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Érica Vidal Rotondano Psicologia do

Desenvolvimento

A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO CONCEITO DE INFÂNCIA

Érica Vidal Rotondano1

Ao contrário do que possa parecer, a infância e sua valorização nem sempre existiram,
tratando-se de uma invenção do mundo renascentista.
Obras como a do francês Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família, rompem
com uma visão universal e naturalizada da infância, mostrando que é apenas em determinado momento
histórico e em certa classe social que vai ser permitido à criança brincar e ir a escola, passando esta
etapa da vida a ser associada à pureza, dependência, inocência, carecendo de cuidados especiais,
inclusive médicos e afetivos.
A seguir, discutimos, a partir de um pequeno resumo, a citada obra de Ariès.
Até a idade medieval o sentimento de cuidado e apreço pela infância, que corresponde à
consciência da particularidade de seu mundo, diferenciando-a do adulto, ainda não existia, o que não
significa que fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas.
As taxas de mortalidade dos pequeninos era absurdamente elevada, o que contribuía para
certo desapego na relação com os que estavam a sua volta. O filicídio também era extremamente
comum, sendo praticado mesmo até durante a noite, enquanto a criança dormia na cama dos pais.

Perdi dois ou três filhos, não sem tristeza, mas sem desespero.
(Montaigne)

Nesta época, “se faziam” várias crianças para conservar algumas:

Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a


metade, e quem sabe, todos. (Carta de uma mulher a outra que acabara de
perder uma filha)

Na própria Antiguidade, crianças que nasciam com algum indício de deficiência eram
abandonadas na floresta ou jogadas despenhadeiro abaixo.
Lembremos que no próprio mito de Édipo, Laio é levado a abandonar seu filho para que este
morresse e a profecia do oráculo não se cumprisse.

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. Doutora em Saúde Coletiva, Mestra em Educação, Psicóloga e Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do
Amazonas.
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Até a Idade Média, tão logo a criança tivesse condições de cuidar-se sozinha, sem a mãe ou a
ama, superando o período de alto nível de mortalidade, em que a sobrevivência era improvável,
ingressava no mundo dos adultos e não se diferenciava mais destes. Cumpre ressaltar aqui que, deste
grupo de adultos faziam parte muitos jovens de pouca idade e outras crianças mais velhas, visto que a
média de vida da população era ainda bastante reduzida. A partir de então, a criança passava a fazer
parte de jogos, brincadeiras, profissões e armas compartilhados pelos maiores, que em termos de idade
mental portavam-se de forma muito pueril.

1. A Descoberta da Infância:

Durante muito tempo se conservou o hábito de enterrar no quintal ou no próprio jardim as


crianças mortas, tidas como tão insignificantes que não se acreditava que após a morte pudessem voltar
para importunar os vivos.
A descoberta da infância começou, sem dúvida, no século XIII. Neste período, começa a
observar-se o gosto pelos hábitos e linguagem dos pequeninos. Expressões como "belo como um anjo”,
“deste tamanhinho” começam a ser empregadas. Observa-se, inclusive, o registro das onomatopéias de
crianças.
Nossa menina e uma belezinha. É morena e muito bonita. Lá vem ela. Dá-
me um beijo lambuzado, mas nunca grita. Ela me abraça, me reconhece, ri
para mim e me chama só de maman. Eu a amo muito. Mandei cortar seus
cabelos, e ela agora usa um penteado solto. Esse penteado e feito para ela.
Sua tez, seu pescoço e seu corpinho são admiráveis. Ela faz cem pequenas
coisinhas - faz carinhos, bate, faz o sinal da cruz, pede desculpas, beija a
mão, sacode o ombro, dança, agrada, segura o queixo, enfim, ela é bonita
em tudo o que faz. Distraio-me com ela horas a fio". (Trecho de uma
correspondência)

Esse sentimento de paparicação em relação a criança já estava se enraizando tanto a partir do


século XVI que provoca reações críticas entre algumas pessoas, como Montaigne:

Não posso conceber essa paixão que faz com que as pessoas beijem as
crianças recém-nascidas, que ainda não têm nem movimento na alma, nem
forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca
permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente.

2. A Representação de Crianças nas Pinturas:

Também a arte, até o século XII, na Idade Média, desconhecia a própria infância, por não
tentar representá-la. Nos quadros, especialmente os religiosos, a única coisa que diferenciava a criança
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do adulto era o tamanho: eram representadas numa escala menor, e mesmo nos casos de nudez, o pintor
dava a criança a musculatura de um adulto.
Isso mostra que a infância era um período de transição logo ultrapassado, e cuja lembrança
era logo perdida.
Isso se deu até o final do século XIII, quando se começa a dar à criança e a sua personalidade
uma importância diferenciada. Essa mudança está intimamente relacionada ao processo de
cristianização mais profunda dos costumes.
É justamente no século XIII, XIV e XV que surge na pintura a figura de um anjo, sob a
aparência de um rapaz muito jovem – adolescente. Neste período o menino Jesus ou a Nossa Senhora
menina passam a ser representados de fato como crianças vestidas e não como adultos em miniatura
A criança nua também passa a ser representada neste período e por volta dos séculos XIV elas
começam a fazer parte também das histórias populares
Ao lado dos quadros com anjos adolescentes – especialmente o anjo da guarda - começam a
ser representadas outras crianças, que inicialmente mostram-se misturadas ao adulto, no seio da mãe,
nas liturgias ou fazendo xixi nas ruas.
É no século XV que algo bastante interessante vai ocorrer – o retrato da criança sozinha, tal
qual ela aparecia na vida real, e o putto.
O putto era uma criancinha nua, tratando-se de um ressurgimento da imagem de Eros da
Antiguidade. A nudez do putto conquistou até mesmo o Menino Jesus e outras crianças sagradas
Nas efígies funerárias o retrato infantil só surge no século seguinte, nos túmulos de seus
professores e posteriormente de seus pais.
No túmulo do pai e da mãe, toda a família era representada, inclusive as crianças vivas e as
mortas.
Só no fim do século XVI surgem os túmulos com crianças pintadas sozinhas. E assim, no
século XVII a criança viva se torna um dos modelos favoritos dos pintores, até mesmo nua, como o
putto.

3. O Traje das Crianças:

A indiferença pelo mundo da infância que existiu até o século XIII marcou também o traje de
época das crianças. Assim que ela deixava os cueiros era vestida como homens e mulheres adultos.
No século XVII, entretanto, ao menos as crianças de boa família passam a ter trajes
adequados a sua idade: passam a usar um vestido comprido, diferente dos das mulheres, aberto na
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frente e fechado com botões ou agulhetas, como uma veste eclesiástica. Por baixo dele, usam meia
grossa bem quente, uma anágua grossa e uma touca na cabeça.Isso durou ate o início do século XVIII,
quando o traje da criança se torna mais leve, mais folgado.
A roupa demarcava as diferentes etapas do desenvolvimento infantil, tal como rito, no caso
dos meninos. Eles usavam vestidos até os 4/5 anos de idade. O costume de se efeminar os meninos
pequenos, durou, inclusive até o fim da Primeira Guerra Mundial.
As meninas, ao saírem dos cueiros, permaneciam sendo vestidas como mulherzinhas, exceto
por duas fitas largas presas aos vestidos por trás dos dois ombros, pendentes nas costas, fitas que se
tornaram símbolos da infância até o início do século XVIII.
Os meninos também se tornaram os primeiros a freqüentar em massa os colégios, já no fim do
século XVI. Sem uma escolaridade própria, as meninas eram muito cedo confundidas com as mulheres.
No que se refere às crianças do povo, os filhos dos camponeses e artesãos continuaram a usar
os trajes comuns aos adultos.

4. Contribuição à História dos Jogos e Brincadeiras:

Em virtude de registros como diários, podemos saber um pouco mais sobre a vida da criança
no início do século XVII, quais eram sua brincadeiras prediletas e a que faixa etária cada uma
correspondia.
A música e a dança estavam presentes desde cedo na vida das crianças, o que pode até mesmo
explicar a existência de crianças prodígio como Mozart.
Fazia parte da diversão infantil também assistir aos jogos dos adultos, como as lutas entre
homens, lutas de cães contra touros ou ursos e corridas de texugos
As crianças misturavam-se aos adultos igualmente em festas tradicionais, como a de Natal, de
Reis e de São João, exercendo nos rituais festivos importantes papéis
Os meninos, até por volta dos sete anos brincavam. Depois, sendo nobres, deveriam entrar
para a escola, aprender a montar a cavalo, atirar e caçar, e até mesmo jogar jogos de azar a dinheiro e
participar de espetáculos teatrais. Sendo pobres, deveriam começar a trabalhar, lembrando que o
trabalho, até então, não tinha o mesmo valor que tem na atualidade, nem ocupava tanto tempo do dia.
Os jogos infantis anteriores aos 7 anos eram, na verdade, brincadeiras tomadas de empréstimo
dos adultos: atirar com arco, jogos de rimas, jogos de salão, esconde-esconde, pega-pega, adivinhações
a partir de mímica.
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As crianças muito pequeninas, por sua vez, divertiam-se com os cavalinhos de pau,
cataventos, pássaros presos por cordão e bonecas (que as mulheres de classe usavam como manequins),
quase todos imitações de coisas do mundo adulto. Cumpre ressaltar que brincadeiras que hoje são
exclusivas das crianças, naquele tempo eram protagonizadas por adultos.
No século XIII, em Paris, surgem os fantoches e o teatrinho de bonecos, que encantam não só
as crianças, mas todos os adultos.
Com o passar dos séculos, assistimos a uma crescente especialização de brincadeiras em cada
etapa do desenvolvimento e de acordo com as classes sociais.

5. Do Despudor à Inocência

Hoje todos procuram não falar de certos assuntos e nem realizar determinados gestos na frente
das crianças, especialmente os que fazem alusão a conteúdos sexuais. No entanto, esse sentimento era
completamente desconhecido na antiga sociedade.
O leitor moderno do diário do Dr. Heroar, médico de Henrique IV, que anotava a vida diária
do jovem Luís XIII, pode ficar chocado com a naturalidade com a qual se tratavam as crianças, da
grosseria das brincadeiras e da indecência de gestos cuja publicidade não chocava a ninguém.
Luís XIII ainda não tinha um ano e já dava gargalhadas quando sua ama lhe sacudia o pênis
com as pontas dos dedos, brincadeira que ele logo passou a praticar sozinho. Pela casa chamava uma
pessoa com um “ei” e levantava a túnica mostrando-lhe o pênis.
Com um ano o menino pedia a quem se aproximasse que lhe beijassem o pênis. E na frente
das visitas ele ria e levantava a roupa, sacudindo o corpo todo. As visitas, inclusive meninas pequenas,
também se divertiam com isso.
Uma brincadeira muito comum consistia em logo ao acordar perguntar quem gostaria de um
pouco de leite de seu pênis, as pessoas estendiam a mão e ele fingia que tirava leite dando dele a todos.
Freqüentemente também brincavam com ele dizendo que não possuía pênis e ele respondia
levantando-o com o dedo. Ele e a irmã, por vezes, eram colocados juntos na cama do Rei, onde se
beijavam, gorjeavam e davam muito prazer ao Rei.
As pessoas também se divertiam assistindo suas primeiras ereções. Costumavam dizer que seu
pênis parecia uma ponte levadiça, levantava e abaixava.
Com um pouco mais de um ano, seu casamento com a Infanta da Espanha é decidido e todos
lhe explicam o que isso significa. Perguntam-lhe onde está o benzinho da infanta e ele põe a mão no
pênis.
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Ele pede frequentemente para o colocarem na cama de sua ama, onde ela brincava com ele
colocando a mão por debaixo de sua túnica. Por volta dos três anos a ama o ensina que não deve mais
deixar ninguém tocar em seus mamilos e em seu pênis, pois poderiam cortá-los.
Aos quatro anos sua educação sexual já estava bastante avançada. Foi levado aos aposentos da
rainha e mostraram-lhe a cama na qual havia sido feito.
Entre os cinco e os seis anos era o delfim quem se divertia com as partes sexuais dos outros.
Mas aos sete anos o delfim se torna um homenzinho, e este gênero de brincadeira desaparece:
era preciso ensinar-lhe modos e linguagem decente.
Por volta dos 14 anos ele já não tinha mais nada a aprender sendo colocado na cama com a
sua mulher. As mulheres, aliás, casavam-se em torno dos 13 anos.
Todas estas brincadeiras faziam parte dos costumes da época e não chocavam a ninguém.
Houve um caso e uma menina que aos 12 anos escrevia versos sobre a gravidez da Rainha.
Os adultos se permitiam qualquer coisa na frente das crianças, que viam e ouviam tudo.
Primeiro acreditava-se que a criança pequena era indiferente à sexualidade, segundo porque não se
acreditava que as referências a sexualidade pudessem manchar a inocência das crianças, porque se
acreditava que essa inocência não existia de fato.
Essa não era, todavia a opinião dos educadores e moralistas religiosos do século XV. Não era
de espantar, portanto, que já no século XVI educadores e religiosos passem a proibir nos colégios
determinadas leituras consideradas duvidosas.
E finalmente, no século XVII, já era regra entre a média da população a crença na inocência
infantil e o fim da liberdade sexual perante as crianças, tal como mostram os poemas a seguir:

Essa é a idade da inocência,


A qual devemos todos voltar
Para gozar a felicidade futura
Que é a nossa esperança na terra
A idade em que tudo se perdoa
Em que o ódio é desconhecido
Em que nada nos preocupa
A idade de ouro da vida humana
A idade que desafia os infernos
A idade em que a vida e fácil
E em que a morte não e terrível
A idade para a qual os céus estão abertos
Que um respeito terno e doce
Seja mostrada a essas jovens plantas da Igreja
O céu está cheio de raiva
Daqueles que as escandalizam
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E no que tange às novas normas de educação infantil do século XVII, este outro poema pode
dar-nos a noção exata das mudanças de costume, exortando os adultos a não sufocarem a criança com
mimos:

Para bem educar vossas crianças


Não poupeis o preceptor
Mas, até que elas cresçam
Fazei-as calar quando estiverem entre adultos
Pois nada aborrece tanto
Como escutar as crianças dos outros
O pai cego acredita sempre
Que seu filho diz coisas inteligentes
Mas os outros, que só ouvem bobagens
Gostariam de ser surdos
...
Sabei, ainda, caros amigos
Que nada é mais insuportável do que ver vossos filhinhos
Pendurados na mesa com uma réstia de cebolas
Moleques que, com o queixo engordurado
Enfiam o dedo em todos os pratos
Que eles comam em outro lugar
Sob as vistas de uma governanta
Que lhes ensine a limpeza

E mostrando que a paparicação no século XVIII não era encontrada apenas entre pessoas bem
nascidas, mas também denunciada entre o povo, consta, inclusive, que as crianças pobres eram
particularmente muito mais mal-educadas, pois só faziam o que queriam, sem que seus pais se
importassem
Os educadores renascentistas compreendiam que a criança era um ser frágil e dependente,
ignorante, devendo ser educada e orientada, disciplinada muitas vezes pelo castigo. O século XVII
começa a assistir a uma inundação de teorias sobre a infância e sobre qual a melhor forma de educá-la.
No entanto, só a partir do século XX cresce a preocupação com uma educação infantil liberta
de castigos corporais e torturas em relação ao espírito do infante, com um estudo mais científico e
menos religioso/moral desta etapa do desenvolvimento. Surge uma tendência para descrever
comportamentos típicos de cada faixa etária e organizar etapas de desenvolvimento: o comportamento
da criança passa a ser mensurado e comparado com as de sua mesma faixa etária.
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No início do século XX, inclusive, Freud choca a sociedade com suas idéias ousadas acerca
do desenvolvimento e da sexualidade infantil. Ele era partidário da idéia de que os acontecimentos da
infância eram os principais determinantes de distúrbios da personalidade adulta.
Fruto do século XX, a Psicologia do Desenvolvimento científica é uma das expressões da
recente preocupação com a criança, vista muitas vezes na história humana como inferior, desprovida de
direitos, incapaz, um objeto que pode ser usado pelo adulto como este bem entender.

BIBLIOGRAFIA

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

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