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André Marcelo M.

Soares
Renato da Silveira Borges Neto
(Organizadores)

Antonio Luiz Gonçalves Albernaz


Benigno Sobral
Carlos Roberto Fernandes
Maria Madalena Soares de Souza Esteves
Marta Sauthier

C10
onhecimento &
Sociedade

anos depois

Real Engenho
10 anos
Í ndice

10 anos depois... 7
André Marcelo M. Soares

Prefácio, 13
André Marcelo M. Soares
Renato da Silveira Borges Neto

1
Robótica e demências: o natural e o artificial, 15
Benigno Sobral

2
As deusas lascívia, luxúria e volúpia, 81
Carlos Roberto Fernandes

3
Vulnerável à vulnerabilidade: relação trabalho x con-
sumo em tempos de crise, 103
Maria Madalena Soares de Souza Esteves

4
Bioética global e espiritualidade da casa comum:
uma aproximação em tempos de Covid-19, 119
André Marcelo M. Soares
Renato da Silveira Borges Neto
5
Enfermagem moderna e os avanços epistemológi-
cos contemporâneos: a contribuição social de uma no-
bre área da saúde, 131
Marta Sauthier

6
O Sistema Único de Saúde do Brasil: saúde, cidadania
e democracia como valores sociais inalienáveis, 151
Antonio Luiz Gonçalves Albernaz
3 Vulnerável à vulnerabilidade
Relação trabalho x consumo em tempos de crise

Para ordenar o todo, ou dar a melhor forma à


coisa pública, há que considerar diversas relações1.
Jean-Jacques Rousseau

Maria Madalena Soares de Souza Esteves

O cenário de pandemia vivenciado em 2020


trouxe à tona um conflito latente na sociedade: o
existente entre o trabalho e o consumo. Diante de
consumidores insatisfeitos por contratos que não
poderiam ser cumpridos na forma acordada, pela si-
tuação de calamidade pública imposta, a ameaça aos
direitos dos trabalhadores levou o cenário político
brasileiro a discutir a redução de direitos trabalhis-
tas até o patamar mínimo, quiçá zerado, a fim de
atender à necessidade de manutenção das empresas,
enquanto os consumidores, também em situação de
desemprego, não se inibiram em fazer valer o seu di-
reito à revisão contratual, ainda que isso custasse
outros empregos, em prol da manutenção da em-
presa.

1ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social: princípios do direito polí-


tico. Trad. Vicente Sabino Júnior. São Paulo: Pillares, 2013, p.
97.
Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

A situação revelou a necessidade de pensamento


interdependente entre consumo, empresa e trabalho, a
fim de que o círculo virtuoso do consumo possa se retro-
alimentar, ou não haverá trabalho o suficiente para ge-
rar a renda necessária para consumir, e sem consumi-
dor, a empresa não se justifica. O presente faz algumas
considerações sobre essas relações sociais, tão imbri-
cadas e, ao mesmo tempo, perigosamente segregadas,
ainda que essa segregação possa gerar seu próprio co-
lapso, ao sair da situação de ganha-ganha para o pior
dos cenários, aquele no qual todos perdem caso não se
perceba que, juntas, formam um ecossistema, com ne-
cessária interdependência.

Origens e definições do Direito do Trabalho e do


Direito do Consumidor

Tanto o Direito do Trabalho quanto o Direito do


Consumidor surgem do Direito Civil, a partir da demanda
de especialidade de regulamentação das relações,
originados do desenvolvimento industrial, porém em
momentos diferentes. Disso se infere que ambas as
relações inserem-se no campo do Direito Privado, isto é,
das relações entre particulares. Entretanto a dicotomia
direito público e direito privado se mostra cada vez mais
rarefeita, revelando contornos de atuação do direito
público nas relações privadas e vice-versa.

O surgimento do trabalho livre no Brasil remonta


ao contrato de parceria, firmado a partir de 1847, em São
Paulo, como aposta na força de trabalho de migrantes

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

europeus. Os fazendeiros traziam novos colonos ao Brasil


para cultivo de número específico de cafezais, e os colonos
iniciavam seu trabalho com as dívidas decorrentes da
imigração, que só acabavam quando conseguiam pagar ao
fazendeiro todos os custos acrescidos de juros de seis por
cento ao ano2. Tal contrato baseava-se em lei de 1830.

Em 1837, a Lei nº 108 foi uma tentativa de aperfeiçoar


tais contratos, que suscitavam cada vez mais conflitos
entre os colonos, que entendiam os contratos como
abusivos, e fazendeiros, que se queixavam de vadiagem,
embriaguez e roubo por parte dos colonos3. Em 1850,
quando do surgimento do Direito Comercial, o Brasil
ainda vivia o regime escravocrata, no qual o trabalho era
um desdobramento do direito de propriedade do
produtor. Após a abolição da escravatura, em 1888, com o
aumento da chegada de imigrantes europeus no Brasil,
concentrando-se prioritariamente no Rio de Janeiro e São
Paulo, o desenvolvimento da industrialização é perceptível.
Surge o Decreto 1.212, de 1891, sobre o trabalho de
menores, o Decreto nº 979, de 1903, sobre a organização
sindical de profissionais da agricultura e o Decreto nº 1.637,
de 1907, sobre a organização sindical no âmbito urbano4.

2 FRANCO; R.V.; MOREIRA, L.N. História da Justiça do Traba-


lho no Brasil: o olhar do TST. In: A história da justiça do trabalho no
Brasil: multiplicidade de olhares. Brasília: Tribunal Superior do
Trabalho, Comissão de Documentação, 2011, p. 19.
3 FRANCO; R.V.; MOREIRA, L.N., p. 20.
4 FRANCO; R.V.; MOREIRA, L.N., p. 24-25.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

A esta altura acontece uma transição de séculos marcada


por questões mal-resolvidas, conforme elucida Delgado5:

A sociedade que se forja no Brasil depois da


abolição carrega no seu âmago duas questões mal
resolvidas do século anterior: as relações agrárias
arbitradas pelo patriciado rural, mediante a Lei de
Terras (1850), profundamente restritiva ao
desenvolvimento da chamada “agricultura familiar”;
e uma lei de libertação dos escravos que nada regula
sobre as condições de inserção dos ex-escravos na
economia e na sociedade pós-abolição.

Neste cenário pós-abolicionismo a pressão por


um regulamento das relações civis se fez maior, até
que em 1916 o Código Civil trouxe a regulamentação
dos “contratos de locação de serviços”6 e, logo após,
foi publicada a Lei de Acidentes de Trabalho de 19197.
Nessa época e durante a década de 1920, o Brasil
ainda era organizado em bases agrárias, e a diretriz
econômica era sustentada por doutrinas liberais
importadas da Europa8.

5 DELGADO, G.C. O setor de subsistência na economia brasileira:

gênese histórica e formas de reprodução. In: JACCOUD, L. Questão


social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005, p. 31.
6 Artigos 1.216 a 1.236 do Código Civil brasileiro de 1916, tratado como

“prestação de serviços” no Código Civil de 2002, nos artigos 593 a 609.


7 A referida lei, em seu artigo 26, dispunha que seria “nula de pleno

direito qualquer convenção contraria à presente lei, tendente a evitar


a sua aplicação ou alterar o modo de sua execução”.
8 DALAZEN, J.O. Justiça do Trabalho: 70 anos de justiça social. In: A

história da justiça do trabalho no Brasil: multiplicidade de olhares. Brasília:


Tribunal Superior do Trabalho, Comissão de Documentação, 2011, p.
5.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

Na década de 1930, houve intensa produção de


leis sobre o trabalho9, além da regulamentação de
novas estruturas para cuidar da aplicação dessas leis,
como exemplo as Comissões Mistas de Conciliação,
para conciliação de lides coletivas, e as Juntas de
Conciliação e Julgamento, para lides individuais10. Em
1940, seguindo o movimento de codificação que ainda
prevalecia no direito brasileiro, o então presidente
Getulio Vargas providencia a sistematização da
legislação e a aprova, em 1943. Conforme esclarecem
Delgado e Delgado11,

Apesar de denominada de consolidação, como


artifício para reverenciar a intensa obra legiferante
trabalhista produzida entre 1930 e 1943, o novo
diploma legal correspondia, na verdade, do ponto de
vista técnico-jurídico, a um verdadeiro código do trabalho,
em vista não apenas da consistente sistematicidade de
seus títulos, capítulos e sessões normativas, de seus
princípios, regras e institutos jurídicos, como pela
circunstância de ter propiciado reais inovações na
ordem jurídica então existente.

Em que pese tal “reverência”, o que se consolidou no


tempo foi mito da outorga dos direitos trabalhistas, ou seja, a
equivocada ideia que os direitos trabalhistas surgem a
partir da benevolência de um presidente, minimizando as
lutas históricas que se sucederam desde os escravizados e

9 tais como a regulamentação da jornada, do trabalho feminino


e dos adolescentes
10 FRANCO; R.V.; MOREIRA, L.N., p. 28-29.
11 DELGADO, M.G.; DELGADO, G.N. Constituição da República e

direitos fundamentais: dignidade da pessoa humana, justiça social


e direito do trabalho. 3. Ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 122.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

colonos imigrantes até o efetivo desenvolvimento de um


ramo específico do Direito. Tal ideia coaduna com o
Estado autoritário da época, que nega o conflito com a
falsa aparência de pacificação social que legitima o Estado.
Tal contexto explica o surgimento dos sindicatos como
braços do Estado, destinatários de tributos, que
indicavam pessoas para compor a estrutura da nova
Justiça do Trabalho, formada ainda no Poder Executivo,
como órgão conciliador.

Como campo de intensos conflitos entre


empregados e empregadores, o Direito do Trabalho
permanece em desenvolvimento, vivenciando
atualmente uma suposta reconstrução no decorrer
de nova revolução nas formas de produção - após a
revolução cognitiva, agrária e industrial, vivencia-se
a revolução da informação, ou seja, a quarta
revolução, reforçada pelo cenário de pandemia
mundial vivenciado em 2020.

Em tempos de revolução industrial dois sistemas


surgem para intensificar a produção. O sistema
taylorista, a partir de Frederick Taylor (1856-1915),
propôs “a minuciosa separação de tarefas e sua
consequente rotinização no processo laborativo”,
reduzindo “a necessidade de sofisticada especialização
do trabalho, transformando-o em uma sequência de
atos basicamente simples”, permitindo a simplificação
do treinamento e sua agilização, potencializando a
produtividade, enquanto o sistema fordista, de Henry
Ford (1863-1947) incorpora o modelo anterior e produz

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

inovações no estratagema de gestão da força de


trabalho e do próprio empreendimento empresarial,
dando origem a um modelo de grande influência nas
décadas seguintes12.

Com a expansão industrial, entra em cena, então,


um novo ator: o consumidor. Os modelos de produção,
tidos como um sucesso, foram replicados para diferentes
setores, gerando a demanda pelo consumo para dar
vazão a tanta produtividade. O homem deixa de
depender do campo e dos ciclos naturais para entrar
numa era de busca pelos consumidores. Quanto mais
consumo, mais produção, mais ganho. Estratégias tais
como a obsolescência programada e os contratos de
adesão geram para o consumidor um fluxo intenso de
informações, incluindo campanhas publicitárias,
utilização estratégica de cores e de modelos de
disposição de produtos. Mercados e lojas são pensados
propositalmente para que o consumidor perca a noção
de tempo e de espaço, e consuma. Técnicas de venda são
cada vez mais aprimoradas para gerar no cidadão a
ânsia de compra. Diante de tantos apelos, o consumidor
acaba por sucumbir.

Economia de mercado

Como resposta à manipulação maciça da popula-


ção para incutir os hábitos do consumo, surge um di-

12DELGADO, M.G. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o para-


digma da destruição e os caminhos da reconstrução. 2. Ed. São
Paulo: LTr, 2015, pp. 46-47.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

reito igualmente (ou mais) protetivo, o Direito do Con-


sumidor. Aliado às modificações estabelecidas no pro-
cesso judicial para garantir o amplo acesso à justiça, es-
tabelece-se, então, a cultura de que “o cliente tem sem-
pre razão”, na qual é cada vez mais comum o ataque de
consumidores indignados a empregados, que são as
pessoas físicas que tornam presente a pessoa jurídica,
real responsável pelas estratégias de mercado. Con-
forme reportagem feita pela Coordenadoria de Rádio e
TV do Tribunal Superior do Trabalho13,

Segundo estimativas do Sindicato dos Médicos


e do Conselho Regional de Enfermagem, ambos do
Rio de Janeiro, entre um e cinco profissionais da sa-
úde sofrem agressões físicas ou verbais, ameaças de
morte e xingamentos diariamente no Rio de Ja-
neiro. E, na última década, pelo menos dez médicos
e vinte enfermeiros foram assassinados no estado,
a maioria após terem sofrido ameaças de pacientes
ou da família de doentes. Embora nem todas as
agressões cheguem a esse extremo, ataques físicos
ou mesmo verbais de clientes ao trabalhador tra-
zem efeitos negativos à saúde do profissional.

É comum, ainda, notícias envolvendo emprega-


dos do varejo que, diante da propaganda massiva para
estimular a compra, ainda que o estoque não possua
subsídios suficientes para atender a demanda, sofrem

13BRAZ, A. Reportagem Especial: histórias de trabalhadores


que sofreram agressão de clientes. Coordenadoria de Rádio e
TV do Tribunal Superior do Trabalho. Publicado em 28
Jun.2016. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/pmnoticias/-
/asset_publisher/89Dk/content/reportagem-especial-histo-
rias-de-trabalhadores-que-sofreram-agressao-de-clientes>.
Acesso em 19 Abr.2020.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

a insatisfação dos clientes na loja durante o atendi-


mento, por serem as pessoas que atendem e têm o
contato direto com o consumidor inconformado. Ou-
tro ramo igualmente afetado é o do telemarketing, no
qual telefonistas são obrigados a suportar todos os ti-
pos de impropérios de consumidores constante-
mente assediados.

No cenário de pandemia, um dos profissionais


mais envolvidos nesse conflito foram os professores.
Obrigados à mudança imediata de estrutura em suas
aulas e formas de trabalho, o professor ficou muito
mais vulnerável a ter invadido seu tempo de descanso
e sua privacidade pelo trabalho, viu-se obrigado a dar
suporte pedagógico aos alunos, embora também esti-
vesse envolvido pela situação de fragilidade emocio-
nal de uma situação atípica e desconhecida mundial-
mente, e ainda se viu na iminência de ter seus rendi-
mentos diminuídos - e até de perder emprego -, di-
ante da insatisfação de alunos que, ao pagar por aulas
presenciais, não se conformaram em ter o valor das
mensalidades mantidos enquanto, supostamente, as
faculdades particulares estariam “economizando”
com a situação.

E o futuro?

Para o futuro, é possível considerar que o de-


safio será aplicar, pôr em prática, a conjugação de di-
reitos individuais, sociais e ambientais em busca de

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

uma condição de vida minimamente digna14. Tal ob-


jetivo encontra amparo na Constituição brasileira
em seus artigos 1º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º, sendo certo que
este último, em seu inciso XXVII, prevê a proteção
do trabalhador em face da automação, o que enseja-
ria sua atuação em diversos campos, incluindo os
modelos automatizados de produção que alienam o
trabalhador e o colocam como “ativo imobilizado”
do empregador: o momento no qual o “recurso hu-
mano” passa a integrar suas “máquinas e equipa-
mentos”. É incontestável que na revolução tecnoló-
gica, diversos postos de trabalho serão substituídos
pela máquina, o que não impede que novos postos e

14 Vale ressaltar a existência dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentá-

vel (ODS), 17 (dezessete) objetivos, desdobrados em 149 (cento e qua-


renta e nove) metas, que englobam os principais temas da vida em socie-
dade, a partir do paradigma global, a fim de evitar que entre os países exis-
tam discrepâncias socioeconômicas capazes de favorecer situações de in-
justiça e desigualdade – os chamados dumping, social e/ou ambiental. Tais
Objetivos servem, no plano internacional e interno, como estímulo à efe-
tividade dos direitos sociais, atuando como diretrizes políticas que refor-
çam a Declaração Universal de Direitos Humanos e servem como metas
intermediárias. Dentre elas, cita-se o Objetivo de Desenvolvimento Sus-
tentável nº 8, denominado “Trabalho decente e crescimento econômico”,
que se traduz no objetivo de “promover o crescimento econômico susten-
tado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho de-
cente para todos” (Plataforma Agenda 2030, disponível em:
<http://www.agenda2030.org.br/ods/8/>. Acesso em 19 Abr.2020). Inclui
metas tais como o crescimento econômico de 7% do Produto Interno
Bruto , a convergência de produtividade, tecnologia e inovação, a promo-
ção de emprego decente e empreendedorismo, a produção e o consumo
sustentáveis, políticas antidiscriminatórias, cuidado com adolescentes e
jovens, combate à escravidão moderna, cuidados com o meio ambiente
laboral, incentivo ao turismo sustentável, atenção ao papel das institui-
ções financeiras, do comércio e o Pacto Mundial para o Emprego da OIT.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

novas formas de trabalho surjam15.

A ordem econômica brasileira, conforme tra-


duz o artigo 170 da Constituição, é embasada na con-
vergência da valorização do trabalho humano com “a
livre iniciativa, e também tem por fim assegurar a to-
dos a existência digna, conforme os ditames da jus-
tiça social” e deve observar princípios tais como: a
propriedade privada e sua função social, a livre con-
corrência, a defesa do consumidor e do meio ambi-
ente, a redução das desigualdades regionais e sociais
e a busca do pleno emprego. Tal objetivo contempla
as três dimensões principais dos direitos humanos: a
liberdade, a igualdade e a fraternidade. Questionado
sobre a garantia de direitos individuais e de direitos
sociais, Robert Alexy elucida: “é a grande questão do
futuro: se nós seremos capazes de fazer essas duas di-
mensões conviverem em harmonia”16 .

15 A definição de trabalho decente passa pela proposta de trabalho ade-


quadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade
e segurança, capaz de garantir uma vida digna, essencial à superação da
pobreza; à redução das desigualdades sociais; à garantia da governabili-
dade democrática; e ao desenvolvimento sustentável, com elaboração de
políticas no âmbito do emprego e da renda, educação, saúde, meio ambi-
ente, assistência social, bem como pelo amplo debate participativo entre
as esferas governamentais, empresariais, sindicais e da sociedade civil, cf.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Agenda
Nacional de Trabalho Decente. Brasília: Organização Internacional do Traba-
lho, 2006.
16 Entrevista concedida à Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho

de Santa Catarina, disponível em: <https://youtu.be/J8WKDKC9JEk>.


Acesso em 19 Abr.2020.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

Entretanto, o que o cenário brasileiro revela pa-


rece caminhar no sentido contrário: redução de cus-
tos (associados ao treinamento, promoção, supervi-
são da mão-de-obra, manutenção das condições de
trabalho e de níveis salariais estruturados) para as
empresas, crescente número de trabalhadores inde-
pendentes oferecendo serviços em plataformas digi-
tais, aumento das exigências sobre os trabalhadores
enquanto as máquinas e algoritmos, que antes subs-
tituíam prioritariamente trabalhadores pouco quali-
ficados, passam a ameaçar trabalhos qualificados,
mas rotineiros e programáveis, reforçando a expecta-
tiva de que as novas tecnologias podem acarretar me-
nores remunerações e maiores riscos para uma par-
cela crescente de trabalhadores, resultando em maior
desemprego, segmentação, polarização e precariza-
ção17.

Nas relações uberizadas, verifica-se que en-


quanto se propaga que o trabalhador possui autono-
mia na realização da prestação, tal autonomia é a todo
tempo “avaliada” pelos usuários - leia-se: consumido-
res - que, com os algoritmos da programação colocam
em risco a fonte de renda do trabalhador sem direito
a defesa. Isso porque, embora os trabalhadores não

17BÍVAR, W. Novas Formas de Trabalho e o Desafio da Gover-


nança: o papel dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
In: ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
(OIT). Futuro do Trabalho no Brasil: perspectivas e diálogos Tri-
partites. Brasília: Organização Internacional do Trabalho,
2018, p. 74.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

devam seguir mais ordens, seguem as “regras do pro-


grama” e, com isso, devem estar disponíveis todo o
tempo, sem qualquer liberdade para a escolha pela
não-exposição, logo “a autonomia concedida é uma
autonomia na subordinação”18, não somente ao funciona-
mento da empresa, mas também, e principalmente,
aos usuários.

Caso ainda haja questionamento se a uberização


atingirá outras profissões, certo é que já existe uma sujei-
ção completa do trabalhador à avaliação sem critérios, à
possibilidade dos “cancelamentos” e exclusões de toda
ordem.

Em relação ao professor, como já mencionado,


além de ter sua privacidade invadida com as aulas online
em casa, seu tempo de descanso ocupado por alunos que
anseiam por explicações – e que, diante da impossibili-
dade de acompanhamento conjunto das instruções, lan-
çam dúvidas nos mais variados horários, ainda fica a dú-
vida sobre o uso de sua imagem e voz. Diante da relação
entre o aluno e a instituição, tratada como relação de con-
sumo, o docente é o principal ator para (des)contenta-
mento desse “cliente”, enquanto duvida da continuidade
do seu emprego diante das demandas judiciais pretendi-
das pelos alunos.

18 OITAVEN, J.C.C.; CARELLI, R.L.; CASAGRANDE, C.L. Em-


presas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um es-
tudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília: Minis-
tério Público do Trabalho, 2018.

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

Assim, é importante refletir que, em que pese o es-


forço contínuo feito por empregados e empregadores em
prol do bom funcionamento da empresa, é relevante que
o consumidor se inclua como agente que cuida da em-
presa – que gera empregos, que gera produtos, que paga
tributos, que atende as mais variadas necessidades, pon-
derando o momento e a postura mais adequada entre re-
clamar e relevar, considerando que, na vida em sociedade,
nem sempre é possível atender plenamente a todas as ex-
pectativas.

Considerações finais

Na relação entre empresa, empregados e


consumidores, em que pese o fato de a empresa
existir em razão da demanda de consumo e, por isso,
se estabelecer a regra de que “o cliente tem sempre
razão”, é importante considerar que, na vida em
sociedade, algumas expectativas eventualmente não
serão supridas.

Na busca pela melhor prestação de serviço ou


produto, o empregado é o ator que se coloca entre os
interesses que deveriam ser convergentes, mas se tornam
contrapostos, e fica exposto a todo tipo de insatisfação e
descaso de ambas as partes.

Nesse sentido, ressalta-se a interdependência


desse sistema: para consumir, é preciso ganhar, para
ganhar, é preciso trabalhar, para trabalhar é preciso ter
empresa, e para ter empresa é preciso haver demanda de
consumo. Ou seja, a vida em sociedade demanda uma

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Conhecimento e sociedade: 10 anos depois

interdependência contínua, sob pena de levar todo o


sistema ao colapso ao pretender o Direito colocar uma
das partes como vulnerável ou, no caso, uma mais
vulnerável que a outra, levando assim os atores
envolvidos a se tornarem vulneráveis à vulnerabilidade,
enfraquecendo o sistema como um todo.

Uma vez que, diante de uma situação de pandemia


ou calamidade pública, seja possível focar no esforço
contínuo de cada ator dar o seu melhor, então será
possível ultrapassar esse momento delicado que impõe
restrições e perdas a todos, minimizando os impactos
negativos e buscando extrair dessa experiência uma
nova forma de funcionamento e regramento social.

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