Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Livro Leitura Complementar
Livro Leitura Complementar
Aspectos Constitucionais
coordenação
Nina Beatriz Stocco Ranieri
organização
Sabine Righetti
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente José Mindlin
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Adolpho José Melfi
Benjamin Abdala Júnior
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Nélio Marco Vincenzo Bizzo
Ricardo Toledo Silva
Inclui bibliografia.
Apêndice: Os autores.
ISBN 978-85-314-1147-2
CDD- 379.81
Direitos em reservados à
9 Apresentação
Nina Beatriz Stocco Ranieri
V. EDUCAÇÃO E INCLUSÃO
241 A Educação Indígena e o Papel do Estado
Sabine Righetti
257 Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior:
Uma Reflexão sobre o Debate Recente
Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti
12
Fevereiro de 2009
15
OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS
DO DIREITO À EDUCAÇÃO
Introdução
Transcorridos mais de duzentos anos do impacto das primeiras De-
clarações de Direitos1 e apesar dos inúmeros documentos internacio-
19
nais2 que vêm denotar a especial e intensa atenção que o mundo moder-
no dispensa à proteção dos direitos fundamentais, direitos do homem
e do cidadão, paradoxalmente, pouco se avançou em termos fáticos. A
imprensa e a mídia se encarregam de denunciar profundos pontos de
vulnerabilidade: discriminação racial, discriminação da mulher, discri-
minação religiosa e a educação contemplando poucos – uma elite.
O reduzido avanço que se alcançou, em parte, pode ser atribuído à
própria evolução do mundo, de modo muito acelerado e diante de um
processo de globalização que conduz a novos comportamentos e a novas
demandas. Nesta perspectiva, oportuno o registro de que até nas so-
ciedades mais evoluídas, como o desenvolvido mundo europeu, o tema
educação passa, novamente, a trazer inquietudes diante do fenômeno
imigratório que impacta os países com o advento de um contingente de
alunos de culturas diferentes, línguas diferentes, preparo diferente e que
reclama das autoridades novas medidas para atender e qualificar esta
diferenciada clientela. É o caso da Alemanha e da Itália que buscam no-
20
3. Neste sentido as reportagens trazidas pela revista The Economist, 18 out. 2008, pp.
61-62.
4. Em Textos Básicos sobre Derechos Humanos, Madrid, Universidad Complutense,
1973, p. 87.
21
22
23
24
1. Mais de 100 milhões de crianças, das quais 60 pelo menos são meninas, não
tem acesso ao ensino primário.
2. Mais de 960 milhões de adultos são analfabetos [...].
3. Mais de 1/3 dos adultos do mundo não tem acesso ao saber [...].
4. Mais de 100 milhões de crianças e inumeráveis adultos não conseguem
completar o ciclo de educação básica [...] (Barba, 1997p. 222, tradução nossa).
11. Sobre a Conferência de Dakar, ver The Economist, 18 agos. 2001, p. 18.
25
26
27
17. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi elaborada na expecta-
tiva de que integrasse o Tratado de Constituição para a Europa, o qual, no entanto não foi
subscrito, sendo objeto de negativa, por intermédio de referendo, na Holanda e na França em
2005. Portanto, referida Carta de Direitos Fundamentais, na Europa, ainda está sendo objeto
de estudos, aperfeiçoamento e continua sem implementação. Ver Code de Droit International
dês Droits de l’Homme, Bruxelas, Bruylant, 2005. Ver ainda, Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (Riquito et al., 2001).
28
A Realidade Brasileira
A Constituição atual, conhecida como a “Constituição cidadã”, ró-
tulo que lhe foi acoplado ao final dos trabalhos constituintes, por oca-
sião de pronunciamento do presidente da constituinte18, inovou ao con-
templar, no seu título II, o já célebre catálogo dos direitos, um extenso rol
de direitos e garantias. No entanto alterou a tradicional posição do tema
e, deste molde, buscou o constituinte, no dizer de Raul Machado Horta,
“conferir-lhe precedência” (Horta, 1995, p. 240), sem que esse posicio-
namento, contudo, viesse a estabelecer uma hierarquia entre as normas
constitucionais. Pretendeu, presume-se, assegurar “impregnação valora-
tiva” a esses dispositivos, “sempre que forem confrontados com atos do
legislador, do administrador e do julgador” (Horta, 1995, p. 240).
Acompanhando, porém, a tradição pátria, o texto atual cuidou do
tema adotando um tom moderno e ampliou o elenco já preconizado
pelos antigos documentos para agasalhar os direitos da segunda e da
terceira geração, enfocando direitos coletivos e sociais e oferecendo nu-
anças de extrema contemporaneidade ao sistema de tutela engendrado.
Em verdade a elaboração do documento constitucional de 1988 re-
sultou de influências de grupos e facções políticas representativas dos
mais diferentes e diversificados setores da sociedade e o quadro decor-
rente dessa espiral de ações de interveniência configura a radiografia
exata do espírito ávido por garantias à liberdade reinante naquele mo-
29
30
31
32
34
sindicalistas, OC) garantia do prin- defensor das votar no Partido servou dezesseis afirmativas). dade de direitos impactantes na das minorias.
garantindo-se cípio da igualda- Ações Afirmati- Republicano. das cem vagas humanos. diminuição da
seus cargos. Proibida a discri- de na contrata- vas. Discursou para estudantes desigualdade
minação feita por ção e promoção em 1965 para os Plano Philadel- pertencentes A Civil Rights entre os grupos
instituições gover- de seus emprega- alunos de Har- phia: estímulo à às minorias. A Acto foi vetada raciais.
namentais com ba- dos, pertencentes vard University. contratação de Suprema Cor- por Bush, em
se em cor, religião e às minorias. minorias (racial te decidiu, que outubro de 1990.
nacionalidade para e gênero) por os direitos do No anos seguin-
a contratação de companhias e vestibulando te, foi promulga-
funcionários. entidades edu- branco, Alan da, ajudando as
Mais: estimulou-se cacionais. Bakke ficaram vítimas de dis-
a contratação de violados com o criminação.
minorias. plano de Ação
Afirmativa desta
Universidade.
20/3/2009 12:26:09
MONICA HERMAN S. CAGGIANO
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. 2008. Teoria dos Direitos Fundamentais, trad. de Virgílio Afonso
da Silva. São Paulo, Ed. Malheiros.
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. 2004. Discriminação e Ações Afirmativas, Co-
municação feita no XIII Encontro Nacional de Direito Constitucional, pro-
movido em São Paulo pela Associação Brasileira dos Constitucionalistas,
Instituto “Pimenta Bueno”, em 19 ago. 2004.
BARBA, José Bonifacio. 1997. Educación para los derechos humanos. México, Fon-
do de Cultura Económica.
BRECHER, Jeremy na & COSTELLO, Tim. 1998. Global Village or Global Pillage, 2.
ed. Cambridge, Massachusetts, South End Press.
BURDEAU, George. 1972. Les Libertés Publiques, 4. ed. Librairie Générale de Droit
et de Jurisprudence, Paris.
CAGGIANO, Monica Herman S. 1982. “Proteção Jurídica dos Interesses Difusos”.
EDP – Estudos de Direito Público, Revista da Associação dos Advogados da
Prefeitura do Município de São Paulo, n. 2.
_____. 1995. Oposição na Política, São Paulo, Angelotti.
_____. 2002. “Direitos Humanos e Aprendizado Cooperativo”. Um Olhar sobre
Ética e Cidadania, Coleção Reflexão Acadêmica, São Paulo, Ed. Mackenzie.
CODE de Droit International dês Droits de l’Homme. 2005. Bruxelas, Bruylant.
DUVERGER, Maurice. 1996. Constitutions et Documents Politiques, Paris, PUF.
_____. 1971. Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, Paris, PUF.
FERRARA, Alessandro. 1992. Comunitarismo e Liberalismo, Roma, Editori Riu-
niti.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. 1999. Direitos Humanos Fundamentais, 3.
ed. São Paulo, Saraiva.
HORTA, Raul Machado. 1995. Estudos de Direito Constitucional, Belo Horizonte,
Ed. Del Rey.
JÍMENES, Maria Encarna García. 1998. El Convenio Europeo de Derechos Huma-
36
37
Introdução
Ao estudarmos o direito à educação no sistema jurídico brasileiro
observamos um notável avanço em sua proteção e promoção a partir
da Constituição Federal de 1988, não só com referência às constituições
brasileiras anteriores como também em relação à garantia dos demais
direitos sociais.
Essas previsões produzem importantes consequências jurídicas
e políticas, em termos de agregação do interesse público em âmbito
nacional, que podem ser identificadas, pelo menos, em dois aspectos
principais. O primeiro diz respeito ao pacto federativo, no qual se ins-
tala uma forma de cooperação efetiva e eficaz no campo educacional, o
segundo à afirmação da dimensão democrática do direito à educação.
Ambos aspectos se inter-relacionam na medida em que o dever do Esta-
do se efetiva por meio de ações integradas e coordenadas de todos os en-
tes federados, insinuando um federalismo cooperativo, com resultados
altamente positivos para a ampliação do exercício do direito à educação,
em seus diferentes níveis, tanto na esfera pública quanto na privada.
De fato, dentre as inúmeras transformações operadas no Brasil após
a edição da Constituição de 1988, destaca-se o considerável progresso
39
40
41
42
44
45
46
[...] a relação contratual de que se cuida não é travada entre prestador de ser-
viço e mero consumidor, porém aquele e usuário de serviço público, isto é, cidadão.
Daí porque não há pura e simplesmente, na hipótese, uma relação de consumo,
o que ensejaria a ponderação do disposto no art. 24, inciso V, da Constituição do
Brasil. As relações de consumo são acessíveis unicamente a quem possa ir ao mer-
cado portando moeda suficiente para adquirir bens e serviços, situação bem diversa
daquela em que se situa o cidadão usuário do serviço público (p. 15).
E mais:
[...] Não posso reduzir o cidadão a um agente econômico que tem direitos
porque travou relações com um produtor de bens ou de serviços e que, atuando no
mercado e tendo pago o custo, o preço desses bens, desses serviços, merece proteção
jurídica. Não! A proteção jurídica que o usuário do serviço público merece do or-
denamento jurídico é anterior ao seu ingresso no mercado. Ele a obtém na medida
em que participa, como cidadão, do Estado (p. 19).
47
48
49
50
8. Cf. Nina Ranieri, Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo, Edusp/Fapesp,
2000, p. 269.
51
52
10. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Constitucional. Educação. Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação. Lei n. 9.394, de 1996. Competência legislativa concorrente: CF,
art. 24. Competência estadual concorrente não-cumulativa ou suplementar e competência
concorrente estadual cumulativa, ministro relator Carlos Velloso, DOU de 10.3.2006.
53
11. Situação análoga foi igualmente examinada pelo Supremo Tribunal Federal, nos
autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.399-8, São Paulo, em face da Lei Estadual
n. 9.164/95, que estabelecia a exigência de formação específica par o exercício do magistério.
Relator ministro Maurício Correa, m.v., j. 3.3.2004, DJU 11.6.2004.
54
55
Considerações Finais
Nos cinco casos comentados, notamos que as questões levadas ao
conhecimento do STF, em sede de controle normativo abstrato, mais
suscitaram discussões relativas à matéria de direito econômico, direi-
to civil, direito do consumidor, conexas à problemática educacional do
que, propriamente, a análise desse conteúdo específico vis-à-vis a com-
petência estadual concorrente.
É bem verdade que são tênues e duvidosos os limites entre a lei de
diretrizes e bases da educação nacional, as normas gerais de educação
e a suplementação normativa possibilitada aos Estados-membros, em
especial quando o caso não apresenta inconstitucionalidades flagran-
tes. Ainda assim, nem sempre a finalidade da lei estadual tem sido vista
pela Corte como um fator que possibilite interpretação mais benéfica
à afirmação do direito à educação, embora esta posição não pareça se
apresentar como regra.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em termos de maior restrição ao
exercício da competência concorrente estadual, na Ação Direta de In-
constitucionalidade n. 1.007-7, julgada em 31.8.2005, que teve por obje-
to a análise de constitucionalidade da Lei n. 10.989, de 7.12.1993, do Es-
tado de Pernambuco, em face de matéria considerada pela Corte como
de direito civil.
Por outro lado, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.266-
5, referente à Lei n. 6.586/94, do Estado da Bahia (6.4.2005), a Corte
se manifestou em sentido contrário, entendendo prevalecer a matéria
educacional sobre os demais aspectos de direito econômico, posição
reafirmada posteriormente na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
1.950-3, relativa à Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo (3.11.2005).
57
58
Referências Bibliográficas
INEP/Ministério da Educação. Censo Escolar. 2006.
FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando. 2004. Brasil e Argentina – Um Ensaio de His-
toria Comparada (1850-2002). São Paulo, Editora 34, p. 50 e ss.
LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394, de 20.12.1996).
MARCÍLIO, Maria Luiza. 2005. História da Educação em São Paulo e no Brasil. São
Paulo, Imprensa Oficial.
RANIERI, Nina. 1994. Direito ao Desenvolvimento e Direito à Educação – Relações
de Realização e Tutela. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Polí-
tica, v. 2, n. 6, pp. 124-134.
_____. 2000. Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo, Edusp/Fapesp, p.
269.
TEIXEIRA, Anísio. 1968. A Educação É um Direito. São Paulo, Cia. Editora Na-
cional, p. 13.
UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultu-
ra. Site: www.unesco.org.br, acesso em 10 jun. 2008.
59
Eduardo Pannunzio
Introdução
Em uma democracia fundada na tripartição das funções do Estado,
o Judiciário tem um papel de relevo na realização dos direitos humanos,
assegurando a sua prevalência em situações de ameaça ou remediando
uma violação já consumada.
O presente trabalho tem por objetivo analisar os mecanismos exis-
tentes para o desempenho da função judicial – e, devido à similaridade
de propósito, também aqueles de caráter “quase-judicial” – em relação a
um direito humano específico: o direito à educação.
Para tanto, inicia-se com uma investigação acerca da “justiciabilida-
de” do direito à educação, haja vista que, assim como ocorre com outros
direitos econômicos, sociais e culturais, a crença de que sua implemen-
tação depende sempre de uma atuação positiva do Estado faz com que
se alegue que o Judiciário não teria legitimidade ou competência para
tomar decisões que, direta ou indiretamente, afetam o desenho de polí-
ticas públicas ou a alocação de recursos no orçamento estatal.
Uma vez firmado o protagonismo do Judiciário nessa seara, parte-
se para a apresentação de um panorama dos principais mecanismos ju-
61
1. Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Resolução da Assem-
bléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) n. 217 A (III), de 10.12.1948, art. 26.
2. Cf. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pelo
Decreto n. 591/92, art. 13.
3. Cf. Constituição Federal, art. 5o, § 2o.
4. Idem, art. 6o.
62
64
65
66
67
68
sim, que as escolhas feitas no âmbito deste poder sejam compatíveis com
o primado dos direitos humanos.
Em suma: mesmo quando levantam questões de políticas públicas
ou alocação de recursos, os direitos econômicos, sociais e culturais – o
que inclui, por suposto, o direito à educação – deve ser plenamente pas-
síveis de adjudicação. Esta é uma consequência inevitável do reconhe-
cimento, pelo Estado brasileiro, do direito à educação como um direito
humano.
69
7. Constituição Federal, art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de: I. ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive,
sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II. progressi-
va universalização do ensino médio gratuito; III. atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV. educação infantil,
em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V. acesso aos níveis mais eleva-
dos do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI. oferta
de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII. atendimento ao educan-
do, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
direito público subjetivo. § 2o O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público,
ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3o Compete
ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e
zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.”
8. Ver Constituição Federal, art. 5o, LXIX.
9. Idem, art. 5o, LXX.
10. Cf. Lei n. 1.533/51, art. 1o. Caso o titular do direito seja criança ou adolescente, há
também, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), previsão expressa da
possibilidade de recurso ao mandado de segurança no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Vide Lei n. 8.069/90, art. 212, § 2o.
11. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXI.
12. Há, pelo menos, um caso de mandado de injunção relacionado ao direito à educação
70
no STF. Trata-se do MI 727, impetrado por um estudante de pós-graduação que sustentava que
a ausência de legislação federal garantindo aos estudantes o direito ao pagamento de meia
passagem nos ônibus interestaduais prejudicava o seu acesso à educação. A Corte negou se-
guimento ao mandado, sob a alegação de que o texto constitucional não impunha ao Estado o
dever de legislar sobre a concessão de benefícios aos estudantes nos meios de transporte inte-
restaduais. Vide STF, MI 727, relator ministro Eros Grau, decisão monocrática de 4.10.2005.
Disponível em http://www.stf.gov.br, acesso em 21 jun. 2008.
13. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXIII.
14. Idem, art. 129, III.
15. Cf. Lei n. 7.347/85, art. 5o, V.
16. Cf. Constituição Federal, art. 102, I, “a”.
17. Idem, art. 103.
18. Nem a Constituição Federal nem a Lei n. 9.882/99 definem “preceito fundamen-
tal”, mas, como asseverou o ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da ADPF 33,
“ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos
direitos e garantias individuais” (entre eles o direito à educação). Vide STF, ADPF 33, relator
71
72
73
74
75
76
77
79
80
81
82
34. Registre-se que o Estado brasileiro já apresentou o seu segundo relatório periódico,
no ano de 2007, motivo pelo qual em breve o Cdesc deve publicar as suas novas constatações
e recomendações em relação ao país.
83
84
Conclusão
O presente trabalho buscou demonstrar que o direito à educação,
a exemplo dos demais direitos humanos (civis, políticos, econômicos,
85
86
Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS. 2008. Relatora da
ONU para Educação. Palestra em São Paulo [on line]. Disponível em http://
www2.abong.org.br/final/informes_pag.php?cdm=13024, acesso em 30
out. 2008.
ARAMBULO, Kitty. 1999. Strengthening the Supervision of the International Cove-
nant on Economic, Social and Cultural Rights: Theoretical and Procedural
Aspects. Antwerpen/Hart, Intersentia.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 1997. Relatório sobre a Situação
dos Direitos Humanos no Brasil [on line]. Disponível em http://www.cidh.
org/countryrep/brazil-port/indice.htm, acesso em 30 out. 2008.
DWORKIN, Ronald. 1977. Taking Rights Seriously. Cambrigde, Harvard Univer-
sity Press.
_____. 2003. “Terror & the Attack on Civil Liberties”. The New York Review of
Books, vol. 50, n. 17, November 6.
EIDE, Asbjørn. 2001. “Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights”.
In: EIDE, Asbjørn; KRAUSE, Catarina & ROSAS, Allan. Economic, Social and
Cultural Rights: A Textbook, 2. ed. Haia, Kluwer Law International.
HUNT, Paul. 1996. Reclaiming Social Rights: International and Comparative Per-
spectives. Aldershot, Ashgate Publishing Limited.
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. 2008a. About Ceart – What it is [on line].
Disponível em http://www.ilo.org/public/english/dialogue/sector/tech-
meet/ ceart/about.htm, acesso em 21 jun. 2008.
_____. 2008b. Ceart Reports [on line]. Disponível em http://www.ilo.org/pu-
blic/english/dialogue/sector/techmeet/ceart/ docs.htm, acesso em 21 jun.
2008.
LEARY, Virgina A. 2003. “Implications of a Right to Health”. In MAHONEY, K. E.
& MAHONEY, P. Human Rights in the Twenty-first Century. S.l. Kluwer Aca-
demic Publishers, pp. 481-493.
OFFICE OF THE UNITED NATIONS HIGHT COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. 2008a.
Contributions submitted by the Special Rapporteur on the right to education
87
to the questionnaire prepared by the Office of the United Nations High Com-
missioner for Human Rights, pursuant to decision PC.1/10 of the Preparatory
Committee of the Durban Review. UN DOC A/CONF.211/PC.2/8.
_____. 2008b. Fact sheet n. 16 (Rev. 1), The Committee on Economic, Social and
Cultural Rights [on line]. Disponível em http://www.ohchr.org/Docu-
ments/ Publications/FactSheet16rev.1en.pdf, acesso em 21 jun. 2008.
_____. 2008c. Human Rights in Development [on line]. Disponível em http://
www.unhchr.ch/ development/approaches-07.html, acesso em 17 jun.
2008.
_____. 2008d. Special Rapporteur on the Right to Education [on line]. Dispo-
nível em http://www2.ohchr.org/english/issues/education/rapporteur/in-
dex.htm, acesso em 21 jun. 2008
OSMANI, Siddiq; NOWAK, Manfred & HUNT, Paul. 2008. Human Rights and Pov-
erty Reductions Strategies – A Discussion Paper [on line]. Disponível em
http:// www.fao.org/righttofood/kc/downloads/vl/docs/AH177.doc, aces-
so em 17 jun. 2008.
ROBINSON, Mary. 2008. Bridging the Gap Between Human Rights and Develop-
ment: From Normative Principles to Operational Relevance [on line]. Dis-
ponível em http:// www.unhchr.ch/huricane/huricane.nsf/view01/2DA59
CD3FFC033DCC1256B1A0033F7C3?opendocument, acesso em 17 jun. 2008.
SHEININ, Martin. 2001. “Economic and Social Rights as Legal Rights”. In EIDE,
Asbjørn; KRAUSE, Catarina & ROSAS, Allan. Economic, Social and Cultural
Rights: a Textbook, 2. ed. Haia, Kluwer Law International, pp. 29-54.
SHUE, Henry. 1996. Basic Rights – Subsistence, Affluence and US Foreign Policy, 2.
ed. Princeton, Princeton University Press.
UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL. 2003. Concluding Observations of
the Committee on Economic, Social and Cultural Rights: Brazil. 23/05/2003.
UN DOC E/C.12/1/Add.87.
_____. 2004. Economic, Social and Cultural Rights – The Right to Education –
Report submitted by the Special Rapporteur on the Right to Education, Mr.
Vernor Muñoz Villalobos. UN DOC E/CN.4/2005/50.
88
Introdução
Neste artigo procuramos analisar a previsão constitucional de oferta
de ensino religioso nas escolas públicas e sua regulamentação infracons-
titucional, apontando as principais questões daí advindas. Vale adiantar
que, no caso do ensino religioso, a resposta a muitas das questões não
respondidas no âmbito federal encontra-se nos sistemas estaduais e mu-
nicipais de ensino, uma vez que a atual redação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n. 9.394/1996 delega a essas
esferas da federação competência absoluta para dispor sobre os conte-
údos e a forma de implementação da disciplina. Ressalte-se que este é o
único exemplo de conteúdo curricular obrigatório cujas diretrizes não
são estabelecidas pela União, que, com essa postura, não exercita a com-
petência legislativa do art. 22, inciso XXIV da Constituição1. Essa situação
levou a regulamentações muito distintas no âmbito dos estados e muni-
1. Constituição Federal de 1988, art. 22, XXIV: “Compete privativamente à União legis-
lar sobre: [...] XXIV – diretrizes e bases da educação nacional”.
89
90
92
Sobreleva acrescentar – que é dever dos pais e das mães de família, e ao mesmo
tempo compete aos clérigos de cada confissão, dar ao ensino religioso a quantos
estão sob seus cuidados, ou procuram sinceramente obtê-lo; visto que o civil e o
eclesiástico têm suas espheras distintas e delimitadas. E assim como ensinar a scien-
cia incumbe aos instituidores, ensinar a religião pertence aos padres, que aliás no
lar encontram – regra geral – auxiliares preciosas e sinceras. [...] A sciencia se funda
na experimentação, ao passo que a religião apóia-se na revelação e no milagre. Não
é justo, pois, confundi-las; e daih logicamente procede a escola chamada leiga, que
nossa Constituição adoptou, e opõe-se à escola religiosa ou confessional (Milton,
1898, pp. 382-383).
93
94
95
Art. 97 O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais,
é de matrícula facultativa, e será ministrado sem ônus para os poderes públicos, de
acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo
seu representante legal ou responsável.
§ 1o A formação de classe para o ensino religioso independe de número míni-
mo de alunos.
§ 2o O registro dos professores de ensino religioso será realizado perante a
autoridade religiosa respectiva (grifo nosso).
96
97
98
99
100
101
102
Um projeto de lei proposto pelo Ministro da Educação, três meses após a pro-
mulgação da LDB, determinava mudança no artigo sobre o ER nas escolas públicas.
Esse projeto foi fundido, no Congresso Nacional, a dois outros, de iniciativa parla-
mentar. Os três projetos foram gerados no campo da centro-direita do espectro po-
lítico, mas o relator do projeto substitutivo, que logrou aprovação, foi um deputado
sacerdote católico, militante de partido de centro-esquerda, padre Roque (PT-PR)
(Cunha, 2006, p. 5).
103
várias autoridades religiosas, em especial as católicas, cujo objetivo inicial era pres-
sionar a presidência da República a fazer uso do seu direito de veto. O próprio
Executivo assumiu, então, o compromisso de alterar o art. 33 mediante projeto de
lei, daí resultando a Lei n. 9.475/97 (Cury, 2004, pp. 7-8).
104
Ementa: Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ensino Religioso não oferecido
nas escolas estaduais do Município de Paraíba do Sul. Procedência do pedido. En-
sino Religioso. Previsão nacional inserida na Constituição Federal e na Lei de Di-
retrizes e Bases, na forma facultativa. Disciplina obrigatória neste Estado, na forma
do disposto na Lei Estadual n. 3.459/2000, art. 1o Resolução que não tem poder
para modificar o texto de lei. Obrigação ao oferecimento da disciplina. Honorários
Advocatícios. Ministério Público. Confusão. Órgão mantido pelo Estado, como a
Defensoria Pública. Aplicação, por semelhança, da Súmula n. 80 deste Egrégio Tri-
bunal de Justiça. Provimento parcial do recurso, somente para excluir a condenação
ao pagamento de honorários advocatícios5.
105
Considerações Finais
Feito esse resgate da trajetória do ensino religioso na legislação fe-
deral, podemos perceber a magnitude da reforma promovida pela Lei n.
9.475/1997 em relação a postura estatal frente ao tema do ensino religio-
so nas escolas públicas: de um direito de liberdade, vinculado especifica-
mente à liberdade de crença e culto, a ser exercido inclusive no espaço da
escola pública, sem ônus para o Estado, de quem se cobrava tão-somente
106
107
Referências Bibliográficas
7. A LDB (Lei n. 9.394/1996, art. 11) atribui aos municípios a faculdade de criar sis-
temas de ensino próprios, integrar-se ao sistema estadual ou compor com este um sistema
único de educação básica.
108
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 3.510-DF. Relator: ministro Carlos Ayres Brito.
Disponível em www.stf.gov.br.
TJRJ. Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro. Décima Quinta Câmara Cível, Proc.
n. 2005.001.45451 – Apelação Cível, Des. José Pimentel Marques – Julga-
mento em 17.5.2006. Disponível em www.tj.rj.gov.br.
_____. Décima Câmara Cível, Proc. n. 2006.001.08880 – Apelação Cível, Des.
Gilberto D. Moreira – Julgamento em 5.9.2006. Disponível em www.tj.rj.
gov.br.
109
OS SISTEMAS DE ENSINO E
O MINISTÉRIO PÚBLICO
Introdução
A experiência tem revelado que, indo muito além da seara da pró-
pria, a educação tem chegado aos domínios do Direito, exigindo dos
juristas e profissionais militantes uma atuação interdisciplinar, influen-
ciando e sofrendo influências diversas. A educação tem sido discutida
entre os juristas, inclusive como prioridade absoluta de modo a comba-
ter a pobreza, o subdesenvolvimento econômico e social, chegando até a
criminalidade, esta afeta diretamente aos domínios do Direito, enquan-
to aqueloutras de forma indireta, mas de toda forma evidenciando que
qualquer tentativa de solução para os graves problemas que enfrenta-
mos, passa pela priorização da educação.
Embora os benefícios sejam visíveis em muitos países que realmen-
te priorizaram a educação, não é possível, segundo entendemos, depo-
sitar nela toda a responsabilidade pelo avanço (ou não) do país, senão a
concreta esperança de um amanhã melhor do que o hoje. Não há solu-
ção mágica. Todavia, as gerações vindouras serão bem mais esclarecidas
e conscientes de seus direitos e deveres, caso fizermos uma opção clara
e firme pela educação da geração presente. Para isso é preciso que os
indivíduos aprendam a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser, como
113
[...] as missões que cabem à educação e as múltiplas formas que pode revestir
fazem com que englobe todos os processos que levem as pessoas, desde a infância
até ao fim da vida, a um conhecimento dinâmico do mundo, dos outros e de si
mesmas, combinando de maneira flexível as quatro aprendizagens fundamentais
descritas no capítulo anterior. É este continuum educativo, coextensivo à vida e am-
pliado às dimensões da sociedade, que a Comissão entendeu designar, no presente
relatório, pela expressão “educação ao longo de toda a vida”. Em seu entender, é a
chave que abre as portas do século XXI e, bem além de uma adaptação necessária às
exigências do mundo do trabalho, é a condição para um domínio mais perfeito dos
ritmos e dos tempos da pessoa humana (Delors, 2001, p. 104).
114
to, razão pela qual exige pessoas emancipadas. Diz ainda: “Uma demo-
cracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é
emancipado” (Adorno, 2003, p. 141). Em seguida, o autor pondera:
115
116
118
119
não só pode como deve o Ministério Público atuar nas questões educa-
cionais, seja administrativamente ou judicialmente1.
Relativamente à educação de maneira geral, já afirmamos2 que ela é
a medida do desenvolvimento social, cultural e econômico de um povo.
Se a ele é oferecida educação de qualidade, certamente terá maior faci-
lidade de alcançar o pleno desenvolvimento. A educação é, para o con-
junto da sociedade, a solução viável de oferecimento de oportunidades
de crescimento e desenvolvimento sustentável, com inclusão social, com
preservação do meio ambiente e, de resto, afirmação da cidadania como
um todo. O Brasil precisa de investimentos nos variados setores eco-
nômicos, com geração de empregos, de renda, afastando-nos da pobre-
za. Todavia, a busca do status de país desenvolvido não pode significar
desrespeito a valores que a própria Constituição consagra. Desse modo
estaremos garantindo um futuro melhor ao Brasil, com a atual geração
preparando aqueloutras vindouras, para conquistar um degrau acima
na escala do desenvolvimento econômico e social. Segundo Durkheim
(1978):
A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não
se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desen-
volver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados
pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, parti-
cularmente, se destine (Durkheim, 1978, p. 41).
120
[...] quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de
optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperio-
sidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz
de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei
também que é possível intervir para melhorá-las (Freire, 1996, p. 52).
Conclusões
A educação é tema destacado na ordem constitucional, merecendo
a especial atenção do Estado, da família e da sociedade. Nesse sentido, a
Constituição e demais normas aplicáveis tratam dos sistemas educacio-
nais e seus órgãos, quer os legislativos ou os executivos, corporificando
uma complexa estrutura que foge aos padrões.
A existência de uma repartição de competências, em obediência ao
princípio federativo, vem complementada pela existência dos Conselhos,
quer o Nacional ou os Estaduais, órgãos incumbidos de expedir normas
gerais e que a todos os envolvidos na matéria educacional obrigam. O
Conselho Nacional de Educação, atuando junto ao Ministério da Edu-
cação, edita resoluções, além de exarar pareceres. No âmbito regional, o
Conselho Estadual de Educação normatiza os sistemas por deliberações,
em articulação com a Secretaria de Educação, além de igualmente exarar
pareceres e indicações. Possível ainda a existência de Conselhos Munici-
pais de Educação que somados às Secretarias Municipais de Educação,
tornam realmente complexo o chamado sistema educacional.
O Ministério Público galgou notável crescimento na Constituição
de 1988, passando de um órgão com atuação meramente judicial, para ir
além e assumir a função de defensor dos direitos constitucionais da so-
ciedade. Sendo defensor dos direitos do povo, natural que possa e deva
exigir o direito à educação, base do desenvolvimento da sociedade. É
nessa linha de atuação que o Ministério Público deve atuar, influencian-
do e exigindo a concretização do fundamental direito à educação.
121
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor Wiesengrund. 2003. Educação e Emancipação, trad. Wolfgang
Leo Maar, 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
DELORS, Jaques (org.). 2001. Educação: Um Tesouro a Descobrir. Relatório para a
Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, trad.
José Carlos Eufrázio, 5. ed. São Paulo, Cortez; Brasília: MEC/Unesco.
DURKHEIM, Émile. 1978. Educação e Sociologia: Com um Estudo da Obra de
Durkheim, de Paul Fauconnet, trad. Lourenço Filho, 11. ed. São Paulo, Me-
lhoramentos; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar.
FREIRE, Paulo. 1996. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Edu-
cativa. São Paulo, Paz e Terra.
MARTINES JÚNIOR, Eduardo. 2006. Educação, Cidadania e Ministério Público: O
Artigo 205 da Constituição e sua Abrangência. São Paulo, tese de doutorado
em Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
122
Introdução
A declaração do direito à educação está presente na legislação bra-
sileira desde o Império, com a gratuidade do ensino primário, sendo
aperfeiçoada do ponto de vista jurídico, desde a Constituição Federal
de 1934 (Oliveira, 2007a). Entretanto, a promulgação deste direito na
Constituição Federal de 1988 (CF/88), com seu detalhamento na legisla-
ção complementar, Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – ins-
tituído pela Lei n. 8.069 de 1990 (ECA/90), Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – Lei n. 9.394 de 1996 (LDB/96), não são suficientes para que
todos os cidadãos brasileiros tenham acesso à escola, permaneçam nela
e ainda a concluam com qualidade.
Os dados educacionais sobre acesso indicam que a universalização
completa do atendimento no ensino fundamental, única etapa da edu-
cação básica considerada obrigatória, não se concretizou, apesar de sua
crescente expansão na década de 1990, atingindo 97% na taxa de escola-
rização líquida. Na educação infantil, de acordo com os dados do último
Censo Demográfico do IBGE de 2000, apenas 9,4 % das crianças de zero
a três anos tinham acesso à creche, e a pré-escola era frequentada por
61,4 % das crianças de quatro a seis anos; no ensino médio, a taxa de
123
1. Os direitos difusos e coletivos são definidos de acordo com a sua divisibilidade, abran-
gência e origem. Difusos são “são compartilhados por um grupo indeterminável de lesados;
o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está unido por uma situação de fato comum
(exemplo: uma ação destinada a obter a reparação cível pela lesão ao meio ambiente, em pre-
juízo dos moradores de uma região; uma ação civil pública destinada a impedir uma propa-
ganda enganosa pelo rádio ou pela televisão)”; os coletivos: “aqueles que estão compartilhados
por um grupo determinável de lesados; o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está
unido por uma relação jurídica básica comum, que deve ser resolvida de maneira uniforme
para todo o grupo (exemplo: uma ação coletiva que vise a anular uma cláusula abusiva num
contrato de adesão)”. Mazzilli, 2004, p. 76, grifos do autor.
124
ventude; zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegu-
rados às crianças e aos adolescentes, promovendo as medidas judiciais e
extrajudiciais cabíveis; fiscalizar o processo de escolha dos membros do
Conselho Tutelar; fiscalizar o ingresso no cadastro de doações; fiscalizar
entidades e programas de proteção ou socioeducativos; e intervir nos
atos infracionais cometidos por adolescentes.
Este artigo analisa em dois municípios do interior paulista, a atu-
ação do MP para a proteção do direito à educação básica, tendo como
objetivos averiguar os diferentes tipos de atuação – judicial e extrajudi-
cial – desenvolvidos pelos promotores de justiça da Infância e Juventude,
além de caracterizar as consequências da ação do MP para a garantia do
direito à educação básica.
O estudo foi realizado nas Promotorias da Infância e Juventude de
Rio Claro e Ribeirão Preto, municípios do interior do Estado de São
Paulo, sendo consideradas ambas Comarcas de 3a entrância para pro-
gressão na carreira no MP. A pesquisa abrangeu as ações desenvolvidas
pelos promotores de justiça no período de 1997 a 2004, tendo em vista
que as alterações no financiamento da Educação, com a Emenda Cons-
titucional n. 14, de 1996, e a introdução do Fundo de Manutenção e De-
senvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), com a focalização de
prioridades no ensino fundamental ocasionaram impactos no padrão
de oferta e atendimento das demais etapas da educação básica.
Para a coleta de dados, recorreu-se a dois procedimentos: análise
documental dos procedimentos extrajudiciais, ações judiciais e outros
documentos elaborados pelas Promotorias de Justiça, com vistas à pro-
teção do direito à educação básica; e entrevista com os Promotores de
Justiça da Infância e Juventude dos municípios selecionados.
A escolha pela análise da atuação da Promotoria de Justiça da Infân-
cia e Juventude considerou que no estado de São Paulo os representantes
do MP, nesta Promotoria de Justiça, devem atuar na proteção integral
dos direitos da criança e do adolescente, incluindo os direitos educa-
cionais, além de serem contemplados nesta faixa etária os alunos que se
enquadram na educação básica.
125
2. O artigo 208 da CF/88 foi alterado pela Emenda Constitucional (EC) n. 14/1996 e
pela EC n. 53/2006.
126
128
129
130
132
135
138
139
Referências Bibliográficas
BOBBIO, N. 2004. A Era dos Direitos. Nova ed. Rio de Janeiro, Elsevier.
BRASIL. Constituição. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-
sília, DF, Senado Federal.
_____. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em http://www.pla-
nalto.gov.br, acesso em 6 set. 2007.
_____. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/
ccivil_03/Leis/L9394.htm, acesso em 20 jul. 2008.
CASTILHO, E. W. V. de. 2006. Direito à Educação e Ministério Público. Disponível
em http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/EST1.pdf, acesso em 5
jan. 2008.
CORRÊA, B. C. 2007. “A Educação Infantil”. In: OLIVEIRA, R. P. de & ADRIÃO, T.
(orgs.). Organização do Ensino no Brasil: Níveis e Modalidades na Consti-
tuição Federal e na LDB, 2. ed. São Paulo, Xamã.
DUARTE, Clarice Seixas. 2003. O Direito Público Subjetivo ao Ensino Fundamen-
tal na Constituição Federal Brasileira de 1988. São Paulo, tese de doutorado
em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.
140
141
O DIREITO À QUALIDADE NA
EDUCAÇÃO
Introdução
Ensaia-se, com olhar de simplicidade, uma visão do direito à edu-
cação de qualidade sob a luz da teoria neoconstitucioalista. Necessário
reconhecer-se simples, posto que o próprio pressuposto teórico com que
se pretende trabalhar, o neoconstitucionalismo, merece reflexões muito
mais elaboradas do que as breves considerações feitas aqui. Da mesma
forma, dar conteúdo jurídico, portanto exigível, à expressão direito à
educação de qualidade, constitui tarefa impossível de ser realizada em
algumas poucas páginas.
Inicia-se, assim, com uma despretensiosa exposição do que se en-
tende por esse novo modelo jurídico, para que com suas cores, sequen-
cialmente, analise-se o direito à qualidade na educação. Por fim, serão
visitadas algumas perplexidades que o cotidiano tem apresentado a essa
combinação.
145
Data de Data de
Tipo Número Relator Demandante Demandado
Julgamento Publicação
Agravo Re- Associação dos
Município
gimental em Maurício Deficientes
241.757-2 de São Luís 29.06.1999 20.04.2001
Recurso Extra- Corrêa Auditivos do
(MA)
ordinário Maranhão
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Marco
455.802 blico do Estado Santo André 07.02.2004 05.03.2004
em Agravo de Aurélio
de São Paulo (SP)
Instrumento
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Marco
411.518 blico do Estado Santo André 03.03.2004 26.03.2004
em Agravo de Aurélio
de São Paulo (SP)
Instrumento
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Marco
475.571-8 blico do Estado Santo André 03.03.2004 31.03.2004
em Agravo de Aurélio
de São Paulo (SP)
Instrumento
Decisão Thiago Inácio
Município de
Monocrática Marco Calado represen-
474.444 Santo André 05.03.2004 31.03.2004
em Agravo de Aurélio tado po Enedina
(SP)
Instrumento da Silva Calado
Decisão
Ministério pú- Município de
Monocrática Marco
401.673 blico do Estado Santo André 26.03.2004 19.04.2004
em Recurso Aurélio
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão
Ministério Pú- Município
Monocrática
401.880 Eros Grau blico do Estado de São Paulo 27.08.2004 28.09.2004
em Recurso
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Marco
431.773 blico do Estado Santo André 15.09.2004 22.10.2004
em Recurso Aurélio
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Carlos
402.024 blico do Estado Santo André 05.10.2004 27.10.2004
em Recurso Velloso
de São Paulo’ (SP)
Extraordinário
146
Data de Data de
(cont.) Tipo Número Relator Demandante Demandado
Julgamento Publicação
Decisão Município de
Ministério Pú-
Monocrática Sepúlveda São Bernardo
509.347 blico do Estado 16.12.2004 09.02.2005
em Agravo de Pertence do Campo
de São Paulo
Instrumento (SP)
Decisão
Ministério Pú- Município do
Monocrática Celso de
410.715 blico do Estado Santo André 27.10.2005 08.11.2005
em Recurso Mello
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Agravo Re-
Ministério Pú- Município de 22.11.2005
gimental em Celso de
410.715-5 blico do Estado Santo André Votação 03.02.2006
Recurso Extra- Mello
de São Paulo (SP) Unânime
ordinário
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Celso de
436.996 blico do Estado Santo André 26.10.2005 07.11.2005
em Recurso Mello
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão
Ministério Pú- Município de
Monocrática Joaquim
438.493 blico do Estado Santo André 20.11.2005 12.12.2005
em Recurso Barbosa
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão mo- Ministério Pú- Município de
Carlos
nocrática em 463.210 blico de Estado Santo André 07.11.2005 17.11.2005
Velloso
Recurso de São Paulo (SP)
Agravo Re-
Ministério Pú- Município de 06.12.2005
gimental em Carlos
463.210-1 blico do Estado Santo André Votação 03.02.2006
Recurso Extra- Velloso
de São Paulo (SP) Unânime
ordinário
Decisão
Ministério Pú- Município
Monocrática Celso de
467.255 blico do Estado de São Paulo 22.02.2006 14.03.2006
em Recurso Mello
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Decisão
Ministério Pú- Município
Monocrática Celso de
472.707 blico do Estado de São Paulo 14.03.2006 04.04.2006
em Recurso Mello
de São Paulo (SP)
Extraordinário
Estado de
Decisão
Ministério Pú- São Paulo e
Monocrática
293.412 Eros Grau blico do Estado Município 15.04.2006 29.05.2006
em Recurso
de São Paulo de Presidente
Extraordinário
Venceslau
Agravo Re-
Ministério Pú- Município de
gimental em Marco
384.201 blico do Estado Santo André 26.04.2007 03.08.2007
Recurso Extra- Aurélio
de São Paulo (SP)
ordinário
Decisão
Ministério Pú- Município
Monocrática Carmen
564.035 blico do Estado de São Paulo 30.04.2007 15.05.2007
em Agravo de Lúcia
de São Paulo (SP)
Instrumento
147
148
149
[...] (a) educação infantil, por qualificar como direito fundamental de toda
criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente
discricionárias da administração pública, nem se subordina a razões de puro prag-
matismo governamental. [...] Os municípios [...] não poderão demitir-se do man-
dado constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo artigo
208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da
discricionariedade político-administrativa dos entes municipais [...]. Embora resi-
da, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular
e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário de-
terminar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políti-
cas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos
órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento
dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório –
mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impreg-
nados de estatura constitucional (STF, RE 293412, relator ministro Eros Grau, DJ
29.05.2006).
150
151
152
153
154
155
intelectual que assola o país (STJ, RE 575.280/SP, Rel. p/ acórdão ministro Luiz Fux,
Primeira Turma, DJ 25.10.2004).
156
157
158
159
160
161
162
Considerações Finais
Há, por fim, uma peculiaridade em relação ao sistema educacional
brasileiro, ligada à questão da qualidade, sobre a qual devem ser tecidos
alguns comentários, ainda que de modo singelo, como uma sugestão de
tema para um próximo estudo. Trata-se da interface entre a qualidade
da educação e a exploração desta pela iniciativa privada.
Com fundamento na abertura conferida pela norma do artigo 209
da Constituição Federal, a educação no país encontra-se, de modo di-
ficilmente reversível, inserida na roda do moinho satânico de que fala
(Polanyi, 2000). Na sociedade da informação, à medida que o mercado
cria relações de dependência cada vez maiores com o conhecimento, tal
como ocorreu com o trabalho, a terra e o dinheiro em outra ocasião, tam-
bém a educação vai ganhando a categorização de mercadoria fictícia.
Qualificar de fictícia a assemelhação de educação a mercadoria é
ação de extrema relevância, que, acredita-se, deve estar sempre presente
163
6. Nesse sentido, ver a explicação de Polanyi (2000, p. 94) cerca da natureza de merca-
doria fictícia do trabalho, da terra e do dinheiro.
164
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. 2003. “Derechos Fundamentales y Estado Constitucional De-
mocrático”. In CARBONELL, Miguel (org.), Neoconstitucionalismo(os), Ma-
drid, Trotta.
BALDWIN, Peter. 1990. The Politics of Social Solidarity. Cambridge, Cambrigde
University Press.
BARROSO, Luís Roberto. 2005. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do
Direito: O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível
em www.georgemlima.xpg.com.br/barroso.pdf.
BROWN, Spencer. 1957. “Quality in Education”, Jounal of Educational Sociology,
v. 30, n. 8, p. 361.
DE GROOF, Jan. 1998. “About Quality Rights in Education”. European Journal for
Education Law and Policy, v. 2, Netherlands.
DUARTE, Écio Oto Ramos. 2006. Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico:
Uma Introdução ao Neoconstitucionalismo e às Formas Atuais do Positivis-
mo Jurídico. São Paulo, Landy.
FERRAJOLI, Luigi. 1999. Derechos y Garantias. La Ley del Más Débil. Madrid,
Trotta.
GUASTINI, Ricardo. 2003. “La ‘Constitucionalizacion’ del Ordenamiento Jurídi-
co”. In CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(os), Madrid, Trotta.
KELSEN, Hans. 1984. Teoria Pura do Direito. Coimbra, Armênio Amado.
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. 2005. “Qualidade do Ensino: Uma Nova Di-
mensão da Luta pelo Direito à Educação”. Revista Brasileira de Educação,
Rio de Janeiro, n. 28.
165
166
Introdução
A discussão sobre qualidade em educação assumiu grande visibili-
dade no debate público e faz parte do rol de preocupações, não só dos
especialistas da área da pedagogia, mas também de outras áreas de co-
nhecimento como a economia e a administração.
O direito pouco a pouco também vai tomando parte nessa impor-
tante questão educacional, talvez ainda sem o volume de produção aca-
dêmica que o tema merece.
De toda sorte, a questão da qualidade do ensino possui elementos
que a todos parece interessar e é notável o apelo que o assunto desperta
na população. Os meios de comunicação de massa, em geral, e especifi-
camente os jornais e revistas dedicam espaço, editoriais e cadernos es-
peciais sobre o tema. A publicação de resultados de avaliações de ensino,
por exemplo, é sempre notícia que aparece em primeira página dada a
sua repercussão pública.
Vivemos um período histórico em que o ensino fundamental1, en-
contra-se, salvo exceções, praticamente universalizado no país, de forma
167
(composta por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e ensino superior. A
educação infantil é oferecida em creches para crianças de até três anos e em pré-escolas, para
crianças entre quatro e cinco anos. O ensino fundamental tem duração de nove anos, sendo o
seu acesso obrigatório às crianças a partir dos seis anos de idade e o ensino médio é a etapa
final do ensino básico, com duração de três anos.
168
169
170
171
3. Atualmente, por conta das alterações no art. 32 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e
172
173
4. São exemplos desses testes o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o Exa-
me Nacional do Ensino Médio (Enem), o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
(Enade), esse último voltado para avaliação do ensino superior, entre outros
174
175
176
177
179
[...] gestão da escola [LDB, art. 3o, VIII]; a utilização do tempo [LDB, art. 24, I], a
organização do espaço [LDB, arts. 4o, IX, 25,74 e 75], a valorização dos profissionais
da educação [LDB, art. 67, II], a composição dinâmica do currículo escolar [LDB, arts.
9o, IV, 26, 27 e 28], a orientação didático-pedagógica, as formas de avaliação [LDB,
art. 24, V], a participação dos pais na escola [LDB, art. 14, II], o reconhecimento da
comunidade e o apoio das autoridades.
[...] cada um desses indicadores de qualidade de ensino (podem surgir ou-
tros!) é considerado direito material à educação de crianças e adolescentes e pode
ser protegido por ações judiciais e extrajudiciais de qualquer espécie (ECA, art. 209),
com a utilização de todos os instrumentos legais de exegibilidade previstos na legis-
lação (ECA, art. 212).
Considerações Finais
Embora a expressão qualidade do ensino possa provocar entendi-
mentos conflitantes sobre o seu verdadeiro conteúdo, é possível encon-
trar na Constituição Federal e na LDB, caminhos para o estabelecimento
de uma concretude para o conceito.
Mesmo reconhecendo que possa haver certo grau de incerteza
quanto ao significado de “padrão de qualidade” no contexto da própria
Constituição Federal, o recurso aos comportamentos concretos neces-
sários à realização da finalidade embutida no princípio da garantia de
padrão de qualidade, dão mais clareza ao significado do princípio.
Na área da pedagogia, quando se fala em “ensino de qualidade”, é co-
mum apontar-se a ambiguidade da ideia de qualidade e criticar-se certas
unanimidades que consideram aprovação nos vestibulares ou resultados
180
Referências Bibliográficas
ÁVILA, Humberto. 2008. Teoria dos Princípios: Da Definição à Aplicação dos
Princípios Jurídicos, 8. ed. ampl. atual. São Paulo, Malheiros.
AZANHA, José Mario Pires Azanha. 1995. Educação: Temas Polêmicos. São Paulo,
Martins Fontes, 1995.
_____. 2006. A Formação do Professor e Outros Escritos. São Paulo, Editora Se-
nac.
AZEVEDO, José Clóvis. 2007. “Educação Pública: O Desafio da Qualidade”. Revis-
ta Estudos Avançados, vol. 21, n. 60, pp. 7-26, maio-ago.
BARROSO, Luís Roberto. 2003. Constituição da República Federativa do Brasil
Anotada, 4. ed. São Paulo, Saraiva.
BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra da Silva. 2000. Comentários à
Constituição do Brasil, 2. ed. atual., São Paulo, Saraiva, 8. vol. arts. 193 a
232.
BEISIEGEL, Celso de Rui. 2005. A Qualidade de Ensino na Escola Pública. Brasília,
Liber Livro Editora.
BOAVENTURA, Edivaldo M. A. 1992. “A Educação na Constituição de 1988”. RIL.
Brasília, Senado, ano 29, n. 116, p. 275, out.-dez.
_____. 1995. “A Constituição e a Educação Brasileira”. RIL, Brasília, ano 32, n.
127, p. 29, jul.-set.
BRANDÃO, Carlos da Fonseca. 2007. LDB Passo a Passo: Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (Lei n. 9394/96), Comentada e Interpretada, Artigo
por Artigo. 3. ed. atual. São Paulo, Editora Avercamp.
BULOS, Uadi Lammêgo. 2000. Constituição Federal Anotada. São Paulo, Saraiva.
CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. 2007. “A Qualidade de Ensino Vinculada à
181
182
Introdução
Diante da classificação constitucional da educação como um direito
fundamental, mais precisamente, um direito social, e em virtude da sua
caracterização, na essência, como um tipo de serviço público prestado
pelo estado, o que se pretende é analisar se esse atributo de serviço pú-
blico é perdido quando o serviço passa a ser prestado por instituições
privadas.
E o seu fundamento pode ser encontrado na significante divergên-
cia existente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca da na-
tureza desse tipo de serviço: se trata-se efetivamente de um serviço pú-
blico ou de uma relação de consumo, onde o aluno paga pela qualidade
do serviço oferecido.
A fim de tornar mais didático nosso estudo, pretendemos dividi-lo em
três tópicos. No primeiro deles, analisaremos a divergência entre o conceito
de educação privada como serviço público ou mera relação de consumo.
Para tanto, faremos um estudo sobre a recente jurisprudência hoje predo-
minante no Supremo Tribunal Federal para pontuarmos a questão.
Em seguida, nosso objetivo será trabalhar, especificamente, o con-
ceito de serviço público, suas origens, caracterização e, principalmente,
185
186
187
2. Conclusão extraída da explicação apresentada pelo ministro Eros Grua na ADI 1.007,
mais especificamente às fls. 18-21.
3. A diferenciação entre os conceitos “atividade econômica em sentido estrito” e “ati-
vidade econômica em sentido amplo” são trazidas por Eros Grau (2003, p. 91) em sua obra
A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 8. ed. São Paulo, Malheiros. O autor faz uma
distinção interessante, pela qual considera o conceito atividade econômica em sentido amplo
um gênero, da qual são consideradas espécies os conceitos de serviço público e atividade
econômica em sentido estrito. O estado pode desempenhar atividades monopolizadas que,
a priori, podem ser caracterizadas como atividades privadas, ou melhor, como atividades a
serem prestadas pela iniciativa privada. O professor de Direito Econômico citado chega a
caracterizar essa atividade como sendo de intervenção estatal, a “atuação do estado além da
esfera do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado)”, carac-
terizando o termo “intervenção” ainda como “a intervenção na esfera de outrem”. Todavia, o
estado desempenha também atividades que são inerentes à sua essência, que são a base de sua
razão e existência. A prestação de serviços públicos é um exemplo desse tipo de, nas palavras
do professor Eros, atividade estatal legítima, não caracterizada como intervenção, pois é jus-
tamente uma função inerente, uma tarefa precípua do ente público. É através da prestação de
serviços públicos que a interação entre o estado e a sociedade encontram seu ponto de maior
188
tangenciamento. É através da prestação desses serviços públicos que o estado é capaz de fazer
valer a execução de suas políticas públicas planejadas que visem à promoção dos direitos.
4. De acordo com o autor: “No berço da Nação, no limite do território ocupado por essa
nação os governantes devem empregar suas forças para organizar e controlar o funcionamen-
to dos serviços públicos. Assim, os serviços públicos são um elemento do Estado”. (Tradução
própria.)
189
190
sam a ser limitadas, não podendo ser arbitrárias e contrárias à defesa dos
interesses coletivos e individuais.
Trata-se da noção de responsabilidade do estado perante seus atos,
que ganha contorno a partir das revoluções liberais dos séculos XVII e
XVIII, fundamentada na ideia de defesa da liberdade e propriedade dos
indivíduos, que finalmente ganha consistência e forma a partir das revo-
luções sociais vividas no mundo no século XIX.
Desta forma, passa a estar presente o fundamento de que o estado
pode ser responsabilizado por atos praticados por seus agentes políti-
cos ou públicos. Essa noção advém de teorias modernas, encontrando
maior respaldo a partir das famosas decisões do Conselho de Estado
francês, que traz à baila a noção de responsabilidade do estado perante
a sociedade e encontra seu marco no famoso caso “Decisão Rothschild”,
que data de 18558.
Apenas após a Revolução Industrial do século XIX, do surgimento
dos movimentos sociais e dos direitos que chamamos de segunda gera-
ção, ou seja, os direitos sociais e coletivos, é que passamos a ter um estado
balizado pelos direitos dos cidadãos, um estado ciente dos seus deveres e
obrigações e, consequentemente, ciente da sua responsabilidade.
As constituições formuladas a partir desse período passaram a as-
segurar os direitos e garantias individuais e coletivos, bem como os de-
veres do poder público como um instrumento interventor e gerador de
políticas de bem estar social que garantissem os direitos do homem.
Nas palavras do professor José Cretella Jr. (2002, p. 231):
8. A decisão proferida pelo Conselho de Estado francês parte do raciocínio de que cabe
à administração, sob o império da lei, regular as condições do serviço público que por ela deva
ser assegurado. Deve a administração assegurar a boa relação do serviço que é prestado entre
os agentes públicos que o executam e a população que por ele é beneficiada. Foi incisiva a de-
cisão desse caso no sentido de que essa relação entre o estado e a sociedade não deve ser consi-
derada e analisada no âmbito do direito civil, como acontece nas relações de particular contra
particular. Por se referir à responsabilidade do Estado, em caso de culpa, negligência ou erro
cometido por um agente da administração, é lícito que seja tratada por regras diferentes.
191
atos relativos as suas funções diante das jurisdições civis, mas o artigo 75 da Cons-
tituição do Ano VIII, que subsiste depois desta, subordina o exercício da ação de
responsabilidade a uma autorização dada pelo Conselho de Estado.
192
193
194
195
196
O juiz deu ao caso solução adequada, não tendo a sentença o condão de oca-
sionar ingerência do poder judiciário na esfera da administração pública, mas ape-
nas o de garantir a efetivação do dever constitucional de fazer respeitar-se direito
público subjetivo. Ao descumprir tais preceitos legais a autoridade violou direito
líquido e certo da criança.
Conclusão
A partir da celeuma estabelecida acerca da natureza jurídica do ser-
viço de educação prestado pelas instituições privadas, faz-se necessário
pontuarmos tratar-se ou não de um serviço público típico ou outra no-
menclatura.
É de se ver que no direito brasileiro, essa questão leva à cisão de
pensamento entre os estudiosos do direito administrativo e do direito
econômico. Para os administrativistas de maneira geral, o que define se
o serviço é público ou não é a titularidade de quem o presta, enquanto
que para os teóricos do direito econômico, o que vale é a natureza do
serviço prestado.
A clássica teoria do serviço público trabalha com a hipótese de par-
ticipação da iniciativa privada na prestação desse tipo de atividade, sem
que isso descaracterize a sua natureza. Em outras palavras, não importa
a titularidade de quem o presta, mas a sua natureza específica.
199
Referências Bibliográficas
AGUILLAR, Fernando Herren. 1999. Controle Social dos Serviços Públicos. São
Paulo, Max Limonad.
AMARAL JUNIOR, Alberto do & MOISÉS, Claudia Perrone (orgs.). 1999. O Cinquen-
tenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. São Paulo, Edusp.
ANETCHE, Marta T. S. 1995. “Emergência e Desenvolvimento do Welfare State:
Teorias Explicativas”. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências So-
ciais, n. 39, pp. 3-40, jan.-jun.
ARAUJO, Edmir Neto. 1975. O Tribunal de Conflitos e a Responsabilidade Pública.
São Paulo, curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP.
ARISTÓTELES. 1995. A Política. São Paulo, Edipro.
BAER, Werner. 2002. A Economia Brasileira, 2. ed. São Paulo, Nobel.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. 1997. Prestação de Serviço Público e Admi-
nistração Indireta, 2. ed. São Paulo, RT.
_____. 1998. Curso de Direito Administrativo, 10. ed. São Paulo, Malheiros.
BARROSO, Luís Roberto. 2006. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6. ed.
São Paulo, Saraiva.
BAUBY, Pierre. 1998. Reconstruire l’action publique: services publics ai service de
qui? Paris, França, Syros.
200
201
202
Introdução
A trajetória histórica dos direitos humanos é um forte indicador da
constante preocupação do homem com a educação. Desde a Declaração
francesa de 1789, impõe-se a necessidade de assegurar acesso à educação
e aos meios direcionados à emancipação intelectual e política do ser hu-
mano, integrante da comunidade social.
Nos dias atuais, é indiscutível o reconhecimento do direito à edu-
cação como um direito fundamental inserido na cotidiana realidade so-
cial e individual. A garantia deste direito envolve não apenas a instrução
como um processo de desenvolvimento individual, mas, também o di-
reito a uma política educacional que ofereça aos integrantes da comuni-
dade social instrumentos a alcançar os seus fins (Caggiano, 2002).
Todavia, nem sempre foi assim o tratamento dado à educação.
No panorama nacional brasileiro, o reconhecimento constitucional
do direito à educação ganhou força somente a partir da Constituição
Brasileira de 1934. Promulgado o texto constitucional, a formulação de
uma política educacional e a execução de um plano científico, específico
203
204
205
206
207
208
209
210
E ainda:
212
213
ções privadas, que passaram a ter que investir em qualidade por uma
questão de sobrevivência mercadológica. Na verdade, a expansão das
vagas permitiu algo que até há pouco tempo não se via no Brasil: um
razoável leque de escolhas para o pretendente ou candidato a um cur-
so superior. O jovem ou mesmo o adulto que necessita de educação de
terceiro grau passou a ter maior opção de escolha, frente à recentíssima
“concorrência” no setor.
A concorrência que começa a se estabelecer no Brasil, decorrente da
deliberada política estatal de estímulo à proliferação de vagas no sistema
privado de ensino, inspirou-se principalmente na experiência america-
na, onde há muitas décadas a qualidade de ensino é bem mais ditada
pela disputa por alunos entre instituições de ensino do que propriamen-
te pela regulação estatal.
Não obstante, pelas especificidades da realidade brasileira, por uma
certa vulnerabilidade do público universitário e pela dificuldade no es-
tabelecimento de parâmetros ou referenciais nesta recente guinada na
política de ensino superior do país, não há como, no Brasil, deixar ape-
nas à “mão invisível do mercado” a regulação do ensino. Aqui, as organi-
zações do Estado não podem deixar de atuar fortemente na fiscalização
das instituições privadas, já que o abandono ou negligência desta ativi-
dade pode acarretar o black-out do sistema. Imaginemos instituições de
má-qualidade concorrendo e deixando o estudante livre para escolher
entre a ruim e a pior, numa espiral negativa que pode resultar no atraso
e no próprio engessamento do desenvolvimento econômico, em plena
“era do conhecimento”.
Mas, se o Estado tem deficiências crônicas para ampliar o sistema
público de ensino superior, parece ter também suas mazelas no exercí-
cio desta tão fundamental “função reguladora”. Sim, porque a fiscali-
zação constante e concomitante de todas as instituições privadas exige
equipe, preparo, estrutura, austeridade e um acervo considerável de
critérios, parâmetros e experiências que os órgãos estatais ainda não
conseguiram formar.
Neste ambiente, parece que a fiscalização das instituições privadas
é enormemente falha, o que permite a convivência do estudante com
desvios, irregularidades e falhas graves cometidas pela sua universida-
214
215
Referências Bibliográficas
ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior. 2004. “AB-
Discute o Programa Universidade para Todos”. ABMES Notícias, n. 83,
MES
abr.-maio-jun. 2004. Disponível em http://www.abmes.org.br/Publicaco-
es/Jornal/83/pag04.htm, acesso em nov. 2008.
BARROS, Marco Antonio de. 2005. “Ensino do Direito: Dos Primórdios à Expan-
são pelo Setor Privado”. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 832, pp.
83-99, fev.
BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitu-
cional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas
pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 46/2006 e pelas Emendas Consti-
tucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 2005.
_____. 1996. Ministério da Educação e Cultura (MEC); Governo Federal. Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96).
CAGGIANO, Monica Herman Salem. 2002. “Direitos Humanos e Aprendizado
Cooperativo”. Um Olhar sobre Ética e Cidadania. São Paulo, Editora Ma-
ckenzie.
CARVALHO, Cristina Helena Almeida de. 2006. “O Prouni no Governo Lula e
o Jogo Político em torno do Acesso ao Ensino Superior”. Educação e
Sociedade, Campinas, v. 27, n. 96. Disponível em: http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302006000300016-
&lng=pt&nrm=iso, acesso em 27 jun. 2008.
CASTRO, Marcelo L. Ottoni de. 1994. “A Educação de Massa e o Princípio do
Ensino Compulsório: Origens, Expansão Mundial e a Realidade Brasilei-
ra”. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 31, n. 122, pp. 183-196,
abr.-jun.
CATANI, Afrânio Mendes; HEY, Ana Paula & GILIOLI, Renato de Sousa Por-
to. 2006. “Prouni: Democratização do Acesso às Instituições de Ensino
Superior?”. Educ. rev., Curitiba, n. 28. Disponível em: http://www.scie-
lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602006000200009-
&lng=pt&nrm=iso, acesso em 27 jun. 2008.
216
CONSTANTINO, Luciana. 2004. “Governo Lula Autoriza 3,4 Cursos por Dia”. Fo-
lha de S. Paulo, caderno Cotidiano, 12 jun.
LEITE, Celso Barroso. 2004. “O Prouni e o Dever do Congresso”. Revista de Pre-
vidência Social, São Paulo, v. 28, n. 286, pp. 806-807, set.
RANIERI, Nina Beatriz Stocco. 2000. Educação Superior, Direito e Estado. São
Paulo, Edusp/Fapesp.
RANZANI, Kátia Maria. 2000. “O Plano Nacional de Educação e a Expansão das
Universidades”. Revista Jurídica da Universidade de Franca, Franca, v. 3, n.
5, pp. 153-156, nov.
RIGHETTI, Sabine & SHOBER, Juliana. 2004. “Crescimento de Instituições Priva-
das de Ensino Superior é Fenômeno Mundial”. Revista Comciência, Cam-
pinas, Ed. Reforma Universitária, n. 58, set. Disponível em: http://www.
comciencia.br/reportagens/2004/09/07.shtml, acesso em nov. 2008.
VALENTE, Ivan & HELENE, Otaviano. 2004. “O Prouni e os muitos Enganos”. Folha
de S. Paulo, 11 dez. Disponível para assinantes em: http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/opiniao/fz1112200410.htm, acesso em nov. 2008.
YARZÁBAL, Luiz. 2001. “Impactos del Neoliberalismo sobre la Educación Supe-
rior en America Latina”. Revista da Rede de Avaliação Institucional da Edu-
cação Superior, anos 6, vol. 6, n. 1, mar.
217
Introdução
O que é Educação? Dentre as diversas acepções possíveis, adotamos,
para elaboração desse artigo, o entendimento consubstanciado no art.
205 da Constituição Federal: a educação é um processo de formação
do indivíduo que visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
O ordenamento jurídico brasileiro permite o exercício da atividade
educacional pela iniciativa privada, de forma a complementar a atuação
estatal. Ensina Nina Beatriz Ranieri que “na tarefa educacional, devem
ser consideradas as esferas pública e provada numa relação comple-
mentar e não dicotômica e excludente, como o fez o Estado-polícia”
(Ranieri, 2000).
A oferta da educação pelo Estado e a exploração desta atividade por
particulares têm características diferentes. No primeiro caso, temos um
serviço público puro, regido por preceitos constitucionais; no segundo
caso, temos um serviço privado, regido pela relação contratual estabe-
lecida entre instituição de ensino e seus alunos e, consequentemente,
pelos princípios contratuais.
219
1. A respeito das reformas pombalinas, leciona Laerte Ramos de Carvalho que “não se
220
tratava de uma simples transferência de mando (das ordens religiosas para o poder real), mas
dos próprios fins e objetivos do ensino, de tal modo que uma nova pedagogia, solidamen-
te fundamentada nas razões da filosofia moderna, tomasse o lugar da pedagogia escolástica
de que se tornaram expressão altamente significativa, em Portugal, as escolas dos jesuítas”
(Carvalho, 1978). Diante disso, a educação passou a ter um objetivo mais amplo: conservar a
união da sociedade civil.
2. O Conselho Superior de Ensino foi criado através do Decreto n. 8.659, de 5.4.1911.
3. O Conselho Nacional de Educação foi criado através do Decreto n. 16.782-A, de
13.1.1925.
221
4. CF 1946 – “Art. 167. O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes
Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (grifo nosso).
222
223
[...] a livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princí-
pios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para
garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico
que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento
arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo.
Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência
contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição re-
conhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime
constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social.
Cabe, então, ao Estado coibir este abuso (Silva, 1992, p. 674).
224
rência não são exercidos em sua plenitude, uma vez que o ordenamento
jurídico pátrio estabelece algumas limitações, entre os quais o da função
social da empresa7.
Nesse contexto, os princípios da livre iniciativa e da livre concor-
rência têm sua aplicação reduzida e condicionada às políticas públicas
econômicas, de modo a assegurar “a existência digna de todos, confor-
me ditamos da justiça social” (Silva, 1992, p. 692). É o que se verifica
na exploração dos serviços educacionais: dada a relevância social e o
interesse coletivo envolvidos, o princípio da livre iniciativa, previsto no
artigo 209 da Constituição Federal, e o princípio da livre concorrên-
cia, inerente ao primeiro, têm sua abrangência reduzida, em função dos
preceitos da justiça social. Essa limitação, registre-se, é prevista no art.
170, parágrafo único, da Constituição Federal: “é assegurado a todos o
livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos salvo nos casos previstos em lei” (grifo do
autor). É o que ocorre no presente caso, visto que, nos termos do art.
209 da Constituição Federal, a atividade educacional está condicionada
ao credenciamento e fiscalização do Estado, bem como ao cumprimento
das normas gerais de educação.
Sobre o tema, Gabriela Giannella Samelli, citando Vicente Ráo, de-
fende que “o liberalismo não exclui a legitimidade da intervenção do
Estado quando age, nas relações particulares, por normas jurídicas posi-
tivas, quando e enquanto for necessário”8.
Para melhor ilustrarmos a relevância social da prestação dos ser-
viços educacionais, necessário analisarmos a natureza jurídica de tais
serviços, o que se fará no próximo item.
7. Sobre a função social da empresa, ensina Eros Grau que “o princípio da função so-
cial da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à
propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens,
implementada sob o compromisso de sua destinação. A propriedade sobre a qual em maior
intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens
de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dina-
mismo, estamos a aludir à função social da empresa” (Grau, 1981, p. 128).
8. Trecho extraído da dissertação de mestrado A Prestação de Serviços Educacionais, de-
fendida na USP em 2002, sob orientação do professor Álvaro Villaça de Azevedo.
225
9. De acordo com José Cretella Junior, serviço público “é toda atividade que o Estado
exerce, direta ou indiretamente, para satisfação das necessidades públicas mediante procedi-
mento típico do direito público” (Cretella Jr., 1980).
10. Para Hely Lopes Meirelles, serviço público é “todo aquele prestado pela Adminis-
tração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades
essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado” (Meirelles,
2003, p. 319).
11. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “serviço público é toda atividade de ofe-
recimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administradores,
prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – por-
quanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo
Estado em favor dos interesses que houve definido como próprios no sistema normativo”
(Mello, 1975, p. 20).
12. Segundo Di Pietro (2007, p. 90), serviço público é “toda atividade material que a
lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o
objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou
parcialmente público”.
226
227
228
ao seu lado, mas não em seu nome. Porém, para que a instituição privada
possa atuar, necessário se faz o credenciamento desta no Ministério da
Educação, bem como a autorização de curso para que possa funcionar.
Inquestionável a necessidade de se submeter o curso e seu projeto
pedagógico a prévia autorização do MEC, como forma de se garantir a
qualidade dos serviços prestados, mas, a nosso ver, a obrigatoriedade
de credenciamento da instituição de ensino privada no MEC caracteriza,
claramente, uma ingerência estatal infundada na livre iniciativa.
A esse respeito, merece nota a distinção criada no sistema brasi-
leiro entre mantida e mantenedora. A primeira é a instituição de ensi-
no propriamente dita, responsável por todos os aspectos acadêmicos e
pedagógicos; a segunda é a provedora de recursos financeiros e gestora
administrativa da instituição.
Embora o MEC não interfira na constituição e no funcionamento da
mantenedora, condiciona a criação da mantida, e uma não vive sem a
outra. Sendo assim, verifica-se uma clara e expressa violação ao disposto
no artigo 5o, XVIII, da Constituição Federal: “a criação de associações e,
na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo
vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.
Uma vez credenciada a mantida e autorizados os cursos, a instituição
de ensino privado exerce suas atividades educacionais, em caráter relati-
vamente precário, uma vez que está sujeita às avaliações de qualidade15.
A avaliação de qualidade é realizada pelo MEC através do Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior – Sinaes, instituído pela
Lei n. 10.861/2004 e regulamentado pela Portaria MEC n. 2.051/2004.
Abrange três aspectos: institucional, cursos e auto-avaliação. Se os resul-
tados forem considerados insatisfatórios, a instituição é obrigada a assi-
15. Convém registrar que todas as instituições de ensino privadas estão submetidas ao
sistema federal de ensino e, portanto, sujeitas ao sistema de avaliação adotado pelo MEC. Vale
destacar que é adotado um mesmo sistema de avaliação para todas as instituições do territó-
rio nacional, desconsiderando-se, assim, as peculiaridades de cada região e as singularidades
de cada instituição de ensino. Em outras palavras, o MEC emprega os mesmos padrões de qua-
lidade tanto para universidades, comprometidas com pesquisa e extensão, quanto para insti-
tuições não-universitárias, que têm como único objetivo o ensino de cursos de graduação.
229
16. Nos termos do art. 10 da Lei n. 10.861/2004, deverão constar do protocolo de com-
promisso os seguintes itens: I. o diagnóstico objetivo das condições da instituição; II. os en-
caminhamentos, processos e ações a serem adotados pela instituição de educação superior
com vistas na superação das dificuldades detectadas; III. a indicação de prazos e metas para
o cumprimento de ações, expressamente definidas, e a caracterização das respectivas respon-
sabilidades dos dirigentes; IV. a criação, por parte da instituição de educação superior, de
comissão de acompanhamento do protocolo de compromisso.
17. São penalidades previstas na Lei n. 10.861/2004: I. suspensão temporária da abertura
de processo seletivo de cursos de graduação; II. cassação da autorização de funcionamento da
instituição de educação superior ou do reconhecimento de cursos por ela oferecidos; III. ad-
vertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada,
no caso de instituições públicas de ensino superior.
18. Uma das críticas feitas ao Conaes é a falta de representantes das instituições de en-
sino privadas na Comissão, gerando questionamentos acerca da imparcialidade do órgão na
execução de seus trabalhos.
230
231
232
– Súmula 70: Inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para co-
brança de tributo.
– Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para paga-
mento de tributo.
– Súmula 547: Ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira es-
tampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
233
234
Conclusão
Nos termos do art. 209 da Constituição Federal, é livre à iniciati-
va privada a exploração da atividade educacional, desde que atendidas
as seguintes condições: a. cumprimento das normas gerais da educação
nacional; b. autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.
O artigo 170, IV, da Constituição Federal, por sua vez, dispõe que a or-
dem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, deve ser orientada por diversos princípios, dentre os quais o
princípio da livre concorrência.
Os dois artigos, embora contraditórios em princípio, devem ser
analisados em conjunto. Isso porque a iniciativa privada, em razão da
relevância e interesse social da educação, direito fundamental e social,
não é exercida em sua plenitude, limitada pelos ditames da justiça social,
em observância à função social da empresa.
Quaisquer limitações à atuação da iniciativa privada na área edu-
cacional que seja pautada nos conceitos acima são justas e desejáveis.
Contudo, o que se verifica atualmente é a proliferação de normas in-
fraconstitucionais que ferem, sem qualquer justificativa ou consistência,
a técnica adotada pela Constituição Federal. Tais limitações devem ser
235
Referências Bibliográficas
AGUIAR, José Márcio. 1997. Reformas de Ensino. Belo Horizonte, Lâncer.
BASTOS, Celso Ribeiro. 2002. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Celso
Bastos Editor.
BERCOVICI, Gilberto. 2005. Constituição Econômica e Desenvolvimento, uma Lei-
tura a partir da Constituição de 1988. São Paulo, Malheiros.
CAMPELO, Sérgio Amaral. 2000. “O Ensino do Direito – Reflexões”. Revista do
Direito. Pelotas, 1 (1), pp. 95-108, jan.-dez.
CARVALHO, Laerte Ramos de. 1978. As Reformas Pombalinas da Instrução Públi-
ca. São Paulo, Saraiva/Editora da Universidade de São Paulo.
CRETELLA JR., José. 1980. Administração Indireta Brasileira. Rio de Janeiro, Fo-
rense.
CUNHA, Luiz Antônio. 2004. “Desenvolvimento Desigual e Combinado no En-
sino Superior – Estado e Mercado”. Educação & Sociedade, Campinas, vol.
25, n. 88, pp. 795-817, out. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br.
_____. 2007. “O Desenvolvimento Meandroso da Educação Brasileira entre o
Estado e o Mercado”. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100, pp.
809-829, out. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br.
CURY, Carlos Roberto Jamil. 1992. “A Educação Escolar como Concessão”. Aber-
to, Brasília, ano 10, n. 50/51, abr.-set.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 2007. Direito Administrativo, 20. ed. São Paulo,
Atlas.
FRAUCHES, Celso da Costa & FAGUNDES, Gustavo M. 2005. LDB Anotada e Comen-
tada e Reflexões sobre a Educação Superior. Brasília, Ilape.
GOMES, Alfredo Macedo. 2003. “Estado, Mercado e Educação Superior no Bra-
sil: Um Modelo Atual”. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 24, n. 84,
pp. 839-872, set. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br, acesso em
nov. 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. 2002. Principais Inovações no Código Civil de 2002.
São Paulo, Saraiva.
GRAU, Eros Roberto. 1981. Elementos de Direito Econômico. São Paulo, RT.
MARQUES, Cláudia Lima. 2000. Contratos no Código de Defesa do Consumidor,
3. ed., São Paulo, RT.
MEIRELLES, Hely Lopes. 2003. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo, Ma-
lheiros.
236
237
EDUCAÇÃO E INCLUSÃO
Sabine Righetti
Introdução
Recentemente, a imprensa mundial divulgou, sem economia de
espaço, as imagens de um grupo de indígenas isolados, encontrado no
Acre, próximo à fronteira do Brasil com o Peru. As imagens, que fo-
ram coletadas por uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai)
entre final de abril e maio de 2008, fizeram brasileiros e estrangeiros
atentarem ao fato de que o Brasil é um dos poucos países do mundo (se
não o único) que ainda preserva, com dificuldades e muitas limitações,
alguns povos indígenas isolados, que desde a época do “descobrimen-
to” permaneceram afastados de todas as transformações ocorridas no
país e mantêm as tradições culturais de seus antepassados, sobrevivendo
da caça, da pesca, da coleta e da agricultura incipiente (como os índios
fotografados, que mantinham uma grande área de roçado próxima às
malocas).
O Brasil, de acordo com dados da Funai, concentra hoje aproxi-
madamente 460 mil índios integrados ou em vias de integração, dis-
tribuídos entre 225 sociedades indígenas (aldeias), que perfazem cerca
de 0,25% da população brasileira. Além destes, há entre 100 e 190 mil
índios vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas, e
241
1. A Funai não tem um dimensionamento exato das regiões habitadas por índios isola-
dos. O número de grupos isolados é uma estimativa feita a partir do trabalho das chamadas
Frentes de Contato, que atuam nos Estados do Amazonas, Pará, Acre, Mato Grosso, Rondônia
e Goiás desde 1987.
242
243
I.
Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem
poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comu-
nhão nacional.
II. Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente
com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida
nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais
setores da comunhão nacional, da qual vão vez mais para o próprio sustento.
III. Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos
no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradi-
ções característicos da sua cultura.
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser
atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração silvícola.
Parágrafo Único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se pos-
sível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão
federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.
a própria definição do que é ser índio é polêmica: “Um grupo de pessoas pode ser considerado
indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas
pela população que as cerca. Mesmo sendo o critério mais utilizado, ele tem sido colocado em
discussão, já que muitas vezes são interesses de ordem política que levam à adoção de tal defini-
ção, da mesma forma que acontecia há quinhentos anos” (ver Funai: http://www.funai.gov.br).
244
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, lín-
guas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicional-
mente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o ministério
público em todos os atos do processo.
3. A tutela do Estado em relação aos índios tem sido pauta de discussões de autores
que, como Souza Filho (1993), questionam até que ponto o regime tutelar orfanológico (que
o Estado exerce sobre os órfãos) pode, no caso dos índios, ser caracterizado como uma forma
de discriminação ou de opressão.
245
246
Educação Indígena
Como lembra Cunha (2005), desde o século XVI, logo após a chega-
da dos portugueses ao Brasil, a educação escolar no país atinge comuni-
dades indígenas, pautada, a princípio, pela catequização feita pelos mis-
sionários jesuítas e, posteriormente, pela integração forçada dos índios
à sociedade nacional, pelos programas de ensino do extinto Serviço de
Proteção aos Índios.
Nas últimas duas décadas, a partir da mobilização dos próprios ín-
dios e de movimentos relacionados à causa indígena, a política educa-
cional voltada para os índios começou a apresentar mudanças, princi-
palmente a partir da Constituição Federal, promulgada em 1988, e da
legislação subsequente7.
O artigo 210o da Constituição Nacional, embora reafirme a imposi-
ção da língua portuguesa no ensino fundamental brasileiro – posta em
prática, inicialmente, no século XVIII, pelo Marquês de Pombal –, asse-
gura às comunidades indígenas a possibilidade de também utilizar nas
escolas suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem:
6. Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, com base
no princípio da liberdade. Os direitos de segunda geração têm caráter econômico, social e
cultural, como o direito ao lazer, ao trabalho, à saúde e outros, correspondendo ao princípio
da igualdade. Os direitos de terceira geração correspondem à fraternidade, como direito ao
desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente sadio. Juntos, eles compõem a tríade liberdade,
igualdade e fraternidade.
7. Vale destacar, no entanto, que as práticas de educação e de catequização indígena
ainda persistem no Brasil, como aponta Amoroso (1998).
247
Vale destacar que, de acordo com dados da Funai, pelo menos 180
línguas8 são faladas pelos membros das sociedades indígenas presentes
no Brasil, que pertencem a mais de trinta famílias linguísticas diferen-
tes9 que, de acordo com a Funai, permanecem em constante processo de
modificação e de re-elaboração, independente do contato com as socie-
dades de origem europeia e africana.
Depois da Constituição de 1988, outros instrumentos dispuseram
sobre a educação indígena, como o Decreto n. 26, de 4 de fevereiro de
1991, que, no uso da atribuição conferida pelo artigo 84o, inciso IV, da
Constituição de 1988, e tendo em vista o Estatuto do Índio, determinou:
248
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências fede-
rais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas inte-
grados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingue e intercultural
aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I. proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas
memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de
suas línguas e ciências;
II. garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações,
conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades in-
dígenas e não-índias.
Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no
provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo
programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1o Os programas serão planejados com audiência das comunidades indíge-
nas.
§ 2o Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos planos nacionais de
educação, terão os seguintes objetivos:
I. fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade
indígena;
II. manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à edu-
cação escolar nas comunidades indígenas;
III. desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteú-
dos culturais correspondentes às respectivas comunidades;
IV. elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e dife-
renciado.
A partir da LDB, surge uma demanda, por parte dos próprios indíge-
nas, por um ensino diferenciado em suas comunidades (Cunha, 2005),
tema abordado no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n. 10.172, de
9 de janeiro de 2001. De acordo com o texto referente ao diagnóstico da
educação indígena no Brasil, presente no PNE, a transferência da respon-
sabilidade pela educação indígena da Funai para o MEC, realizado pelo
Decreto n. 26/1991, abordado anteriormente, representou uma simples
249
Conforme a análise exposta no PNE de 2001, não há, ainda, uma cla-
ra distribuição de responsabilidades entre a União, os estados e os mu-
nicípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que
assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngue
às comunidades indígenas. E, indo além: “Há também a necessidade de
regularizar juridicamente as escolas indígenas, contemplando as experi-
ências bem-sucedidas em curso e reorientando outras para que elabo-
rem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos
e conteúdos programáticos adaptados às particularidades étno-culturais
e linguísticas próprias a cada povo indígena”.
A construção de escolas indígenas é abordada recorrentemente em
projetos de lei atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados,
como o PL 468/2007, do deputado federal Geraldo Resende (PPS-MS),
que sugere a construção de escola indígena em Dourados (MS), ou do PL
281/2007, do deputado federal Vander Loubet (PT-MS), que faz a mesma
sugestão para o município de Porto Murtinho (MS).
A regularização das escolas indígenas, proposta pelo PNE de 2001, há
tempos é um tema polêmico na discussão da educação indígena. Alguns
estudiosos, como Cavalcanti (1999), questionam o papel da escolariza-
ção de índios, posto que não se sabe qual é, precisamente, o significado
cultural da demanda dos índios por escolas.
Nessa linha de debate abordada por Cavalcanti (1999), incidimos
na questão do direito à educação como um direito fundamental, de
250
251
252
Considerações Finais
O presente artigo teve o objetivo de trazer uma reflexão sobre as
recentes discussões no campo da educação indígena no Brasil, partindo
de uma contextualização dos instrumentos jurídicos e institucionais dos
índios, tais como a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio), em
1967, do Estatuto do Índio, em 1973.
O artigo ressalta uma mudança na abordagem da causa indígena
a partir da Constituição Brasileira de 1988, posto que, anteriormente à
253
254
Referências Bibliográficas
AMOROSO, Marta Rosa. 1998. “Mudança de Hábito: Catequese e Educação para
Índios nos Aldeamentos Capuchinhos”. Rev. bras. Ci. Soc., vol. 13, n. 37, jun.
BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitu-
cional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas
pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 46/2006 e pelas Emendas Cons-
titucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Brasília, Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas.
CAGGIANO, Monica Herman S. 2004. “Os Direitos Fundamentais e sua Universa-
lização”. Revista Brasileiro de Direito Constitucional, A Contemporaneidade
dos Direitos Fundamentais, n. 4, p. 760, jul.-dez.
CAVALCANTI, Ricardo Antônio da S. 1999. Presente de Branco, Presente de Grego?
Escola e Escrita em Comunidades Indígenas do Brasil Central. Rio de Janei-
ro, dissertação de mestrado, Museu Nacional.
CUNHA, Rodrigo. 2005. “Escola Indígena: Fortalecimento das Identidades e dos
Direitos dos Índios”. Revista ComCiência, n. 64 sobre Direitos Indígenas.
Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/2005/04/06.shtml
DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. 1948.
DECRETO da Presidência da República n. 26, 4.2.1991.
FREIRE, José R. Bessa. 2002. “A Imagem do Índio e o Mito da Escola”. In: MARFAN,
Marilda A. (org.). Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Forma-
ção de Professores: Educação Escolar Indígena. Brasília, MEC, pp. 93-99.
FUNAI. Fundação Nacional do Índio: http//www.funai.gov.br
KUHN, T. 1987. A Estrutura das Evoluções Científicas. 2. ed. São Paulo, Ed. Pers-
pectiva.
Lei n. 5.371, 5.12.1967 (Fundação Nacional do Índio – Funai).
Lei n. 6001, 19.12.1973 (Estatuto do Índio).
Lei n. 9.394, 20.12.1996 (Lei de Diretrizes e Bases – LDB).
Lei n. 10.172, 9.1.2001 (Plano Nacional de Educação – PNE).
PIOVESAN, Flávia. 1999. Princípio da Complementariedade e Soberania. Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida no seminário
255
256
Introdução
Nunca, em nenhum outro momento da história, o tema das ações
afirmativas esteve tão presente nos discursos políticos, na mídia, nos
movimentos sociais e nas discussões populares. Entendemos, neste tra-
balho, ação afirmativa como o conjunto de estratégias, iniciativas ou
políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se en-
contram em piores condições de competição em qualquer sociedade em
razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas,
sejam elas presentes ou passadas (Menezes, 2001). Em outras palavras,
trata-se de medidas que visam eliminar desequilíbrios existentes entre
determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados.
A ação afirmativa possui uma nítida finalidade: implementar efeti-
vamente uma igualdade concreta (igualdade material), que a isonomia
(igualdade formal garantida na Constituição Federal de 1988), por si só
não consegue proporcionar (Menezes, 2001, p. 27).
Em relação à sua aplicação, a fixação de cotas é, ressalte-se, apenas
uma das modalidades existentes de ação afirmativa. Neste sentido, po-
demos citar outras hipóteses de aplicação de ação afirmativa, reconhe-
cidos, por exemplo, pelo governo norte-americano: a reformulação de
257
1. Hoje em dia, por exemplo, há um debate instalado no Brasil – bastante polêmico, por
sinal – sobre a criação de um possível projeto de lei com o objetivo de limitar a contratação
de parentes de primeiro e segundo grau para cargos exercer cargos públicos (tem-se falando
de um a dois parentes por cargo executivo).
2. A inclusão de portadores de deficiência física por meio de cotas em concurso público
pode ser considerada uma medida importante, porém simplista, já que não considera se, de
fato, o portador terá condições de trabalhar no posto assumido. Por exemplo: há, nos prédios
públicos, amplas condições para cadeirantes se locomoverem? Certamente não há.
258
259
víduos com as mesmas características de idade, gênero, raça e região geográfica, mas que
possuem apenas o ensino médio. Já para os indivíduos com dezessete anos de estudo, isto é,
que possuem pós-graduação ou fizeram cursos de graduação de mais longa duração (como
medicina), o retorno no rendimento é 285% superior ao dos indivíduos com apenas o ensino
médio (Vogt, 2008).
6. De acordo com material institucional da Universidade Nacional de Brasília (UnB) so-
bre sua política de cotas. Disponível em: http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.
php, acesso em nov. 2008.
7. O Decreto n. 10.952/61 foi pioneiro na utilização da expressão “Ação Afirmativa”.
260
8. Constituição dos Estados Unidos da América – Emenda XIV. “Nenhum Estado pode-
rá... negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”.
9. Neste sentido vide Strauder v. State of West Virginia 100 US 303 (1879) e Pace v.
Alabama 106 US 583 (1883).
261
10. O Brown v. Board of Education de Topeka (cidade norte americana situada no Es-
tado de Kansas) foi um caso judicial iniciado contra o Distrito Escolar de Topeka, em nome
de Linda Brown, uma aluna da terceira série que era forçada a caminhar 1,6 quilômetro para
estudar em uma escola para afro-americanos, enquanto que uma escola para alunos brancos
estava distante apenas sete quateirões de sua casa.
11. O termo “facilidades educacionais”, aqui aplicado, leva o sentido de laboratório e
outras formas de infra-estrutura para a educação como no seu original em inglês “educational
facilities”.
12. O artigo V do documento Civil Rights Act previa a garantia do princípio da igualda-
de na contratação e promoção dos trabalhadores, pertencentes às minorias.
262
263
13. Nesse período, em meados da década de 1990, tem início a discussão sobre as ações
afirmativas no Brasil.
14. Os conceitos de racismo e raça são entendidos e trabalhados como construções
sociais, que somente se eivam de sentido quando inseridos num contexto valorativo, no qual
práticas discriminatórias dirigidas a determinados grupos são recorrentes.
264
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base na-
cional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais
da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 4o O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das dife-
rentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matri-
zes indígena, africana e europeia (grifo nosso).
265
15. Vale destacar que a alteração da LDB de 1996 pela nova lei federal de 2003 resultou
em um “reaquecimento” do debate sobre o movimento negro no Brasil.
16. Ressalta-se que o movimento negro, refletindo as demandas daqueles que sofrem
o preconceito, é personagem principal da luta política pelo rompimento com determinados
paradigmas sociais não mais aceitáveis eticamente.
266
267
268
A Fundamentação Jurídica
O debate jurídico sobre o sistema de cotas para o ensino superior,
basicamente, gira em torno de duas ideias: da inconstitucionalidade das
cotas, a partir de uma interpretação de que os direitos de todo e qual-
quer brasileiro são iguais, e da constitucionalidade da política, pela in-
terpretação de trata-se de uma política de promoção da inclusão que,
inclusive, pode ser realizada com base em princípios estabelecidos por
cada universidade pública.
Um dos argumentos vigentes no debate sobre a inconstitucionali-
dade das cotas é a inexistência, na jurisprudência nacional, de separa-
ção racial para qualquer finalidade. Esse tratamento – de separação por
raças – feriria o princípio fundamental de igualdade entre os cidadãos,
garantido, na Constituição Brasileira de 1988, pelo artigo 5o (princípio
da isonomia). “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-
de, à segurança e à propriedade”.
A partir dessa linha de argumentação, o próprio levantamento do
sistema de cotas raciais no ensino superior “estimula” ou, até mesmo,
“desenvolve” um sentimento nacional de racismo, de competição entre
269
23. Vale destacar que, apesar do princípio da igualdade constante na Constituição Fe-
deral de 1988, permanece, no país, uma série de tratamentos desiguais entre pessoas. Por
exemplo, citamos o art. 295, do Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de ou-
tubro 1941), que garante prisão especial, com uma série de benefícios, a ministros do Estado,
portadores de diploma de ensino superior, magistrados, entre outros.
24. Ressalta-se que o silêncio e a falta de debate sobre a diversidade, estabelecido duran-
te todo o século XX, contribuiu decisivamente para dificultar o debate envolvendo a questão
racial no Brasil.
25. De acordo com Ranieri (2005) significado mais amplo e genérico de autonomia de-
signa poder de autodeterminação, exprimindo a ideia de direção própria: “autonomia indica
a competência de autonormação, ou seja, a possibilidade de dar-se um ordenamento jurídico,
o que consiste em poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade
270
que o detém, e limitado pelo ordenamento geral em que se insere, sem o qual, ou fora do qual,
não existiria” (Ranieri, 2005, p. 20).
271
26. Informações do material “Sistema de Cotas para Negros” da UnB. Disponível em:
http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php, acesso em nov. 2008.
27. Segundo Silva (2003), na teoria de Alexy, as regras expressam direitos ou deveres
definitivos, que devem ser realizados exatamente nos termos exigidos pela norma.
272
Então, numa relação de tensão entre dois princípios aos quais o Es-
tado está vinculado pela Lei Fundamental, a solução deve ser tomada
por meio de uma ponderação sobre qual dos interesses opostos no caso
concreto possui o maior peso, com respeito às possibilidades fáticas e
jurídicas do seu cumprimento. Quando tomados em si mesmos, esses
princípios conduzem a resultados distintos, significando dizer que cada
um deles limita a possibilidade jurídica de realização do outro28.
Somente através da análise das condições do caso concreto, bus-
cando uma solução que não lesione um direito fundamental protegido
pelo ordenamento jurídico, a oposição de princípios deve ser soluciona-
da por meio do sopesamento, isto é, qual princípio tem peso maior sob
aquelas circunstâncias do caso em questão.
Sopesamento ou ponderação entre pesos é aqui compreendida
como diálogo entre os mandamentos dos princípios colidentes e as con-
dições suas de realização (fáticas e jurídicas) no caso concreto. Não é
uma escolha do que seja ontologicamente melhor, pois a restrição do
alcance de uma norma de direito fundamental impõe o exercício argu-
mentativo, não havendo qualquer fórmula ou parâmetro de otimização
na solução do conflito, apenas a Lei Fundamental.
Com efeito, a política pública de cotas raciais, gerando uma relação
de tensão entre os direitos fundamentais à igualdade de quem presta
o vestibular e à educação de quem não se encontra em condições se-
melhantes de competitividade, impõe, segundo Alexy, uma necessária
restrição a um dos princípios; por meio do sopesamento, ou seja, tendo
como ponto de equilíbrio a própria sistemática constitucional, diante
das condições da realidade brasileira e das desigualdades entre brancos e
negros, necessário se mostra o diálogo entre as razões determinadas por
28. Segundo a explicação de Luis Virgílio Afonso da Silva, “[...] importante, nesse ponto,
é a ideia de que a realização completa de um determinado princípio pode ser – e frequente-
mente é – obstada pela realização de outro princípio. Essa ideia é traduzida pela metáfora
da colisão entre princípios, que deve ser resolvida por meio de um sopesamento, para que se
possa chegar a um resultado ótimo. Esse resultado ótimo vai sempre depender das variáveis
do caso concreto [...]”.
273
Experiências no Brasil
O debate sobre as ações afirmativas e cotas no ensino superior pú-
blico brasileiro ganhou força em meados da década de 1990, em especial
com o PL 73/99, de Nice Lobão (PFL-MA), que dispôs sobre o ingresso
nas universidades federais e estaduais, estipulando a reserva de 50% das
vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de
ensino médio – cota universitária29.
Outros PLs foram subsequentes, como o PL 3627 de 2004, que está
arquivado, versou sobre a instituição do Sistema Especial de Reserva de
Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e
indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior.
A primeira instituição federal de ensino superior a implementar o
sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), que aprovou em
junho de 2003, após cinco anos de discussão, um plano de metas para
integração racial e étnica (já mencionado anteriormente). O sistema
274
atraiu 4,4 mil estudantes de um total de 23,5 mil inscritos – 18,6% dos
candidatos. Para eles, foram destinados 20% do total de vagas de cada
curso oferecido no 2o vestibular de 2004, 392 de 1.994. Desse número, os
cotistas foram 37830.
No ano seguinte, em 2004, a Universidade Federal da Bahia (UFBA),
estado que concentra a maior população preta e parda do país de acordo
com dados do IBGE31 – 15,7% e 63,4%, respectivamente, num total de
79,1% da população preta ou parda no estado – instituiu sua política de
cotas, integralmente transcrita no Manual do Candidato 2005. Pelo sis-
tema, há seis categorias32 de inscrição dos candidatos, de acordo com cor
e com sistema em que concluiu o ensino médio (público ou privado).
De acordo com Queiroz e Santos (2006), em um trabalho de análise
da política de cotas, o vestibular com reserva de vagas proporcionou
“uma revolução na UFBA”, pois fez ingressar, nos cursos mais competi-
tivos, uma parcela considerável de estudantes oriundos de escolas pú-
blicas. Cursos como Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Odontologia,
Ciências da Computação, entre outros, que tinham uma participação
média de 27% de estudantes de escolas públicas, passou para 43%.
As iniciativas de cotas mencionadas, na UnB e na UFBA, foram re-
produzidas, de diferentes maneiras, em outras instituições federais de
ensino superior do país. No estado de São Paulo, já existem políticas de
30. Vale dizer que o Sistema de Cotas da UnB integra uma “comissão para averiguação
da raça” dos candidatos. Essa questão evidencia uma polêmica debatida até os dias de hoje:
como avaliar a “raça” de uma pessoa? Quem estaria apto a fazer isso? Não cabe, neste artigo,
um aprofundamento deste debate, mas é importante mencionar a sua existência.
31. Os dados são da última Pesquisa por Amostra em Domicilio (PNAD) do IBGE, rea-
lizada em 2006.
32. As categorias são: Categoria A (36,55%): candidatos de escola pública que se decla-
raram pretos ou pardos. Categoria B (6,45%): candidatos de escola pública de qualquer etnia
ou cor. Categoria D (2%): candidatos de escola pública que se declararam índio-descendentes.
Categoria E (55%): todos os candidatos, qualquer que seja a procedência escolar e a etnia ou
cor. Não sendo preenchidas todas as vagas das Categorias A e B, elas são prioritariamente pre-
enchidas por candidatos de escola particular que se declararam pretos ou pardos (inscrição de
Categoria C). Permanecendo vagas abertas, elas são preenchidas por candidatos com inscrição
da Categoria D. Não sendo preenchidas todas as vagas da Categoria D, elas são preenchidas
por candidatos com inscrição da Categoria E
275
33. Os dados são de 2006 e foram coletados por meio do projeto Sistema Integrado de
Informação sobre o Ensino Superior do Estado de São Paulo (Siesp-SP), com base no Sistema
de Informações, Pesquisas e Estatísticas Educacionais (Inep).
34. De acordo com material institucional da Unicamp. Disponível em: http://www.
comvest.unicamp.br/paais/paais.html
276
nas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas terão, além
dos trinta pontos adicionais, mais dez pontos acrescidos à nota final.
O Paais já traz resultados significativos de inclusão e rompe com
ideias comumente difundidas sobre uma possível queda de qualidade na
universidade causada por programas de inclusão. Nota-se, por exemplo,
que o número de estudantes egressos de escolas públicas aumentou de
28% (antes do Paais, em 2004) para 34,1% (depois do Paais, em 2005).
De acordo com os últimos dados, do vestibular 2008, o número de egres-
sos de escola pública era 32%. Vale destacar ainda que anos 2006, 2007 e
2008 a relação de matriculados na Unicamp oriundos de escola pública
foi maior do que a relação dos inscritos no vestibular oriundos de escola
pública. Nota-se também que o número de estudantes pretos, pardos e
indígenas também aumentou após a implantação do Paais, passando de
11,6% antes do Paais (em 2004) para 15,7% depois do Paais (em 2005).
Também em 2004, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
instituiu um programa de cotas para candidatos que se autodeclararem
com cor de pele preta, parda ou indígena e tenham cursado o ensino
médio integralmente em escolas públicas, com o oferecimento de 10% a
mais de vagas em cada curso.
Em 2005, considerando a política de ações afirmativas para afrodes-
cendentes instituída pelo Decreto Estadual n. 48.328 já mencionado, e
considerando a necessidade da “criação de condições para a superação
acadêmico-intelectual dos graduados na rede pública de ensino”, o go-
verno estadual instituiu o Decreto Estadual n. 49.602, de 13 de maio de
2005, que determinou o sistema e pontuação acrescida para afrodescen-
tes egressos do ensino público nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e
Fatecs. O artigo 7o determina ainda a proposta de estudos para nortear
o sistema de pontuação acrescida nas universidades estaduais paulistas:
“Art. 7o A Secretaria da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômi-
co e Turismo proporá às Universidades Estaduais a realização de estudos
visando a implantação dos princípios e diretrizes que norteiam o Siste-
ma de Pontuação Acrescida de que trata este decreto”.
O Decreto Estadual n. 49.602 reitera os rumos do caminho que a
Unicamp já havia traçado: o Estado de São Paulo trabalha no sentido de
instituir ações afirmativas com fator racial para egressos de escolas pú-
277
35. Os sistemas de bônus do Inclusp são: universal (até 3% sobre a nota do vestibular),
Enem (até 9% sobre a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem) e Pasusp
(até 12% na nota).
36. Oferecidos gratuitamente, os cursinhos da Unesp preparam os estudantes egressos
da rede pública para os exames vestibulares de universidades públicas e particulares. Atual-
mente são oferecidas cerca de 3.800 vagas, em 22 campi. Os candidatos devem comprovar
carência socioeconômica. Nos vestibulares realizados no final de 2007, os pré-vestibulares
ajudaram a aprovar 1.050 alunos, sendo 707 em universidades públicas. As informações são
do material institucional da Unesp. Disponível em: http://www.unesp.br/aci/cursinhos/. aces-
so em nov. 2008.
278
Considerações Finais
A eleição de Barack Hussein Obama nos Estados Unidos, mais de
quatro décadas após a aprovação da Lei de Direito ao Voto naquele país,
reascende um debate mundial sobre a efetividade das políticas de ações
afirmativas, em especial das cotas raciais.
O debate, por si só, especialmente em países que sofrem de uma
extremada desigualdade social como o Brasil, já é válido, mesmo que no
meio de tanta incerteza e de opiniões controversas. A discussão traz à
tona um assunto que, no contexto brasileiro, parecia escondido por uma
espécie de “vergonha social” ou por um imaginário coletivo cultural e
historicamente enraizados de que o país é livre do racismo.
A discussão das desigualdades sociais e raciais, com recorte espe-
cífico nas cotas para o ensino superior público, é controversa e, como
exposto no presente trabalho, divide opiniões inclusive de um mesmo
movimento (como o movimento negro). É importante destacar, no en-
tanto, que o apoio às cotas, no contexto brasileiro, é apoiado em todos os
segmentos sociais e nos níveis de renda e de escolaridade mais elevados:
de acordo com pesquisa DataFolha de 2006, 65% dos brasileiros apóiam
as políticas de cotas para negros nas universidades brasileiras (Queiroz e
Santos, 2006, pp. 718-719).
279
Referências Bibliográficas
AGUIAR, Maria Carolina. 2003. “População Negra no Mercado de Trabalho”. Re-
vista ComCiência, edição “Brasil Negro”, n. 49, nov. Disponível em: http://
www.comciencia.br/reportagens/negros/16.shtml, acesso nov. 2008.
ALEXY, Robert. 1997. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid, Centro de
Estudios Constitucionales.
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. 2004. “Discriminação e Ações Afirmati-
vas”. XIII Encontro Nacional de Direito Constitucional. Anais do XIII Encon-
tro Nacional de Direito Constitucional. São Paulo, ESDC.
ANDERSON, Terry. 2004. The Pursuit of Fairness: a History of Affirmative Action.
Nova Yorque, Oxford University Press.
ARAÚJO, Clara. 2001. “Potencialidades e Limites da Política de Cotas no Brasil”.
Rev. Estud. Fem., vol. 9, n. 1, pp. 231-252.
_____. 2005. “Partidos Políticos e Gênero: Mediações nas Rotas de Ingresso das
Mulheres na Representação Política”. Rev. Sociol. Polit., n. 24, pp. 193-215, jun.
BELTRÃO, Kaizô Iwakami & TEIXEIRA, Moema De Poli. 2004. O Vermelho e o Ne-
gro: Raça e Gênero na Universidade Brasileira – Uma Análise da Seletividade
das Carreiras a partir dos Censos Demográficos de 1960 a 2000. Texto para
discussão n. 1052, IPEA, out.
BEVILAQUA, Ciméa Barbato. 2005. “Entre o Previsível e o Contingente: Etnogra-
fia do Processo de Decisão sobre uma Política de Ação Afirmativa”. Rev.
Antropol., vol. 48, n. 1, pp. 167-225, jun.
280
281
282
283
Camila Magalhães
Advogada. Mestranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Uni-
versidade de São Paulo (Fdusp). Integrante do grupo de estudos Proteção In-
ternacional ao Direito à Educação, da Cátedra da Unesco de Direito à Educação
da Fdusp. Contato: camilamagalhaes@usp.br.
285
Eduardo Pannunzio
Advogado, pós-graduado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela
Universidade de Essex (Reino Unido) e mestrando na área de Direito do Estado
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação da pro-
fessora doutora Nina Beatriz Stocco Ranieri. Contato: epazio@gmail.com
286
Sabine Righetti
Jornalista pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), especialista em jornal-
ismo científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre
em política científica e tecnológica também pela mesma instituição. É pesqui-
sadora associada ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/
Unicamp), onde desenvolve trabalhos nas áreas de mídia e ciência, percepção
pública da ciência e da tecnologia e indicadores de cultura científica. Também
é pesquisadora associada ao Departamento de Política Científica e Tecnológica
(DPCT) da Unicamp, onde trabalha com inovação no setor de mídia e desenvol-
vimento indicadores de inovação. Contato: sabine@unicamp.br
287