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Crônica de viagem à Paris, Provence, Côte d´Azur e Riviera Italiana

Este é um relato pessoal. Não é acadêmico embora as reflexões tenham a perspectiva de


alguém que estuda o assunto. Destina-se a uns poucos interessados.
Introdução
Meus alunos, colegas, irmãos e amigos sabem que, neste mundo de hipermobilidade,
Thelma e eu somos um casal que cultiva a imobilidade ou, para usar a expressão que
prefiro, o turismo interior. Há um mundo interno a conquistar, tão ou mais importante
do que todas as imagens do mundo.
Eis então que um dia meu filho Flávio nos brindou com a oferta da viagem que
gostaríamos de fazer. Certamente ele não nos falava de mundo interno. Mais tarde nos
contou que estava em condições de retribuir o mesmo presente que eu havia dado à
minha mãe e minha tia (uma peregrinação religiosa pela Europa). Quem pode rejeitar tal
presente? Não tivemos dúvida, seguindo um dos conselhos de Jost Kryppendorf, um
animador do turismo sustentável e estudioso do turismo social: se é para viajar que seja
sempre para o mesmo lugar. Thelma e eu compartilhamos essa filosofia. Assim, não
tivemos dúvida na resposta: uma semana em Paris. Eu lá morei e para lá levei Thelma
várias vezes. Acabou sendo o destino que escolhemos nas viagens que fazemos juntos.
Adicionalmente, havia a vantagem do cumprimento de uma promessa que eu já havia
feito ao meu filho: apresentar-lhe a cidade (reapresentar, na verdade, porque ele já tinha
passado por lá algumas vezes).
Ele nos fez uma contraproposta: 14 dias, reduzindo a estada em Paris de sete para quatro
dias (incluindo os dias da chegada e da saída) e estendendo o programa para a Côte
d`Azur e a Riviera Italiana, com TGV Paris-Lyon e carro alugado para o restante da
programação. Era uma alteração radical da filosofia da viagem. Assustava à Thelma e a
mim todos os inconvenientes de um périplo (malas, translados e outras operações
desgastantes, ao menos para um casal de idosos, que é o que somos). Ele prometeu (e o
que é melhor, cumpriu) ocupar-se de todos os detalhes. Ao final da viagem, percebemos
que o dinheiro gasto com todas essas despesas - avião na classe executiva, bons hotéis,
bons restaurantes, ingressos mais gasolina e pedágios – tudo isso era o menor de sua
dádiva. Foi comovente ver como ele alegremente exercia as funções de segurança,
concierge e guia, carregando as malas, fazendo todos os contatos e puxando o cartão na
hora de pagar as despesas sem falar da documentação da viagem. As fotos aqui trazidas
(com os vídeos que não cabem no word) foram todos produzidos por ele.
Como recusar essa dádiva? Resolvemos que aceitaríamos adotar a vida de turista. O que
é ser turista? Tinha a resposta na ponta da língua: é propor-se a mudanças de paisagem,
de ritmo e de estilo de vida. Iríamos observar a paisagem física e humana dos locais
visitados; adotar um ritmo de vida mais lento, desfrutando, e ao mesmo tempo
vertiginoso, com o grande número de locais a visitar; e de estilo de vida, vivendo
modelos diferentes de culinária, de mobilidade, repensando até mesmo os hábitos mais
simples de desfrutar dos ambientes, conhecer formas de banho, de uso de toaletes (todos
sabem o que sofre um turista diante de torneiras estranhas, para dizer o mínimo), etc.
Numa viagem tão cheia, eu particularmente decidi que iria observar a ambiência das
cidades, deixando de lado as visitas a museus, centros culturais, etc.
Dessa forma, saímos e executamos o seguinte roteiro:
Dia 11 – Almoço na Sala Vip da Amex, embarque de saída de São Paulo às 14:30
horas; refeições e despertar em Paris com café da manhã.
Dia 12 – Chegamos em Paris de manhãzinha, acomodação em apartamento Airbnb,
passeio pela cidade entrecortado por um lanche num café agradável, jantar no
Restaurante Chartier (dois atrativos: decoração belle époque e preços baratos), fim de
noite num café próximo de casa na Av. Champs Elysées.

Dia 13 – Desjejum num café conhecido, visita ao 4ème, passando o Hotel des Sens, uma
das raras construções medievais de Paris (hoje Biblioteca de Arte), almoço no Le Vent
D`Armor (boa sugestão de um amigo). Depois levei os dois para conhecerem o apê
onde morei na Île Saint Louis. Ainda paramos num café da ilha e fomos à Place des
Voges e compras. Terminamos a noite num café da Champs Elysées.
Dia 14 – Manhã dedicada a passeio ao longo do Sena, na Rive Droite seguindo pela Av.
Franklin Roosevelt. Almoço na Mesquita Central, visita aos jardins internos, passeio
pelo Jardin des Plantes, esticada até o Blv Saint Germain e volta ao apê. Saída para o
concerto na Église Saint Paul Saint Louis, fim de noite (jantar de despedida) na Champs
Elysées.

Dia 15 – Desjejum reforçado pela manhã, arrumação de malas, TGV para Lyon (2
horas), hospedagem em hotel próximo da Gare, aluguel de carro para os próximos 10
dias, jantar no Vieux Lyon em local apropriado para degustar o Bouchon Lyonnais.
Dia 16 – Logo de manhã, alugamos (meu filho alugou) o carro que nos levou a Aix-em-
Provence, passando antes por Gordes (sem tempo para esticar até Gorges-du-Verdun,
um dos pontos mais lindos da Provence), lanche num gostoso café da praça central e
chegada à Aix, onde lanchamos e dormimos

Dia 17 – Viagem a Saint-Tropez. Antes, passamos por Marselha onde andamos e


perdemos a hora para degustar o Bouillabaisse (famosa sopa de frutos do mar).

Em Saint Tropez, hospedagem num belo hotel, passeio pela cidade e jantar num
restaurante do porto. Tivemos a sorte de assistir ao segundo dia de festejos da Bravade
de Saint-Tropez, que comentarei mais adiante.
Dia 18 – De manhã, fomos desfrutar finalmente, de um dos muitos beach-clubs, com
um belo lanche. Na saída, desfrutamos de uma imagem inesperada

Na metade da tarde, pegamos o carro e seguimos para Cannes, agitada em meio ao


Festival de Cinema, hospedamo-nos num bom hotel com vista para o porto

e aproveitamos o restante do dia para passeio e jantamos num point gastronômico da


cidade. Ao final, um passeio pelo porto antes de voltar ao hotel.

Dia 19 – De manhã, seguimos viagem à Monte Carlo, passando por Nice na Promenade
des Anglais (os turismólogos sabem sua origem no Grand Tour, desde a metade do
século XVII) na altura do famoso Hotel Negresco (onde até quisemos pernoitar mas os
preços eram de alta estação já que estava quase totalmente ocupado), visitamos um
beach club em frente onde apenas lanchamos.

Depois, seguimos para Mônaco, colhendo paisagens no caminho e hospedamo-nos em


Cap d´Ail, cidade francesa vizinha, onde nos hospedamos num apart-hotel com uma
bela piscina que não aproveitamos
À tarde chegamos a Monte Carlo, buliçosa com a proximidade da Fórmula 1, onde
passeamos, lanchamos e à noite jantamos num belo restaurante.

Dia 20 – De manhã, seguimos até Forte dei Marmi, na Riviera Italiana (dita a Saint-
Tropez da Itália), passando por Portofino. Afinal, esta cidade é linda e romântica (os
velhos também amam).

No meio da tarde, chegamos a Forte dei Marmi, onde nos hospedamos, passeamos pela
cidade (passeios com piso de mármore de Carrara) e jantamos.

Dia 21. Aproveitamos o dia para conhecer as Cinque Terre, a jóia da Riviera Italiana,
passando por La Spezia, jantando à noite em Forte
Dia 22 - Voltamos direto para Aix-em Provence (500 km), onde jantamos, passeamos
(pudemos ver o final de uma prova de Ironman) e pernoitamos

Dia 23 - Voltamos a Lyon (mais 500 km), para mais uma visita à cidade, entrega do
carro. Saímos para degustar novamente o Bouchons Lyonnais no Vieux Lyon
Dia 24 - Volta à Paris no TGV até o Aeroporto CDG, almoço na Sala Vip da Air
France e viagem a Amsterdan, Ainda deu tempo de visitar à cidade terminando no Café
Bulldog.

Dia 25 – Volta a São Paulo. Saída às 10 da manhã. Viagem cansativa. Difícil dormir.
Almoço e jantar.
A seguir, dada a curta descrição dos passeios, registro minhas impressões sobre as
viagens, as paisagens, o nosso ritmo e estilo de vida.
As viagens
Nosso filho nos brindou com o que há de melhor neste quesito: classe executiva no
avião, primeira classe no TGV e um Mercedes para o périplo Provence, Côte d´Azur e
Riviera. Foi fácil perceber que o modelo mais refinado de viagem do Grand Tour
(prática da nobreza e da burguesia britânicas de enviar os filhos para se cultivarem
sobretudo na França e Itália) que valorizava a viagem em si, com paradas para
observação da paisagem) estava sofrendo uma inversão. A viagem agora não é o mais
importante; ao contrário, é o mais aborrecido.
Desde a invenção da energia a vapor, inicia-se um longo protesto de extinção da
viagem. Trens e navios andam mais rápido. O tempo encurta ainda mais com os aviões
comerciais, tendo como ideal mítico a cabine de teletransporte da série Star Trek,
quando a viagem desaparece. O automóvel é o meio que ainda permite o luxo de
paradas para contemplação da paisagem, mas, numa viagem encaixotada num período
temporal muito curto, isso somente foi possível em algumas situações. Em outras
palavras: o automóvel é o meio que ainda preserva a viagem, desde que você despreze
as autopistas (o que é mais econômico) e escolha as vias provinciais e municipais (o que
demanda mais tempo). Tenho para mim, de qualquer forma, que privilegiar o interior
dos países é mais econômico e na soma eles proporcionam o que há de melhor nas
grandes cidades.
A tendência ainda é substituir a viagem por um cardápio de atrações nos destinos. O
turista, mais do que ninguém, precisa se divertir. Ou pelo menos sentir que se divertiu.
Afinal, se no cotidiano o tédio já é difícil, numa viagem turística é obsceno. No dia-a-
dia, suportamos o tédio em função das perspectivas de fim de semana. Numa viagem,
não é suportado nem mesmo por minutos, porque até para o mais descolado dos turistas,
tédio é dinheiro jogado fora.
Impressionante ainda é que os estudos não dão atenção a todos os efeitos do
deslocamento do corpo no espaço. Não se trata de resgatar o inconformismo acontecido
na Inglaterra no século XIX, mobilizando grupos que protestavam contra os problemas
que adviriam de uma velocidade tida como inadequada para o organismo humano. A
velocidade de 60 km por hora que tanto assustava é hoje risível, mas vale a pena refletir
sobre os impactos.
Quais as mudanças operadas pela viagem? Somente se fala de jet-lag. Mas a viagem
afeta em primeiro lugar o aparelho digestivo. É impossível após uma semana manter o
organismo intacto com temperos e produtos alimentícios diferentes. Outros impactos
físicos ainda estão para ser estudados mas é certo que a mudança afeta psicologicamente
também.
Isso explica um fenômeno também pouco estudado do estresse ao final da viagem,
donde frases correntes como “o melhor da viagem é a volta para casa”, “quero voltar
para casa para descansar”, etc.
De qualquer maneira, o saldo, salvo em casos de contratempos muito fortes, será sempre
positivo e espero poder demonstrá-lo também aqui.
As paisagens
O turista é um consumidor de paisagens. E as cidades sempre se preparam para
circunscrevê-lo nas áreas mais nobres e palatáveis. Escondem as paisagens quase
sempre deprimentes das periferias mais pobres onde se concentram migrantes e
refugiados.
Paris é para ser vista. Suas paisagens geométricas, com a cidade rasgada em bulevares
desenhados na régua, tendo como referência as praças-estrela, com estudo de
perspectivas, encantam o visitante. A uniformidade dos edifícios, por incrível que
pareça, não é enjoativa. Os edifícios têm sempre cinco andares terminando em águas-
furtadas, antigamente previstas para hospedagem de serviçais, hoje o filé-mignon das
imobiliárias e cada vez mais caras. É uma lembrança dos tempos (segunda metade do
século XIX) em que era possível a um governo rasgar a cidade (hoje só a China tem
essa possibilidade) criando largas avenidas, com melhorias à circulação, à higiene e à
segurança pública. Foi a época em que os parques urbanos passaram a preocupação das
gestões municipais bem como o tratamento do lixo, da água e dos esgotos. Uma imensa
rede de túneis (hoje sua visita é programa turístico) foi também criada nessa época.
O comércio de rua cuidadosamente preservado como chamariz para os visitantes é
objeto de políticas públicas que incentivam sua permanência, não raro concedendo
vantagens fiscais, quando não de subsídio puro e simples. Os shoppings, assassinos do
comércio de rua, somente são permitidos fora das marginais periféricas que delimitam a
cidade.
Com isso, é andar, andar, andar sem parar, com pausa nos cafés que existem em todos
os cantos da cidade, oferecendo lanches e refeições.
O trem nos trouxe o encanto da paisagem rural francesa, entrecortada por pequenas
cidades e vilas que nos deixavam uma imensa curiosidade. As terras são inteiramente
ocupadas com plantações e florestas, oferecendo um mosaico de cores por vezes
deslumbrantes, tudo fruto de créditos e subsídios à manutenção da agricultura francesa,
a mais desenvolvida da Europa Ocidental.
Nas demais cidades francesas, a paisagem permanece, ainda que sem o brilho de Paris.
A paisagem na Provence, incrustrada na vertente mediterrânea dos Alpes, oferece vistas
deslumbrantes, como a da região de Gordes. Perdemos a floração das plantações de
lavanda e alfazema, atrasadas.
A Côte d´Azur é deslumbrante com praias belíssimas ainda que pouco apropriadas ao
banho pela água quase gelada e pelos pedriscos (mesmo em Saint-Tropez). A Riviera
Italiana encanta ainda mais pela paisagem urbana, menos uniforme que na Côte d´Azur
mas igualmente encantadora e sem dúvida mais bela (sobretudo considerando Portofino
e as Cinque Terre).
Já Forte dei Marmi é uma exceção. É a grande produtora de mármore (marmi) que
conhecemos como de Carrara, cidade próxima que antigamente a abrangia. Surgiu
apenas no início do século XX, em torno de um antigo forte de defesa da região (daí o
seu nome). Eles se orgulham do fato de Da Vinci trabalhar apenas com o mármore da
região e não tiveram dúvidas de usar o material mesmo nos passeios urbanos. É, pois,
uma cidade moderna. A única semelhança com Saint Tropez são suas praias (6 km), que
despertaram a gula de moradores de Milão, Turim e de turistas russos e poloneses ricos.
Já a paisagem humana é igual hoje em todas as cidades. Como disse um especialista em
moda, é paradoxal que as pessoas busquem exprimir-se através de roupas e adereços e
terminem sempre parecendo iguais. Poder-se-ia acrescentar: iguais às tribos em que
querem se inserir. Na realidade, a fauna humana é diversificada. Há tribos de todos os
tipos e não deixa de ser curioso notar como os points também como em toda parte
especializam-se conforme as aspirações das tribos. Minha mulher notou a quase
universalidade dos cílios postiços e tatuagens.
De qualquer forma, o programa proposto é sempre o mesmo. Sempre, caminhar! E
nessas caminhadas a gente se depara por vezes com cenas inesperadas. Um pavão na rua
e festejos típicos locais. Dessa forma, conhecemos a Bravade de Saint Tropez e sua
história. Todos os anos nesta época há um tríduo comemorativo do valente legionário da
guarda de Nero que converteu-se ao cristianismo, foi decapitado e teve sua cabeça
colocada numa canoa e deixada à deriva, vindo parar na cidade que tem o seu nome. Há
um desfile com os moradores em uniforme militar, carregando a imagem de Saint
Tropez e com garruchas que descarregam no chão tiros de pólvora seca que fazem um
barulho ensurdecedor.
Ainda pudemos ver a fauna humana dos festivais de cinema de Cannes (200 mil
visitantes), já que chegamos com o evento em andamento.
Ritmo de vida
O ritmo de vida dos turistas também se altera em viagem: horários de acordar, dormir e
das refeições. Os rituais cotidianos a que estamos habituados são alterados. Sem falar da
necessidade constante de toaletes e à dificuldade que nós velhos temos com a leitura de
informações visuais com ícones nem sempre de leitura óbvia. Todo lavatório em que
você entra obriga a repensar gestos cotidianos. Como andar nas ruas, como adentrar
num estabelecimento, como viajar num ônibus urbano, como lidar com os pedágios, etc.
A ducha ainda é precária. Parece que os franceses preferem a banheira, o que os turistas
costumam evitar em nome da higiene. Em resumo: todos os procedimentos mesmo os
mais banais são submetidos a protocolos diferentes.
O horário cotidiano se altera. Para mim, em especial, foi uma mudança significativa.
Habituado ao almoço, cedi quando vi que o ritmo dos passeios levava à escolha do
jantar como principal refeição do dia. Para Thelma, o que mais impactou foram as
diversificadas formas de lidar com chuveiro (reclamava que não podia se cuidar), as
caminhadas (sobretudo em ladeiras) e o desfile vertiginoso das paisagens. O único
hábito que mantivemos (a duras penas e em horários sempre diferentes) foi a das
meditações de manhã e ao final do dia.
Caminha-se muito mais do que no cotidiano. Às vezes em ladeiras pronunciadas, o que
aconteceu várias vezes, sobretudo nas Cinque Terre. E mais lentamente, tanto para
desfrutar da ambiência dos lugares como, no final do dia, por simples cansaço. Mas,
paradoxalmente, no final da viagem a sensação é de uma vertigem. Todas as imagens
passam velozmente pela mente.
Estilo de vida
A mudança mais notável é da relação com o dinheiro. É um aforisma dos estudos
turísticos lembrar que o turista é sempre mais rico na viagem do que no cotidiano. Na
nossa viagem, tínhamos o embaraço de saber que não pagávamos as contas e que,
portanto, deveríamos evitar escolhas muito onerosas. Mesmo assim, um maço de
cigarros por 20 euros (ainda que eu pagasse com meu dinheiro) assustava. Da mesma
forma, uma dose de Calvados XO me custou 30 euros. Mas, como diz uma amiga
minha, quem converte não se diverte. Bobagem ficar convertendo os preços que se vê.
Deve-se levar dinheiro suficiente, escolher os gastos mais compatíveis com a reserva
financeira e relaxar. E, claro, perguntar os preços antes. Sempre.
De qualquer forma, num bom restaurante gasta-se 100 euros por pessoa, fora as bebidas.
Um apartamento de casal num bom hotel custa 200 euros em média. E tende-se a comer
mais e a beber mais. Ao final da viagem, vi que não adiantou caminhar sem parar para
compensar comida e bebida: engordei dois quilos. Apesar da disposição de meu filho
em nos proporcionar os melhores endereços gastronômicos, nem sempre isso era
possível. Fora de Paris, os restaurantes fecham das 14 às 18 horas. Foi uma pena perder
em Marselha a especialidade local, a bouillabaisse, uma formidável sopa de peixes com
a “sauce rouille” (molho feito de ovas de peixe batidos com temperos e açafrão que dá a
cor de telha).
Além disso, nem sempre acertamos na escolha. Em Paris, além do Chartier (que Thelma
e eu conhecíamos), indiquei um outro, o restaurante da Mesquita Central de Paris.
Como já tinha degustado décadas atrás, em Túnis, também na principal mesquita da
cidade, cum soberbo Couscous d´Agneau, à moda do norte da África, acompanhado de
um bom vinho local, imaginei a mesma experiência. A escolha não agradou nenhum de
nós. Em Paris, a comida não era da mesma qualidade (talvez em função da multidão que
frequenta o restaurante) e bebidas alcoólicas são proibidas.
Em Lyon, pudemos conhecer o bouchons lyonnais, um conjunto de pratos que têm a
mesma origem (partes desprezadas do corte habitual dos animais). Sua origem remonta
ao século XIX quando as mães de família passaram a criar pratos com essas carnes.
Assim, o bouchon consiste de assados de teta de vaca, de coração de boi, de garganta de
porco, acompanhados da andouillete (linguiça recheada de gordura de animais mais a
chamada fraise de veau - morango da vitela - que foi proibida durante a epidemia da
vaca louca) que eles amistosamente desaconselham aos turistas. Há um prato nobre que
acompanha essas delícias, a quenelle de brochet (massa feita com a carne do lúcio, um
enorme predador que habita lagos dos rios Ródano e Saona).
Resta destacar o ótimo lanche desfrutado na praça central de Gordes e os jantares em
Saint-Tropez, Cannes e Monte Carlo.
Boas lembranças também ficam do concerto na Église Saint Paul Saint Louis. Os
edifícios religiosos construídos até 1905 passaram todos para a órbita do Estado que, de
um lado, os cedem para os ritos religiosos mas também destinam momentos para
concertos. Claro que os concertos são adequados para o clima dos templos. No caso, a
pauta do concerto foi o Canon de Pachebel, as Quatro Estações de Vivaldi, várias Ave
Marias, o Panis Angelicus de Cesar Frank e o Ave Verum de Mozart.
O pós-viagem
Uma viagem, sobretudo de lazer turístico, tem sempre o antes, o durante e o depois. O
antes é ocupado com os preparativos e nesse momento os locais de destino são objetos
da nossa curiosidade e pesquisa pessoal. Mais do que roteiros, minha mulher e eu nos
ocupamos de tentar captar a ambiência dos locais a serem visitados, sobretudo o clima e
temperatura nos lugares. Tivemos sorte de contar com dias ensolarados, com
temperaturas de 14º a 25º.
No pós-viagem, as atividades são o esvaziamento das malas, a separação das
lembrancinhas para parentes e amigos e, sobretudo, o rever as fotos, identificando-as e
comentando. Pena que os operadores turísticos deem tão pouca atenção a esta etapa. São
vitais para a fidelização do cliente.
Para pensar (1)
Hoje o receio dos moradores é o overturismo. Sempre pensei que o destino das cidades
mais turísticas, a seguir as inevitáveis pressões do mercado era converter-se em parques
temáticos, com ingresso pago e residências transformadas em hotéis, restaurante,
comércio, etc.
Alguém já tinha me falado de Lourdes, nos Pirineus franceses, como uma cidade que
não tem moradores residentes. Pareceu-me razoável, já que Dumazedier uma vez me
disse que a cidade recebia tantos turistas como Paris. Por mais que buscasse na literatura
francesa sobre turismo, nada vi que confirmasse estas assertivas. Ao menos em Saint
Tropez, Forte dei Marmi e nas Cinque Terre vimos que os residentes são trabalhadores
que cederam suas casas para residências secundárias, hotéis e lojas. A legislação trata
moradores e trabalhadores como residentes.
Como se sentiam os moradores de Saint Tropez ao desfilar na Bravade comemorativa
do patrono da cidade sabendo que a tinham perdido para os turistas? Em Forte dei
Marmi, as reações foram explícitas. Os residentes são apenas trabalhadores. No inverno,
segundo os locais, é uma cidade fantasma. Mesmo agora, do nosso hotel, apenas víamos
casas fechadas.
Será que as cidades mais turísticas estão condenadas a se transformarem em museus,
como o New York Times chamou Veneza? Ou em Parques temáticos? O que pensar de
cidades que exigem pagamento de ingresso e regulamentos proibindo o consumo de
alimentos trazidos de fora ou de se sentar fora dos bancos deixados à disposição do
público?
Ah! O mercado! Esse deus onipotente de nossas sociedades. Como se sente um morador
que deixa suas paisagens cotidianas para morar em localidades próximas, cedendo suas
posições para os turistas? Em Barcelona e mesmo Veneza há reações em contrário, mas,
até quando?
É difícil pensar em turismo sem refletir sobre as patologias que desencadeia nas pessoas
e nos lugares!
Para pensar (2)
As pessoas viajam com mais dinheiro que no dia a dia porque não confiam na
hospitalidade dos lugares visitados. Há o seguro médico mas como dar conta de todos
os imprevistos? As pessoas se sentem como Macunaíma: é cada um para si e Deus
contra! Porque há horas em que Ele parece se ausentar.
Nós, brasileiros, vivemos uma urbanização recente com habitantes que carregam a
bagagem cultural trazida das pequenas cidades e zonas rurais onde todos se conhecem.
Todo contato é regido pelo conhecimento prévio e pelo calor humano. Olha-se nos
olhos, perguntam-se nomes, origem, quer-se a todo custo transformar o estranho em
familiar.
Somos de um país que mesmo na televisão âncoras, comentaristas e repórteres adotam
um tom intimista, cumprimentam-se, lembram datas importantes para o colega, ao
contrário dos demais países em que a expressão neutra se impõe.
É natural que sociedades com urbanização consolidada, às vezes em muitas gerações,
adotem o lema da urbanidade: tratar o estranho com polidez mas com distanciamento.
Por favor, obrigado, bom dia, boa noite, perdão são expressões que se ouvem a toda
hora. Mas sem calor humano. Sobretudo nas grandes cidades. Nas menores, por vezes
até parece o Brasil.
Em Paris, sem dúvida o contato melhorou. Não se vê mais a agressividade de garçons,
mas ainda há o péssimo costume de repetir o que você falou mostrando a verdadeira
pronúncia. Turistas mais sensíveis podem até sentir-se alvos de piada. Mas esta cidade
é um bom lugar para se estudar a turismofobia, o contraponto do overturismo
comentado acima.
Um turista revoltado nos dizia não entender porque eles dependem tanto do turista e
fazem pouco caso dele. Há várias pistas para se entender. Note-se que os estudos de
hospitalidade na França contemplam apenas o migrante ou o refugiado (diferente dos
estudos anglo-saxões mais pragmáticos que, ao contrário, apenas consideram o turista).
No caso do turismo, não poderia haver a verdadeira hospitalidade, apenas a encenação
da hospitalidade, como escreveu Anne Gotman. Ela própria já se referiu ao turista visto
pelos residentes como o conquistador em terra arrasada. Daí que a impressão que se tem
é que o parisiense suporta o turista mas percebe o quanto ele ocupa os lugares, fala em
voz alta, joga lixo fora dos recipientes. Cheio de dinheiro? Tem de ser explorado. É uma
versão suavizada da turismofobia, não agressiva mas que transparece nos gestos.
Ainda assim, por vezes, há cenas de verdadeira hospitalidade. Não posso deixar de me
referir à tocante cena em que, confusos pelo protocolo de viagem no TGV, com os
números dos vagões, chegamos em cima da hora e colocamos nossas malas no piso
inferior do vagão mais próximo ao ouvir o apito de partida. Havia de se carregar três
malas de 20 quilos numa escada estreita e ainda levá-las ao vagão correto. A surpresa
foi verificar que duas garotas de 20 anos, sensibilizadas com o nosso afobamento,
pegaram duas das malas e as carregaram no andar superior e no vagão correto. Por que
ajudar três turistas que viajam de primeira classe? Por calor humano, a verdadeira
hospitalidade.
Cenas como essa são raras e dignas de nota no nosso cotidiano, quanto mais em terra
estranha!
Para pensar (3)
Quem me lê, pode achar que não gostei da viagem ou só me lembro dos perrengues.
Não! De forma alguma. Mudar a paisagem, o ritmo e o estilo de vida é também e
principalmente uma experiência educativa. Quando meu filho Flávio, no ensino médio,
quis fazer uma viagem de intercâmbio aos EUA, corri para me informar com um amigo
do Conselho Estadual de Educação. Não se preocupe, disse-me ele! Todo mundo sabe
que um ano de experiência no exterior vale por anos de escola, ainda mais da escola-
decoreba a que o aluno é submetido.
Aliás, o Grand Tour, que para muitos é o nascimento do turismo moderno, surgiu com
essa intenção. Proporcionar um lustro cultural, vivenciar cenas impossíveis no
cotidiano, conhecer culturas diferentes do mediterrâneo.
Mais do que evasão pura e simples do cotidiano, do que uma revolta contra o tédio
cotidiano vivido nas cidades de origem, a viagem ajuda a desmantelar velhos
preconceitos, a adotar uma visão positiva sobre o mundo. Ainda mais quando se
conhecem cidades de países mais avançados. Algumas questões políticas sobre o futuro
das sociedades em que se vive começam a brotar e certamente trarão algum resultado no
exercício da cidadania. Ainda chegaremos lá, pensa ele!
O importante é que ainda desfrutamos um pouco do velho prestígio de inventores do
futebol moderno, de amantes do samba e do carnaval. Não é só Bolsonaro o culpado da
piora de nossa imagem. A urbanização acelerada no Brasil tende a destruir esse
patrimônio construído ao longo de gerações. Nas grandes cidades brasileiras, observam-
se cenas parecidas com as vivenciadas em Paris. Destinam-se aos turistas espaços de
comida fake e cara. Somente assim podemos entender quando, em situação de turista,
alguém nos diz para desfrutar da culinária local genuína e mais barata.

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