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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE


RIBEIRÃO PRETO
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ENSAIO SOBRE PRÁTICAS INTERPRETATIVAS NA


GRAND SONATA OP.22 DE FERNANDO SOR

Vitor Botelho Sampaio

RIBEIRÃO PRETO - SP
Julho de 2021
“Suponho que o leitor seja músico, sem o que poderia encontrar muitas coisas
ininteligíveis na exposição que farei. Penso haver grande distinção entre um músico e um
notista1: o primeiro é aquele que, considerando a música como a ciência dos sons, vê as
figuras musicais apenas como sinais convencionais que as representam e que, pelos olhos,
transmitem o resultado ao pensamento, como as letras lhe transmitem as palavras, e estas,
as idéias. O segundo é aquele que a considera como a ciência das figuras, que atribui
grande importância a seus nomes, cuja verdadeira acepção lhe é desconhecida, e que
espera, para compreendê-la, a época em que estudará harmonia, vendo-as somente,
enquanto espera, como outras tantas ordens para tocar uma ou outra tecla do piano,
prender tal corda com tal dedo, em tal lugar, no violino, no violoncelo, na guitarra, etc.;
ou para abrir ou fechar tal chave, ou furos, da clarineta, da flauta, etc., e que é o
instrumento que, pelo ouvido, transmite à cabeça o resultado de todas as combinações de
figuras musicais”.
Fernando Sor, Méthode pour la Guitare, 1830

“Quando lhes disser para observar este ou aquele


preceito, não me atribuam jamais autoridade,
perguntem a razão; e se não a tenho bastante forte para
satisfazê-los, devem reduzir muito a confiança com a
qual me honraram com respeito à ciência.”
Fernando Sor, Méthode pour la Guitare, 1830

Introdução

Nascido em Barcelona em 1778, Fernando Sor é considerado uma das grandes


referências quando falamos de instrumentos de cordas em especial do violão. Em 1832
foi publicado o Méthode Pour La Guitarre, um tratado sobre as técnicas que Sor utilizava
na execução da guitarra, que no Brasil chamamos violão. Por se tratar de um instrumento
associado às praticas populares, no século XVIII, e ainda em transformação em sua
organologia, a importância do Méthode Pour La Guitarre se faz na incorporação do
instrumento em um âmbito musical universal, com novas possibilidades técnicas e
texturais que permitiram a invenção de um repertório sólido dedicado ao instrumento.

O “Método para Guitarra”, de Fernando Sor, é um dos principais


documentos do século XIX, capaz de sintetizar a técnica instrumental de
então, e fornecer um retrato preciso da inserção do instrumento no período.
Sua análise possibilita melhor compreensão do instrumento que ora
chamamos de violão e dos elementos que, historicamente, definiram a
técnica de execução atual. (CAMARGO, 2005).

Dentre as inovações apresentadas por Sor podemos ressaltar a característica de


uma escrita polifônica com texturas similares aos quartetos de cordas e sinfonias de
Haydn. Outra característica de seu tratado é a notória relação de Sor com o Iluminismo,
que se faz nítida na maneira enciclopédica e inclinação científica ao abordar a sistemática
de transmissão das ideias.

A ligação de Sor com o enciclopedismo, porém, vai muito além das


citações diretas a essa fonte de referência. Seu objetivo de sistematizar o
conhecimento específico, através prioritariamente do uso da observação
dos fenômenos e da criação de regras e princípios fundamentais, revela a
mesma atitude intelectual dos enciclopedistas. (CAMARGO, 2005).

Além de apresentar uma descrição das técnicas de se tocar violão as quais utilizava
Sor, o Méthode Pour La Guitarre também pode ser lido como um documento que reflete
um momento histórico tanto na consolidação do violão em meio à organolodia dos
cordofones como também das transformações políticas, culturais e sociais ao entorno da
revolução Francesa a qual Sor foi adepto ao ponto de se radicar na França e não mais
retornar para a Espanha, no fim de sua vida. (JEFERRY,1977).
Sendo assim, o presente trabalho visa discutir alguns excertos da obra Grand
Sonata Op.22 de Fernando Sor e suas possibilidades de execução tendo como base o
Méthode Pour La Guitarre.

Aplicação do Méthode Pour La Guitarre de Fernando Sor em excertos


da Grand Sonata Op. 22

A primeira obra a ser abordada neste trabalho é o primeiro movimento da sonata


Op.22 para violão solo de Fernando Sor. Ao observar a partitura é notório o fato de haver
poucas indicações de dinâmica ao longo da peça, o que sugere uma certa liberdade de
escolha na interpretação, mas também uma exigência de conhecimento acurado acerca
das questões estilísticas. Já nos compassos iniciais observamos texturas de arpejos de T
D T seguidos de uma linha melódica que se assemelham à relação entre tutti e solo em
um quarteto de cordas.
Figura 1

Tendo como base a seguinte afirmação de Sor em seu método: “Não ouvi em
minha vida um único guitarrista cuja execução fosse suportável se tocasse com unhas;
elas só podem dar pouquíssimas nuanças à qualidade do som: os pianos nunca podem
ser cantantes nem os fortes suficientemente cheios; seu toque é para o meu o que o
cravo é para o piano: as passagens em piano são sempre metálicas e, nos fortes, ouve-se
mais o ruído das teclas que o som das cordas”. É possível inferir que os acordes iniciais
devem ser executados com o polegar sem o uso das unhas, atacando com a carne lateral
do dedo, promovendo assim uma sonoridade robusta.
Tendo em vista também que a técnica atual de se tocar violão incorpora o uso de
unhas de maneira quase unânime, a angulação da mão direita ao pungir as cordas em
linhas melódicas também deve ser repensada para produzir uma sonoridade mais
“quente” e consequentemente mais próxima ao toque sem unha.
Os acodes do quarto compasso também suscitam indagação. Tendo como
referência o fato de Sor descrever raramente usar o dedo anular:” Já expus na primeira
parte as razões que tive para estabelecer como regra geral só empregar ordinariamente
três dedos; assim, mantenho sempre a mão a uma altura que possibilite ao polegar
percorrer quatro cordas, e os outros dedos diante das outras duas cordas” é possível
abordar a execução deste acorde usando o polegar para tocar as notas Si e Fá, na quinta
e quarta corda respectivamente e os dedos indicador e anular para as notas Sol e Ré na
terceira e quarta corda, respectivamente. Desta mesma forma, o seguinte trecho pode ser
abordado sob uma perspectiva similar.

Figura 2

|Tendo como base a seguinte afirmação de Sor:


Se a parte intermediária tem mais movimento que a superior, e a corda
intermediária deve ser tocada, é sempre o dedo indicador que uso, porque
meus dedos têm menos facilidade à medida que se aproximam do anular; é
por essa razão que, quando tenho uma seqüência de sextas a fazer sem que
estejam acompanhadas de uma corda, uso o polegar para todas as notas que
pertencem à quarta corda e mesmo para muitas das que pertencem à
terceira.

Podemos inferir que o uso dos dedos indicador e anular para a parte superior e do
polegar para a linha inferior poderá produzir um efeito mais próximo ao imaginado pelo
compositor. É importante ressaltar que a escolha de digitação da mão direita tem não
somente um sentido de facilidade e fluência na execução mecânica, mas também um
sentido musical e de controle sonoro, a escolha dos dedos também implica em uma
escolha de timbres.
Outro ponto interessante desta obra se dá no seguinte trecho:

Figura 3

A partir da indicação de FF observamos uma textura de acordes arpejados com


uma nota pedal superior. A harmonia que se caracteriza por uma cadência frígia em
direção à um acorde de sexta napolitana, sugere uma sonoridade associada às práticas
populares do sul da península Ibérica. Embora Sor não aborde em nenhum momento o
uso de reasgueados em seu tratado, o que leva a crer que ele mesmo não fizesse uso
deste recurso, era muito comum nas práticas de música popular, na guitarra barroca e
outros cordofones do século XVIII. (Dudeque, 1958) Tendo isto como ponto de partida,
é possível se perguntar como outro instrumentista coevo a Sor abordaria o respectivo
trecho, o que leva a crer que o uso de rasqueios pode ser uma alternativa de
interpretação.

CONCLUSÃO
Fernando Sor e seu Méthode Pour La Guitarre representam não somente
um marco no desenvolvimento do violão e da escrita musical para o instrumento, mas
também um documento repleto de informações sobre os paradigmas históricos vigentes
consequentes ao choque de um mundo “antigo” com um mundo “moderno”. É também
uma grande fonte de informações que podem nortear a interpretação da obra de Fernando
Sor e na compreensão do que concerne as práticas interpretativas da música do século
XIX.

REFEÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

JEFERRY. B. Fernando Sor. Compositor e Violonista. Tecla Editions, Londres,


1997.

DE CAMARGO. G. A guitarra do Século XIX em seus aspectos técnicos e


estilísticos-históricos a partir da tradução comentada e análise do “Método para
Guitarra” de Fernando Sor. São Paulo. Dissertação apresentada ao Departamento de
Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2005.

DUDEQUE, N. A História do Violão. Curitiba: Editora da UFPR, 1994.

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