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Penafria Ponto de Vista
Penafria Ponto de Vista
Manuela Penafria
Universidade da Beira Interior
2001
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O ponto de vista no filme documentário 3
dentro de um plano ou com vários planos, nientes do filme, favorece-se um maior en-
recorrendo à montagem. volvimento do espectador para com esse in-
A escolha de um ponto de vista é uma terveniente. Por seu lado, o controlo narra-
escolha estética implica, necessariamente, tivo depende essencialmente da montagem,
determinadas escolhas cinematográficas em do ritmo com que se sucedem os planos, das
detrimento de outras (seleccionar determi- técnicas de montagem, etc. Por exemplo, se
nado tipo de planos em detrimento de ou- um interveniente permanecer mais tempo no
tros - por exemplo, grandes planos, - op- ecrã, é com ele que o espectador mais se en-
tar por determinadas técnicas de montagem volve.
- por exemplo, montagem paralela - em de- Estes dois modos, parecem dizer mais res-
trimento de outras). Cada selecção que se peito à imagem que ao som, no entanto,
faz é a expressão de um ponto de vista, quer este é um elemento importante que pode
o documentarista esteja disso consciente ou ser trabalhado para criar/reforçar determi-
não. Cada plano oferece um determinado nado ponto de vista, através, por exemplo,
nível de envolvimento, quer isso tenha sido da criação de um som específico para de-
ou não deliberadamente controlado pelo do- terminado interveniente no filme. É possí-
cumentarista. Convém salientar que não é vel estabelecer uma correspondência entre
suposto um filme usar, constantemente, de- o controlo gráfico e o controlo narrativo e
terminado ponto de vista. O essencial é o as fases de produção de um documentário:
documentarista definir qual o ponto de vista pré-produção (pesquisa e desenvolvimento);
predominante no seu filme. O nível de en- produção (filmagens); pós-produção (mon-
volvimento/identificação do espectador de- tagem). O controlo gráfico está presente
pende do modo como o ponto de vista se- nas primeiras duas fases e o controlo narra-
leccionado é articulado com a linguagem ci- tivo na última fase. Apesar de ser possível
nematográfica. Esse nível de envolvimento separá-los, o controlo gráfico deve ser traba-
pode ser obtido de dois modos: através de lhado em articulação com o controlo narra-
um controlo gráfico (graphic control) e atra- tivo. A pré-produção é uma fase de prepara-
vés de um controlo narrativo (narrative con- ção para as filmagens. Esta fase caracteriza-
trol). (cf. Steven Katz, 1991). O primeiro diz se por uma pesquisa e desenvolvimento do
respeito às características formais dos pla- tema/assunto a tratar. Não há regras a se-
nos (composição dos planos - modo como guir, aqui trata-se de justificar o interesse de
os elementos estão organizados dentro de um um filme. Assim, há que definir a motiva-
plano, por exemplo, em primeiro plano ou ção, ou seja, o documentarista deve, antes de
em segundo plano; grandeza dos planos - por mais, interrogar-se quanto às razões por que
exemplo, grande plano, plano médio; enqua- quer fazer determinado filme, definir a abor-
dramento - posição dos elementos em rela- dagem ao tema, recolher informação, fazer a
ção às margens do plano - por exemplo, cen- caracterização e selecção dos locais a filmar,
trado, descentrado; iluminação - que parte a caracterização dos intervenientes ("perso-
ou partes do plano têm mais ou menos luz; nagens"), definir a estrutura do filme, tipo de
etc.). Só a título de exemplo, se se utilizar planos, etc. Embora não seja regra, o mais
grandes planos apenas com um dos interve- das vezes, esta fase dependente do que o do-
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condiciona a fase seguinte - a pós-produção. implica uma interpretação por parte do do-
Cada plano apresenta um determinado ponto cumentarista mediante a escolha de técnicas
de vista, quer o documentarista tenha disso de montagem. Mesmo quando a interpreta-
consciência ou não. Neste sentido, é impor- ção do documentarista se esconde por detrás
tante que o documentarista defina qual o ní- de convenções (como o plano-sequência) o
vel de envolvimento que procura para um de- que se torna patente é que essa sua escolha
terminado momento. Cada plano deve ser resulta da convicção de que a mesma me-
pensado na sua especificidade e em relação rece a aceitação de todos. A sucessão das
com o todo do filme. Ou seja, é necessá- imagens e sons tem como linha orientadora
rio articular o controlo gráfico com o con- o ponto de vista adoptado e encontra na cri-
trolo narrativo. A procura de espontaneidade atividade do documentarista o seu principal
por parte dos intervenientes no filme coloca motor. É ao seleccionar e combinar as ima-
a questão, muitas vezes discutida, de a câ- gens e sons registados in loco que o docu-
mera de filmar alterar o comportamento dos mentarista se expressa. Ao proceder assim,
intervenientes do filme. Ora, os interveni- apresenta-nos um ponto de vista sobre deter-
entes não são actores, por tal não é possí- minado assunto. Para além disso, cria uma
vel alterarem completamente o seu compor- interpretação que se manifesta pela maior ou
tamento. A câmera não é um mecanismo menor criatividade que imprime à sucessão
de alteração de comportamentos; a sua pre- dos elementos que o filme integra. A rela-
sença torna-se, ao fim de algum tempo, um ção conteúdo-forma (ou seja, o assunto abor-
mecanismo que facilita a expressão de cada dado pelo filme e o modo como é abordado)
interveniente. Por um lado, essa facilidade deve ser um todo coerente. O importante é
deriva da relação de confiança que o docu- não separar o conteúdo da forma. Neste sen-
mentarista estabelece com os intervenientes tido, os melhores documentários serão aque-
e, por outro lado, pelo facto de as pessoas les cuja forma se interliga de tal modo com o
estarem de tal modo envolvidas em determi- conteúdo, que é quase impossível pensar um
nada situação que tendem a esquecer a pre- sem o outro. Para cada ponto de vista, exis-
sença da câmera. Ou ainda, pelo facto de tirá, eventualmente, uma forma que deve ser
as pessoas verem na câmera um meio que encontrada, à qual o documentarista acede
lhes permite ter "voz". O registo de ima- pelo uso criativo da linguagem cinematográ-
gens e sons do mundo não reflecte, por si fica. Esta sua autonomia não exclui o facto
só, o valor e interesse do documentário e, de que a escolha da forma do filme é uma
embora condicione, não determina a defini- opção que depende de vários condicionalis-
ção do ponto de vista para um filme. Só mos: sociais, económicos, culturais, políti-
a organização/ligação que se cria entre es- cos, técnicos, etc. Apesar disso, podemos
sas imagens e sons é o momento determi- afirmar que no documentário a relação en-
nante para o ponto de vista. O documenta- tre a forma e conteúdo é continuamente cri-
rista organiza diversos elementos: entrevis- ada e recriada. O documentarista tem (se
tas, som ambiente, legendas, música, ima- colocarmos de lado constrangimentos essen-
gens filmadas in loco, imagens de arquivo, cialmente políticos ou económicos) a possi-
reconstruções, etc. A sucessão de imagens bilidade de trabalhar e explorar essa relação
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promisso implica questões éticas tais como planos sequência e planos longos, muito uti-
a de saber se os intervenientes estarão ou lizados no documentário, são a prova dessa
não conscientes do impacto que poderá ter relação. Este tipo de planos revelam uma ne-
na vida deles o facto de se exporem perante cessidade em não quebrar a unidade, a com-
uma câmera. Quando é que os documenta- plexidade e ambiguidade de que é feita a pró-
ristas têm essa certeza? Até quando devem pria realidade. Em geral, este tipo de pla-
filmar? Quem estabelece os limites entre o nos, implicam a selecção de um ponto de
privado e o que pode ser mostrado publica- vista ambíguo em que se apela à participa-
mente? Onde termina o direito que os espec- ção dos espectadores para uma leitura crí-
tadores têm a determinada informação e co- tica do filme. A relação de confronto que
meça a privacidade que é um direito inegá- se estabelece com os intervenientes advém
vel dos intervenientes? Um documentarista do estatuto do documentário enquanto obra
tem o direito de contar a(s) história(s) do cinematográfica. A visão do documentarista
Outro? Um documentarista é um realizador manifesta-se pelas escolhas que faz ao abor-
que, tal como outro qualquer, tem o direito dar determinado assunto e a imprevisibili-
de fazer filmes, de se expressar. O acesso dade inerente à realização/produção de docu-
cada vez mais facilitado (embora estejamos mentários, entra em constante confronto com
ainda longe de uma situação ideal) aos meios a certeza do ponto de vista adoptado, que
de produção, incentiva interessantes registos o documentarista pretende transmitir. En-
que cumprem a função de estimular o diá- quanto processo, a realização/produção de
logo sobre o nosso mundo, e respondem, de um documentário implica uma relação es-
algum modo, às questões éticas que se colo- pecial com os intervenientes mas, também,
cam à realização de documentários. A pro- com outra entidade que faz parte desse pro-
babilidade de alguém fazer um documentá- cesso: os espectadores. Os intervenientes e
rio sobre uma comunidade e falhar em cer- os espectadores têm direitos. Aos primei-
tos aspectos, certas nuances próprias da vida ros deve-se o respeito pelas suas expectati-
dessa comunidade, assim como interpretar vas e motivações, aos segundos deve o docu-
mal o que foi dito pelos intervenientes, é mentarista oferecer uma visão do mundo que
elevada. Alguns antropólogos resolvem este os rodeia. Um documentário não é apenas
problema dizendo que basta colocarem-se a do documentarista nem dos intervenientes,
eles próprios no filme. Albert Maysles diz também é dos espectadores. Podendo par-
que basta o documentarista mostrar empatia tir de algumas ideias pré-concebidas, deve
e respeito pelos outros para que a verdade entender-se o documentário como um filme
surja. Mas, um documentário não deve ser que resulta de um processo que envolve tanto
julgado por isso, deve ser visto como uma a perspectiva do documentarista, como o
interrogação sobre a realidade, sobre a nossa confronto dessa sua perspectiva com a das
própria condição humana. Um documentá- pessoas directamente envolvidas no filme.
rio é sobre momentos mais profundos que se Por isso, é essencial que um documenta-
encontram sob as imagens que vemos. rista se interrogue sobre as suas motiva-
A relação que o documentarista estabelece ções: porque quer fazer determinado filme?
com os intervenientes é, pois, complexa. Os O que quer revelar/apresentar sobre determi-
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