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Dossiê

Perguntando-se sobre a
importância historiogáfica
do livro de Aries, L'enfant et
SOBRE UM
la vie familiale sous
1'Ancien Regime, o autor
analisa a construção da MOMENTO DA
idéia de infância a partir do
advento da escola, da família
e do Estado. Reflete sobre
as obras de Comenius,
CONSTITUIÇÃO DA
Locke e Rousseau.
Aries; idéia de infância;
historiografia IDÉIA DE
ABOUT THE
CONSTITUTION OF
INFÂNCIA: PONTO
INFANCY'S IDEA: THE
POINT OF VIEW OF A
HISTORIOGRAPHER
Asking himself about
DE VISTA DE UM
the value of Aries'book
L 'enfant et la vie familiale
sous VAncien Regime, the
HISTORIADOR
author analyses the cons-
truction of the idea of
infancy, based on the work
of Comenius, Locke and
Rousseau. W a l d i r C auvilla
Aries; idea of infancy;
historiography

=LL elo menos historiograficamente é com o livro


de Aries L'enfant et la vie familiale sous VAncien Regime
que o tema da constituição da infância entra em cena.
Esse livro foi publicado em I960, mas sua elabo-
ração levou 10 anos, já que Aries o foi escrevendo em
seus fins de semana; aliás, seu livro de memórias teve,
justamente, o simpático título de Un historien du
dimanche, que no Brasil recebeu do tradutor o título
equívoco de Um historiador diletante (Aries, 1994).
Aqui já se instalaria uma questão: por que alguém se
interessaria por esse tipo de assunto nesse momento?
Com isto não estamos querendo formular a questão no
plano puramente pessoal, quero dizer, por que um indi-
víduo - Aries - interessou-se pelo tema. A resposta cairia
no mesmo plano de por que uns gostam de música clás-

• Professor do Depto. de Filosofia da Educação e Ciências


de Educação da FEUSP
sica, outros de popular; uns de maçã, outros de pêra, etc. Quem
quiser conhecer as razões pessoais de Aries, no entanto, pode con-
sultar seu livro de memórias acima citado (o que é extremamente
interessante e esclarecedor).
Na verdade, a questão é por que o livro "pegou"? Por que,
ainda que com resistências iniciais no meio acadêmico oficial
francês, acabou se tornando um marco historiográfico e hoje é con-
siderado um verdadeiro clássico? Por que, e mesmo com possíveis
e várias críticas, não se pode escrever ou falar nada sobre infância
e família sem se remeter a Aries? Tornou-se, antes de qualquer
coisa, um bê-á-bá dos estudos sobre esses temas.
Mas Aries nos interessa, aqui, no que nos pode esclarecer
sobre um dos momentos de constituição da idéia de infância suge-
rida pelo título deste artigo.
Aries estudou o período correspondente ao Antigo
Regime, na França, particularmente os séculos XVI, XVII e pelo
menos parte do XVIII. É nesse momento que ele capta a emergên-
cia do que denominou "sentimento da infância". Vale notar que ele
faz isso contrastando esse momento com o período anterior, da
Idade Média, em que não teria existido o sentimento da infância.
Esclareçamos com as palavras do próprio Aries:
"[...] Afirmei que essa sociedade via mal a criança e pior ainda
o adolescente. A duração da infância era reduzida a um período
mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bas-
tar-se; a criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico, era
logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos.
De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em
homem; mas, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fos-
sem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos
essenciais das sociedades desenvolvidas de hoje" (Aries, 1981, p.10;
itálico nosso).
"Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de parti-
da, o sentimento da infância não existia - o que não quer dizer que
as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O
sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas cri-
anças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa
particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto,
mesmo jovem. Essa consciência não existia. [...]" (Aries, 1981,
p.156).
Na verdade, Aries capta dois sentimentos da infância. Um pre-
sente no século XVI (talvez já pudesse ser captado nos séculos XIV
e XV) e que o autor identifica com a "paparicação" ("mignotage").
Esta teria nascido no ambiente familiar, no trato com as crianças
pequenas. O segundo, que é o sentimento "verdadeiro" da infân-
cia caracterizado pela consciência da especificidade desse momen-
to da vida humana, "... proveio de uma fonte exterior à família: dos
eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século XVI, e de um
maior número de moralistas no século XVII, preocupados com a
disciplina e a racionalidade dos cos- como identificadora daquele que serve
tumes. [...]" (Aries, 1981, p.l63; itálicos à mesa) até como se vestir, cumprimen-
nossos). tar as pessoas, etc.
Aries chama a atenção para o fato A partir do século XVI temos então
de que aquele primeiro sentimento já essa mudança: as crianças passarão a
no século XVI era criticado acerbamen- freqüentar a escola, em vez de se diri-
te por pensadores como Montaigne, girem às casas de outras famílias.
que via na "paparicação" uma forma de Vale a pena citar o próprio Aries:
tratar as crianças como "macaquinhos", "[...] Isso quer dizer que a criança
e essa "macaqueação" o irritava profun- deixou de ser misturada aos adultos e
damente. de aprender a vida diretamente, através
É essa sensibilidade que marcará do contato com eles. A despeito das
também os eclesiásticos, os jesuítas, os muitas reticências e retardamentos, a
moralistas do século XVII, já que "re- criança foi separada dos adultos e man-
cusavam-se a considerar as crianças co- tida à distância numa espécie de qua-
mo brinquedos encantadores, pois viam rentena, antes de ser solta no mundo.
nelas frágeis criaturas de Deus que era Essa quarentena foi a escola, o colégio.
preciso ao mesmo tempo preservar e Começou então um longo processo de
disciplinar. Esse sentimento, por sua enclausuramento das crianças (como
vez, passou para a vida familiar" (Aries, dos loucos, dos pobres e das prostitu-
1981, pp.163-4). tas)-^ que se estenderia até nossos dias,
Essas últimas citações devem nos e ao qual se dá o nome de escolariza-
deixar pelo menos uma pergunta: quem ção" (Aries, 1981, p . l l ) .
são esses moralistas, eclesiásticos, ho- Essas palavras nos mostram, então,
mens da lei? onde se encontram? de que um dos comportamentos do período
lugar falam? como podiam influenciar estudado, que devem ser levados em
as famílias? conta para entender a origem do senti-
O próprio Aries nos dá o encami- mento da infância: o ambiente escolar.
nhamento da resposta. Em seu livro, ele Essa pista, para um historiador da
indica a escola como uma das respon- educação, permite-nos chegar a obras
sáveis pela mudança citada, na medida de educadores da época, como Come-
em que ela vai substituir o aprendizado nius (1592-1670), Locke (1632-1704) e,
como meio de educação. Expliquemos como uma culminação desse processo
melhor: antes dos Tempos Modernos (já de valorização da infância enquanto tal,
que é deles que falamos quando trata- já no século XVIII, Rousseau (1712-
mos dos séculos XVI e XVII) a edu- 1778).
cação realizava-se pelo aprendizado Antes de avançarmos um pouco
fora da família original, junto a outras além na pista acima, anotemos mais um
famílias; assim que a criança deixava de trecho de Aries que vem logo a seguir
ser um infante (enfant, em francês) - desse último que citamos:
um "não falante" - , ela era enviada para "Essa separação - e essa chamada
o convívio com outras famílias, em que à razão - das crianças deve ser inter-
aprendiam os hábitos, costumes, modos pretada como uma das faces do grande
de ser, comportamentos, desde como movimento de moralização dos homens
servir à mesa (lembremos que uma das promovido pelos reformadores católi-
palavras que designam o jovem na lín- cos ou protestantes ligados à Igreja, às
gua francesa - garçon - chegou até nós leis ou ao Estado [...]" (Aries, 1981, p . l l ;
em sua forma portuguesa de "garção" itálicos nossos).
Assinalamos o trecho acima para, um instrumento político do que reli-
justamente, apontar mais dois fatores - gioso; a monarquia inglesa que faz do
externos à família - que agiram mar- rei o chefe não só do Estado, mas tam-
cantemente na geração do sentimento bém da Igreja Anglicana; a Suécia e a
da infância a partir do século XVII: as Noruega convertendo o luteranismo em
reformas religiosas e a constituição do suas religiões oficiais, o próprio gali-
Estado Moderno. Vale notar que o pró- canismo da época de Luís XIV na Fran-
prio Aries, em um outro texto (Aries, ça, e por aí vai...
1991), chama a atenção para esses Mas é interessante notar que na
fatores, aos quais acrescenta o movi- formação do Estado Moderno - religião
mento de alfabetização, impulsionado à parte - , particularmente no caso fran-
principalmente depois da invenção e cês, a iniciativa do absolutismo monár-
aperfeiçoamento da imprensa (desde o quico, procurando controlar o mais que
século XV). pudesse a vida do indivíduo, favorecerá
Cremos que não é demais lembrar também todo um processo de valoriza-
que, na prática, todos esses elementos ção da vida íntima das mesmas, no qual
estão reunidos. Apontemos a seguir al- um dos aspectos será uma maior preo-
guns exemplos. cupação com os filhos, portanto, com
A reforma luterana teve como um as crianças. Pensamos que é também no
de seus instrumentos de evangelização âmbito da influência do Estado, em
a criação de escolas. Podemos lembrar especial no que ele tem de busca de
que um dos primeiros colégios propria- uma racionalidade administrativa^, que
mente ditos foi criado por J. Sturm, um vamos encontrar a gênese da preocu-
luterano. O historiador Frederick Eby o pação dos moralistas e dos homens da
considera o "fundador do ginásio clássi- lei do século XVII, "a disciplina e a
co" (Eby, 1978, p.7ó). racionalidade dos costumes" citada por
A reforma católica vai ter na cria- Aries (Aries, 1981, p.l63).
ção da Companhia de Jesus por Inácio Voltemos, porém, ao âmbito das
de Loyola um de seus principais esteios, escolas e dos educadores. Aqui, apro-
e a ordem jesuíta, por sua vez, vai fazer veitemos os três autores acima citados,
do ensino, em seus famosos colégios, Comenius, Locke e Rousseau, e veja-
um dos principais meios de defesa da mos alguns aspectos de suas obras que
Igreja Católica. É só pensar, aliás, na im- podem ter contribuído na constituição
portância que os jesuítas tiveram na de uma idéia de "infância" na época
história da educação no Brasil, antes e considerada.
depois do período pombalino. Um dos aspectos que podemos
Notemos também que, de um lado citar, comum aos três, é a valorização
ou de outro das reformas religiosas - se da criança no processo pedagógico.
pensarmos na polarização católicos x Todos os três levam em conta o
protestantes (simplificação válida ape- amadurecimento biológico e mesmo
nas para facilitar a discussão no âmbito psicológico da criança. O professor, ao
deste artigo) - , os Estados nacionais ensinar, deve levar em conta as con-
emergentes da Europa do início dos dições da criança, variáveis conforme
Tempos Modernos tomaram posição sua idade.
diante das mesmas, assimilando-as Claro que, ainda que houvesse
como religiões oficiais: as monarquias esse aspecto comum, existem diferen-
católicas de Portugal e Espanha, onde, ças marcantes entre os três, e uma das
aliás, a Inquisição foi muitas vezes mais razões dessa diferença está no posi-
cionamento religioso de cada um, o sos do pensamento moderno, em par-
que, diga-se de passagem, confirma o ticular as obras de Descartes e de Fran-
que dissemos acima quanto à conjun- cis Bacon. Há no pastor hussita uma
ção dos fatores políticos e religiosos, e, composição do racionalismo cartesiano
acrescentemos, culturais nessa época. e do empirismo baconiano.
Comecemos pelo mais envolvido Comenius talvez seja um dos raros
em religião dos três, Comenius, já que o (raríssimos) exemplos de que a religião
mesmo era pastor. Poderíamos citá-lo não precisa, necessariamente, afastar os
simplesmente como "protestante", mas homens. Numa época de luta religiosa
em seu caso isso seria uma simplifi- fratricida e extremamente violenta, ele
cação deturpadora^. conseguiu, principalmente devido a sua
Comenius pertencia à comunidade obra pedagógica - em que se destaca a
hussita, e isso o diferencia não só dos Didactica Magna - , a simpatia dos
católicos, mas dos luteranos e dos católicos, luteranos, anglicanos e teve
calvinistas; arriscamos dizer que os hus- pelo menos uma de suas obras - a
sitas eram "marginais" a todos os de- Janua linguarum (Porta das línguas) -
mais grupos, e isso os deixou também traduzida já naquela época para o
"marginais" politicamente, o que lhes árabe, o turco, o persa e o mongol
valeu perseguições de todos os lados, (Coménio, 1976, p.17).
mas que talvez expliquem, no caso de Mas, de qualquer modo, é possível
Comenius, o teor revolucionário, demo- encontrar limitações em sua proposta
crático e utópico, no melhor sentido educacional. Roque Spencer Maciel de
desta palavra, o que o torna um autor Barros, por exemplo, em um artigo
importante até os dias de hoje. muito simpático a Comenius, aponta,
Comenius é um dos primeiros no entanto, um "porém" talvez decisivo:
educadores que propõem uma educa- apesar de todas as preocupações para
ção adequada a cada etapa do desen- com o aluno, o professor, entretanto,
volvimento humano, e vai mais longe não o vê com autonomia suficiente para
quando admite que até os "debéis men- ser o próprio ponto de partida de um
tais" podem ser educados (Coménio, projeto educativo, o que para o edu-
1976, pp.35, 140, 175, 214). Sua pro- cador paulista só acontecerá com a
posta era o ensino de tudo a todos; chegada de Kant e de Rousseau ao
crianças, adultos, deficientes, normais, cenário da cultura ocidental (Barros,
qualquer categoria social, todos podiam 1971, p.124).
e deviam ser educados. Locke será uma espécie de tran-
Mesmo tendo em sua concepção a sição entre o educador morávio e o
idéia de "pecado original", Comenius, educador franco-suíço. Isso porque, de
no entanto, tem uma visão otimista do um lado, Locke, como o elaborador do
ser humano e vê na educação uma es- empirismo filosófico, que vê a alma
pécie de graça a mais (além da divina) humana como uma "tabula rasa", na
que pode contribuir para a salvação da qual o conhecimento só pode ser ins-
alma dos homens. É interessante este crito a partir de uma experiência que
aspecto: Comenius valoriza a educação vem do mundo externo via sentidos
tanto quanto a vê como instrumento pa- (Locke bem poderia assinar o aforismo
ra a salvação eterna. aristotélico "nada está no intelecto que
Devemos notar, também, que a antes não tenha passado pelos senti-
extrema religiosidade de Comenius não dos"), Locke, dizíamos, também espera
o impediu de acompanhar os progres- que o educador obedeça aos passos do
"desenvolvimento natural", biológico, grama" de seus estudos; nada é prede-
psicológico do educando. Talvez não terminado pelo preceptor: este apenas
seja exagero ver em Locke um "precur- conduz seu pupilo, a partir dos interes-
sor" das chamadas pedagogias ativas - ses expressos por este. É certo que é aí
ele chegou a propor que as crianças que muitos vêem o caráter utópico da
fossem alfabetizadas brincando com pedagogia rousseauniana, sem falar na
dados em que estivessem inscritas letras crítica daqueles que, mesmo admitindo-
do alfabeto (um precursor dos jogos a possível, no entanto, a consideram
educativos?). impraticável nos moldes propostos ori-
Mas, por outro lado, Locke era um ginalmente por Rousseau, já que tería-
homem de sensibilidade religiosa e, mos de ter um preceptor para cada pu-
dessa forma, ao mesmo tempo que pre- pilo, ou seja, seria uma educação total-
conizava propostas como a acima lem- mente individualizada. No mínimo dos
brada, não via nenhum problema em mínimos, elitista.
que a criança aprendesse, desde peque- Mas não há dúvida de que foi o
na, a rezar orações como o "Pai Nosso", aspecto, talvez, mais ético do que
por exemplo, ou seja, que as decorasse. pedagógico, de um total respeito àquele
De qualquer maneira, não se pode que aprende, que deu à obra de
negar que ao lançar as bases de uma Rousseau toda a importância que até
teoria do conhecimento de caráter hoje recebeu, e recebe. Há, até, um his-
filosófico-empirista, Locke, indepen- toriador da educação que intitula o
dentemente de suas possíveis contradi- capítulo sobre Rousseau, em sua Histó-
ções pessoais, criava condições para ria da educação moderna, "Rousseau:
uma compreensão cada vez maior da o Copérnico da civilização moderna"
psicologia humana (pelo menos até (Eby, 1978, p.277).
Freud...). Rousseau costuma ser considerado
Por último (mas não finalmente), "o pai do romantismo", entendido este
Rousseau. em seu sentido filosófico. É aqui que
Lembremos, de início, que Rous- reside, fundamentalmente, sua revo-
seau foi um leitor de Locke, conviveu lução copernicana, ao deslocar o eixo
com importantes representantes da da compreensão do ser humano da
Ilustração (ou Iluminismo) francesa, Di- razão para o sentimento; uma das
derot, particularmente, entre eles, e so- palavras-chave do Emílio é sentir Mes-
freu influência tanto da doutrina religio- mo quando à primeira vista Rousseau
sa católica como da calvinista (às quais parece estar seguindo um caminho es-
aderiu de uma forma um tanto quanto tritamente racionalista, ele, em última
"utilitarista"). análise, fecha sua argumentação com
É a partir desse variado tempero um sinto. É o que faz ao elaborar uma
que Rousseau vai elaborar sua concep- demonstração da existência de Deus, na
ção do homem, do mundo, da socie- parte do Emílio denominada "A profis-
dade, do universo. No que nos interes- são de fé do vigário de Savóia": depois
sa, sua obra fundamental é Emílio, ou de suas considerações, que lembram o
da educação, publicada em 1762. argumento cosmológico de Aristóteles e
Para nossa finalidade, assinalemos mesmo de Santo Tomás de Aquino, ele
que Emílio é a primeira obra sobre edu- nos desfecha um "Acredito portanto
cação em que o educando é o verda- que o mundo é governado por uma
deiro centro do processo educativo. É vontade poderosa e sábia; eu o vejo, ou
ele que, concretamente, elabora o "pro- melhor, eu o sinto e é que me importa
saber" (Rousseau, 1979, p-313; itálicos Em parte, esse conhecimento de-
nossos). senvolveu-se dentro da própria família,
Mas poderíamos citar também (e num momento em que esta também faz
são talvez afirmações mais contun- uma espécie de "encolhimento", bus-
dentes): cando garantir sua intimidade, diante de
"[...] sentimos antes de conhecer- certas forças externas, particularmente,
mos [...] (Rousseau, 1979, p-330). o Estado.
"Existir para nós é sentir. Nossa Uma outra fonte geradora do sen-
sensibilidade é incontestavelmente timento de infância localiza-se nas
anterior a nossa inteligência e tivemos obras de moralistas, homens da lei e
sentimentos antes de idéias. [...]" (id., eclesiásticos, principalmente durante o
ib., p.320). século XVII; essas obras situavam-se no
"Senti antes de pensar; é o destino contexto do grande movimento das
da humanidade [...]" (id., 1965, p. 18). reformas religiosas, nascidas no século
Mas não confundamos esse "sen- XVI.
tir" e esse "sentimento" com um mero Outrossim, tudo isso está coin-
"sensismo" (ou melhor, uma dependên- cidindo com o desenvolvimento da
cia total e mecânica da inteligência aos instituição escola ou colégio, dentro de
sentidos) ou com "sentimentalismo", no um processo de escolarizaçâo crescente
sentido novelesco (se assim podemos que virá até o século atual.
dizer) de "romântico" (o doce enlevo Dentro desse processo destaca-
dos enamorados...). Consideremos o mos, como outros exemplos de uma
que diz o filósofo Luiz Roberto Salinas reflexão que levará a um reconheci-
Fortes, para o qual, na obra de mento cada vez maior da especificidade
Rousseau, "a atividade do conhecimen- da infância e mesmo de sua autonomia,
to não é mais deixada com exclusivi- a obra de educadores como Comenius,
dade ao puro intelecto ou às impres- Locke e Rousseau; este último, em es-
sões sensíveis. No conhecimento acha- pecial, aparece como o apogeu desse
se comprometido o homem na sua reconhecimento, estabelecendo uma
totalidade e, portanto, também o seu espécie de pedagogia puerocêntrica
sentimento e suas 'paixões'. Trata-se, que permanece até os dias de hoje.
pois, de uma recusa do intelectualismo Com todas essas considerações,
e do racionalismo" (Fortes, 1989, p.34). queremos apontar a idéia de que
Bem, para não nos alongarmos - "infância" não é algo que pertença a
para respeitarmos os limites de espaço uma natureza humana dada de uma vez
que nos foram dados - , tentaremos por todas. Estamos, na verdade, diante
resumir algumas idéias a partir do que do par dilemático natureza-cultura. É a
já escrevemos acima. infância um estado natural ou uma cria-
Nem sempre o período da vida ção cultural? "Bebês", "crianças", no
humana que denominamos "infância" sentido de seres que têm certas carac-
foi visto e considerado como o vemos terísticas físicas durante um certo perío-
hoje. do cronológico de suas vidas, podem,
Esse tipo de consideração, deno- de certa forma, serem vistos como ex-
minado pelo historiador Philippe Aries pressão de fenômenos naturais (biológi-
"sentimento de infância", configura-se a cos, fisiológicos), no entanto, desde
partir do século XVI e principalmente muito cedo, no mínimo desde o mo-
durante o século XVII, atingindo uma mento do parto, para não dizer desde
espécie de culminância no século XVIII. constatada a gravidez da mulher, ou
mesmo antes, na condição de escolher, Comenius. In Ensaios sobre educação. São
aceitar, planejar a própria gravidez, essa Paulo, SP: Edusp/Grijalbo.
criança é "marcada", pela cultura, e en- Coménio, J . A. (1976). Didactica Magna.
tre essas marcas existe aquela que de- Tratado da arte universal de ensinar tudo
a
a todos, 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste
fine sua condição "infantil", "adolescen-
Gulbenkian.
te", "adulta", "madura", da "terceira ida-
Eby, F. (1978). História da educação moder-
de", "velhice", "senil", etc. Sobre isso é na: teoria, organização e práticas educa-
esclarecedor e agradável ler o primeiro a
cionais, 5 ed. Porto Alegre, RS: Globo.
capítulo do livro de Aries intitulado "As Fortes, L. R. S. (1989). Rousseau: o bom sel-
idades da vida" (Aries, 1981, pp.29-49). vagem. São Paulo, SP: FTD.
Com o que foi posto neste artigo, Rousseau, J.-J. (1965). As confissões. Rio de
cremos encontrar uma razoável "de- Janeiro, RJ: Edições de Ouro.
monstração" da historicidade da idéia (1979). Emílio ou da
a

de infância. Não sabemos se a con- educação, 3 ed. São Paulo, SP/Rio de


Janeiro, RJ-. Difel.
tribuição do historiador deve parar por
aí. Se considerarmos o que o próprio
Aries afirmou em uma entrevista - "[...]
penso que nunca segui um comporta- NOTAS
mento histórico que não tivesse como
ponto de partida uma questão posta * Os leitores de Michel Foucault poderão fazer
pelo presente" (entrevista concedida ao muitas reflexões interessantes sobre estas
Le Nouvel Observateur, publicada no palavras de Aries.
Brasil em Ensaios de Opinião n° 2 + 5;
apud Aries, 1981, contracapa) - , pode- 2 Lembremos que é no bojo desse processo
ríamos, agora, analisar um outro que se configura a importante noção de "razão
de Estado", que é por onde, por exemplo,
momento da constituição da idéia da
devemos entender os casamentos reais,
infância: o atual; até mesmo para res-
mesmo - e principalmente - os do "Barba
ponder à questão levantada nos pará- Azul", Henrique VIII, rei da Inglaterra.
grafos iniciais, mas isso implicaria um
novo trabalho... • 3 Afinal, concordamos plenamente com
Gaston Bachelard e seu "paradoxo pedagógi-
co": "[...] No que se refere ao conhecimento
REFERÊNCIAS teórico do real, isto é, no que se refere a um
conhecimento que ultrapasse o alcance de
BIBLIOGRÁFICAS
uma simples descrição - deixando também de
lado a aritmética e a geometria - , tudo o que
Aries, P. (1981). História social da criança e da
a
é fácil de ensinar é inexato. [...]" (Bachelard,
família, 2 ed. Rio de Janeiro, RJ: Guana-
1978, p.14).
bara.
(1991). Por uma história da
vida privada. In P. Aries & R. Chartier
Recebido em 1 1 / 9 8
(orgs.). História da vida privada, 3: da
Renascença ao Século das Luzes. São
Paulo, SP: Companhia das Letras.
(1994). Um historiador dile-
tante. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil.
Bachelard, G. (1978). A filosofia do não. Vol.
Bachelard da Col. Os Pensadores. São
Paulo, SP: Abril Cultural.
Barros, R. S. M. de (1971). Em torno de

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