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Fernando Schwarz Gaggini

4. Bibliografia Notas sobre o regime jurídico


BORGES. Florinda Figueiredo. Os fundos de investimento - reflexões sobre a na-
dos fundos de investimento
tureza jurídica. In: FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes (coord.) Direito
societário contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
Milena Donato Oliva 1
EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariadna B; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Pablo Renteria 2
Freitas. Mercado de capitais - regime jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SUMÁRIO: 1. Introdução: origem e evolução normativa; 2. Oportunidade
GAGGINI, Fernando Schwarz. Fundos de investimento no direito brasileiro. São desperdiçada: os fundos de investimento privados; 3. A disciplina do Código
Civil; 4. Estrutura do fundo de investimento; 5. Responsabilidade dos presta-
Paulo: Leud, 2001.
dores de serviços do fundo de investimento; 6. Conclusão: a importância da
adequada qualificação do fundo de investimento; 7. Bibliografia.
MORI, Rogério; TAVARES, Guilherme; BUENO, Túlio. A crise da marcação a mer-
cado em 2002: uma perspectiva histórica. Revista de economia e administração, v. 5,
n.3,p.263-278,2006.
1. Introdução: origem e evolução normativa
QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. O Conceito de Valor Mobiliário e a Competência
da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. In: MOSQUERA, Os fundos de investimento são usualmente retratados como veículos de investi-
Roberto Quiroga (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de ca- mento, destinados a reunir os recursos de investidores sob os cuidados de um gestor pro-
pitais. São Paulo: Dialética, 1999. fissional, que, em conformidade com o regulamento aprovado, se encarrega de aplicá-los
em determinados ativos, com vistas a proporcionar rendimento ao capital investido.
Cuida-se de importante instrumento de intermediação financeira, responsável
por facilitar o encontro entre poupadores e tomadores de recursos, que se desenvol-
veu extraordinariamente no Brasil, tornando-se das mais importantes indústrias no
cenário internacional. Os fundos contribuem para a formação da poupança privada e
o direcionamento de recursos para as mais variadas atividades econômicas.
Entre as razões comumente apontadas para o seu sucesso, destacam-se os be-
nefícios que resultam da expertise do gestor profissional, o melhor gerenciamento de
riscos por meio da diversificação da carteira do fundo em diferentes modalidades de
investimento e, ainda, os ganhos de escala proporcionados ao cotista, que tem acesso
a instrumentos financeiros em condições que dificilmente lograria obter sozinho. 3

Professora de Direito Civil e de Direito do Consumidor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


- UERJ. Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Sócia Fundadora do Escritório Gustavo Tcpedino Advogados.
2 Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Mestre
e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em direito
internacional pela Universidade Paris II - Panthéon-Assas. Ex-diretor da Comissão de Valores
Mobiliários. Sócio Fundador do Escritório Renteria Advogados.
3 Cf. VEIGA, Alexandre Brandão da. Fundos de Investi111ento Mobiliário e I111obiliário, Coimbra:
Almedina, 1999, p. 20.

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Essa reforma legislativa, contudo, não alterou a predominância do regramen-


Além disso, por se submeterem à regulação da Comissão de Valores Mobi- to infralegal dos fundos de investimento no ordenamento jurídico pátrio, os quais
liários (CVM) - autarquia federal vinculada ao Ministério da Economia - e à au- permaneceram tratados quase que exclusivamente na regulamentação da CVM, que,
torregulação da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de em seu aspecto conceituai, continuou a reproduzir o conceito vago de "condomínio".
Capitais (ANBIMA), os fundos de investimento oferecem proteção contra fraudes e Tal cenário normativo só se modificou com a promulgação da Lei n. 13.874, de
desvios de conduta. 2019, denominada Lei da Liberdade Econômica, que introduziu disciplina legal dos
A exceção do fundo de investimento imobiliário, que conta com disciplina legal fundos de investimento nos artigos 1.368-C a 1.368-F do Código Civil. Embora fes-
própria desde 1993 (Lei n. 8.668/1993), os demais fundos de investimento não dispu- tejada como passo importante em direção à segurança jurídica, a reforma legislativa
nham, até recentemente, de marco legal que traçasse, ainda que em linhas gerais, as frustrou os anseios por um marco legal robusto do ponto de vista técnico. Além das
suas principais características. Surgidos da prática negocial, em decorrência da livre dúvidas interpretativas suscitadas por certos dispositivos, o novo texto legal concede
iniciativa das antigas sociedades de investimento, os fundos permaneceram por mui- amplo espaço à regulamentação da CVM, que, portanto, continua a ter a palavra
to tempo relegados ao plano infralegal, com parcas referências na legislação! final sobre quase todos os aspectos atinentes à constituição e ao funcionamento dos
A Lei n. 3.470, de 1958, atinente ao imposto de renda, foi o primeiro diploma fundos de investimento.
legal a mencionar expressamente a figura, estabelecendo, em seu artigo 82, aquela
que seria a sua característica mais marcante: o fundo é um condomínio, desprovido
de personalidade jurídica. 5 Em termos semelhantes, a Lei n. 4.728, de 1965, pro- 2. Oportunidade desperdiçada: os fundos de investimento privados
mulgada para modernizar o mercado de capitais brasileiro, referia-se a "fundos em
condomínio", estabelecendo algumas poucas regras de cunho estritamente operacio- A disciplina legal dos fundos de investimento no Código Civil deveria refletir
nal, e concedendo ao Banco Central do Brasil (BACEN) competência para baixar a a intenção do legislador em transformar o fundo de investimento, até hoje figura
regulamentação pormenorizada. setorial circunscrita ao mercado de valores mobiliários, em instituto geral do direito
Com a criação da CVM por meio da Lei n. 6.385, de 1976, introduziu-se no di- privado, que pudesse ser empregado como instrumento de gestão patrimonial sem se
reito pátrio um complexo sistema dualista de regulação dos fundos: parte deles con- submeter necessariamente à regulamentação da CVM. 7
tinuou sob competência do BACEN, ao passo que outros migraram para a supervisão Atualmente, todo fundo de investimento deve observar a regulamentação da
da nascente autarquia do mercado de valores mobiliários. Tal modelo só foi defini- autarquia, que, em consonância com as suas competências legais, estabelece obriga-
tivamente superado com a promulgação da Lei n. 13.303, de 2001, que, ao qualificar ções e vedações fundadas na proteção do público investidor e do bom funcionamento
as cotas dos fundos como valores mobiliários, consolidou na CVM a autoridade para do mercado de valores mobiliários, que pressupõem que as cotas dos fundos sejam
regular a matéria. 6 destinadas à distribuição pública ou à negociação em mercado regulamentados.
Por outras palavras, a regulamentação da CVM não faz do fundo expedien-
te vocacionado para a gestão patrimonial privada, sem apelo ao público investidor.
A despeito disso, os particulares optam, para promover finalidades legítimas, por
constituir fundo de investimento, cujas cotas não são oferecidas publicamente nem
4 Acerca do surgimento dos fundos de investimento no direito brasileiro, cf. ALONSO, Félix Ruiz. Os
Fundos de Investimento. Condomínios mobiliários. ln: Revista da Faculdade de Direito, São Paulo, v. negociadas em mercados públicos regulamentados. A CVM, não obstante sua com-
66, 1971, p. 223 e seguintes. petência voltar-se aos fundos vocacionados ao público investidor, vem admitindo tal
5 "Art. 82. Para efeito de tributação do impôsto de renda, não são considerados pessoas jurídicas, movimento, por reconhecer que, na ausência de outros instrumentos adequados, os
(Vetado) os fundos constituídos em condomínio e administrados por sociedades de investimentos fundos passaram a desempenhar função prático-jurídica notável, que se expandiu
fiscalizadas pela Superintendência da Moeda e do Crédito, desde que não seja aplicada em uma só para além do mercado de valores mobiliários.
emprêsa importância superior a 10% (dez por cento) do valor do fundo e haja distribuição anual,
No entanto, a opção do particular pela constituição de um fundo deve ser
pelos condôminos, dos resultados auferidos."
acompanhada, segundo já decidiu a CVM, de todas as consequências jurídicas pre-
6 De acordo com o inciso V do art. 2° da Lei n. 6.385, de 1976, introduzido pela Lei n. 13.303, de 2001:
"São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: (... ) V - as cotas de fundos de investimento
em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos." A seu turno, as cotas
dos fundos que investem em ativos diversos dos valores mobiliários, tais como os fundos de 7 No sentido exposto no texto, confira-se RENTE RI A, Pablo. Os fundos de investimento 110 Código
investimento em direitos creditórios, também são valores mobiliários, em virtude do disposto no Civil. ln: ANDRADE, André Gustavo; GAULIA, Cristina Tereza; NEVES, José Roberto Castro;
inciso IX do referido art. 2°, que trata dos títulos ou contratos de investimento coletivo. V. nessa MELO, Marco Aurélio Bezerra de (org.). Temas Relevantes de Direito Imobiliário - Uma Homenage111
direção a Decisão Conjunta n. 10, de 2 de maio de 2002, do Banco Central do Brasil e da Comissão ao Professor Sylvio Capanema de Souza, no prelo.
de Valores Mobiliários.

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O reconhecimento legal dos fundos privados apresentaria dupla vantagem. De


vistas na regulamentação em vigor. Em outras palavras, o veículo constituído por um lado, aumentaria a liberdade econômica, colocando à disposição dos agentes es-
um particular que não tem a intenção de distribuir ou negociar publicamente suas trutura jurídica eficiente e flexível para a gestão patrimonial e a realização de in-
cotas deve, ainda assim, ser regido exatamente como se fosse um típico fundo de vestimentos. Desse modo, os particulares não teriam mais de recorrer, por falta de
investimento, voltado para o público investidor, sujeitando-se a todas as obrigações alternativa, aos fundos de investimento regulamentados pela CVM, incorrendo em
estabelecidas pela CVM. 8 custos e riscos legais desnecessários, mesmo quando, em realidade, querem criar um
Daí a relevância de promulgação de lei que admitisse a constituição de fundos mecanismo puramente privado de gestão de recursos.
de investimento que, por serem destinados à gestão particular de recursos patrimo- De outro lado, a criação legal dos fundos privados desoneraria o órgão regu-
niais, não se submeteriam à regulação pela CVM. Ao reverso, tais fundos observa- lador, que, hoje em dia, se vê obrigado a alocar parte de seus (escassos) recursos na
riam unicamente a disciplina prevista nas normas de direito privado, sem incorrer supervisão de fundos que, todavia, pelas razões indicadas, constituem veículos pri-
nos custos e nas restrições impostas na regulamentação da CVM. vados, que guardam pouca pertinência com as razões de atuação da CVM (formação
No entanto, segundo se depreende das disposições inseridas no Código Civil, de poupança, desenvolvimento do mercado de valores mobiliários e a proteção do
os fundos continuam umbilicalmente vinculados à CVM, de modo que a constitui- público investidor).
ção desses veículos permanece restrita ao âmbito das competências do referido órgão
regulador do mercado de valores mobiliários, tal como definidas na Lei n. 6.385, de
1976. Veja-se, notadamente, o parágrafo segundo do art. 1.368-C: "O fundo de in- 3. A disciplina do Código Civil
vestimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio
de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de No que tange à qualificação jurídica dos fundos de investimento, o Código Ci-
qualquer natureza. (... ) § 2° Competirá à Comissão de Valores Mobiliários discipli- vil, em linha com o direito anterior, continua a concebê-los como espécie de condo-
nar o disposto no caput deste artigo." mínio, tendo apenas acrescentado o qualificativo "de natureza especial" para dife-
Se fosse o intuito do legislador manter o fundo de investimento como instituto renciá-los dos demais condomínios previstos em lei (v. art. 1.368-C). Preocupado em
exclusivo do mercado regulado pela CVM, teria sido melhor introduzir as novas re- afastar qualquer assimilação, o legislador estabelece, no §1 º do artigo 1.368-C, que
gras em lei especial ou até mesmo na referida Lei n. 6.385/1976, que guarda evidente não se aplica ao fundo de investimento nenhuma das disposições do Código sobre
afinidade com o tema. A sua inclusão no Código Civil, de vocação sabidamente geral, os condomínios. Chega-se, assim, à situação paradoxal do condomínio que não se
só se justificaria se fosse aproveitada a oportunidade para disciplinar, de forma inédi- sujeita a nenhuma regra típica da copropriedade.
ta, a constituição de fundos de investimentos que se poderia chamar de privados, em Isso reflete, em verdade, a diminuta utilidade do instituto condominial para a
contraposição aos fundos atuais que, nos termos da lei especial, constituem veículos qualificação do fundo de investimento. Nesse particular, mostra-se mais significativa
destinados a fazer apelo à poupança pública ou a terem cotas negociadas em merca- a referência feita no preceito legal à "comunhão de recursos", expressão que remete ao
dos públicos regulamentados. conceito de patrimônio separado, de titularidade dos cotistas ou, no caso específico
Fundos criados com pequeno número de cotistas, sem qualquer esforço de dos fundos imobiliários, da administradora. 9 Disso se segue que o fundo é universa-
distribuição pública das cotas, apresentam relevância diminuta para a proteção da lidade de direito, isto é, objeto de direito em si mesmo, independente dos elementos
poupança popular ou a higidez dos mercados financeiros, de modo que poderiam que o compõem. Por consubstanciar patrimônio separado, destina-se a escopo espe-
prescindir da regulação hoje existente e se desenvolverem, exclusivamente, com base cífico, estipulado no regulamento, que servirá de parâmetro para os atos que podem
em normas legais simples e bem definidas. Eventuais disputas entre os cotistas e os ser praticados por aquele que gere o fundo. 1º
prestadores de serviço seriam levadas ao Judiciário ou à arbitragem, como ocorre, Por constituir universalidade patrimonial autônoma, o fundo não se confunde
ordinariamente, com os litígios privados. com o patrimônio geral dos cotistas ou da administradora. O Código Civil aprofun-
dou tal perspectiva ao introduzir em seu artigo 1.368-D dispositivo que autoriza o
regulamento do fundo, observada a regulamentação da CVM, a limitar a responsabi-

8 Tal entendimento tem origem na decisão proferida pelo Colegiado da CVM em 21.2.2006 (Processo
CVM RJ 2005/2345, Relator Presidente Marcelo Trindade) e se mantém nos dias atuais. Em decisão 9 Cf. Lei n. 8.668/1993, art. 8° e seguintes.
de 30.10.2018, o Colegiado reiterou que"( ... ) desde que seja por uma razão lícita, os participantes de 10 Acerca da natureza jurídica dos fundos de investimento, v. OLIVA, Milena Donato. Indenização
mercado podem seguir o regime das ofertas públicas de valores mobiliários, sujeitando-se a todos devida "ao fundo de investimento": qual quotista vai ser contemplado, o atual ou o da data do dano?
os ônus daí decorrentes, ainda que não venham a realizar nenhum esforço efetivo de distribuição Revista dos Tribunais, v. 6, 2011, p. 1303-1328.
pública" (Processo Administrativo CVM n. 19957.003689/2017-18, Relator Diretor Pablo Renteria).

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Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento


Milena Donato Oliva
Pablo Renteria

Em definitivo, o fundo traduz, na ordem jurídica brasileira, universalidade pa-


!idade de cada investidor ao valor de suas cotas. Antes do advento desse dispositivo, trimonial autônoma, de titularidade dos cotistas ou, no caso específico do fundo de
somente os cotistas dos fundos de investimento imobiliário gozavam, por força de investimento imobiliário, do administrador. Trata-se, portanto, de bem jurídico, ob-
expressa disposição legal, de igual limitação.li ·eto de direitos, e não de pessoa jurídica. Por isso que, a rigor, não se mostra correto
Adotada a limitação, verifica-se a segregação patrimonial perfeita ou absoluta, ~izer que O fundo de investimento tenha direitos e deveres, pois que, na qualidade de
ao passo que, subsistindo a responsabilidade subsidiária do cotista pelas dívidas do bem jurídico, falta-lhe o atributo da capacidade.
fundo, a segregação se afigura imperfeita. Nesse último caso, os bens do patrimônio Na linguagem comum, todavia, mostra-se frequente o emprego de expressões
geral do cotista podem ser excutidos pelos credores do patrimônio especial (i.e., do como "a obrigação do fundo", o "representante do fundo" ou o "patrimônio do fun-
fundo de investimento) em caso de insuficiência deste. Na separação patrimonial do", as quais, do ponto de vista da técnica jurídica, não se mostram exatas. Essa per-
perfeita, a seu turno, o patrimônio geral do cotista não possui responsabilidade sub- sonificação traduz mera prosopopeia linguística, adotada para facilitar a designação
sidiária. Ou seja, mesmo que os direitos integrantes do fundo não sejam suficientes à dos titulares dos direitos e deveres (os cotistas ou o administrador, no caso do fundo
solução das dívidas existentes, os credores deste não podem excutir os direitos per- imobiliário) por meio da referência ao elemento objetivo comum (o fundo). Trata-se
tencentes ao patrimônio geral do cotista.12 de fenômeno semelhante ao observado com relação a outros centros objetivos de im-
A utilidade da noção de patrimônio separado comparativamente à de condo- putação de efeitos jurídicos, como o espólio e o condomínio edilício.
mínio para a qualificação do fundo de investimento e identificação da disciplina apli-
cável também é evidenciada na Lei n. 8.668/1993, que regula o fundo de investimento
imobiliário. Apesar de aludir ao instituto do condomínio, tal diploma legislativo ins- 4. Estrutura do fundo de investimento
titui normativa condizente com a separação patrimonial, de forma a blindar os ativos
relativos ao fundo de todas as vicissitudes do administrador, que, na forma da lei, é o De uma maneira geral, nos fundos de investimento têm-se o administrador,
titular fiduciário do fundo. 13 0 gestor, o auditor independente e o cotista. O administrador é o representante do
fundo (rectius, da coletividade de cotistas) e o encarregado de desempenhar os atos
necessários à sua constituição e ao seu regular funcionamento. Compreendem-se nas
11 Cf. Lei n. 8.688/1993, art. 13, II, in verbis: "O titular das quotas do Fundo de Iuvestimento Imobiliário: atribuições do administrador diversos serviços de apoio e controle, tais como tesou-
II - não responde pessoalmente por qualquer obrigação legal ou contratual, relativamente aos raria, escrituração de cotas, custódia, controle e processamento de ativos financeiros,
imóveis e empreendimentos integrantes do fundo ou da administradora, salvo quanto à obrigação que podem ser prestados pessoalmente pelo administrador ou por terceiros por ele
de pagamento do valor integral das quotas subscritas."
contratados, que estejam legalmente habilitados.
12 OLIVA, Milena Donato. Pntri111ô11io Sepnmdo, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 240-241. Há atividades que devem ser obrigatoriamente desempenhadas pelo adminis-
13 Art. 7°, Lei n. 8.668/1993: "Os bens e direitos integrantes do património do Fundo de Investimento trador, como a manutenção em ordem dos livros relativos ao fundo, a divulgação
Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição das informações requeridas pela CVM, a supervisão do enquadramento da carteira
administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o património desta,
do fundo nos limites regulamentares e nos previstos na política de investimento, e a
observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes restrições:
I - não integrem o ativo da administradora; fiscalização dos serviços prestados por terceiros ao fundo, inclusive pelo gestor. 14
II - não respondam direta ou indiretamente por qualquer obrigação da instituição administradora; Por muito tempo, a regulamentação só previa a figura do administrador, a
III - não componham a lista de bens e direitos da administradora, para efeito de liquidação judicial quem competia o desempenho de todos os serviços necessários à consecução da fi-
ou extrajudicial;
IV - não possam ser dados em garantia de débito de operação da instituição administradora;
nalidade do fundo. Admitia-se, contudo, que, por meio de delegação contratual, o
V - não sejam passíveis de execução por quaisquer credores da administradora, por mais administrador contratasse terceiros para auxiliá-lo na realização de parte das suas
privilegiados que possam ser; atribuições, inclusive a gestão da carteira. Formavam-se, assim, sucessivos vínculos
VI - não possam ser constituídos quaisquer ónus reais sobre os imóveis. contratuais, o primeiro entre os cotistas do fundo e o administrador, e o segundo
lº No título aquisitivo, a instituição administradora fará constar as restrições enumeradas nos incisos
Ia VI e destacará que o bem adquirido constitui património do Fundo de Investimento Imobiliário.
entre este e o prestador de serviço.
2° No registro de imóveis serão averbadas as restrições e o destaque referido no parágrafo anterior. Tal orientação evoluiu paulatinamente em direção ao reconhecimento do vín-
3° A instituição administradora fica dispensada da apresentação de certidão negativa de débitos, culo contratual direto que liga o prestador aos cotistas reunidos no fundo. Esse mo-
expedida pelo Instituto Nacional da Seguridade Social, e da Certidão Negativa de Tributos e delo consolidou-se na Instrução CVM n. 409, de 2004, e se encontra hoje previsto
Contribuições, administrada pela Secretaria da Receita Federal, quando alienar imóveis integrantes
do património do Fundo de Investimento Imobiliário." V. tb. art. 32 da Instrução Normativa nº.
472, de 31 de outubro de 2008, da Comissão de Valores Mobiliários - CVM. V. tb. OLIVA, Milena 14 Cf. Instrução CVM n. 555, de 2014, art. 78, §2°.
Donato. Do negócio jiduciúrio à jid1ícia, São Paulo: Atlas, 2014, p. 73-77.

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Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento
Mi/ena Donato Oliva
Pablo Renteria

A regulamentação vigente limita o acesso a certos fundos de investimento, re-


na Instrução CVM n. 555, de 2015. De acordo com o seu artigo 79, os prestadores de utados mais complexos e arriscados, a catistas que, em conformidade com deter-
serviço, inclusive o gestor, devem ser contratados diretamente pelo fundo (isto é, por p . dos critérios normativos, são tidos como mais sofisticados e, por conseguinte,
seus catistas), representado no ato por seu administrador. Por exigência regulamen- n11na
azes de avaliar os riscos incorridos. Nessa direção, destacam-se os Fundos de In-
tar, este último também deve figurar como interveniente anuente da contratação. capt'mento em Participações (FIP), restritos a investidores qualificados, e os Fundos
A gestão do fundo de investimento pode ser desempenhada pelo próprio ad- ~:\~vestimenta em Direitos Creditórios não Padronizados (FIDC-NP), que admi-
ministrador ou por terceiro devidamente habilitado pela CVM. Neste último caso, a ,h · . · 18
tem apenas proJ'sszo11ais. , . , .
regulamentação vigente, por razões históricas, 15 continua a tratar o gestor como pres- Nos termos da regulamentação da CVM, 19 o fundo e const1tmdo por delibera-
tador de serviço contratado pelo administrador em nome do fundo, muito embora, ão do administrador, a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o regul_amento do
na prática, prevaleça a dinâmica comercial diversa. Com efeito, mais comumente,
iundo, observando o conteúdo mínimo exigido na regulamentação. 20 Em unportante
os investidores são atraídos pela expertise financeira e a reputação profissional do
medida para a redução de custos, a Lei da Liberdade Econômica dispensou o registro
gestor, que procura então instituição financeira disposta a prestar-lhe os serviços ne-
do regulamento no Cartório de Títulos e Documentos. Segundo o artigo 1.368-C, §
cessários à constituição e à administração do fundo de investimento. O gestor, assim,
3º, do Código Civil, mostra-se suficiente o registro na CVM para que tenha oponibi-
ocupa posição proeminente no fundo de investimento, sendo o profissional respon-
lidade perante terceiros.
sável por tomar as decisões de investimento com os recursos dos catistas. Assiste-lhe Não obstante a previsão regulamentar, a rigor, mostra-se mais consentâneo
igualmente o exercício do direito de voto inerente aos ativos que compõem o fundo, com O sistema jurídico o entendimento segundo o qual, por se tratar de universali-
como, por exemplo, as ações emitidas pelas companhias investidas. 16 dade patrimonial autônoma, a constituição do fundo só se aperfeiçoa com a primeira
A auditoria traduz a única atividade que não pode ser realizada pelo adminis-
integralização de cotas. À míngua de qualquer elemento interno, não há a "comunhão
trador. O auditor independente deve ser externo, uma vez que lhe cumpre revisar as
de recursos" que caracteriza o fundo de investimento. Tal entendimento se encontra
demonstrações financeiras do fundo, guardando sempre postura cética em relação às
em linha com a concepção quantitativa das universalidades patrimoniais autônomas,
informações recebidas do administrador. A sua principal função consiste em conte-
adotada pela doutrina contemporânea. 21
rir maior credibilidade aos dados contábeis divulgados junto ao público investidor,
Assim, o regulamento tem, em um primeiro momento, valor de proposta con-
contribuindo, assim, para a maior transparência dos fundos e, por conseguinte, mi-
tratual. Em seguida, ao subscrever cotas do fundo, o investidor adere voluntariamente
tigando os riscos de inexatidão ou fraude informacional.
aos termos convencionados, aperfeiçoando-se a relação negocial com o administrador,
Por fim, o investidor, ao subscrever ou adquirir cotas, torna-se cotista do fundo,
0 gestor e os demais prestadores de serviço encarregados do regular funcionamento do
passando a ser titular dos direitos e deveres inerentes a tal posição jurídica. Des-
fundo. Desse modo, consente com que os seus recursos sejam aplicados discricionaria-
tacam-se, dentre outros direitos, o de participar dos resultados do fundo na forma
mente pelo gestor, desde que respeitados os termos estipulados no regulamento.
prevista no regulamento, bem como o direito à informação sobre o desempenho do
fundo, do qual se ocupa minuciosamente a regulamentação vigente. Compete-lhe
ainda o direito de participar e votar em assembleia geral de catistas, à qual se reserva 5. Responsabilidade dos prestadores de
competência para determinadas deliberações, notadamente a alteração do regula- serviços do fundo de investimento
mento e a substituição do administrador, gestor ou custodiante do fundo.17
Nas relações entre os catistas e os prestadores de serviços sobressai a confiança,
haja vista os últimos se encarregarem de zelar pelos recursos que lhes foram con-
fiados pelos cotistas. Por isso que a regulamentação editada pela CVM submete o
15 Isso porque, do ponto de vista histórico, a figura do administrador precede à do gestor. Por muito
tempo, a regulamentação só previa a figura do administrador a quem competia a prestação de todos
os serviços necessários ao funcionamento do fundo, inclusive a gestão da carteira. O gestor surge
posteriormente como profissional a quem o administrador delega contratualmente parte de suas
atribuições, continuando, porém, a responder por elas perante os cotistas. Atualmente, no regime 18 Os critérios de definição dos investidores qualificados e dos profissionais encontram-se atualmente
da Instrução CVM n. 558, de 2015, a administração (também denominada administração fiduciária) estabelecidos na Instrução CVM n. 539/2013.
e a gestão de fundos de investimento constituem atividades autônomas, que não guardam mais 19 Cf. Instrução CVM n. 555/2014, art. 6°.
vínculo de delegação entre si.
20 Cf. Instrução CVM n. 555/2014, art. 44.
16 Cf. Instrução CVM n. 555/2014, art. 78, § 3°.
21 Cf. OLIVA, Milena Donato. Patrimônio Separado, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 202-208.
17 Cf. Instrução CVM n. 555/2014, art. 66.

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Notas sobre o regime jurídico dos f1111dos de i11vesti111ento
Mile11a Donato Oliva
Pablo Re11teria

de atuação, estão obrigados a( ... ) exercer suas atividades buscando sempre as melhores
administrador e o gestor a regime jurídico específico, tendo por finalidade promover
condições para o fundo, empregando o cuidado e a diligência que todo homem ativo e
o alinhamento de seus interesses com os dos cotistas. 22
probo costuma dispensar à administração de seus próprios negócios, atuando com le-
A tutela dos catistas constitui finalidade fundamental da regulação dos fundos
aldade em relação aos interesses dos cotistas e do fundo, evitando práticas que possam
de investimento, muito embora o desenvolvimento da indústria tenha levado a CVM
ferir a relação fiduciária com eles mantida, e respondendo por quaisquer infrações ou
a identificar outros objetivos, de ordem mais prudencial, relacionados à higidez do
irregularidades que venham a ser cometidas sob sua administração ou gestão."
sistema financeiro, como se verifica, por exemplo, na supervisão exercida sobre a ala-
Desse comando extraem-se dois principais deveres fiduciários. De um lado, 0
vancagem dos fundos. 23
dever de diligência, usualmente entendido como padrão geral de conduta a exigir 0
Com relação à proteção dos catistas, a regulamentação se vale de três técnicas
emprego das medidas que um profissional honesto e cuidadoso adotaria diante das
principais. A primeira refere-se à edição de normas prescritivas, que obrigam deter-
mesmas circunstâncias. 25 De outro, identifica-se o dever de lealdade, que proscreve,
minados comportamentos ou proíbem certos atos. Exemplo disso é a vedação a que
em termos amplos, toda conduta deliberada do administrador ou gestor em prejuízo
o administrador ou o gestor recebam qualquer espécie de remuneração que possa
dos legítimos interesses dos cotistas.
prejudicar a sua independência na tomada de decisão de investimento em nome do
Na base da relação fiduciária se encontra o dever de diligência, que traduz obri-
fundo, constante do §2° do artigo 92 da Instrução CVM n. 555, de 2014, norma que
gação de meios, em virtude do qual compete ao administrador e, em particular, ao
se aplica à generalidade dos fundos de investimento.
gestor envidarem os seus melhores esforços em prol dos interesses dos cotistas. No
A segunda consiste na adoção obrigatória do regulamento, instrumento con-
entanto, não prometem resultado financeiro nem podem ser responsabilizados pelo
tratual que disciplina pormenorizadamente as relações entre os cotistas, o adminis-
simples fato de terem tomado uma decisão que, ao final, contrariamente às suas ex-
trador, o gestor e outros prestadores de serviços do fundo. Tal documento deve ne-
pectativas, venha a ocasionar perdas ao fundo.
cessariamente dispor sobre as matérias previstas no artigo 44 da Instrução CVM 11 •
A diligência, portanto, relaciona-se ao procedimento decisório observado pelo
555, de 2014, notadamente a política de investimento do fundo, os fatores de risco a
gestor ou administrador, e não ao mérito da decisão. Nesse tocante, ao apurar a regu-
que se sujeitam as aplicações dos cotistas e a remuneração devida ao administrador.
laridade da conduta de administradores e gestores de fundos, a CVM estabelece clara
O regulamento cumpre dupla utilidade. Ao mesmo tempo em que preserva a
distinção entre o exame de mérito das decisões de investimento e a averiguação do
autonomia negocial na definição das características do fundo, que podem ser mol-
cumprimento do dever de diligência. 26
dadas em conformidade com os objetivos de investimento, serve de instrumento de
Em definitivo, no exame do cumprimento de dever de diligência, não tem ca-
proteção do catista perante a discricionariedade do administrador e do gestor, uma
bimento a formulação de juízo de valor sobre a qualidade do trabalho do gestor ou
vez que estes se encontram vinculados ao cumprimento das suas disposições. 24
do administrador, mas averiguar se há razões objetivas para entender que não tenha
, . Por fim, a regulamentação impõe ao administrador e ao gestor deveres fiduci-
agido com a diligência devida, por ter deixado de adotar algum cuidado impositivo
anos, de sorte que, mesmo em suas respectivas esferas de discricionariedade, encon-
antes de consumar a operação.
tram-se obrigados a agir no melhor interesse dos catistas. Segundo o artigo 92, I, da
Instrução CVM n. 555, de 2014, "o administrador e o gestor, nas suas respectivas esferas

22 De acordo ~om o entendimento da CVM: "Os principais objetivos das normas que regem a 25 Ne~s: p~rticular, revela-se flagrante a influência da doutrina societária na formulação do dever de
adm1111straçao de recursos de terceiros são alinhar os interesses do investidor e daqueles que agem dihgen.c1a_cont1da no aludido art. 92, I, da Instrução CVM n. 555/2014. A menção ao "cuidado e
em seu nome, estabelecer mecanismos pelos quais os investidores possam supervisionar a gestão ª d 1!1gen~1a que todo homem ativo e probo costuma dispensar à administração de seus próprios
fe!la pelos adm1111stradores, bem como impor um regime fiduciário e de responsabilidade dos negooos guarda evidente semelhança com o enunciado legal do dever de diligência dos
ge_stores dos fundos em relação aos seus catistas. Para tanto, procuram assegurar que gestores: (i) ~dmmistradores de companhias, previsto com os seguintes termos no art. 153 da Lei n. 6.404/1976:
0 admrnistrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência
seJam pessoas qualificadas; (ii) ajam no interesse dos cotistas; (iii) cumpram O mandato estabelecido
pelo regulamento do fundo; (iv) prestem uma série de informações aos catistas do fundo; e (v) que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios."
submetam aos catistas alterações relevantes no regulamento e estrutura do fundo, bem como a Poi '.sso se mostra comum o recurso a conceitos e critérios desenvolvidos pela doutrina societária
prestação anual de contas" (PAS CVM n. 15/08, Rel. Diretora Luciana Dias, julg. 28.2.2012). nos Julgamentos da CVM sobre o dever de diligência dos administradores e gestores de fundos,
como pode ser observado, por exemplo, na já citada decisão proferida no âmbito do PAS CVM 11 •
23 Nessa_ pers~ectiva, confira-se WELLISCH, Julya Sotto Mayor. Merendo de Capitais: F1111dame11tos e RJ2019/1400 (Rel. Presidente Marcelo Barbosa, julg. 17.12.2019, §§ 40 a 42).
Desajws, Sao Paulo: Quartier Latin, 2018, passim.
26 ~t;ntre outros, PAS CVM RJ2005/8542, Rel. Dir. Pedro Marcílio, julg. 29.8.2006. V. ainda PAS
24 Nesse sentido, o artigo 16, III, da Instrução CVM n. 558, de 2015, estabelece que o "administrador
D· RJl005/544_2, Rel. D1r. Mana Helena Santana, julg. 23.5.2007; e PAS CVM RJ2015/12087, Rel.
de carteira de valores mobiliários" - expressão que compreende tanto o administrador como o Ir. Pablo Rentena, julg. 24.7.2018.
gestor - tem o dever primordial de "cumprir fielmente o regulamento do fundo de investimento."

23
22
Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento
Milwa Donato Oliva
Pablo Renteria

Sublinhe-se, a propósito, que a certeza dos resultados financeiros e a transmu-


As regras introduzidas no Código Civil dedicam especial atenção à responsabi-
- da obrigação de meios em resultado desvirtuaria por completo a finalidade do
lidade dos diferentes prestadores de serviços do fundo de investimento. Nesse tocante, taçao. de gestão de recursos d e terceiros,. ,. . . 1d , b
que esta 111tnnamente v111cu a a a usca
nota-se a reação do legislador à hesitante jurisprudência dos tribunais que, por vezes, a serviço . por meio - dos recursos do c1·1en t e na com p ra e
. d a ap1·1caçao
de rendimento financeiro
pretexto de proteger a parte tida como vulnerável, imputa ao gestor prejuízos financei- da de títulos e valores mobiliários. Se a sua obrigação fosse de resultado, o gestor
ros decorrentes de riscos que haviam sido legitimamente assumidos pelos cotistas. As vde~ ria de exercer a atividade de administração de recursos, tornando-se, em vez
consequências dessa exagerada responsabilização são nocivas, uma vez que distorcem e1xa d , . - d , b
.
d isso, devedor do cliente, tal como observa o em uma t1p1ca operaçao e mutuo an-
por completo a finalidade do serviço de gestão de recursos, criando um ambiente aves- . , 'd . . d 'd·
, • Nesse cenário indese1avel, o consumi or correna o nsco e cre Jto o ges or,
d t
so ao risco, incompatível com o funcionamento do mercado de capitais. cano. - h' ·
que, desta feita, passar!ª a representar fonte importante de preocupaçao para a 1g1-
A resposta veio no parágrafo segundo do artigo 1.368-D, segundo o qual "a
dez do sistema financeiro.
avaliação de responsabilidade dos prestadores de serviço deverá levar sempre em
Por essa razão, a CVM veda quaisquer promessas quanto a retornos futuros da
consideração os riscos inerentes às aplicações nos mercados de atuação do fundo de
rteira. Também proíbe o gestor de fazer publicidade garantindo níveis de rentabi-
investimento e a natureza de obrigação de meio de seus serviços."
~i~ade, com base em desempenho histórico da carteira ou de valores mobiliários e
Embora nem todas as obrigações dos prestadores de serviço sejam de meios
índices do mercado de válores mobiliários. 29
(pense-se, por exemplo, no dever do administrador de publicar as demonstrações
Por outro lado, diante das várias espécies de fundos de investimento, é absolu-
financeiras do fundo), o preceito tem ampla aplicação, em especial com relação ao
gestor do fundo, que, como visto, deve envidar seus melhores esforços para a obten- t mente essencial que o consumidor seja informado plenamente sobre os riscos ine- ·1
a
rentes a cada fundo e que seja aconselhado a investir naquele adequado ao seu perfi .
ção dos rendimentos esperados, sem, contudo, se comprometer a alcançá-los. Por isso
Tratando-se, por exemplo, de investidor conservador, não pode ser orientado a aplicar
que a alocação do risco de desempenho da carteira recai sempre sobre o investidor.
seus recursos em fundo de maior risco, o que pode frustrar suas legítimas expectativas
Ainda que se trate de relação de consumo, o gestor apenas responde se falhar
de segurança no investimento, ainda que o fundo aconselhável não seja tão rentável, já
na prestação do seu serviço, isto é, se o serviço for defeituoso, seja por deficiência na
que, usualmente, a maior rentabilidade se associa à maior assunção de risco.
informação, seja por falha comprovada na gestão. Embora a responsabilidade civil
Dessa sorte, não há de se confundir resultados aquém das expectativas com a
no diploma consumerista seja objetiva, o dever de indenizar requer a presença de
má-gestão, partindo da premissa de que a boa gestão levaria necessariamente aos re-
defeito, o qual, em virtude da natureza de meios do serviço prestado, pressupõe a de-
sultados almejados. Por mais escorreita que possa ser a gestão de um fundo de investi-
monstração da inobservância das regras e padrões profissionais de conduta, de forma
mentos, este instrumento sempre envolve a assunção de riscos pelo investidor. Deve-se
equivalente, em termos funcionais, à comprovação da culpa normativa.27
apartar, assim, a má-gestão, deflagradora do dever de reparar sempre que configurada,
O defeito, insista-se, não reside no prejuízo financeiro sofrido pelo consumidor,
dos riscos próprios do investimento, assumidos pelo investidor e que devem ser por
1 mas na má-gestão, isto é, na gestão contrária ao regulamento (com destaque à política
de investimento) e à legislação vigente, que, entre outras obrigações, impõe ao gestor
este exclusivamente arcados, a menos que tenha havido falha no dever de informar. 30
Em outra frente, o disposto no inciso II do artigo 1.368-D autoriza o regula-
o dever de agir com diligência e lealdade, buscando atender aos objetivos de investi-
mento do fundo, desde que observada a regulamentação da CVM, a estabelecer "a
mento de seu cliente. 28
limitação da responsabilidade, bem como parâmetros de sua aferição, dos prestado-
res de serviços do fundo de investimento, perante o condomínio e entre si, ao cum-
primento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade."
27 Sobre o ponto permita-se a remeter OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Responsabilidade Civil
do Fornecedor por Inadimplemento das Obrigações de Meio: O Caso do Gestor de Fundos de Investi1:1e11to.
ln: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.), Inexernçao das
Obrigações - Pressupostos, evolução e remédios, v. I, São Paulo: Processo, 2020, p. 696-705.
28 "O gestor apenas responde se falhar na prestação do seu serviço, isto é, se o serv_iço for ~e~eituoso, 29 V. ICVM 558/2015, art. 17, III e IV.
seja por deficiência na informação e, conseguintemente, na obtenção do consentimento mtormado 30 "Entende-se, desse modo, que, na prestação do serviço de aconselhamento financeiro, as instituições
do consumidor, seja por falha comprovada na gestão. O defeito reside, insista-se, não na per~a bancárias somente respondem por eventuais prejuízos advindos de investimentos malsucedidos,
patrimonial e, conseguintemente, nos prejuízos financeiros sofridos pelo consumidor, mas na ma~ sobretudo daqueles cm que o elevado grau de risco é perfeitamente identificável segundo a
gestão, isto é, na gestão contrária ao regulamento (com destaque à política de investimen_to) _e a compreensão do homem médio, se a prestação do serviço for defeituosa, justamente por se tratar
legislação vigente, que, entre outras obrigações, impõe ao gestor o dever de agir com d1hgenc 1a e de obrigação de meio, e não de resultado" (STJ, REsp 1606775, 3• T., Rei. Min. Ricardo Villas Bôas
lealdade, buscando atender aos objetivos de investimento de seu cliente" (OLIVA, Milena Donato; Cueva, julg. 6.12.2016, publ. D)e 15.12.2016). Cf. ainda STJ, REsp 799.241, 4ª T., Rei. Min. Raul
RENTERIA, Pablo. Obrigação de meios e assunçâo de riscos pelo conrnmidor. ln: Revista do Direito Araújo, julg. 14.8.2012, publ. D)e 26.2.2013.
do Consumidor, v. 111, 2017, p. 19-38).

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Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento
Mi/ena Donato Oliva
Pablo Renteria

ocura afastar a propositura de demandas judiciais que busquem responsabilizar


A regra destaca a especificidade dos deveres de cada prestador de serviço do pr tador sob a mera alegação de que a insolvência poderia ter sido evitada se ele
fundo, procurando, nesse tocante, afastar o risco de um responder por fato imputável 0 pres . .
tivesse agido com maior cmdado.
exclusivamente a outrem. A questão apresenta especial relevância prática, haja vista a
regulamentação vigente exigir a estipulação de solidariedade entre o administrador
e os demais prestadores contratados para o fundo "por eventuais prejuízos causados 6. Conclusão: a importância da adequada
aos cotistas em virtude de condutas contrárias à lei, ao regulamento ou aos atos nor- qualificação do fundo de investimento
mativos expedidos pela CVM". 31 Ademais, nos termos da atual jurisprudência, há o
risco de os diferentes prestadores responderem solidariamente caso se configure a Os fundos de investimento configuram, no ordenamento brasileiro, patrimô-
relação de consumo com o cotista. 32 nio separado, de titularidade dos cotistas ou da administradora. A adequada qualifi-
No entanto, a efetividade da norma enunciada no artigo 1.368-D, II, revela-se cação dos fundos de investimento afigura-se importante para que se possa individuar
limitada, uma vez que se sujeita à regulamentação da CVM, que, desse modo, pode a disciplina jurídica aplicável a esta sofisticada forma de gestão patrimonial em suas
continuar a exigir a solidariedade nos casos em que entender cabível. De outra parte, variadas modalidades. Na medida em que se entende que os fundos de investimen-
como o Código Civil não exclui a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumi- to traduzem universalidade de direito, inserindo-se, por conseguinte, na teoria dos
dor aos fundos de investimento, 33 não é certo que a faculdade prevista na norma - no bens, não se pode considerá-lo centro autônomo de imputação subjetiva, ou seja, su-
sentido de autorizar o regulamento a afastar a solidariedade se isso não contrariar a jeito de direito. Também não se pode atribuir aos cotistas do fundo qualquer preten-
regulamentação - conduza, por si só, à alteração da jurisprudência dominante. são relativa a bens individualmente considerados, haja vista o direito dos cotistas re-
Por fim, o Código Civil cuida da responsabilidade dos prestadores de serviço cair sobre uma universalidade patrimonial, objeto de direito em si mesma, destinada
pelas obrigações assumidas pelo fundo (rectius, pela coletividade de cotistas) perante a um escopo que servirá de parâmetro para os atos que podem ser praticados pelo
terceiros. Nesse tocante, a parte final do artigo 1.368-E prevê que os referidos pro- titular ou por aquele que gere o fundo.
fissionais "não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que Além disso, a elasticidade inerente à noção de universalidade, refletida na en-
causarem quando procederem com dolo ou má-fé." trada e saída dos bens que a integram, uma vez que são dotados de autonomia jurí-
O fundo de investimento, entendido como comunhão autônoma de recursos, dica, permite explicar satisfatoriamente a atribuição dos riscos aos cotistas, de modo
não se confunde com os patrimônios gerais dos cotistas nem com aqueles dos presta- que estes sofrem as consequências do aumento e da diminuição dos elementos da
dores de serviço. Esses últimos não respondem, com os seus bens, pela satisfação das universalidade patrimonial, desde que relacionadas à finalidade do fundo.
obrigações que gravam o fundo. O terceiro que contrata com o fundo só pode exigir Os elementos essenciais dos fundos de investimento correspondem à técnica
do administrador ou do gestor o cumprimento de obrigação que este tenha assumido da separação patrimonial, a qual, por isso mesmo, deve nortear o intérprete na bus-
1 em seu próprio nome ou que a lei lhe imponha pessoalmente.
Tal regra tem especial importância nos fundos que se valem da faculdade pre-
ca da disciplina aplicável à espécie. Com efeito, (i) a possibilidade de alteração dos
bens integrantes do fundo, (ii) a inexistência de pretensão dos cotistas relativamente
vista no artigo 1.368-D, que autoriza a limitação da responsabilidade do cotista ao a qualquer elemento do fundo individualmente considerado, (iii) a vinculação do
valor de suas cotas. Constatada a incapacidade do fundo para solver as suas dívidas, titular do fundo ou daquele que o administra à persecução das finalidades do fundo,
é de se esperar o maior interesse dos credores em acionar os prestadores de serviço, (iv) a circunstância de os bens do fundo serem os primeiros ou os únicos a responder
notadamente o gestor, para satisfazer os seus direitos. pelas obrigações contraídas, (v) e a impossibilidade de os cotistas solicitarem a divi-
Em vista disso, o legislador optou, no artigo 1.368-E, por restringir a respon- são dos bens do fundo, são elementos presentes em todos os fundos de investimento,
sabilidade dos prestadores de serviços aos casos de dolo ou má-fé, afastando-se, que justamente são pertinentes ao instituto do patrimônio separado.
assim, do sistema geral de responsabilidade baseado na culpa. Tal regime protetivo Os fundos de investimento, assim, constituem patrimônio especial, e podem
revestir, basicamente, dois tipos de estrutura, a saber, universalidade patrimonial de
31 V. Instrução CVM n. 555, de 2014, art. 79, § 2°. titularidade da administradora ou universalidade patrimonial de titularidade dos
32 V. nesse sentido STJ, REsp. 1.164.235, 3' T., Rei. Min. Nancy Andrighi, julg. 15.12.2011, publ. D)e
cotistas. Os fundos de investimento de titularidade da administradora, que não cons-
29.2.2012. tituem, à evidência, comunhão sobre o patrimônio, vez que a titularidade é exclusiva,
33 Durante a tramitação do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2019, que resultou na promulgação se valem dos expedientes da separação patrimonial e da titularidade fiduciária. Já os
da Lei da Liberdade Econômica, apresentou-se emenda parlamentar destinada a afastar a aplicação fundos de titularidade dos cotistas, normalmente em comunhão, constituem patri-
do Código de Defesa do Consumidor do âmbito dos fundos de investimento. A proposta, contudo, mônio separado, em que a titularidade dos cotistas é funcionalizada à persecução
não prosperou e foi retirada do texto final aprovado pelo Congresso Nacional.

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Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento
Mi/ena Donato Oliva
Pablo Rrnteria

VEIGA, Alexandre Brandão da. Fundos de Investimento Mobiliário e Imobiliário,


do escopo do fundo, mas o exercício dessa titularidade, nos termos do regulamento
Coimbra: Almedina, 1999.
firmado entre as partes, fica atribuído à instituição administradora e ao gestor, cujas
atuações vinculam a coletividade dos cotistas, de sorte que avultam aqui as técnicas WELLISCH, Julya Solto Mayor. Mercado de Capitais: Fundamentos e Desafios, São
do patrimônio separado e da gestão do patrimônio por terceiro.
paulo: Quartier Latin, 2018.
A Lei de Liberdade Econômica perdeu a oportunidade de consagrar a potenciali-
dade funcional dos fundos de investimento a partir de disciplina geral e flexível, apta a
torná-lo instrumento versátil para as mais diversas e legítimas finalidades privadas sem
apelo ao mercado de capitais. Embora o Código Civil tenha trazido relevantes precei-
tos, como a possibilidade de limitação da responsabilidade dos cotistas, antes existente
apenas nos fundos imobiliários, deixou de fora talvez a mais profunda mudança, que
seria a consagração de instituto que, por sua versatilidade funcional, introduzisse no
direito brasileiro figura próxima ao trust previsto na Convenção de Haia. 34

7. Bibliografia

ALONSO, Félix Ruiz. Os Fundos de Investimento. Condomínios mobiliários. Revis-


ta da Faculdade de Direito, São Paulo, v. 66, 1971.

OLIVA, Milena Donato. Do negócio fiduciário à fidúcia. São Paulo: Atlas, 2014.

OLIVA, Milena Donato. Indenização devida "ao fundo de investimento": qual quotista
vai ser contemplado, o atual ou o da data do dano? Revista dos Tribunais, v. 6, 2011.

OLIVA, Milena Donato. Patrimônio Separado, Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Obrigação de meios e assunção de riscos


pelo consumidor. Revista do Direito do Consumidor, v. 111, 2017.

OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Responsabilidade Civil do Fornecedor


por Inadimplemento das Obrigações de Meio: O Caso do Gestor de Fundos de Inves-
timento. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz
(coord.), Inexecução das Obrigações - Pressupostos, evolução e remédios. São Paulo:
Processo, v. I, 2020.

RENTERIA, Pablo. Os fundos de investimento no Código Civil. In: ANDRADE, An-


dré Gustavo; GAULIA, Cristina Tereza; NEVES, José Roberto Castro; MELO, Marco
Aurélio Bezerra de (org.). Temas Relevantes de Direito Imobiliário - Uma Homena-
gem ao Professor Sylvio Capanema de Souza, no prelo.

34 Sobre o truste a relevância de sua incorporação no direito brasileiro, cf. OLIVA, Milena Donato. Do
negócio jiduciârio à jidúciu, São Paulo: Atlas, 2014, passim.

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