação: esta é a própria verdade.

21. Eu via estes penitentes extraordinários conjurar seu superior, este pastor
excelente, este juiz sábio e esclarecido, este anjo entre os homens, que lhes
colocassem colares de ferro ao pescoço, como se fossem infames criminosos,
algemas nas mãos, pesos nos pés, e que os deixassem neste estado cruel até que
a morte os levasse ao túmulo; e muitos ainda se consideravam indignos de serem
enterrados.

22. Não me calarei; não, não passarei sob silêncio por este novo tipo de
humilhação, ainda que inspire arrepios, nem por este humilde amor a Deus, nem
por este excesso de penitência; falarei agora da conduta de alguns dentre eles,
quando acreditavam haver chegado à última hora e a ponto de comparecerem
diante do temível tribunal de Deus. Quando estes ilustres penitentes eram
conduzidos ao lugar do mosteiro reservados aos que estavam gravemente
doentes, eles conjuravam seu superior, ele que era este tesouro de luz e
sabedoria, por tudo o que lhe fosse de mais sagrado e respeitável, que lhes
concedesse a graça de não honrá-los com a sepultura que é dada a todos os
homens, mas que atirasse seus corpos ao rio, ou que os abandonasse no campo
para a voracidade dos animais selvagens. Assim o superior ordenava que seus
cadáveres fossem atirados fora do mosteiro, recusando a eles as honras do
sepultamento e as preces costumeiras da Igreja.

23. E que horrível e arrepiante espetáculo tínhamos diante dos olhos, quando
algum destes santos penitentes chegava à sua última hora! Neste momento todos
os seus fervorosos companheiros cercavam seu leito de morte; e estes homens,
devorados por uma sede ardente, presas da mais cruel das aflições, inflamados
pelo ardor e a vivacidade de seus desejos e de seus votos, lhe exprimiam, com a
contenção que lhes inspirava a compaixão, por meio de suas palavras
lamentativa, por seus movimentos de cabeça, os sentimentos da mais terna e
maior comiseração. “O que há, querido irmão, terno companheiro, diziam-lhe com
uma doçura que tocava o coração, o que há de novo com você? Como se sente
neste momento? Quer nos dizer alguma coisa? Quais são suas esperanças? Quais
são suas afeições e seus pensamentos? Você acredita ter obtido aquilo que
buscou com tantas penas e tanto ardor, ou teria você trabalhado sem sucesso?
Você conseguiu alcançar o porto da salvação, ou ainda teme um triste naufrágio?
Você chegou diretamente ao fim de sua viagem, ou ainda se encontra perdido?
Você tem uma esperança certeira de haver recebido o perdão de seus pecados, ou
não tem nenhuma garantia de sua salvação? Você se encontra em plena
liberdade de espírito ou ainda permanece em meio à perturbação e à angústia?
Sua alma foi iluminada pelas luzes consoladoras do céu ou está ainda nas trevas
e na noite da confusão? Terá você enfim escutado as palavras: ‘Você está
curado[53], seus pecados foram remidos[54], sua fé o salvou[55]’? Ou, ao
contrário, estas sentenças terríveis: ‘Que os pecadores sejam lançados aos
infernos[56], amarrem-lhes os pés e as mãos e atirem-no às trevas exteriores[57],
que o ímpio seja levado, pois ele não verá a Glória do Senhor em seu Templo[58]’?
Que respostas, caro irmão, poderá você dar a todas estas questões? Fale-nos sem
subterfúgios e com toda franqueza, a fim de que possamos conhecer um pouco da
sorte que também nos aguarda, pois, para você, o tempo de vida está se
esgotando, e quando você penetrar na eternidade, já não existirá tempo”. Alguns
respondiam com estas palavras: “Bendito seja Deus para sempre! Pois ele não
rejeitou minha oração nem retirou de mim sua Misericórdia[59]”. Outros
respondiam: “Bendito seja o Senhor, que não nos deixou ser vítimas do furor e da
voracidade dos dentes cruéis de nossos inimigos[60]”. Outros, oprimidos pela dor
que traziam no coração, se contentavam em dizer: “Poderá nossa alma atravessar
esta torrente impetuosa, na qual as potências do inferno procuram fazê-la perder-
se?[61]”. Estes falavam da sorte, pois não estavam seguros de sua salvação, e
temiam a conta terrível que teriam que prestar a Deus. Outros ainda davam uma
resposta ainda mais aflitiva: “Infelizes de nós, clamavam, infeliz da alma que não
guardou os votos de sua profissão! Eis a hora única em que ela é capaz de saber
o que ela merece por toda a eternidade!”.

24. Tais são as coisas que vi e ouvi durante o tempo em que permaneci neste
mosteiro, e confesso com franqueza que ao comparar minha preguiça e
negligência com as impressionantes mortificações que estes ilustres penitentes
praticavam com tanto zelo e coragem, eu fui violentamente tentado a me deixar
levar pelo desencorajamento e o desespero. De resto, de qualquer ângulo que se
olhasse o mosteiro, era difícil crer que aquilo fosse uma morada habitada por
homens: pois ele não se fazia notar senão pelas trevas e a obscuridade que
reinavam em todos os seus cômodos, pelo mau odor que exalava de todos os
cantos e pelo lixo e os trastes que estavam por toda parte. Assim, é com razão
que ele era chamado de “prisão” e cubículo de criminosos; pois, apenas o
olhávamos, e nos sentíamos penetrados pela tristeza e levados a sentimentos de
penitência. Mas o que parece difícil e impraticável a certas pessoas, se torna fácil
e mesmo amável aos que conhecem e sentem a perda que tiveram por abandonar
a inocência e, com ela, os dons preciosos do céu. Com efeito, uma alma que se
veja privada da santa amizade que a unia deliciosamente a Deus, e da confiança
tão doce e consoladora que nele depositava; que perdeu toda esperança de poder
neste mundo desfrutar da paz perfeita do coração e da suprema tranquilidade,
que violou o selo de sua virgindade; que por si mesma se despojou do tesouro
inestimável da graça e das consolações divinas; que rompeu a aliança augusta
que fizera com o Senhor; que extinguiu em si miseravelmente os ardores celestes
da caridade e fez secar a fonte das lágrimas que derramava com tanta doçura;
uma alma que já não é açoitada pela lembrança dilacerante dos bens que perdeu
e dos males que fez, e que se encontra como que rasgada, destroçada pela dor
que sente à vista de sua loucura e de seus crimes, não apenas se desvelará e se
consagrará prontamente e com ardor aos trabalhos e exercícios penosos de que
falamos, mas, na medida em que for capaz, se punirá e se purificará por meio de
exercícios espirituais. E como poderia ela agir de outra maneira, se ainda
conservou em si a mínima centelha de amor e de temor a Deus? Tais eram os
sentimentos destes homens de quem falamos; pois, ao fazer todas estas reflexões
salutares, e conhecendo de que alto grau de virtude caíram, eles não cessavam de
repetir: “O que aconteceu com os dias felizes que vivemos? Que fizemos nós das
boas obras que então praticávamos com ardor? Em outras ocasiões, eles
clamavam: Onde estão Senhor, suas antigas Misericórdias[62], das quais
recebíamos tantas e tão grandes provas? Um outro dizia: Lembre-se, Senhor, das
humilhações, das vergonhas e dos trabalhos de seus servidores! Outro ainda
gritava: Quem poderá me devolver ao estado em que me encontrava nos tempos
felizes que se foram, quando o próprio Senhor velava por mim para me proteger, e
sua lâmpada derramava uma luz benfazeja sobre minha cabeça[63] e meu
coração?

25. Era assim, e derramando lágrimas abundantes, que eles expressavam o


arrependimento por haverem dissipado tão grandes riquezas espirituais, e, no
abismo profundo de sua desolação, alguns pediam com inacreditável ardor que
fossem possuídos pelo pior dos demônios, a fim de começarem a sofrer desde já;
outros pediam insistentemente a Deus que os castigasse com uma vergonhosa e
humilhante epilepsia; outros desejavam se tornar inteiramente cegos e ser
transformados em monstros medonhos, capazes de infundir horror aos homens e
lhes servir de espetáculo, enquanto outros ainda queriam perder o uso dos
nervos e dos músculos e serem tomados de uma paralisia universal; todos se
considerariam felicíssimos se, sofrendo de tais males, pudessem evita os suplícios
eternos. Quanto a mim, caros amigos, confesso que não consigo justificar o
motivo pelo qual permaneci com prazer nesta morada de tristeza e prantos; mas o
fato é que ali estava eu, tão satisfeito e contente, que já não pensava em mim, e,
arrebatado de espanto, já não era mestre de meus pensamentos nem de meus
sentimentos. Mas voltemos ao nosso tema.

27. Depois de permanecer por um mês no mosteiro da Prisão, e como, devido à


minha indignidade, já não conseguia suportar, retornei o grande mosteiro e fui ao
encontro do abade que o presidia. Vendo-me diferente do que estava costumado,
e percebendo com a penetração de seu espírito o espanto e a admiração em que
me encontrava, ele compreendeu facilmente qual seria a causa de meu estupor e
do meu arrebatamento, e me disse: “Muito bem, caro João, o q eu tem você? Pode
examinar de perto os combates, os trabalhos e os exercícios de nossos
penitentes?”. “Si, meu Pai, respondi-lhe, eu os vi e admirei; e estimo mais
admiráveis estes homens decaídos, mas que choram e expiam suas faltas, do que
os que não caíram e que nem pensam em chorar; pois, reerguendo-se desta
maneira, eles se colocam na feliz posição de não mais cair”. “Você tem razão”,
respondeu-me ele.

28. Esta língua que jamais soube mentir me contou o seguinte fato: “Há quase
dez anos, tínhamos aqui um irmão que era tão cheio de piedade, que prestava
tanto cuidado e atenção em ser um verdadeiro soldado de Cristo, que estava
animado de um zelo tão vivo e de tão grande ardor nos exercícios da vida
religiosa, que, vendo-o em tão boas disposições, eu tremia por ele e temia muito
que o demônio, invejoso de seus virtudes e de seus méritos, não se serviria de seu
ardor e seu zelo para bater seu pé contra alguma pedra de tropeço. Ora, aquilo
que quase sempre acontece com os que caminham com excesso de precipitação,
infelizmente aconteceu a este irmão: ele teve uma queda. Mas logo veio me
procurar. Era perto do crepúsculo. Ele me encontrou e mostrou a ferida que
fizera em sua alma; no abismo de sua dor, ele me conjurava insistentemente que
ali aplicasse ferro e fogo, e que lhe ordenasse os remédios convenientes. Como ele
viu que seu médico espiritual não iria aplicar o rigor e a severidade que ele
desejava, e como este pobre religioso não era indigno de indulgência, ele se atirou
aos meus pés, molhando-os com suas lágrimas e me pedindo que o enviasse à
Prisão que você visitou; e, para conseguir me convencer, ele não cessava de
repetir que era impossível dispensá-lo de tal condenação. Assim, pela violência
com que me tratou, ele praticamente me forçou a converter em rigor e severidade
a doçura e a ternura que eu sentia por ele. Pude ver neste religioso o que não é
costumeiro ver nos doentes, e que é o contrário aos curso natural das coisas. E
assim que eu concordei em dar-lhe a permissão que pedia com tanta insistência,
ele correu prontamente para os penitentes, para se tornar seu confrade e
imitador de seus trabalhos e de suas lágrimas. A contrição que seu amor a Deus
lhe fizera conceber a respeito de sua falta era tão viva e violenta, que oito dias
depois de entrar no mosteiro ele partiu deste mundo para se apresentar diante do
Senhor; mas, antes de morrer, ele teve o cuidado de pedir que seu corpo fosse
provado de sepultura. Desta vez, porém, eu achei por bem não ceder ao seu
desejo, e fiz com que levassem seu corpo e o depositassem no cemitério destinado
ao sepultamento dos padres. Eu o considerei digno desta honra, por que após
uma penitência de sete dias na Prisão, Deus o considerara capaz, no oitavo, de
desfrutar da liberdade e da felicidade dos céus. Com efeito, existe um religioso
que soube de maneira certa que antes mesmo que este ilustre penitente se
levantasse diante dos pés vis e desprezíveis daquele que lhe fala, ele já havia
recebido o perdão de seu pecado e estava perfeitamente reconciliado com Deus.
Eh! Não nos espantemos, por que ele tinha no coração a mesma fé que a
pecadora do Evangelho, e foi com esperança e confiança perfeitas em Deus que
ele molhou com suas lágrimas meus miseráveis pés. Pois tudo é possível àquele
que crê[64]”. Quanto a mim, vi almas manchadas de pecados, e até possuídas
pela loucura e o amor pelos prazeres sensuais, e que, não obstante, por meio de
exercícios de penitência, pela presente dos que amam a Deus e sobretudo pela
consideração profunda de seu triste estado, entregaram seu coração a Deus,
amaram-no unicamente, triunfaram de todo temor servil e conseguiram por fim
se entregar inteiramente aos santos ardores da caridade3. Lembremo-nos de que
nosso Senhor não disse à pecadora convertida: “Ela tremeu muito”, mas: “Ela
muito amou[65]”. E foi por este amor ardente que ela se livrou do amor carnal e
profano.

29. Depois de tudo, ilustres Padres, não posso me impedir de pensar que as
coisas extraordinárias que lhes contei parecerão inacreditáveis a quase todo
mundo, que alguns as verão como impossíveis e que enfim outros as tomarão
como motivo para se desencorajar e cair no desespero. Mas também é verdade
que os corações generosos e cheios de boa vontade e coragem delas se servirão
como um aguilhão para estimulá-los na prática perfeita das virtudes mais
heroicas, como uma flecha a trespassá-los no amor a Deus, enchendo-os de zelo
e fervor. Para os que ainda não estão tão avançados na piedade, estes trabalhos
os farão sentir mais e mais sua hesitação e sua negligência, e, pelas reprimendas
que serão obrigados a fazer a si próprios, comparando-se com estes fervorosos
religiosos e estes ilustres penitentes, eles adquirirão uma humildade profunda,
farão mais esforços para imitar estes corações generosos, e poderão, quem sabe,
alcançá-los. Quanto aos que ainda não possuem senão hesitação e negligência, é
imprudente que tentar fazer como estes corações fervorosos e generosos, e que
tentem caminhar nas pegadas destes homens perfeitos: o que eles devem fazer
presentemente é não abandonar aquilo que começaram, a fim de que sob eles não
paire esta ameaça: “Ser-lhes-á tirado até mesmo o que eles pensam possuir[66]”.
30. Não nos esqueçamos de que, uma vez que tenhamos a infelicidade de cair no
abismo do pecado, dele não poderemos sair senão à custa de exercícios de uma
verdadeira penitência, que dele nos retirem e nos precipitem alegremente no
abismo da humildade.

31. A humildade plena de tristeza que reina no coração dos verdadeiros


penitentes é muito diferente daquela que se encontra nos pecadores, a quem
condenam apenas os remorsos da consciência, e mesmo da que Deus inspira aos
que vivem na perfeição da virtude. Não tentemos aqui expressar no que consiste a
humildade destes homens perfeitos: não chegaríamos a nenhum resultado.
Quanto à humildade dos que fazem penitência, vocês a reconhecerão por causa
da paciência em meio às humilhações e ao desprezo. Mas seus maus hábitos
ainda os poderão derrubar em determinadas faltas.

32. As quedas não devem nos surpreender; pois os motivos de Deus, assim como
frequentemente a causa e o princípio das faltas que cometemos, são cobertos por
espessas trevas, impenetráveis ao espírito humano, e nos é verdadeiramente
impossível distinguir as quedas em que incorremos por nossa própria negligência
daquelas que nos acontecem por permissão de Deus e das que causamos por que
Deus, em sua justa indignação, nos entrega à nossa fraqueza. Já ouvi dizer que,
com a permissão de Deus, os que caem em algum pecado não permanecem aí
longo tempo, por que Deus não permite que permaneçamos demasiado sob a
escravidão desta falta.

33. Depois de nossas quedas, apliquemo-nos de modo especial a combater o


demônio da tristeza. Ele nunca deixa de nos atacar no momento das nossas
orações, a fim de que, reconstituindo fortemente em nosso espírito o estado feliz
em que nos encontrávamos antes de pecar, nos desvie a atenção que devemos
aplicar ao santo exercício da prece, e nos inspire a perturbação e ao
desencorajamento.

34. Acreditem, irmãos: ainda que vocês cometam faltas todos os dias, evitem
perder a coragem, não abandonem seus exercícios de piedade, mas perseverem
generosamente e fortemente no serviço de Deus; e seu anjo da guarda respeitará
sua heroica paciência e sua bem-aventurada perseverança.

35. Prestem atenção no seguinte: uma ferida recente é fácil de curar. Mas se a
negligenciamos, os humores se alteram e se corrompem: a partir daí, ela só
cicatriza com dificuldade e, muitas vezes, para curá-la, são precisos muitos
cuidados, tempo e trabalho, e às vezes são necessários ferro e fogo, e o emprego
de um sem-número de remédios. Vocês nunca viram chagas como estas se
tornarem incuráveis? Mas Deus, para quem nada é impossível, pode nos livrar
até mesmo destas.

36. Eis outra observação importante: os demônios, estes inimigos cheios de ardis
e artifícios, antes de nos empurrar para o pecado e para nos fazer cair mais
facilmente, nos representam a Deus cheio de bondade e de compaixão por nós.
Mas quando obtêm sucesso em seu cruel projeto e nos fazem violar a lei santa do
Senhor, eles o mostram como um juiz terrível, severo e inexorável.

37. Evitem confiar em qualquer um que, sabendo que vocês se tornaram


culpados de qualquer falta considerável, lhes sugira não dar atenção às faltas
leves a que todos estamos expostos diariamente, e que lhes diga, por outro lado,
em relação à falta maior, que seria desejável que não a tivessem cometido, e, por
outro lado, em relação às faltas leves, que elas nada são; pois os cuidados
múltiplos que empregamos são semelhantes aos pequenos presentes que
fazemos. E não é verdade que muitas vezes estes pequenos presentes, à força de
se multiplicarem, acalmam a cólera do soberano juiz?

38. Devemos dizer que quem está resolvido a satisfazer a Justiça de Deus pelas
faltas cometidas, perde qualquer jornada na qual não tenha se consagrado ao
pranto e aos gemidos da penitência, ainda que tenha nestes dias praticado as
mais excelentes obras da piedade.

39. Quanto aos que choram seus pecados, evitem aguardar a hora da morte para
se assegurar que estes lhes foram perdoados; pois nunca poderão ter disto plena
certeza. Ao contrário, devemos sempre fazer esta oração: “Dê-me, Senhor, a doce
esperança de ter perdoado meus pecados, a fim de que eu não deixe este mundo
na cruel incerteza de minha salvação[67]”.

40. Entrementes, para nossa instrução e nossa consolação, lembraremos que os


laços do pecado são destruídos naqueles em que reside o Espírito de Deus; e
diremos o mesmo daqueles em cujo coração reina uma humildade sincera. Ah!
Que quem parte deste mundo sem ter possuído uma destas duas coisas não caia
numa funesta ilusão: ao contrário, estejam convencidos que ainda se encontram
sob o jugo de seus pecados.

41. Todos os que passaram suas vidas no mundo, aí vivendo segundo seu espírito
e suas máximas, ao deixarem a vida, não terão em si estas duas marcas
essenciais da justificação, sobretudo a segunda. Não obstante, existem entre
estas pessoas do mundo as que preparam sua última hora por meio de obras de
misericórdia e penitência: eles receberão destas o prêmio e a recompensa.

42. Quem chora amargamente suas próprias faltas está longe de se ocupar da
penitência e das faltas de seus irmãos, e de lhes fazer reprimendas.

43. Um cachorro mordido por um animal selvagem se atira sobre ele com toda a
fúria de que é capaz; pois a intensidade da dor que eles experimenta o faz correr
contra ele com uma determinação implacável.

44. Prestemos atenção ao silêncio de nossa consciência, e fiquemos preocupados:


não esteja nossa consciência silenciosa por termos nosso coração cego e
endurecido, e não por a termos purificado.

45. Uma das provas que podemos ter neste mundo, agora e daqui para frente, de
que foram quitadas as dívidas que contraímos por nossos pecados, consiste em
crer que somos ainda culpados e devedores perante a Justiça de Deus.

46. Nada pode se comparar às Misericórdias do Senhor: elas estão


soberanamente acima de qualquer coisa. Assim, não esperar em Deus equivale a
querer se perder eternamente.

47. A marca verdadeira e o sinal inequívoco da penitência consiste em estar


convencido e persuadido que merecemos, seja no corpo, seja no espírito, todas as
penas, todos os males e todas as aflições que suportamos, e que merecemos
sofrer ainda mais.

48. Moisés, ainda que tenha visto a face de Deus e a sarça ardente, não obstante
retornou ao Egito, vale dizer, às trevas do século, para se encarregar de produzir
tijolos a serviço do Faraó, que era a figura do demônio. Porém, ele não tardou em
regressar para junto do arbusto, e pouco tempo depois ele mereceu subir até a
montanha santa onde Deus havia fixado sua morada de maneira visível. Quem
compreender o significado da figura a seguir jamais desesperará de sua salvação:
Jó, este homem eterno, de prosperidade e riquezas extraordinárias, caiu numa
pobreza espantosa; e, no entanto, a seguir se tornou duas vezes mais rico do que
jamais havia sido.

49. Esses monges preguiçosos e negligentes que, depois de sua santa profissão,
caem em faltas, sofrem na realidade quedas perigosas e funestas; pois estas
normalmente os fazem perder a esperança de alcançar a paz do coração, e os
fazem acreditar que podem se dar por felizes se conseguirem se reerguer e
merecer o perdão.

50. Mas atentem para o fato de que não é possível que a preguiça que nos
separou de Deus seja o meio capaz de nos reenviar a ele; é preciso outra maneira,
para que possamos nos aproximar do Senhor.

51. Eu conheci dois religiosos num mosteiro que se dirigiam a Deus ao mesmo
tempo e pela mesma via. Um era um ancião exercitado depois de longos anos de
trabalhos de penitência; o outro era um noviço nos caminhos da vida religiosa. E
no entanto, este último corria mais depressa do que o primeiro; desta forma,
também ele mereceu o primeiro lugar no túmulo da humildade.

52. Devemos tomar cuidado, principalmente nós que caímos no pecado, em não
deixar envenenar o espírito e o coração com o erro contagioso de Orígenes. A
miserável doutrina deste doutor sobre a excessiva Bondade de Deus para com os
homens é saboreada e apreciada por todos os que só se agradam dos mais
grosseiros prazeres dos sentidos.

53. Quanto a nós, acreditemos que é em nossas meditações fervorosas, e mais


ainda em nossos exercícios de penitência, que se inflamará o fogo de nossa prece,
o qual devorará a matéria de nossos pecados.

54. Que os penitentes que eu lhes apresentei neste quinto degrau sejam seus
guias e seus condutores; que sua penitência, e o fim a que se propunham, seja o
modelo e a imagem da sua penitência e o fim ao qual vocês se proponham,
consagrando-se aos seus salutares exercícios! E estejam certos de que durante
sua peregrinação pela terra, vocês não terão necessidade de outro livro para
conduzi-los e fazê-los chegar com felicidade ao porto da salvação, até que por fim
Jesus Cristo, o Filho único de Deus, lhes apareça e ilumine com suas luzes na
ressurreição produzida por uma verdadeira e sincera penitência. Amém.

Pela penitência vocês subiram até o quinto degrau; assim, com seu auxílio, vocês
purificaram os cinco órgãos de seus corpos, e, por meio de expiações voluntárias,
evitaram as penas e os suplícios que teriam merecido sofrer na eternidade.

SEXTO DEGRAU

Do pensamento da morte

1. O pensamento precede necessariamente as palavras que o expressam. É assim


que o pensamento da morte e a lembrança dos pecados precedem as lágrimas e
os gemidos que uma e outra nos fazem derramar; é por isso que falaremos destas
coisas aqui, segundo sua ordem e seu lugar.

2. Assim é que afirmamos que o pensamento da morte é uma espécie de morte


cotidiana, e que a lembrança de nossa hora derradeira é um gemido contínuo.

3. Foi a desobediência do homem que deu nascimento ao temor da morte, e é por


isso que o temor da morte se nos tornou, de certa forma, natural. Mas vocês
sabem o que nos demonstra este temor? Ele nos mostra que nossa alma ainda
não está perfeitamente lavada nem purificada pelas lágrimas e as austeridades da
penitência.

4. Cristo, para nos ensinar que ele é a um tempo Deus e homem, e para nos
ensinar que os atributos da natureza divina e da natureza humana nele estavam
partilhados, teve medo à vista da morte; mas o divino Salvador não a temeu.

5. Ora, assim como, de todos os alimentos com os quais nutrimos nossos corpos,
é o pão o mais necessário, da mesma forma, de todas as coisas que devem
alimentar e manter viva nossa alma, nada é mais necessário do que a lembrança
e o pensamento da morte.

6. É o pensamento da morte que faz com que os monges que vivem em


comunidade abracem todos os trabalhos e as austeridades da penitência; é ele
que os faz amar as delícias do desprezo e das humilhações; é também o
pensamento da morte que faz com que os solitários que vivem nos desertos e
longe do tumulto renunciem generosamente a toda preocupação com as coisas
presentes, a fim de se consagrar unicamente aos santos exercícios da prece e da
meditação, e de vigiar assiduamente seu espírito e seu coração. Estas virtudes
são igualmente filhas do pensamento da morte.

7. Mas observemos aqui que, embora o estanho tenha muita semelhança com a
prata, podemos distingui-lo facilmente quando o aproximamos dela; da mesma
forma, os que possuem alguma experiência nas coisas relacionadas à salvação,
sabem muito bem colocar uma diferença entre o pensamento da morte produzido
por um sentimento e um movimento da natureza, e o sentimento da morte
produzido pela impressão da graça.

8. A prova certa e indubitável de que tememos a morte por um movimento da


graça é que este temor nos leva a nos despojar de toda afeição pelas coisas
criadas, e nos faz renunciar perfeitamente à nossa própria vontade.

9. É louvável pensar todos os dias na morte, como se a cada dia ela nos pudesse
atingir; mas é um sinal de santidade desejá-la e aguardá-la.

10. Evitemos pensar que todo desejo de morte seja bom e salutar; pois existem os
que desejam a morte porque se veem expostos – pelos pendores que ainda não
conseguiram vencer inteiramente e pelos hábitos que não lhes é possível corrigir
perfeitamente – a incidir sempre e sempre em novas quedas e novos pecados;
existem outros que só desejam a morte por um movimento de desespero: são
pessoas que não querem fazer a penitência; outros ainda chamam a morte por
acreditarem estar livres da servidão das paixões, pensando haver alcançado a
impassibilidade; enfim, há os que, movidos e conduzidos pelo movimento e as
luzes do Espírito Santo, desejam sair deste mundo. Mas estes últimos são
bastante raros.
11. Alguns homens penam, e gostariam de saber, considerando que o
pensamento da morte é tão salutar, por que Deus não quer que conheçamos o
momento em que ela irá nos alcançar. Mas estas pessoas não consideram que
Deus, fazendo desta maneira, só visa nossa própria salvação. De fato, se a hora
da morte fosse conhecida, quem dentre os homens se apressaria em receber o
batismo, em se converter ou em abraçar a vida religiosa? Ah! A maior parte
passaria a vida no crime, e somente na última hora pensariam em recorrer ao
santo batismo ou à penitência.

12. Vocês que choram seus pecados, evitem as armadilhas do demônio: ele
tentará enganá-los, dizendo que Deus é bom e misericordioso. Esta é uma
verdade que só devemos ter em mente para os preservarmos do desespero; mas o
demônio, ao sugeri-la, quer com isto banir de seus corações o horror e a dor de
seus pecados, e fazê-los perder o temor a Deus, o único que concede a verdadeira
segurança.

13. Sabem com quem devemos comparar aqueles que, pretendendo nutrir em sua
alma o pensamento da morte e a lembrança do Juízo, não deixam ao mesmo
tempo de abraçar toda espécie de preocupações e de ações profanas? Comparam-
nos a pessoas que tentam nadar tendo amarrados os pés e as mãos.

14. O pensamento da morte, que devemos tomar como verdadeiro e eficaz, é o


que extingue em nós a intemperança; pois, uma vez que trinfamos sobre esta
paixão, conseguiremos facilmente vencer as demais.

15. A insensibilidade do coração produz a cegueira na alma; a quantidade de


comidas faz secar inteiramente a fonte das lágrimas; a sede, a fome e as vigílias
afligem o coração; e um coração aflito e mortificado conforme a Deus derrama
lágrimas abundantes e salutares. Sem dúvida estas verdades parecerão duras
aos que amam a boa vida, e impraticável aos que vivem nos braços da preguiça,
mas um coração fervoroso e generoso as apreciará e as praticará com alegria; e
adquirindo o costume, se tornará fiel com indizível facilidade. Mas que tentar
conhece-las apenas para falar delas, só encontrará penas e tristeza.

16. Assim como nossos pais nos ensinaram normalmente que a caridade perfeita
é imune à queda, eu direi que a perfeita meditação da morte é imune de qualquer
temor.

17. Uma alma que procura por todos os meios assegurar sua salvação se ocupa
de muitos pensamentos salutares: ela pensa no amor que Deus tem por ela, na
morte, na presença de Deus, no Reino celeste, no fervor dos mártires; mas é
sobretudo o pensamento de Deus presente em toda parte que a absorve
inteiramente. É por isso que ela medita sem cessar estas palavras: “Eu olhei
continuamente para o Senhor, e o tive sempre diante de meus olhos[68]”. Ela não
perde de vista a lembrança dos anjos e das potências celestes, sem sua
derradeira hora neste mundo, nem o momento terrível em que comparecerá
diante do tribunal do soberano Juiz, nem os suplícios eternos, nem, por fim, a
sentença que condenará os pecadores a tal. Estas são as grandes verdades de
que se ocupam as almas que desejam servir a Deus. Nós apresentamos aqui em
primeiro lugar os que nos pareceram mais respeitáveis, e a seguir os mais
capazes de inspirar o horror ao pecado e de nos impedir de tombar.

18. Um certo monge do Egito me contou um dia o que lhe acontecera. Ele me
disse que havia gravado de tal maneira em seu coração a lembrança e o
pensamento da morte, que este pensamento produzira nele uma impressão tão
vívida e poderosa, que, quando procurava qualquer alívio para seu corpo, que
muito necessitava, este pensamento, como um juiz inexorável, se opunha
vitoriosamente; e, o que lhes parecerá ainda mais espantoso, acrescentou ele que
tentava por vezes rejeitar, ainda que por um instante, este pensamento, sem
nunca o conseguir.

19. Conheci outro monge que vivia num lugar chamado Tholas. Nele, o
pensamento da morte fazia com que perdesse todo sentimento; vendo-o, era de se
crer que ele houvesse evanescido, ou que tivesse caído em estado epilético.
Diversas vezes seus irmãos de mosteiro o encontraram neste estado, e o
transportaram como a um morto.

20. Não posso deixar de contar o que se passou com um solitário, chamado
Hesíquio, da montanha de Horeb. Este pobre solitário teve a infelicidade de
passar os três primeiros anos de seu retiro esquecido de sua salvação,
negligenciando todos os exercícios da vida religiosa. Enfim, Deus o atingiu com
uma doença tão grave que, por mais de uma hora, ele foi considerado morto.
Quando ele voltou a si, pediu-nos com insistência que fôssemos embora e o
deixássemos só. Nós o obedecemos, e logo ele fechou a porta de sua cela e aí
permaneceu recluso de tal maneira, que durante os doze anos em que viveu
depois disto, jamais voltou a trocar uma palavra sequer com quem quer que
fosse, e se alimentava de um pouco de pão e da água que lhe levávamos; ele
permanecia sentado todo o tempo no mesmo lugar e jamais mudava; ele
repassava tão fortemente as coisas terríveis que presenciara em sua visão, que
seu corpo mantinha sempre a mesma posição e a mesma atitude, e, sempre sob o
impacto do mesmo terror, e fora de si, ele mantinha o mais absoluto silêncio e
chorava lágrimas ferventes. Por fim, quando soubemos que ele estava chegando
ao fim da vida, forçamos a porta de sua cela para aí entrar e lhe fazer muitas
perguntas que desejávamos saber. Mas foi em vão, pois dele só obtivemos uma
única palavra: “Perdoem-me, irmãos, mas nada posso lhes dizer, senão que é
impossível que ouse pecar quem tiver o pensamento da morte gravado em seu
espírito”. Esta resposta nos deixou espantados, e nos admirávamos que um
homem de quem havíamos conhecido a preguiça e a negligência pudesse ter
mudado e se transformado em outro homem, e que houvesse adquirido tão
grande perfeição e uma santidade tão prodigiosa. Ao final, ele faleceu e o
enterramos no cemitério próximo ao mosteiro. No dia seguinte fomos visitar seu
túmulo, para ver o santo corpo deste solitário; mas ele já não estava ali. Foi sem
dúvida para dar uma lição aos homens, que Deus permitiu esta maravilha: ele
quis nos fazer compreender que, mesmo depois de abandonar a virtude e
negligenciar a salvação, a conversão sincera e a adoção de uma nova vida de
penitência por parte deste solitário lhe foi preciosa e agradável, e, por
conseguinte, agradável seria igualmente a penitência de todos os pecadores.

21. Assim como dizemos que um abismo possui uma profundidade de água
insondável (e por isso lhe damos este nome), também o pensamento da morte
produz em nós um abismo sem fundo de pureza e boas obras. É o que nos
demonstra o fato que lhes contei acima, pois os penitentes que, assim como este
santo homem, possuem continuamente no espírito a imagem da morte, sentem
aumentar em si o temor e o medo que ela inspira, até que por fim ela os consuma
até a medula dos ossos.

22. De resto, conforme devemos perceber, estejamos certos de que este temor não
é das menores benesses que recebemos de Deus: pois não é verdade, e não nos
atesta nossa própria experiência, que muitas vezes, mesmo no meio dos túmulos,
mostramos uma insensibilidade férrea, sem derramar uma lágrima sequer,
enquanto que em outras ocasiões, sem estarmos em meio aos mortos e sem a
visão da triste imagem da morte, vertemos torrentes de pranto?

23. Quem pensa verdadeiramente na morte, mata em si toda afeição pelas


criaturas e pelas coisas do mundo; mas quem ainda é dominado pelos desejos
profanos não cessa de colocar armadilhas diante de seus próprios pés.

24. Não use palavras para dizer às pessoas que você gosta delas, que você as ama
comum amor afetuoso; contentem-se em pedir a Deus que as faça saber, do modo
como lhe aprouver, os sentimentos de caridade e de ternura que você sente por
elas; pois se você agir de outro modo, nem todo o tempo de sua vida será
suficiente para testemunhar a seus amigos a afeição que você tem por eles, e ao
mesmo tempo para incitá-lo à compunção e à dor de seus próprios pecados.

25. Não se deixem enganar, vocês que são louvados por trabalhar na vinha de
Cristo, e não pensem que podem resgatar o tempo com o tempo; pois cada dia
vivido não basta para quitar as dívidas que contraímos a cada instante que
vivemos.

26. É assim que um Padre nos disse que pobres mortais, como nós, não
conseguem passar um dia sequer de suas vidas de modo santo e louvável, se não
considerarem para si próprios que este dia é o último de sua existência nesta
terra. E o que é surpreendente é que alguns escritores, mesmo no seio do
paganismo, dizem algo semelhante: pois eles escreveram que o amor à sabedoria
não era outra coisa do que o pensamento da morte. Quem alcançar este sexto
degrau já não se deixará cair em pecado, conforme o oráculo divino: “Lembrem-se
de seu fim derradeiro, e não pequem jamais[69]”.

SÉTIMO DEGRAU

Da tristeza que produz a alegria

1. A tristeza segundo Deus é uma aflição do coração e um sentimento de dor que


a alma penitente experimenta: sentimento inefável que a faz buscar com ardor
aquilo que ela deseja intensamente; que, não obtendo este bem desejado, a faz
enfrentar trabalhos inacreditáveis; que, quando sente que não a pode obter, ela
lança gritos de dor e gemidos lamentáveis.   

 2. Podemos dizer que esta tristeza é um aguilhão precioso da alma que, pelas
preciosas agulhadas que causa, a livra e purifica de todas as afeições terrestres, e
que, pela dor que lhe inflige, a fixa e a obriga unicamente a velar sobre si mesma
e a cuidar de sua salvação.

3. A compunção que os monges chamam de compunção religiosa é um remorso


da consciência por meio da qual esta força uma alma a se acusar interiormente
como sendo culpada e criminosa, e, por meio desta confissão interior a abrasa
com um fogo divino e lhe traz um maravilhoso refresco.

4. Esta confissão ainda faz com que esqueçamos das preocupações da natureza,
conforme esta palavra de Davi: “Eu esqueci de comer meu pão e de tomar meu
alimento[70]”.
5. A penitência é uma alegre e agradável renúncia a toda espécie de consolação
humana.

6. O silêncio e a temperança são a alegre partilha de todos os que progridem


nesta tristeza salutar. A mansidão e o esquecimento das injúrias ornam o coração
das pessoas que, por meio de combates sustentados com coragem, obtiveram
alguma vitória; enfim, os que com toda felicidade alcançaram a perfeição desta
bem-aventurada tristeza, se enchem de afeto e amor pela prática da mais
profunda humildade, são devorados por uma sede ardente pelo desprezo e as
humilhações, por uma fome violenta por todas as coisas que assustam e fazem
gritar a natureza; de resto, eles queimam com uma caridade tão pura e forte por
seus irmãos, que não apenas perdoam-lhes as faltas que os veem cometer, como
ainda seu coração é tocado por uma compaixão celeste em relação a eles.
Devemos aprovar os que fizeram algum progresso, louvaram os que obtiveram
algumas vitórias, e proclamar felizes os que têm fome de humilhações e
sofrimentos: pois estes últimos serão saciados com este alimento celeste que
jamais inspira desgosto.

7. Assim, se vocês tiverem a felicidade de obter o dom das lágrimas, empreguem


todos os meios capazes de conservá-lo. Pois assim como a cera se derrete
facilmente no fogo, este dom, caso não possua raízes firmes na alma, se perde e
desaparece depressa por causa das inquietudes do espírito, pelos cuidados que
tomamos com o corpo, com os prazeres sensuais e sobretudo pela coceira de
falar, pela inconsequência e a petulância.

8. E, ousaremos dizê-lo? Esta feliz fonte de lágrimas é, de certa forma, mais forte
e poderosa do que a água do batismo. Com efeito, o batismo nos purifica das
faltas de que somos culpados ainda antes de receber este sacramento; mas o dom
das lágrimas nos purifica de todas as faltas que tenhamos cometido no decorrer
de nossa vida. O batismo que recebemos em nossa infância no conferiu uma
graça infinitamente preciosa, e nos colocou num estado sobrenatural; mas os
pecados em que caímos de forma miserável nos fez perder esta graça inestimável
e este estado feliz; o dom das lágrimas nos faz recuperar esta graça, e, de certo
modo, restabelece o batismo em nós. Devemos concordar que seriam bem raros
os homens capazes de alcançar a salvação, se Deus, em sua infinita Bondade,
não nos houvesse concedido o dom das lágrimas.

9. Vejam como os gemidos e a aflição de um coração contrito e arrependido


penetra até o trono de Deus, como as santas lágrimas que o temor ao Senhor nos
faz derramar são como emissários que enviamos adiante de nós para lhe pedir
graça e misericórdia; e como aquelas que seu Amor nos faz derramar nos dão a
segurança deliciosa de que nossas preces e nosso arrependimento lhe é
agradável.

10. Mas lembremo-nos bem que, se nada é mais conforme e favorável à


verdadeira humildade do que as lágrimas de uma penitência sincera, também
nada é mais contrário e nocivo do que a dissipação de uma vida mundana.

11. Conservem portanto, na medida do que forem capazes, a tristeza salutar de


uma santa compunção; ela lhes trará a alegria sólida e verdadeira; não cessem de
aumentá-la a aperfeiçoá-la em vocês até que ela os desembarace de todas as
coisas da terra, purifica suas almas e toda mancha, a apresente a Cristo seu
sacrifício puro e santo.
12. Esforcem-se continuamente, tanto para a mortificação dos sentidos, como
para o recolhimento do espírito e uma profunda meditação, para representar para
si próprios este abismo imenso, esta fornalha abrasada por chamas tenebrosas,
este juiz severo e inexorável, esta vasto caos dos fogos eternos, estas descidas
estreitas e obscuras dos lugares subterrâneos, estas moradas desesperadas e
estes precipícios profundos. Sim, gravem com força no espírito a ideia e a imagem
de todas estas coisas assustadoras e outras semelhantes, a fim de que, se seu
coração se dirigir infelizmente a uma vida mole e relaxada, atingido por um justo
terror ele se aplique em procurar uma castidade incorruptível, e que, pelos
sentimentos de uma tristeza salutar ele possa usufruir das luzes espirituais, e se
tornar mais puro e mais luminoso do que as chamas mais puras e mais
resplendentes.

13. Quando vocês se dedicarem ao santo exercício da oração, estejam diante de


Deus como um criminoso diante do juiz; tremam e façam de modo a que, pela
postura humilde do corpo e mais ainda pelas disposições internas da alma,
tenham a felicidade de acalmar sua justa Indignação: pois ele não pode rejeitar
uma alma que se apresenta a ele da mesma maneira que a viúva desolada de que
fala o Evangelho, e que, pelo fervor e a persistência de sua prece, continuou a
bater à porta de sua Bondade suprema.

14. Quem recebeu o dom das lágrimas sempre está bem, para chorar seus
pecados, em qualquer lugar que seja; mas quem não chora senão por razões
humanas escolherá os locais mais convenientes às suas disposições naturais, e
ficará feliz em ter testemunhas de suas lágrimas.

15. Assim como um tesouro escondido está menos exposto à rapacidade dos
ladrões do que o que está à vista de todo mundo, também as lágrimas interiores
estão menos propensas a serem perdidas do que as exteriores.

16. Evitem imitar aqueles que enterram seus mortos: vocês os verão chorar por
um momento sobre o túmulo, e um instante depois os encontrarão em plena
bebedeira. Façam como se trabalhassem como condenados nas minas e que a
toda hora são cruelmente chicoteados pelo encarregados de vigiar.

17. Aquele que ora chora, ora se entrega à alegria e ao prazer, se parece com um
homem que, para se desembaraçar de um cachorro de rua, lhe atira um pão ao
invés de lhe atirar pedras: é evidente que ao agir assim, ao invés de afastar o
animal, fará com que este o siga todo o tempo.

18. Assim é que vocês que choram seus pecados devem ser inimigos de toda
ostentação, aplicando-se unicamente à guarda do coração. Os demônios temem
tanto as pessoas que vivem no recolhimento e na vigilância, como os ladrões
temem os cães de guarda à noite.

19. Meus amigos, Deus, ao nos chamar para a vida monástica, não nos chamou
para as núpcias para que nos entreguemos à alegria; ele deseja que choremos por
nós mesmos.

20. Existem pessoas que, por um lamentável erro, ao derramarem lágrimas de


dor e de arrependimento, violentam-se para não pensar em nada. Eles ignoram
que as lágrimas, sem os bons pensamentos, podem convir a criaturas
desprovidas de razão, mas não às criaturas dotadas de intelecto e de razão: pois
não é dos pensamentos que nascem as lágrimas? E não é por meio do espírito e
da razão que são produzidos os pensamentos?
21. Quando vocês forem repousar, tenham o cuidado de assumir a mesma
posição em que serão colocados no túmulo, e vocês experimentarão menos as
delícias dos sonhos. Quando estiverem à mesa, pensem na triste e fúnebre mesa
na qual vocês próprios servirão de alimento aos vermes, e estarão menos tentados
a se entregar à sensualidade. Vocês se sentem sedentos e querem aliviar a sede?
Lembrem-se da sede devorante que sofrem os condenados em meio às chamas do
inferno, e será fácil violentar a natureza, não concedendo a ela tudo o que ela
pede.

22. Não sofreu Nosso Senhor humilhações desonrosas e honrosas a um só


tempo? Ele nos faz reprimendas amargas, e nos inflige penitências rigorosas?
Lembremo-nos esta sentença fulminante do soberano juiz: “Retirem-se de mim,
malditos![71]”, e esta lembrança, como uma espada de dois gumes, rasgará e
dará morte em nós aos injustos e funestos sentimentos de tristeza e amargura, e
nos conduzirá a viver na paciência e na resignação.

23. O tempo, conforme o santo homem Jó, faz secar o mar[72], e, por meio da
paciência, nos fará adquirir e aperfeiçoar em nós as virtudes de que falamos.

24. Que o pensamento das chamas eternas os acompanhe ao entardecer, quando


vocês se dirigirem ao leito; que ao amanhecer ele presida ao seu despertar, e
estejam certos de que a preguiça e a negligência jamais dividirão seus corações:
acima de tudo, vocês serão preservados durante suas orações e a recitação dos
salmos.

25. Que os cuidados que vocês têm para com seus corpos e o hábito monástico
que vestem os instiguem a chorar por suas faltas; pois os que trazem em si o luto
se revestem de hábitos com o mínimo de cores. Se vocês não choram ao menos
chorem por não chorar; e, se vocês choram, que seja por que seus pecados os
fizeram perder o estado feliz em que estavam pela graça e a amizade de Deus,
reduzindo-os ao penoso estado em que se encontram agora.

26. Em nosso pranto e nossa penitência, como em todas as demais coisas, Deus,
que é um juiz cheio de clemência e equidade, terá olhos para a nossa fraqueza.
Mais de uma vez me aconteceu ver pessoas que, derramando poucas lágrimas, as
vertiam com tão grande dor que as tomaríamos por gotas de sangue, assim como
vimos outras que choravam abundantemente e sem esforço. Eu estimo mais a
violência da dor do que a abundância das lágrimas; e creio que Deus julga da
mesma maneira.

27. Não convém aos que choram tratar e se ocupar de matérias relevantes e de
questões teológicas: semelhante ocupação poderia secar a fonte de suas lágrimas;
pois quem se aplica a estas ciências é semelhante a um doutor gravemente
sentado numa cadeira para, com sua autoridade, dar aula aos outros; enquanto
que aquele que chora suas faltas não deve ter nenhuma semelhança senão como
alguém sentado sobre uma esterqueira e coberto com um saco e um cilício. É por
esta razão que Davi, por maior que tenha sido sua ciência e por mais profunda
que tenha sido sua sabedoria, respondeu aos que lhe pediam que cantasse os
cânticos: “Como poderíamos cantar cânticos de louvor ao Senhor, estando numa
terra estrangeira?[73]”; ou seja, no país para onde nossos pecados nos
conduziram em cativeiro.

28. No curso natural das coisas, existem aquelas que possuem um movimento
por si mesmas, e outras que o recebem de uma causa externa a eles. Ora, na
penitência de nossos pecados, existem lágrimas que correm por si sós de nossos
olhos; mas também existem aquelas que que só derramamos com esforço e
violência. Assim, quando sem movimento ou esforço nos sentimos enternecidos e
derramamos com abundância lágrimas de uma doçura celeste, neste momento
devemos nos apressar em correr para o Senhor; pois esta é uma prova de que,
sem que tenhamos lhe pedido, ele veio a nós para nos presentear com a esponja
misteriosa da tristeza que lhe é agradável, para criar em nós uma fonte de água
refrescante, e para nos fazer dom dessas lágrimas felizes que apagam nossos
pecados do livro de sua eterna Justiça. Conservemo-la preciosamente com o
maior cuidado, guardando-a até que ele considere que deva no-la retirar; pois
esta dor, que sua graça produz em nós, possui mais virtude para nos purificar de
nossas faltas do que a que provocaríamos em nossos corações por meio de muitos
esforços e violências.

29. Quem chora quando quer certamente não recebeu de Deus o dom das
lágrimas; recebeu este dom aquele que chora o que quer chorar, ou melhor,
aquele que chora as coisas que Deus quer que ele chore.

30. É muito comum que às lágrimas da penitência misturemos as da vanglória,


que são odiosas aos olhos de Deus. É a prudência e a verdadeira piedade que nos
fazem conhecer esta falsa tristeza. Como poderíamos esperar sinceridade de
nossas lágrimas, se, ao mesmo tempo em que as derramamos, deixamos de
corrigir nossos defeitos?

31. A verdadeira compunção é isenta de todo inchaço do coração e de toda


vaidade, e não nos traz nenhuma consolação humana, mas nos lembra
continuamente de nossa última hora e nos faz esperar de Deus, o único
Consolador dos humildes de coração, as consolações e as doçuras inefáveis que
devem ser para nós um banho refrescante e de paz.

32. Todos os que receberam esta aflição divina e consoladora sentem uma santa
aversão pela vida presente, vendo-a como fonte e princípio funesto de todas as
suas penas e de suas misérias, e sentem contra seus próprios corpos a mesma
raiva que temos contra um inimigo que tenta nos matar.

33. Assim é que, se percebemos, nos que se acreditam verdadeiramente aflitos


segundo Deus, certos movimentos de cólera ou sentimentos de orgulho, podemos,
sem medo de errar, considerar que suas lágrimas não são sinceras nem
produzidas por uma verdadeira compunção; pois, como disse são Paulo: “O que
existe de comum entre a luz e as trevas?[74]”.

34. A verdadeira compunção derrama consolações nas almas; a falsa só produz


orgulho.

35. Assim como o fogo consome a palha, também as lágrimas sinceras consomem
e fazem desaparecer inteiramente as sujeiras visíveis e invisíveis da alma.

36. Muitos padres não hesitam em afirmar que não é difícil distinguir as lágrimas
sinceras das que não o são, principalmente em pessoas que estão no começo da
penitência, quando seu discernimento ainda está cheio de trevas e obscuridade;
pois, dizem eles, as lágrimas podem ser produzidas por diversas causas
diferentes: tanto por um sentimento natural e por um motivo louvável, como por
uma razão vergonhosa. Neste último caso, o princípio terá sido a vanglória ou um
amor desregrado e profano; no primeiro, terão sido produzidas pelo pensamento
da morte ou por muitas outras boas considerações do gênero.
37. Depois de nos termos servido do temor a Deus para descobrirmos e
conhecermos a fonte das lágrimas que vertemos, dediquemo-nos a procurar as
que são causadas pelo pensamento de nossa última hora, pois este tipo de
lágrima é pura e sincera; elas não susceptíveis de vaidade nem de ilusão, elas
purificam nossa alma e acendem em nosso coração o fogo do santo amor a Deus;
por fim, elas apagam os pecados, e nos trazem o bem inestimável da paz no
coração.

38. Evitemos ficar surpresos e espantados, se por vezes lágrimas produzidas por
uma dor sincera do pecado ou por uma outra boa causa insuspeita se tornem
apesar disso más e condenáveis; o que nos deve encher de espanto é ver lágrimas
que, tendo desde o começo um mau princípio e uma fonte envenenada, cheguem
a se tornar sobrenaturais e santas. As pessoas levadas à vanglória não deixarão
de compreender o que queremos dizer aqui.

39. Não contem com a abundância de suas lágrimas, se vocês não se sentirem
purificados de seus pecados. O vinho que acaba de ser retirado do lagar não
merece elogio nem depreciação.

40. Ninguém duvida que as lágrimas produzidas pela graça de Deus nos são
soberanamente úteis e salutares; mas somente na morte conheceremos
perfeitamente sua utilidade e seus preciosos benefícios.

41. Assim, aquele que passa sua vida a derramar constantemente lágrimas
agradáveis a Deus, celebra todos os dias novas bodas espirituais, enquanto que
quem passa os dias em prazeres e alegrias profanas chorará pelos séculos
infinitos da eternidade.

42. Podem os criminosos experimentar algum prazer na prisão? E como poderiam


os verdadeiros experimentá-los na terra? E não era com este sentimento que
falou este grande penitente, tão célebre pela sinceridade e a pureza de suas
lágrimas, quando disse: “Tire, ó Senhor, minha alma deste lugar onde me
encontro encerrado[75]”, a fim de que eu estremeça de alegria no seio de sua luz
incompreensível.

43. Conservem-se no meio de seus corações como um general em meio à sua


armada; ordenem ao coração com absoluta autoridade todas as práticas da mais
profunda humildade. Assim, quando vocês ordenarem à alegria que se retire,
dizendo-lhe: ‘vá’, ela irá; e, quando disserem às lágrimas: ‘venham’, elas virão; e
ao seu corpo, que é seu escravo: ‘faça isso’, ele o fará[76].

44. Qualquer um que tenha se revestido do dom das lágrimas como de uma
roupa nupcial, sentirá o que é a doçura inexprimível da alegria espiritual.

45. Que monge terá vivido tão santamente para poder dizer que, desde sua
entrada na religião, não perdei um só dia, uma só hora, um só momento, mas
que consagrou ao serviço de Deus sua vida inteira, com o pensamento de que um
dia perdido não voltará jamais?

46. Este monge será verdadeiramente feliz, este que, pela vivacidade de sua fé,
pode contemplar a beleza dos anjos e usufruir assim da convivência com estas
Inteligências celestes; mas é também feliz, de outro modo, aquele que, pela
meditação da morte, pela lembrança amarga de seus pecados e pelas lágrimas
abundantes de sua fervorosa penitência, conseguiu se colocar no estado feliz de
não recair no pecado. É difícil me convencer, eu creio, de que, para chegar à
perfeição do primeiro estado, não se deva primeiro passar pelo segundo.

47. Eu vi pobres cuja audácia chegou ao ponto de se dirigirem diretamente a reis,


e que os pressionaram com palavras tão engenhosas e maneiras tão envolventes,
que estes se enterneceram em vista de sua posição miserável e foram levados a
sentir piedade de sua miséria. Mas também vi pobres de outra espécie, os quais,
sem absolutamente virtude alguma, se dirigiram ao Rei do céu. Eles reclamavam
seu socorre e seus favores com uma perseverança e uma assiduidade que
poderíamos chamar de inoportunas; em tudo isso não empregavam expressões
escolhidas e estudadas, mas se contentavam em lhe expor suas necessidades
prementes com uma modéstia perfeita, uma humildade profunda e um temor
respeitoso; não cessavam de lhe expressar os sentimentos de sua dignidade e de
lhe repetir com um tom de profunda dor e inteira convicção não serem
merecedores de ser escutados nem atendidos; e, no entanto, esta violência com
que agiram, de alguma forma o forçou, a ele, o Rei, a sentir compaixão por eles e
a lhes conceder aquilo que pediam.

48. Aquele que se sente envaidecido por haver recebido o dom das lágrimas, e que
condena os demais por ainda estarem privados disto, se parece com alguém que
pediu armamentos ao seu soberanos e, tendo-os recebido, ao invés de usá-los
contra os inimigos de seu príncipe, dele se serve para ferira si mesmo e acabar
morrendo.

49. Não nos esqueçamos de que Deus não precisa de nossas lágrimas, e que ele
não gosta de ver que as inquietudes e a tristeza devoram e consomem nossos
corações; o que ele deseja é que, abrasados pelo fogo sagrado de seu Amor,
experimentemos e saboreemos as delícias de uma felicidade pura e totalmente
espiritual.

50. Retirem o pecado de seus corações, e vocês não terão mais motivos para
derramar lágrimas. Por que razão alguém colocaria um emplastro sobre um dos
membros de uma pessoa que não tivesse ferida alguma? Derramaria lágrimas
Adão, antes de sua desobediência fatal? Ou o farão os justos, depois da
ressurreição e da inteira abolição do pecado? Não está escrito que então “não
haverá nem pranto, nem gemidos, nem dor, nem aflição[77]”?

51. Vi pessoas que pareciam não ter tristeza, ainda que estivessem na realidade
aflitas; mas exteriormente as tomaríamos por pessoas felizes, e não tomadas pela
aflição. O Amor de Jesus Cristo as mantinha ao abrigo de todo perigo; os
demônios nada podiam contra elas, pois a elas poderíamos aplicar as palavras:
“O Senhor ilumina as trevas dos cegos[78]”.

52. Também é comum acontecer de as lágrimas encherem de vaidade aos que não
possuem senão uma virtude fraca e cambaleante. Então, por uma traço
admirável de sua Providência, Deus os priva deste dom que para eles se tornou
funesto, a fim de que, desejando e pedindo estas lágrimas, eles se aflijam e se
condenem, que vivam em suspiros e gemidos, na dor e na tristeza, nas duras
inquietações e na ansiedade dilacerante; pois, nos desígnios de Deus, todas estas
penas que eles suportam então tomam o lugar do dom das lágrimas, e, embora a
eles pareça não retirar daí nenhum fruto, elas lhes são infinitamente vantajosas.

53. Observando atentamente os diversos artifícios do demônio, veremos que


muitas vezes ele nos faz cair numa ilusão bastante funesta e bem própria a nos
causar pena, e que ele nos engana de maneira bem patética. Com efeito, por
acaso é raro que, estando bem saciados e contentes em nossa sensualidade, ele
nos amoleça e nos faça derramar lágrimas em abundância, e que, quando
observamos fielmente o jejum e as regras da temperança, ele nos endureça e faça
secar a fonte de nosso pranto? Ora, quem não vê que, pelas falsas lágrimas que
ele coloca em nossos olhos, ele quer que nos abandonemos à intemperança e à
sensualidade, duas fecundas fontes de vícios? Assim, em lugar de cairmos nestas
armadilhas, estejamos atentos para fazer o contrário do que ele nos sugere.

54. Quanto a mim, eu lhes confesso que ao considerar a natureza da compunção


do coração eu fico cheio de espanto, e não posso deixar de me admirar como é
possível que a dor e a aflição da penitência encerrem em si mesmas a felicidade e
a alegria, como uma colmeia de abelhas esconde o mel. Mas o que nos ensina
esta maravilha? Que a tristeza e as lágrimas de uma alma contrita e penitente
são real e verdadeiramente um dom de Deus; pois o que faz com que esta alma
arrependida experimente este prazer e esta alegria interiores, tão doces e
consoladores, é que o próprio Deus, de um modo secreto e invisível, comunica
aos corações aflitos e quebrantados pela dor de suas faltas as doçuras e as
consolações de uma alegria celeste.

55. Mas nada, creio eu, poderá contribuir mais a nos convencer o quanto temos
necessidade de chorar nossos pecados, e o quanto as lágrimas de uma doçura
sincera são úteis à nossa alma, como a história verdadeiramente extraordinária a
surpreendente que eu vou lhes contar. Havia no mosteiro em que eu estava um
monge chamado Estevão; como ele amava a vida solitária e eremítica, desde de
muitos anos ele vivia inteiramente separado dos irmãos e tinha se tornado um
exemplo por seus jejuns rigorosos, suas lágrimas abundantes e por outras
virtudes semelhantes. Ele havia fixado sua cela ao pé da santa montanha onde
um dia estivera Elias na presença de Deus. Mas este homem verdadeiramente
respeitável, desejando praticar exercícios de uma penitência mais austera e mais
laboriosa, se retirou para o deserto dos Anacoretas, chamado Sidon, e aí viveu
muitos anos na mais severa e estrita disciplina. Este lugar, inteiramente privado
de qualquer consolação humana, era de início quase inacessível, distante setenta
milhas de toda habitação. Por fim este santo ancião, chegado ao final de seus
dias, retornou para sua primitiva cela na montanha de Elias, onde tinha por
discípulos dois monges da Palestina, que eram muito piedosos e severos
observadores da disciplina religiosa. Eles haviam permanecido nesta cela durante
a ausência do ancião, o qual, depois de alguns dias de seu retorno, caiu
perigosamente doente, e esta doença o conduziu ao túmulo. Durante a vigília de
sua morte ele esteve arrebatado fora de si, e neste arrebatamento ele olhava à
direita e à esquerda, como se houvessem pessoas ao seu redor; e ele prestava
contas de sua vida a estas pessoas, em tão alta voz, que todos os que estavam
presentes podiam ouvi-lo. “Sim, dizia ele algumas vezes, é verdade; eu cometi esta
falta, mas jejuei muitos anos para expiá-la”; e outras vezes: “Não, eu não cometi
esta falta; vocês me acusam erradamente”. Depois ele acrescentava: “Eu confesso
que me tornei culpado desta fraqueza; mas eu a chorei, fiz penitência e busquei
afastá-la de mim por meio de santos exercícios e de obras de caridade. E é
absolutamente falso que eu seja acusado disto agora”, dizia vivamente. Sobre
outras questões, ele dizia: “Vocês têm razão, eu confesso que sou culpado e que
nada tenho a apresentar para me justificar, que não tenho outro recurso senão a
Misericórdia de Deus, em quem ponho toda minha confiança”. Ora, este exame
extraordinário era um espetáculo tanto mais amedrontador e terrível na medida
mesma em que este pobre monge era acusado de faltas que não havia cometido.
Ah! Justos céus! Se um fervoroso solitário, um anacoreta que, durante quarenta
anos passados em vida eremítica, chorara tão amargamente seus pecados, e os
tinha expiado por meio de toda espécie de austeridades, se este homem
confessava que determinadas faltas eram-lhe ainda indesculpáveis, que poderia
então acontecer a mim? Não devo eu clamar: Infeliz que sou! Sim, infeliz,
miserável, pois este grande solitário não foi capaz de calar os demônios que o
acusavam com estas palavras de Ezequiel: “O Senhor disse: eu os julgareis
segundo seus caminhos.[79]”? Mas glória seja dada a Deus, o único que conhece
as coisas ocultas! E no entanto muitas pessoas me disseram que, enquanto vivia
no deserto, este bom solitário dera com suas próprias mãos de comer a um
leopardo. E foi no decurso deste exame rigoroso, enquanto prestava contas de
sua vida, que ele entregou sua alma a Deus, sem que pudéssemos saber o final
deste julgamento, e qual teria sido a sentença recebida.

56. Assim como uma pobre viúva, após a morte de seu marido, só encontra
consolo no único filho que lhe resta, também uma alma que caiu no pecado não
consegue encontrar nenhum alívio no momento de deixar a vida senão nos
trabalhos penosos que suportou, nos rigorosos jejuns praticados, nas lágrimas
vertidas e na penitência realizada.

57. Estes tipo de penitentes não se permitem sequer cantar hinos e cânticos
quando estão a sós, por que estes cânticos seriam capazes de sufocar seus
suspiros e diminuir suas lágrimas. Então, se vocês imaginam que, cantando os
hinos, incitarão em si sentimentos de penitência, saibam que estão bem longe
disto, e que a penitência está bem longe de vocês. A penitência é uma dor da
alma que vem habitar nela depois de muito tempo, e que nela se conserva por
intermédio do fogo do amor.

58. Esta penitência precede na alma a paz e a tranquilidade do coração: é ela


que, purificando-a e buscando a vitória sobre as paixões e os maus hábitos, a
reveste de seu primeiro ornamento.

59. Eis o que me contou a respeito de si próprio um homem ilustre por sua longa
e rigorosa penitência: “Quando eu era tentado a me entregar à vanglória, à
impaciência, à intemperança, a lembrança de minha penitência se opunha
fortemente e me fazia escutar dentro de mim estas palavras severas: ‘Cuidado
para não se deixar levar pela vanglória, pois do contrário eu o abandonarei’; e o
mesmo acontecia em relação às outras tentações. Então eu lhe respondia,
dizendo que jamais a desobedeceria até que pudesse ser apresentado com
segurança diante do tribunal de Jesus Cristo”.

60. Mas se uma alma profundamente penitente e sinceramente afligida por seus
pecados recebe de Deus consolações inefáveis, uma alma pura e santa recebe
dele luzes extraordinárias. Ora, esta iluminação divina é uma impressão doce e
forte, que não podemos exprimir, nem compreender, nem ver: somente a fé é
capaz de compreendê-la, vê-la e senti-la. Quanto às consolações da alma
penitente, é um certo frescor doce e agradável que torna de certo modo esta alma
semelhante a uma criança que chora e ri ao mesmo tempo. Este frescor, por um
efeito admirável, renova esta alma aflita e faz com que suas lágrimas, de
amargas, se tornem doces e agradáveis.

61. As lágrimas produzidas pelo pensamento da morte fazem nascer o temor a


Deus nos corações; este temor a Deus engendra a confiança, e esta firma
confiança produz uma alegria perfeita, que enfim gera a flor divina do amor.

62. Afastem para longe, com um espírito de verdadeira humildade, toda alegria
estrangeira, como sendo indigna de vocês; e não deixem de temer que, pelas
mentiras do demônio, venham a receber um lobo devorador aos invés do pastor
de suas almas.

63. Cuidado para não desejar, antes do tempo, se elevar a uma sublime
contemplação; façam de modo a que, pela perfeição de sua humildade, seja ela a
procurá-los e capturá-los para se unir à sua alma numa união pura e
indissolúvel.

64. Vejam como uma alma religiosa se assemelha à de uma criança: apenas se
aproxima o pai e ela se enche de uma alegria que não consegue expressar; e, se
por qualquer razão seu pai se ausenta, quando ele retorna, a criança mostra ao
mesmo tempo seu contentamento e sua pena: seu contentamento, por que ela
recebe seu pai depois de uma ausência que muito custou a ela; sua pena, por
que ela ficou tanto tempo privada de sua presença.

65. Também esta alma se parece com uma criança: vejam como uma mãe se
esconde e se oculta da vista de seu filho, mas que, assim que ouve seus gemidos
e vê suas lágrimas, experimenta um prazer delicioso, por que o está ensinando a
sentir a importância e a necessidade de não se afastar de sua presença; deste
modo ela nutre e aumenta em seu filho o afeto que ele sente por ela. Ora, disse o
Senhor: “Quem tiver ouvidos para ouvir, escute estas palavras[80]”.

66. O criminoso condenado à pena capital por acaso pensa nos exercícios do
Ginásio ou nas peças apresentadas no teatro? Ora, quem pensa nos pecados que
lhe condenam aos tormentos eternos, será este capaz de se entregar ao prazer, à
vanglória, à cólera e ao mau humor?

67. A penitência, que consiste numa viva e profunda dor da alma, não deve ela
nos fornecer a cada dia novos motivos para nos afligir e sofrer? Não se parece a
alma penitente com uma mulher que se encontra nas dores do parto?

68. O Senhor, cuja justiça iguala sua santidade, recompensa, pelo sentimento de
uma compunção cheia de fé, o monge que, na solidão, vive segundo a fé e as
regras da santidade, assim como recompensa, por meio de inefáveis consolações,
o monge que, por motivos louváveis, habita num mosteiro para aí viver
santamente sob a autoridade e a obediência de um superior. Mas quem,
sinceramente e segundo Deus, não abraça nenhum destes modos de vida, estará
infelizmente privado do dom das lágrimas.

69. Afastem e expulsem para longe o demônio do desespero, este cão raivoso,
que, vendo-os considerar com dor os pecados cometidos, faz todos os esforços
para lhes apresentar um Deus sem clemência, sem bondade e sem misericórdia;
se vocês prestarem atenção, verão que, antes de fazê-los cair nas faltas que agora
choram, este miserável lhes pintava vivamente a bondade, a clemência e a
misericórdia de Deus e, sobretudo, sua admirável facilidade em receber os
pecadores e perdoá-los.

70. O santo exercício da penitência produz seu próprio e feliz costume em nossa
alma, e este costume o torna fácil e agradável. Eis por que ele coloca em nossos
corações raízes tão forte e tão profundas que se torna difícil arrancá-lo de nós.

71. De resto, será inútil nos entregarmos aos mais excelentes exercícios de
piedade, se não tivermos esta dor interior e sincera por nossos pecados; neste
caso, não seremos nada, nada estaremos fazendo; pois para nós, que manchamos
e perdemos a graça preciosa do batismo, que enchemos nossas mãos de
iniquidades, é absolutamente necessário que nos purifiquemos e, por meio do
fogo ardente e contínuo do arrependimento e pelo azeite da misericórdia de Deus,
consigamos derreter esta graxa repugnante dos nossos vícios.

72. Conheci pessoas que estavam, por assim dizer, no último degrau da
penitência. Elas sentiam uma contrição tão viva e aguda de seus pecados, que
chegavam a vomitar sangue. Esta visão me lembrou as palavras do salmista: “Eu
fui flagelado, Senhor, pelo rebenque se sua cólera, como a erva pelos raios do sol,
e meu coração ressecou[81]”.

73. As lágrimas que o temor a Deus nos faz verter produzem em nós o temor de
vê-las secar e a vigilância necessária para conservá-las. Os que não choram seus
pecados senão pelo movimento de uma caridade pouco inflamada e que não tem
a perfeição requerida, logo as verão desaparecer. Não se pode dizer o mesmo dos
que choram suas faltas por que seu coração está abrasado no tempo por uma
fogo digno de uma memória eterna; e acrescentemos aqui que em nossa
penitência, para nossa admiração, foi o mais humilde e o mais abjeto que criou
em nós realmente a maior certeza e segurança de ser agradável a Deus.

74. Existem coisas que fazem secar as lágrimas da penitência, e outras que nelas
misturam, se podemos nos exprimir assim, a lama e as bestas selvagens. As
primeiras foram causa do incesto de Lot com suas duas filhas, e as segundas, da
queda de Lúcifer e de seus anjos.

75.  A malícia dos inimigos de nossa salvação é verdadeiramente incrível: eles se


servem de tudo para transformar nossas virtudes em vícios e para nos encher de
orgulho em coisas das quais devíamos nos cobrir de vergonha.

76. A solidão em que nos encontramos, as celas que ocupamos, os diversos


objetos que encontramos, são muitas vezes capazes de nos levar à compunção; e
não é isto o que nosso Senhor, Elias e são João Batista nos ensinam com seu
exemplo? Pois eles se retiraram para o deserto para estará aí mais desimpedidos
para a oração, e para oferecer a Deus o tributo de suas lágrimas.

77. E no entanto acontece também, e eu próprio já vi isto, que no centro das


cidades e nomeio do tumulto e das agitações do século, monges derramassem
lágrimas abundantemente. Mas não nos enganemos com isto: o inimigo quer nos
levar a que entremos no mundo, fazendo-nos crer que não sofreríamos nenhum
prejuízo nem perda espiritual alguma por frequentarmos os homens, e para que
nos coloquemos no meio das coisas e dos negócios do século, e que, por
conseguinte, é errado temermos assim o mundo e suas agitações tumultuadas.

78. Não percamos de vista que às vezes basta uma palavra para fazer secar a
fonte das lágrimas de uma alma penitente.

79. Podemos dizer que, sem algum tipo de milagre, uma só palavra é capaz de
fazê-las jorrar outra vez? Eh! Meus ternos amigos, na hora de nossa morte, o
soberano Juiz não considerará um crime não termos feito milagres durante a
vida, ou não termos tratado com sutileza as matérias elevadas da teologia, ou não
havermos alcançado um elevado grau de contemplação, mas sim o não termos
chorado nossos pecados de modo a obter seu perdão. Este é o sétimo degrau da
escada do paraíso. Aquele que chegou até aqui, por favor dê-me sua mão, pois
somente isto é possível com o auxílio de alguém, que também chegou a este ponto
e que tenha se purificado dos pecados cometidos durante sua vida.
OITAVO DEGRAU

Da Mansidão, que triunfa sobre a cólera.

1. A água que é pouco a pouco derramada sobre um incêndio acaba por extingui-
lo inteiramente; é o que fazem as lágrimas vertidas por causa de uma verdadeira
dor pelos pecados, apertando e fazendo morrer os movimentos da cólera e
acalmando a impetuosidade do coração: é por esta razão que vamos tratar agora
da mansidão e da bondade da alma.

2. A vitória que obtemos sobre a cólera consiste essencialmente numa sede


inextinguível e num desejo insaciável de menosprezo e humilhações, assim como
a vaidade consiste num desejo imenso de honras e elogios. A mansidão é assim
uma vitória que obtemos sobre a natureza, sofrendo toda sorte de injúrias com
inviolável paciência, que ao final irá coroar nossos combates e nossas fadigas.

3. É assim que ela torna a alma inquebrantável e impassível em meio ao despreza


e às humilhações, dos aplausos e dos elogios.

4. Manter nossa língua em cativeiro e guardar silêncio quando nosso coração é


violentamente agitado, são as primeiras armas desta virtude e as primeiras
vantagens que ela obtém sobre a cólera: saber acalmar o tumulto interior de
nossos pensamentos e de nossos sentimentos nos momentos em que estamos
agitados, são progressos que fazemos na prática da mansidão; mas conservar
nossa alma em calma e tranquilidade em meio aos ventos mais impetuosos, as
tempestades mais furiosas, eis aqui a perfeição da mansidão e da vitória que
obtemos sobre a cólera.

5. Esta paixão se alimenta num pensamento de raiva secreta e na lembrança das


injúrias recebidas; ela nos leva a buscar a vingança contra os que nos ofenderam.

6. O furor é uma paixão instantânea e violenta da alma.

7. O azedume ou a amargura do coração consiste num sentimento, ou antes


numa sensação cheia de malícia que habita o coração e o precipita no abatimento
e na tristeza, sem lhe trazer nenhum contentamento.

8. A cólera já corrompeu rapidamente muitos hábitos doces e tranquilos,


aviltando o coração e cobrindo-o com uma horrível deformidade.

9.  Assim como as trevas se põem em fuga quando o sol derrama seus raios sobre
a terra, também o azedume e a cólera desaparecem prontamente quando a
humildade se apresenta e verte seus perfumes olorosos.

10. Apesar disso, encontramos ainda pessoas que, embora tenham podido atestar
o quanto uma experiência deplorável é capaz de conduzi-las a movimentos de
cólera, não buscam nem empregam os meios e os remédios capazes de curar seus
corações desta funesta enfermidade. Insensatos! Esquecem-se desta sentença
memorável: “O momento da cólera é o momento da perda e da ruína da
alma[82]”.
11. Os movimentos de cólera são muito semelhantes aos movimentos de uma mó
de moinho: eles são capazes de num instante fazer uma alma perder mais farinha
e benefícios espirituais, do que outros levariam nisto um dia inteiro.

12. Eles se assemelham também a estas chamas que, empurradas por um vento
impetuoso, logo reduzem tudo a cinzas. Portanto, vigiemo-nos com grande
atenção, a fim de nos opormos com vigor às suas devastações terríveis e
instantâneas.

13. Não esconderei de vocês, meus amigos, que muitas vezes os demônios, estes
implacáveis inimigos de nossa alma, sabem destramente cessar de nos tentar, a
fim de que pouco a pouco nos tornemos negligentes, que encaremos como leve e
pequeno o que é grave e criminoso, até que por fim tombemos em enfermidades
incuráveis e mortais.

14. Uma pedra aguda, à custa de bater contra outras pedras, perde suas pontas
e se torna arredondada. Da mesma forma uma pessoa dom temperamento bilioso
e colérico, vivendo entre pessoas do mesmo tipo, experimentará necessariamente
um destes dois efeitos: ou corrigirá por meio da paciência seu humor irritadiço e
violento; ou, vencido pelas injúrias que irá receber, se retirará de seu convívio, e
mostrará com esta retirada o quanto ela perdeu de força e de coragem.

15. Um homem escravo da cólera é um epilético espiritual que, primeiro pela


própria vontade e depois pela necessidade do hábito, se arranha e se despedaça.

16. Nada é mais funesto aos que choram seus pecados do que esta paixão
funesta: ela perturba seus corações e os impede de retornar a Deus através dos
sentimentos de humildade que lhes inspirava a vida religiosa que abraçaram;
pois a cólera é a prova evidente de que se está sob o domínio do orgulho.

17. Se a perfeição da mansidão é ser calmo e tranquilo e conservar sentimentos


de amor e afeto pela pessoa que nos ofendeu, mesmo em sua presença, será o
cúmulo do furor nos irritarmos e manifestarmos nossa cólera por palavras e
ações contra quem nos mortificou e irritou, quando estamos a sós e a pessoa está
longe de nós.

18. Se o Espírito Santo é chamado de paz da alma – e o é, com efeito – e a cólera


é chamada de perturbação da alma – e o é, igualmente – não devemos concluir
necessariamente daí que é sobretudo a cólera que nos priva da presença deste
Espírito divino?

19. Dentre os numerosos e traiçoeiros filhos da cólera existe um que, apesar de


sua maldade, nos traz algum benefício. De fato, já vi pessoas que, estando
inflamadas de furor, por um movimento súbito e violento expulsaram de seu
coração uma aversão que nutriam há muito tempo; pois com isto possibilitaram a
quem os havia ofendido, ou de lhes dizer de seu arrependimento pela conduta
passada, ou de lhes dar satisfação pelo mal feito. Desta forma, por um
movimento de cólera, elas se livraram desta paixão. Mas também vi outros que,
por uma hipocrisia infernal, faziam cara de sofrer com paciência as injúrias que
lhes era dirigidas, mas que guardavam delas uma lembrança exata e perfeita.

20. Eu creio que estas pessoas são piores do que as que se deixam levar pelos
rompantes da cólera; pois elas mancham e empanam a brancura e a simplicidade
da pomba com a cor negra e infecta da raiva.
21. Não existe precaução excessiva contra tão infame conduta: trata-se de uma
serpente da qual devemos desconfiar em todas as coisas; é um demônio que,
semelhante ao demônio da impureza, tenta nos por a perder, favorecendo as
inclinações da natureza corrompida.

22. Eu já vi que certas pessoas são de tal modo transportadas pela cólera, que
não podem sequer comer, e esta abstinência, ao invés de acalmar seu furor, só o
faz aumentar; mas, ao contrário, observei que existem outras que, em seus
acessos de cólera e acreditando estar certas, se atiram com uma espécie de raiva
sobre a comida, devorando-a com ferocidade aterradora: e assim estes miseráveis
caem da fossa no abismo. Por fim, vi também alguns que, mais sábios e
semelhantes a médicos experientes, sabem guardar o justo meio entre estas duas
extremidades, extraindo daí grandes benefícios.

23. O canto é apropriado para trazer à alma a calma e a paz; mas ele também
pode prejudicá-la levando a ela prazeres e alegrias; mas quem souber consultar
as circunstâncias e as conveniências dele poderão se servir sabiamente.

24. Num dia em que fui encontrar alguns anacoretas por motivos pessoais,
detive-me por algum tempo fora de suas celas, e ouvi que faziam um grande
barulho, e que discutiam entre si como perdizes numa gaiola, tal era a fúria que
os animava. Tamanha era ela que, embora aquele que os irritara estivesse
ausente, eles agiam como se ele estivesse presente e os estivessem vendo ali
diante deles. Eu os aconselhei a que deixassem suas celas e se retirassem com
toda simplicidade para um mosteiro; pois eu temia que, de homens que eram,
pudessem se transformar em abomináveis demônios. Em outras comunidades eu
vi coisas de natureza completamente diferente: tratava-se de pessoas indolentes e
afeminadas, homens sujeitos à intemperança e à sensualidade, demasiado
afetados e lisonjeiros uns em relação aos outros, e que tomavam todos os
cuidados mais minuciosos com a higiene e a beleza de seus corpos. A estes eu
aconselhei que se retirassem para o deserto, por que a solidão é a inimiga
irreconciliável da luxúria e da sensualidade; pois eu temia que de homens
racionais que eram, se tornassem como animais desprovidos de razão. E quando
acontecia de encontrar pessoas que padeciam amargamente de se ver tentados
pela cólera e para indolência, eu as pressionava fortemente a não se conduzirem
por si próprias, mas que vivessem sob o jugo da obediência. Assim eu pedia
caridosamente a seus superiores que lhes permitissem viver tanto na solidão
como no interior do mosteiro, de maneira a que, pelo menos, em um ou outro
destes estados, elas estivessem sempre na dependência e sob a autoridade de
seus superiores.

25. Se é verdade que aqueles que são levados aos prazeres dos sentidos e à
indolência, não apenas perdem a si mesmos como põem a perder as pessoas que
lamentavelmente se ligam a eles e os frequentam, é também verdade que, como
um lobo furioso, o homem colérico é capaz de perturbar toda uma comunidade e
levar à perdição um grande número de almas.

26. Eu penso que se trata de um crime hediondo perturbar o olho de seu coração,
atitando-se à fúria, conforme a palavra: “A fúria turvou meus olhos[83]”; mas
penso também que é um crime ainda mais temível mostrar por palavras amargas
a agitação interior na qual nos encontramos; enfim, penso que o cúmulo da
infâmia é chegar às vias de fato: isto é o que há de mais contrário à vida angélica,
religiosa e quase divina que nos propusemos vive.
27. Mas devemos frisar aqui que, se você quer retirar do olho de seu irmão uma
palha que você viu ali, cuidado para que este não seja um desejo enganador; não
se utilize, para esta operação delicada, de um instrumento grosseiro, mas
empregue algum que seja próprio e conveniente, e cuidado para não a afundar
ainda mais, em lugar de retirá-la. O instrumento grosseiro é a imagem da
reprovação dura e humilhante que fazemos aos outros, e os modos bruscos e
violentos com que a manifestamos; o instrumento delicado é a imagem de uma
reprimenda cheia de bondade, doçura e benevolência. O Espírito Santo nos disse:
“Repreendam, corrijam e peçam”; mas ele não nos disse: “batam”. Se formos
obrigados a fazê-lo, que seja muito raramente; e que isto só aconteça por mãos de
terceiros.

28. Se prestarmos atenção, veremos que existe nas pessoas violentas e coléricas
uma inclinação pronunciada para a prática do jejum, das vigílias e do silêncio. É
assim que o demônio, este inimigo cheio de astúcia, sob o pretexto da penitência
e do derramamento de lágrimas, lhes fornece a matéria e os meios de aumentar
seu humor violento e azedo.

29. Se um mau monge, como dissemos acima, auxiliado pelo demônio e


semelhante a um lobo, é capaz de perturbar toda uma casa religiosa, um bom
monge, pela razão contrária, escolhido dentre os mais prudentes e sábios, e
ajudado por um anjo, poderá derramar o azeite precioso da doçura em meio a
seus irmãos, apaziguar as tempestades excitadas e os ventos furiosos da cólera e
conduzir com sucesso o navio ao porto da tranquilidade e da calma. Assim, do
mesmo modo como o mau monge deve ser julgado, condenado e punido por sua
conduta, o bom monge, que por sua doçura se tornou exemplo e modelo para
seus irmãos, é digno de receber uma recompensa proporcional à grandeza e à
importância dos serviços prestados.

30. O primeiro grau da mansuetude consiste em sofrer os ultrajes e as


humilhações, por mais amargura e dor que a alma ainda possa sentir; o segundo
grau consiste em suportar estas coisas com calma e tranquilidade; o terceiro, que
é a perfeição da mansidão, consiste em receber o desprezo e as injúrias com mais
prazer do que recebem os mundanos os elogios que lhes são dirigidos. Mas onde
está este homem que alcançou tal perfeição? Fique contente quem chegou ao
primeiro grau; persevere com constância, quem alcançou o segundo; mas quem
atingiu o terceiro, este terá triunfado no Senhor.

31. Mas eis uma coisa verdadeiramente digna de pena: é que as pessoas
irascíveis costumam, devido a uma inconcebível vaidade, se irritar e se
encolerizar por se deixarem vencer por seu mau humor. Em verdade, não é
lamentável voltar a cair, pretendendo se punir por haver caído uma primeira vez?
Quanto a mim, considerando a excessiva malícia do demônio, eu me proíbo disto,
pois, observando estas pessoas, eu percebo que elas não estão longe de cair no
mais funesto desencorajamento.

32. Se alguém percebe que se deixa facilmente vencer pela vaidade e a cólera,
pela maldade e a hipocrisia, e decide empregar contra esses vícios a espada de
dois gumes da doçura e da paciência, eu o aconselho fortemente a entrar para
uma comunidade de irmãos, como numa oficina que lhe será muito salutar; a
escolher, se deseja de todo seu coração corrigir-se, a morada onde as regras e a
disciplina forem mais austeras, a fim de que, por meio das humilhações, do
desprezo e das mais duras provas ele seja como que flagelado, despedaçado,
retalhado, apagado e pisoteado. É assim que ele irá purificar sua alma das faltas
cometidas e compreenderá a verdade de uma palavra muito empregada no
mundo; pois, para se glorificar, não é raro ouvirmos dizer aos que foram
oprimidos com injúrias e ultrajes: “Eu lavei sua cabeça ao meu modo”.

33. Existe uma diferença essencial entre a vitória que os jovens conversos obtêm
sobre a cólera, servindo-se das armas de uma humilde penitência, e a
imobilidade tranquila dos que alcançaram a perfeição da doçura, pois, entre os
primeiros, as lágrimas, como correntes, amarram e reprimem a cólera, enquanto
que, nos últimos, a calma e a tranquilidade de seus corações insensíveis às
injúrias levaram à morte este paixão, como o faria uma espada a uma serpente.

34. Certo dia, diante de meus olhos, três monges receberam o mesmo ultraje. Um
sentiu-se ferido mas sofreu em silêncio, afogando a mágoa que sentia; outro
alegrou-se internamente, mas se sentiu aflito interiormente por caridade e
benevolência em relação a quem o maltratara; o terceiro, enfim, esqueceu-se
totalmente de si para só se ocupar de seu irmão, por quem chorava cálidas
lágrimas, tamanha era a caridade que devorava seu coração. Assim podiam-se ver
nestes monges três excelentes virtudes: o temos a Deus, a esperança e o amor.

35. Como acontece com nossos corpos, embora a febre seja sempre a mesma, ela
não deixa de ter múltiplas causas; também a cólera, assim como outras paixões,
tem muitas causas e inicia-se de várias maneiras. É impossível fornecer aqui
instruções específicas e relativas a cada causa ou início. Tudo o que eu posso
fazer é aconselhar aos que se sentirem afetados por esta paixão, que busquem os
remédios convenientes e capazes de curá-los, e sobretudo que conheçam as
causas do mal, a fim de que, conhecendo-a perfeitamente, possam, com a
Bondade de Deus e sob a direção de seu médico espiritual, empregar os remédios
necessários. Que se apresentem, e que conosco entrem nesta busca que
propusemos aos monges, todos os que, tocados pelas palavras que lhes dirigimos,
desejam conhecer o verdadeiro estado de sua alma; que examinem seriamente, e
no mais profundo silêncio, quais são os tristes efeitos e os funestos princípios das
paixões que acabamos de descrever.

36. Um coração colérico e furioso deve ser acorrentado como um cruel tirano,
mas com as cadeias de uma doçura e paciência constantes; é preciso vergastá-lo
com o chicote da clemência, e conduzi-lo por meio da caridade ao tribunal da
razão soberana de Deus, para responder às questões que lhe serão feitas. Diga-
nos, tola e impudente paixão da cólera, o nome de seu pai, da mãe que
infelizmente a deu à luz, e dos filhos corrompidos que nasceram de você. Diga-
nos quem são aqueles que, combatendo-a, a poderão exterminar e fazer
desaparecer. A estas questões, quais respostas nos dará a cólera? Eu quase a
ouço dizer: “Muitas causas concorreram para a minha existência; eu não tenho
apenas um pai, mas muitos, e o primeiro a contribuir para a minha existência foi
o orgulho. Eu tenho muitas mães, dentre as quais estão a vanglória, a avareza, a
intemperança, a luxúria. Minhas filhas são o pensamento das injúrias, a raiva, as
discussões e as inimizades; e os inimigos que podem me vencer e acorrentar são
as virtudes opostas às minhas filhas, e ainda a paciência e a moderação; mas a
virtude que maior mal me faz é a humildade”. Com o tempo, vocês aprenderão de
onde esta virtude extrai sua origem. É neste oitavo degrau que se encontra a
coroa da doçura e da mansidão. Aquele que, pela compleição de sua natureza, é
de um temperamento doce e tranquilo, eventualmente poderia não merecê-lo.
Mas o merece aquele que, por seus esforços laboriosos, obteve a vitória sobre a
cólera, passando sucessivamente pelos sete primeiros degraus: dele é esta bela
coroa.
NONO DEGRAU

Do Ressentimento.

1. É com razão que podemos comparar as virtudes ais diversos degraus da


escada de Jacó, e os vícios às correntes que caíram dos pés e das mãos de são
Pedro, príncipe dos apóstolos. Com efeito, estando as virtudes unidas umas às
outras por anéis admiráveis, eles permitem subir até os céus aqueles que têm a
felicidade de praticá-las, enquanto que os vícios, ligados entre si por laços
diabólicos, conduzem à infelicidade eterna os que se deixam miseravelmente
conduzir por eles. É por isso que pensamos ser aqui o lugar para tratarmos da
lembrança das injúrias, por que ouvimos da própria boca da cólera que esta é
uma de suas perversas filhas.

2. Ora, nós diremos que a lembrança das injúrias, na medida em que representa
o cúmulo da cólera, é também sua cauda. É ela que faz viver os pecados numa
alma, que nela alimenta o ódio à justiça, que causa a morte das virtudes, que
envenena o coração, que obscurece a inteligência, que cobre de vergonha os que
recitam a oração dominical, que paralisa a prece, que destrói a caridade, que
trespassa sem interrupção os corações com suas flechas afiadas, que os enche de
amargura e aí faz reinar, com um império absoluto, o pecado, o crime e a
maldade.

3. Ora, como a lembrança das injúrias extrai sua origem de algumas outras
paixões vis e abjetas, e como ela não as apresenta, senão raramente, dela
diremos pouca coisa.

4. Quem mata a cólera, mata, por isso mesmo, a lembrança das injúrias. Mas
enquanto esta violenta paixão domina o coração, ela aí gera novos filhos.

5. Observem atentamente como e quão rápido expulsa e bane de sua alma a


cólera, o homem que queima de amor por seus irmãos, e quantas penas e
inquietudes vergonhosas cria para si mesmo o que se entrega a esta paixão
brutal.

6. Saibam que uma pequena refeição de caridade dissipa a raiva, e que presentes
feitos com intenções puras e sinceras acalmam e conquistam os corações;
enquanto que um festim, no qual as leis da sobriedade não são observadas, dá
lugar à licenciosidade, e assim, sob pretexto de fazer um gesto de caridade, nos
entregamos aos excessos do comer e do beber.

7. Eu já vi a cólera romper de um só golpe uma velha ligação, profana e


criminosa, e degenerando em ódio violento, contra a expectativa geral, manter a
lembrança das injúrias recebidas, de modo a perseverar nesta ruptura até o fim.
Mas neste caso, trata-se mais da obra de Deus do que da do demônio.

8. A lembrança das injúrias é sempre infinitamente oposta ao amor, coisa que


não podemos assegurar em relação às tendências criminosas, pois estas se
misturam facilmente com esta virtude para manchar e corromper a brancura e a
pureza desta inocente pomba.

9. Vocês querem não esquecer das injúrias recebidas? Eu o consinto, desde que
sejam aquelas recebidas do demônio. Quem quiser nitrir em seu coração o ódio e
a inimizade, que o faça, mas contra seu próprio corpo, que é seu mais perigoso
inimigo; pois este corpo miserável, sob o enganoso título de amigo, não passa de
um ingrato e de um traidor: quanto mais cuidamos dele, mais mal ele nos faz.

10; A lembrança das injúrias é um péssimo intérprete das santas Escrituras. Ela
não sabe explicar os oráculos sagrados do Espírito Santo a não ser conforme seus
gostos depravados e seu senso corrompido. Que a prece que nosso Senhor nos
ensinou cubra de confusão aqueles que se deixam conduzir por tão mau doutor.
Eh! Como poderão estes recitar esta admirável oração, com Jesus Cristo e
segundo suas intenções, se o pensamento das injúrias se mantém gravado em
sua memória?

11. Se vocês lutaram contra si próprios por muito tempo e com todo vigor, para
esquecer um ultraje, sem conseguir desenraizar sua lembrança de seu coração,
eis o conselho que eu acredito poder lhes dar: humilhem-se na presença daquele
que os ofendeu, dirigindo-se a ele com palavras doces; vocês verão que pouco a
pouco começarão a enrubescer devido a esta longa dissimulação, e que assim,
continuamente agitados pelas reprimendas de sua própria consciência, vocês
acabarão por consumir a inimizade no fogo da caridade, reconciliando-se
perfeitamente com seu irmão.

12. Vocês saberão que seu coração está livre de todo sentimento de ódio, não
apenas por que oram pela pessoa que os ofendeu, nem por que lhe oferecem
presentes e o convidam à mesa, mas apenas quando, sabendo que a ele
aconteceu algum acidente – no corpo ou na alma – vocês se sentirem desolados e
aflitos, como se a infelicidade acontecesse com vocês mesmos.

13.Um monge que conserva em seu coração a lembrança das injúrias guarda aí
um ninho de serpentes, e traz seu veneno no próprio seio; e este veneno é mortal.

14. O pensamento e a meditação das injúrias e dos sofrimentos que Jesus Cristo
suportou com paciência exemplar são ideais, por nos cobrirem de uma salutar
confusão, para expulsar de nosso coração a lembrança dos ultrajes que
recebemos.

15. Os vermes, como sabemos, são gerados na madeira; mas podemos ignorar
que a cólera se torna hóspede dos corações que não possuem senão uma doçura
exterior e aparente? Quem quer que, por seus esforços, conseguir expulsá-la para
longe de si, merece o perdão de seus pecados; mas quem conserva e alimenta
esta paixão se torna indigno de toda misericórdia.

16. Vemos muitas pessoas empreenderem grandes trabalhos e se condenar a


rigorosas privações para obter a remissão de suas faltas; mas avança muito mais
na obra admirável da justificação aquele que baniu de seu coração toda ideia e
toda lembrança das injúrias recebidas. É o que nos assegura o oráculo de eterna
verdade: “Perdoem, e serão perdoados[84]”.

17. Si, eu repito, o esquecimento dos ultrajes é a marca segura de uma


penitência sincera e eficaz. Engana-se grosseiramente quem, não querendo
esquecer, se convence de estar tocado e animado por uma verdadeira dor por
seus pecados. Infeliz! Assemelha-se a um homem que, em seu sonho, pensa que
corre.

18. Eu encontrei pessoas que, mesmo conservando em si a lembrança das


ofensas recebidas, exortavam com grande zelo a outras pessoas que se
encontravam no mesmo estado a renunciar a toda lembrança das injúrias
recebidas. Estas pessoas, tocadas pelas exortações que faziam aos outros,
acabaram por renunciar inteiramente à lembrança dos ultrajes que elas próprias
haviam recebido.

19. Que ninguém imagine que o pensamento e a lembrança das injúrias não
passam de um pequeno defeito e de uma paixão perdoável. São males funestos
que penetram nos corações mais piedosos e mais religiosos, que os corrompem e
os perdem miseravelmente. Portanto, vocês que alcançaram este degrau, peçam
com confiança ao Deus Salvador o perdão e a remissão dos seus pecados.

DÉCIMO DEGRAU

Da Maledicência.

1. Não há pessoas que goste de refletir e que seja capaz de dizer que a
maledicência não é uma filha da cólera e da lembrança das injúrias, e de não
concordar que temos razão em dizer algumas palavras a respeito deste detestável
vício, depois de havermos tratado dos dois primeiros.

2. A maledicência é gerada pela raiva. É uma paixão muito sutil; não obstante é
uma sanguessuga gorda e voraz, que se esconde destramente para trair e sugar
todo o bom sangue da caridade. Sob o pretexto enganador do amor e da afeição, a
maledicência exerce a devastação de um ódio implacável e assassino, mancha
horrivelmente o coração, carrega enormemente a consciência e destrói
inteiramente a castidade.

3. Assim como existem filhas do sexo que perpetram o mal sem enrubescer,
outras se escondem para pecar e, por isso mesmo, cometem faltas ainda mais
graves: assim é também a marcha normal das paixões. Elas cobrem nossa alma
de ignomínia, pois, muitas vezes semelhantes às jovens dissimuladas, elas
deixam exteriormente manifestar exatamente o contrário daquilo a que se
propõem de fato. Ora, as paixões que se conduzem assim são a hipocrisia, a
malícia, a tristeza, a lembrança das injúrias, o julgamento temerário, as
condenações da conduta de outrem e a maledicência.

4. Tendo um dia encontrado algumas pessoas que falavam mal de outras, tomei a
liberdade de repreende-las com severidade. Eis o que elas responderam diante de
minha correção, e a desculpa que alegaram por suas línguas maledicentes: “Não
falamos ao acaso, disseram, mas por motivos da mais ardente caridade, e com o
desejo sincero de buscar a salvação para aqueles cuja conduta condenamos”. 
Diante desta resposta, eu confesso que retruquei com emoção: “Coragem, amigos;
com semelhante caridade vocês poderão acusar como mentiroso este oráculo do
Espírito Santo: ‘Porei a perder os que maldizem ao próximo em segredo’[85].
Infelizes! Se vocês amam verdadeiramente a estas pessoas, ofereçam por elas a
Deus preces secretas e fervorosas; mas não manchem sia reputação com palavras
difamatórias, pois a melhor maneira de amar aos irmãos é orar a Deus por eles;
esta é a conduta que agrada ao Senhor”.

5. Se vocês desejam de todo coração se abster de fazer julgamentos injuriosos a


respeito dos que caem em alguma falta, eu lhes peço, prestem atenção numa
coisa: não pertencia Judas ao sagrado colégio dos apóstolos? Não estava o ladrão
entre os homicidas? E que mudança espantosa aconteceu com estes dois
homens!

6. Quem estiver resolvido a vencer em si mesmo o espírito de maledicência,


jamais atribuirá o pecado ao homem que o cometeu, mas ao demônio que o fez
cometer; pois, ainda que caiamos voluntária e livremente no pecado, não
obstante ninguém, ao pecar, se propõe como fim o pecado em si mesmo, na
medida em que ofende a Deus.

7. De resto, não pode acontecer aquilo que eu vi com meus próprios olhos? Uma
pessoa teve a infelicidade de cometer uma falta publicamente, mas fez
secretamente uma severa penitência; ora, vejam que, enquanto por uma má
disposição de espírito eu considerava culpada e criminosa esta pessoa, Deus não
via nela senão um coração puro e casto, por que, por meio de uma conversão
sincera ela havia se reconciliado com o Senhor.

8. É por isso que, se vocês se encontrarem na companhia de maledicentes, evitem


se deixar dominar pelo respeito humano e temer impor-lhes o silêncio, dizendo-
lhes, por exemplo: “Calem-se, eu lhes peço; pois eu tenho cometido diariamente
faltas maiores. Como, então, posso eu condenar meu irmão?”. Assim vocês
obterão dois benefícios preciosos: vocês se preservarão do pecado, e conseguirão
a cura de seu próximo. E observem aqui que o caminho mais curto e mais seguro
para alcançar a remissão dos pecados consiste em jamais julgar nem condenar
nossos irmãos. É o que nos ensina Jesus Cristo com as palavras: “Não julguem
para não serem julgados[86]”.

9. Não é tão contrária a água ao fogo, como os julgamentos temerários o são em


relação ao verdadeiro espírito de penitência.

10. Ainda que vejamos uma pessoa cometer uma falta no momento mesmo da
morte, devemos nos abster de julgá-la e condená-la; pois os homens ignoram
completamente os desígnios de Deus.

11. Existem pessoas que, depois de cometer publicamente grandes faltas,


conseguiram repará-las vantajosamente por meio de obras santas e de virtudes
perfeitas. Enquanto isso, os impiedosos críticos da conduta alheia, ao condenar
estas pessoas, enganaram-se grosseiramente: eles tomaram a neblina pelo sol.

12. Vocês que tão acidamente censuram as ações de seus irmãos, escutem-me e
creiam-me. Não deveriam vocês tremer? Pois é verdadeira a sentença: “Vocês
serão julgados do mesmo modo como julgam os outros[87]”. Então, não devemos
temer que, seja pelo corpo, seja pela alma, estamos sujeitos a cair nos mesmos
erros que condenamos em nosso próximo? É certeza!

13. Todos os que criticam com tanta facilidade e azedume a vida e os defeitos dos
outros, normalmente são pessoas que não se lembram de suas próprias
imperfeições, que perderam de vista a lembrança dos seus pecados, e que não
tomaram nenhum cuidado em se corrigir. De fato, as pessoas que, sem amor
próprio, examinam as faltas que mancham sua consciência, não veem elas que
nenhum espaço de tempo, ainda que vivam cem anos, será suficiente para chorar
o tanto necessário os pecados cometidos, e que será ainda inútil que derramem
tantas lágrimas quanta água corre no Jordão?

14. Da mesma forma eu já frisei que não se encontra o menor vestígio de


maledicência naqueles que foram verdadeiramente tocados pelo sentimento de
um arrependimento vivo e sincero, nem traço algum de julgamento temerário e de
condenação de seus irmãos.

15. É também por isso que os demônios, estes inimigos irreconciliáveis de nossa
salvação, quando não podem nos fazer cair diretamente em pecado, fazem todos
os esforços para nos levar a julgar e condenar os que caíram, a fim de que
também nós sejamos manchados.

16. Não se esqueçam de que uma marca segura para reconhecer os vingativos e
os invejosos é a facilidade com a qual eles criticam a doutrina malignamente,
bem como a conduta e as ações dos demais. É um espírito de ódio que os leva a
falar desta maneira. Vejam ainda até onde pode ir a cegueira a este respeito.

17. Conheci alguns que, em segredo e sem testemunhos, haviam cometido faltas
execráveis; e, acreditam vocês? Eles confiavam de tal maneira na boa opinião que
sabiam que os demais depositavam em sua santidade e inocência, que eles
insultavam e atacavam a reputação dos que havia cometido publicamente as
menores faltas.

18. Dar a si próprio a liberdade de julgar seus irmãos equivale a se atribuir um


direito e usurpar impudentemente este direito, que só pertence a Deus. E
condená-los equivale a condenar a si próprio, é causar a própria morte.

19. De fato, se o orgulho, sem mais vícios, é capaz de nos fazer perder, não
devemos dizer o mesmo dos julgamentos temerários? Não é a desgraça que
aconteceu ao fariseu, da qual se fala no Evangelho[88]?

20. Assim como um produtor de vinhos sábio e prudente sabe escolher as vinhas
maduras e boas, rejeitando as que não estão maduras e as que são ácidas,
também a alma que possui a bondade e a sabedoria cuida para observar nas
demais apenas as virtudes e as boas obras que elas praticam. O insensato só
presta atenção nos vícios e nos defeitos. É dele que está escrito: Eles procuraram
crimes, e foram feridos[89].

22. Não devemos julgar nossos irmãos sob a perspectiva de nossos próprios
olhos. Com efeito, ainda que os vejamos cair em pecado, evitemos condená-los.
Não é raro nos iludirmos e nos enganarmos sobre este ponto tão delicado. Aquele
que alcançar vitoriosamente este décimo degrau, só se conduzirá segundo as leis
de uma caridade sincera e de uma sólida penitência.

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