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Passos, E. H. & Souza, T. P.

“Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas””

REDUÇÃO DE DANOS E SAÚDE PÚBLICA: CONSTRUÇÕES


ALTERNATIVAS À POLÍTICA GLOBAL DE “GUERRA ÀS DROGAS”*
HARM REDUCTION AND PUBLIC HEALTH: BUILDING
ALTERNATIVES TO GLOBAL POLICY OF “WAR ON DRUGS”

Eduardo Henrique Passos


Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

Tadeu Paula Souza


Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil

RESUMO
A Redução de Danos (RD) vem se consolidando como um importante movimento nacional, impulsionando a
construção de uma política de drogas democrática. Neste artigo destacaremos o modo como a RD se constituiu
frente aos embates com as forças totalitárias da política global de “guerra às drogas”. Enfocaremos tanto aspectos
internacionais quanto aspectos nacionais que confluíram para a construção de uma política antidrogas. É dentro
desse cenário político que a RD vem se consolidando como uma outra política de drogas possível. Analisaremos
como a inclusão dos usuários de drogas em arranjos coletivos de gestão é uma importante direção clínica e política
do movimento da RD, definindo uma nova proposta de atenção em saúde. A partir desses espaços coletivos de cui-
dado, os usuários de drogas puderam tecer uma rede nacional de cooperação e de produção de uma luta comum.
Palavras-chave: políticas públicas; saúde pública; uso de drogas.

ABSTRACT
Harm Reduction (HR) has been consolidated as an important national movement, promoting the building of a
democratic drug policy. In this article we will highlight how HR has been shaped in the face of clashes with to-
talitarian forces of the “war on drugs” global policy. We will focus on both international and national aspects that
came together to build an anti-drug policy. It is within this political scenario that HR is consolidating itself as a
different and feasible drug policy. We intend to show the extent to which the inclusion of drug users in collective
arrangements of management is an important clinical and political direction of the HD movement, defining a
new proposal for health care. From these collective spaces of care, drug users have been able to weave a national
network of cooperation and production of a common struggle.
Keywords: public policies, public health, drug use

A Redução de Danos (RD) foi adotada como es- quando, a partir de 2003, as ações de RD deixam de ser
tratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS
município de Santos-SP no ano de 1989, quando altos e se tornam uma estratégia norteadora da Política do
índices de transmissão de HIV estavam relacionados Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
ao uso indevido de drogas injetáveis (Mesquita, 1991). Álcool e Ouras Drogas e da política de Saúde Mental.
Proposta inicialmente como uma estratégia de prevenção Esse processo de ampliação e definição da RD
ao HIV entre usuários de drogas injetáveis – Programa de como um novo paradigma ético, clínico e político
Troca de Seringas (PTSs) – a Redução de Danos foi ao para a política pública brasileira de saúde de álcool e
longo dos anos se tornando uma estratégia de produção outras drogas implicou um processo de enfrentamento
de saúde alternativa às estratégias pautadas na lógica e embates com as políticas antidrogas que tiveram suas
da abstinência, incluindo a diversidade de demandas bases fundadas no período ditatorial.
e ampliando as ofertas em saúde para a população de A construção de uma política de Redução de Da-
usuários de drogas. A diversificação das ofertas em saúde nos será analisada a partir da interface entre o processo
para usuários de drogas sofreu significativo impulso nacional de abertura política e a construção de uma

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política global de “guerra às drogas”. O lento processo inimigos transnacionais como são as “drogas” e o
de abertura política no Brasil foi acompanhado de rear- “terrorismo”, ampliando seu alcance temporal e espa-
ranjos macropolíticos que possibilitaram a manutenção cial, tornando seu estado cada vez mais permanente. A
de práticas autoritárias no interior do próprio Estado aposta na guerra como forma de manter a ordem social
Democrático. As políticas de drogas passaram a assumir acaba por torná-la um estado contínuo nas sociedades
uma posição estratégica nesta reforma estatal, impondo contemporâneas, ao invés de um estado de exceção.
impasses para o amplo processo de democratização e A amplitude transnacional do problema gerado
restrições para a atenção equânime, integral e universal pelo tráfico de drogas confere a essa guerra um caráter
as pessoas usuárias de drogas. difuso, ao mesmo tempo em que intensifica o controle
No cenário nacional, vivemos na década de 80, o social, identificando as drogas como a encarnação do
fracasso do, então, “milagre econômico”, o alto índice mal. No campo da guerra global às drogas toda hu-
da inflação, a explosão demográfica nos grandes centros manidade pode, por um lado, unir-se contra o mal e,
urbanos, aumentando os cinturões de pobreza nas perife- por outro lado, qualquer um pode ser um inimigo da
rias e favelas. A falência do modelo econômico nacional humanidade.
e o desemprego conjuntural vieram acompanhados do A guerra às drogas se tornou ao mesmo tempo
aumento do mercado ilícito. Podemos agregar a esse pro- um exercício de controle social e uma estratégia para
cesso econômico o sucateamento da educação pública e a ampliação da economia neoliberal a partir do exercí-
o aumento da violência urbana. É dentro desse contexto cio do poder e da violência. A economia neoliberal se
nacional que, no final da década de 80 e início da década fortalece através da intensificação de uma economia
de 90, o tráfico de drogas, sobretudo de cocaína, ganha bélica, já que a lógica de guerra às drogas e a lógica de
projeção tanto no mercado nacional quanto no mercado consumo não são lógicas opostas, elas se alimentam e
internacional (Batista, 1998, 2001). se fortalecem mutuamente.
As favelas e periferias urbanas passam a ocupar A lógica de guerra às drogas busca combater
um lugar estratégico para o forte mercado de drogas, a produção da substância, dividindo os países entre
recrutando jovens pobres para o tráfico. As disputas produtores, exportadores e consumidores, reprimindo
por pontos de venda de drogas entre facções inimigas a oferta dos países produtores, a procura dos países
e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao consumidores e a exportação nas fronteiras, portos e
mercado de drogas o mercado de armas, dando início aeroportos. Tal estratégia se baseia numa lógica ge-
a uma verdadeira guerra civil que se encontra inserida ográfica e desloca para os países periféricos a fonte
num “ciclo global de guerras”. causadora dos problemas gerados pelo trafico de dro-
No cenário internacional, as drogas - e posterior- gas. Tal estratégia bélica e econômica não inclui como
mente o terrorismo - passaram gradativamente a subs- problema a ser enfrentado a produção de subjetividade
tituir o comunismo como figura ideológica de ameaça consumista que movimenta o mercado internacional de
à democracia mundial (Batista, 2001; Negri & Cocco, drogas e que caminha de mãos dadas ao processo de
2005). A emergência da política global de “guerra às transnacionalização da economia de mercado.
drogas”, liderada pelos EUA, ampliaram e fortaleceram Nas sociedades de consumo os produtos são intan-
a economia bélica, fomentando práticas totalitárias em gíveis, como uma “sensação de bem-estar”, um “estilo
diferentes pontos do planeta, chegando a intervenções de vida”, uma “identidade pré-fabricada”. O marketing
militares diretas, como as ocorridas na Bolívia, no e os meios de comunicação investem, sobretudo, na
Panamá e na Colômbia (Karam, 2003). produção desejante como motor da economia. Dentro
A “guerra às drogas” e a “guerra ao terrorismo” desse contexto, as drogas se inserem numa rede de
trouxeram um novo sentido para o conceito de guerra, produção de substâncias que se agencia a uma ampla
na medida em que essas guerras passam a lidar com um rede de produção de subjetividade. As drogas permitem
“objeto” global que torna cada vez mais imprecisa a dis- acessar de modo prático, rápido e de qualquer lugar a
tinção entre “conflitos externos” e “segurança interna”. rede de produção de subjetividade consumista.
Enquanto as ditas “classes perigosas” eram o alvo da O tráfico de drogas não pode se reduzir à produção
segurança interna, os conflitos externos tinham como da substância, mas deve se estender ao plano de produ-
alvo de intervenção os ditos “inimigos”. Entretanto, ção de subjetividade consumista. Os produtos (drogas)
no mundo contemporâneo, as ameaças externas e as representam uma pequena parte do processo de produ-
ameaças internas tornam-se cada vez mais híbridas e, ção do mercado transnacional de drogas que, apesar de
a um só tempo, alvos de uma guerra globalizada (Negri ser uma prática ilícita, se beneficia e se fortalece dos
& Hardt, 2005). meios lícitos de produção de subjetividade. Da mesma
No atual estado de guerra global, as guerras forma, as favelas representam um pequeno ponto den-
passam a ser declaradas a inimigos não geográficos, tro de uma ampla rede transnacional, que se constitui

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como um plano que articula produção lícita e produção economia e do avanço da lógica neoliberal, ampliando
ilícita através de um diversificado cardápio de meios o poder repressivo do Estado-Mínimo e o poder de
de comunicação. Entretanto, ao focalizar esforços em governo do mercado transnacional sobre os próprios
combater a produção das drogas, as estratégias policiais Estados Nacionais. Estabelece-se uma aliança entre ter-
e militares assumem a função de controle social das ca- mos aparentemente contraditórios, mas que comungam
madas pobres, pois passam a localizar geograficamente de interesses comuns, de modo a preservar a lógica de
um processo de produção transnacional: responsabili- mercado. É neste cenário macropolítico que as drogas
zar as favelas e os países periféricos por um mercado tornaram-se um mal a ser eliminado pelo Estado e, ao
que é movimentado por uma lógica de consumo que é mesmo tempo, um produto a ser altamente consumido
acionada pelos países do primeiro mundo. pela classe média e alta.
No Brasil, práticas da ditadura, como a tortura, É nesse mesmo cenário, de constituição de uma
passaram a ser exercidas sobre comunidades pobres política de guerra às drogas, que ocorre a primeira ação
mediante uma intensificação do poder policial. Sobre de Redução de Danos no Brasil, em 1989, no município
a justificativa de defesa da democracia e combate às de Santos-SP. Santos vivia, nesse momento, um das ges-
drogas, forças antidemocráticas constituíram uma tões municipais mais promissoras para a implementação
complexa rede bélica no cerne da própria democracia. do Sistema Único de Saúde (SUS) através de práticas
Mais do que um combate às drogas, esse arranjo vem concretas que animariam o sentido de saúde democrá-
garantindo um exercício de combate às próprias forças tica. Apesar desse cenário, aparentemente favorável a
democráticas emergentes. Não estamos falando de práticas progressistas de atenção e gestão em saúde, o
guerra às drogas, e sim de uma repressão generalizada então secretário municipal de saúde, David Capistrano,
à própria democracia, um “Estado de Guerra” no cerne e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio
do “Estado Democrático de Direito” que se apoia ora Mesquita, sofrem uma ação judicial por adotarem a
sobre o eixo drogas, ora sobre o eixo terrorismo. estratégia de Redução de Danos, acusados de incentiva-
É dentro dessa lógica que, em 1998, instituiu-se rem o uso de drogas. Nessa época, Santos era conhecida
a “Secretaria Nacional Antidrogas, que, na sua origem, como “capital da AIDS”, cidade portuária, a maior da
subordinava-se à Casa Militar da Presidência da Repú- América Latina, lugar de trocas e encontros de todas
blica, transformada em 1999, sem perder seu caráter as ordens, ponto estratégico do tráfico internacional de
militarista, em Gabinete de Segurança Institucional do drogas. Dados epidemiológicos indicavam que 51%
Presidente da República” (Karam, 2003, p.79). dos casos de contaminação de HIV/AIDS estavam re-
O exercício de poder gerado no embate entre lacionados ao compartilhamento de seringa para o uso
forças democráticas e forças totalitárias constituiu de drogas injetáveis (Mesquita, 1991).
um jogo de contradições entre uma Constituição que A ação judicial que David Capistrano sofreu não
garante direito a liberdades individuais e uma lei do será tomada como um episódio de uma história pessoal,
Direito Penal que impede que as pessoas usem certas mas sim como um acontecimento político que evidencia
substâncias. Cabe destacar que a lei 6368/762 foi profe- o encontro entre as forças conservadoras que sustentam
rida em pleno período ditatorial e seu caráter autoritário uma política antidrogas e as forças progressistas que
não foi reformulado a partir da Constituição de 1988. adotavam a RD como uma estratégia em defesa da vida
A contradição do próprio arcabouço jurídico remete, e da democracia. A retaliação judicial e policial sofrida
antes de tudo, à conciliação sinistra entre democracia por essa secretaria municipal de saúde pôs em evidência
e totalitarismo sobre o eixo das drogas. a contradição da própria máquina estatal, na medida em
A repressão ao tráfico de drogas que se exerce que o poder judiciário suspende o direito constitucional
de forma mais violenta nas zonas de maior pobreza de acesso universal à saúde. É dentro deste enfoque, da
revela uma “falsa oposição” criada entre Estado Nação problematização entre políticas totalitárias e políticas
e Capitalismo Globalizado, que se atualizam sobre o democráticas que coexistem e compõem o funciona-
eixo drogas. O desafio é poder captar o momento em mento da máquina estatal, que iremos situar os embates
que as aparentes oposições determinam uma aliança travados pela RD no Brasil.
entre o avanço da lógica de consumo produzido pelo A restrição que sofre a RD no Brasil permite não
capital mundial e os modos de sujeição dos Estados só identificarmos atitudes arbitrárias, como a própria
Nacionais, ou seja, uma estranha e paradoxal aliança contradição do arcabouço jurídico do Estado. Essa ação
entre repressão e liberação. inconstitucional não pode ser explicada unicamente a
O modelo repressivo da política estatal contra as partir da Lei 6368/76, mas sim através dos meios pelos
drogas evidencia um modo de operar no qual o Estado quais o autoritarismo mantém práticas que limitam o
se vê às voltas com os efeitos da própria globalização da exercício da democracia.

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O paradigma da abstinência: articulação o saber criminológico, definiu uma forma, um enquadre,


entre justiça, psiquiatria e moral religiosa um “estrato” (Deleuze, 1988; Foucault, 1993) para o
usuário de drogas.
A tarefa de entender os embates recorrentes entre A histórica articulação entre poder psiquiátrico e
RD e os aparelhos de Estado acaba nos colocando diante direito penal se consolidou ao logo das décadas e pode
do conflito histórico que essa estratégia vem travando ser entendida como uma das forças contrárias à imple-
com a política antidrogas, legitimada judicialmente tal mentação da Redução de Danos no Brasil. A produção
qual a Lei 6368/76 vigente até o ano de 2006, quando histórica do estigma do usuário de drogas como uma
entrou em vigor a nova lei de drogas, 11.346/06. Expor figura perigosa ou doente nos permite compreender
as relações de poder que se teceram historicamente para parte dos problemas que a RD passa a enfrentar quan-
a produção de uma política de guerra às drogas exige do essa se torna um método de cuidado em saúde que
que realizemos uma análise micropolítica da política acolhe as pessoas que usam drogas como cidadãos de
antidrogas objetivando apreender seus dispositivos direitos e sujeitos políticos.
capilares de reprodução do paradigma da abstinência. A construção das políticas de saúde para usuários
Em outras palavras, mudaremos o objeto de análise: de drogas centradas no hospital psiquiátrico demarca
desviaremos o olhar antes lançado sobre o Estado e pas- uma significativa interferência do Direito Penal sobre
saremos a focalizar os dispositivos de poder (Deleuze, os procedimentos clínicos, como também uma aproxi-
1988, 1996; Foucault, 1988) que se consolidam junto mação entre práticas jurídicas e práticas médicas. As
da justiça e da Lei. É nesse ponto que encontramos a diversas retaliações judiciais que ações de RD vêm
proximidade entre a política antidrogas e o paradigma sofrendo no Brasil apontam para um embate que não
da abstinência. Veremos como a abstinência se torna um se reduz às limitações impostas pelo Direito Penal, mas
eixo articulador entre a justiça, a psiquiatria e a moral apontam para a delimitação imposta ao campo da saúde
religiosa que, em sua articulação, definem uma política constituída entre a psiquiatria e a justiça em torno do
do tratamento para usuários de drogas. paradigma da abstinência. Logo, compreender essas
Por paradigma da abstinência entendemos algo relações de poder obriga-nos a situá-las na articulação
diferente da abstinência enquanto uma direção clínica entre as práticas discursivas da psiquiatria e as práti-
possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da cas não-discursivas das instituições de confinamento.
abstinência entendemos uma rede de instituições que O enfrentamento da RD não é só com o discurso da
define uma governabilidade das políticas de drogas e lei, mas também com as práticas não-discursivas das
que se exerce de forma coercitiva na medida em que instituições disciplinares. Em última instância, pode-se
faz da abstinência a única direção de tratamento possí- dizer que a RD coloca em questão as relações de força
vel, submetendo o campo da saúde ao poder jurídico, mobilizadas sócio-historicamente para a criminalização
psiquiátrico e religioso. e a patologização do usuário de drogas, já que coloca em
A articulação entre criminologia e psiquiatria no cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas
Brasil vem de um diálogo iniciado na segunda metade sem que os usuários de drogas sejam identificados aos
do século XIX, numa interlocução direta com o Direi- estereótipos de criminoso e doente: pessoas que usam
to Penal. Uma diferença entre essas duas disciplinas drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não
consiste no fato de a criminologia surgir no interior querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas,
do Direito Penal, enquanto a “psiquiatria se insurge pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamen-
do exterior, disputando com o direito penal o papel de te parar de usar drogas.
gestora do criminoso, através de uma relação, progres- O Direito Penal e a psiquiatria explicam parte do
sivamente mais íntima, entre crime e doença mental” poder que submete os usuários de drogas. O poder dis-
(Rauter, 2003, p. 41). ciplinar opera por meio da normalização das condutas
Apesar das alianças, na história do Brasil, a rela- desviantes, em que o saber médico e o criminológico
ção entre criminologia e psiquiatria não foi harmônica privilegiam como objeto de intervenção o criminoso,
e complementar. A ambição da psiquiatria encontrou o louco, o delinquente, o “drogado”. Desse ponto de
resistência no interior do próprio Direto Penal, prin- vista, poderíamos facilmente concluir que os embates
cipalmente no século XX. Embora a psiquiatria tenha da RD acontecem, exclusivamente, contra os disposi-
conquistado um espaço dentro do Direito Penal, os tivos disciplinares: a prisão e o manicômio. Porém não
juristas determinaram um limite para essa atuação. É é somente dentro das prisões e dos hospícios que os
dentro deste jogo de poder que o usuário de drogas ora usuários de drogas são confinados hoje em dia. As ditas
se vê perante o poder da criminologia, ora diante do Comunidades Terapêuticas e Fazendas Terapêuticas
poder da psiquiatria; ora encarcerado na prisão, ora trazem outro elemento que não exclui a disciplina, mas
internado no hospício. O saber psiquiátrico, bem como a complementa: a moral religiosa.

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A moral cristã compõe, junto com a justiça e a de estratégias de mobilização e um sentido de luta para
psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finali- as ações de RD. O sentido de luta, comum à RD, coloca
dade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário um novo desafio para esse dispositivo. O objetivo da RD
da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e não pode mais ser reduzido à prevenção de DST/AIDS,
da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral da mesma forma que o objeto de intervenção desse mo-
religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do vimento não se reduz a um confronto com a justiça.
prazer ao mal. O prazer da carne, que frequentemente
tem sido associado ao uso de drogas, é objeto histórico Produção e gestão do comum
de intervenção do poder pastoral e, atualmente, se as-
socia ao poder disciplinar; mas a gênese desse poder é Em 1994 boletins do Ministério da Saúde indi-
muito mais antiga do que a própria disciplina. O poder cavam que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam
da Igreja sobre os usuários de drogas se justifica muito associados ao uso indevido de drogas injetáveis (Mar-
mais por uma problemática do “prazer” do que, exclu- ques & Doneda, 1998). Essa realidade epidemiológica
sivamente, pela problemática da “razão”. Enquanto a exigia que a RD deixasse de ser uma ação pontual do
psiquiatria e a criminologia produziam verdades sobre município de Santos e se tornasse uma ação dentro da
a razão e práticas de “cura” do anormal, fosse louco política nacional. A construção dessa política passou
ou criminoso, a moral cristã atém-se aos desvios da por vários desdobramentos e interfaces em função do
“carne”, aos prazeres apetitosos. conjunto de instituições que se construíram ao redor do
A problematização moral do uso de drogas se tema AIDS/drogas.
assenta em certa medida em um conjunto de regras mo- Nesse mesmo ano (1994) iniciou-se um projeto
rais de fundamento cristão, naquilo que o cristianismo de articulação política em torno da interface AIDS e
historicamente definiu como conduta frente aos prazeres Drogas: “Projeto Drogas” do Programa Nacional de
da carne. Coube ao cristianismo situar o prazer sob signo DST/AIDS. Tal projeto contava com o apoio político
do mal e da morte, produzindo, segundo Foucault, uma e financeiro da Organização das Nações Unidas, por
inversão histórica na passagem da Antiguidade para a meio do Programa das Nações Unidas para o Contro-
Era Cristã. Dessa forma, o uso dos prazeres se tornou le Internacional de Drogas (UNDCP)3. Esse projeto
objeto de interdição moral e “poder-se-ia acrescentar buscou articular, em torno do tema drogas, a Coorde-
o alto valor moral e espiritual que o cristianismo, nação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho
diferentemente da moral pagã, teria atribuído à absti- Federal de Entorpecentes - CONFEN - do Ministério
nência rigorosa, à castidade permanente, à virgindade” da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação
(Foucault, 1994, p. 17). Trata-se de uma malha fina, e do Desporto (Marques & Doneda, 1998). A RD foi
um poder capilar que, antes de fundar as práticas de inserida em diferentes programas e secretarias que
tratamento, fundou a própria individualidade pecadora. criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de
Nesta semiótica, o prazer passa a ser identificado a um intervenção estadual e municipal, principalmente a
espaço interior, regido pelos pensamentos, sentimentos: criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs).
intenções obscuras da alma. O espaço interior do desejo, Como na Holanda, onde foram criadas as ações de
a vigília e o pecado original redefiniram a própria sub- troca de seringa entre usuários de drogas injetáveis, os
jetividade e as práticas que passaram a reger o prazer: PRDs foram fundados em muitos casos por usuários
confissão, retiro, punição. O poder pastoral sobre a carne de drogas responsáveis tanto pelos processos de gestão
atravessou séculos e constitui o mais longo diagrama quanto pelos processos de atenção, sendo denominados
de poder que Foucault pôde estabelecer. de Redutores de Danos.
É dentro deste eixo de problematização e produ- Ao inserir, no cenário nacional, um conjunto de
ção de verdades sobre o corpo e sobre o prazer que a estratégias de Redução de Danos, o PN - DST/AIDS
RD abre um novo campo de possibilidades clínicas, po- criou um jogo de articulações e tensões no interior da
líticas e existenciais. Sendo assim, não podemos reduzir própria máquina estatal. É esse jogo de tensões e arti-
os desafios que a RD vem enfrentando à sua dimensão culações que ocorreram no interior da máquina estatal
de embate com a Lei. A ação judicial que o Secretário que nos permite acompanhar como a RD vai aos poucos
de Saúde de Santos sofreu revelou um embate com as deixando de ser uma estratégia de prevenção as DST/
práticas de sujeição dos usuários de drogas, relações de AIDS e vai se tornando um novo paradigma, na medida
saber-poder que constituem na contemporaneidade o em que inclui os usuários de drogas como protagonis-
paradigma da abstinência, tecido entre o Direito Penal, tas dessas ações. Os investimentos do PN-DST/AIDS
poder psiquiátrico e a moral cristã. possibilitaram a criação de outro plano de sustentação
O encontro com essas relações de poder, construí- da RD, não mais local, mas sim nacional. A RD tornou-
das em torno do paradigma da abstinência, exige a criação se uma política de governo com pretensão de vir a ser

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política de Estado, encontrando forte tensionamento situada entre as ações locais disparadas pelas ONGs
com outros setores da máquina posicionados a favor de (associações) e a máquina de Estado, criando um atra-
uma política antidrogas. Apesar dos embates no âmbito vessamento entre as mesmas.
federal, foi na esfera municipal, no plano concreto das Mais importante do que localizar as instâncias de
ações que a RD sofreu as maiores restrições. Dessa formulação das ações de RD é analisar o modo como
forma, mesclavam-se um plano de articulação federal essas passaram a serem apropriadas pelos usuários de
e um plano municipal. drogas, gerando um grande efeito de mobilização (Mi-
Diante dessa realidade política, foi fundada, no nistério da Saúde, 2003b). A rede nacional de redutores
ano de 1996, a Associação Brasileira de Redutores de de danos passou a exercer um papel importante de
Danos (ABORDA), com a função de capacitar e arti- mobilização e articulação nacional por uma nova po-
cular os Programas de Redução de Danos. A ABORDA lítica de drogas. Mobilizadas em redes, as associações
mobilizou redutores de danos e usuários de drogas para passaram a lutar pelos direitos dos redutores de danos
que se organizassem politicamente, fundando diversas e dos usuários de drogas. Nesse contexto, algumas
ONGs pelo Brasil. associações foram fundadas por redutores de danos
A direção política da ABORDA foi ao encontro que trabalhavam em PRDs e passaram a se organizar
da necessidade dos redutores de danos de alcançarem politicamente, enquanto outras foram fundadas por
maior autonomia para gerir as políticas de RD, pois os usuários de drogas que lutavam mais abertamente pela
mesmos não encontravam ambiente favorável para se descriminalização do usuário de drogas dentro de uma
expressarem dentro dos PRDs. Por serem, inicialmente, proposta antiproibicionista 4.
aparelhos estatais, os PRDs encontravam-se inseridos As ONGs desempenharam um importante papel
num contexto institucional que impunha obstáculos à na história da RD no Brasil, já que, a partir delas, os
nascente militância dos redutores de danos e usuários redutores de danos puderam construir uma rede coop-
de drogas. A militância política forçou a criação de es- erativa e democrática. Entretanto, a criação das redes de
paços de gestão “exteriores” ao próprio Estado, como redução de danos não representou um desatrelamento
as associações nas quais os usuários de drogas viam a da máquina estatal. Ao invés disso, a mobilização dos
possibilidade de não serem identificados a doentes ou redutores de danos gerou uma estranha e paradoxal
criminosos (Ministério da Saúde, 2003b). A ABORDA relação com o Estado: receber financiamento do Estado
criou junto com as ONGs um método de inclusão das e, ao mesmo tempo, conjurar a política antidrogas ainda
minorias, que foi ativado, principalmente, pelos redu- hegemônica na máquina estatal.
tores de danos. Essa relação paradoxal da RD com o Estado leva à
A ABORDA, por meio de encontros nacionais e construção, na prática concreta dos redutores de danos,
redes de interação virtual (internet), colaborou na fun- de um novo sentido de política pública, não mais iden-
dação e articulação das ONGs. Dessa forma, as diversas tificada à política de Estado ou política de governo. Tal
ONGs, dentre elas a própria ABORDA, teceram uma sentido de público se expressa doravante como gestão
rede nacional de redutores de danos que contava com do comum (Benevides & Passos, 2005).
a participação tanto daqueles que atuavam em ONGs O plano de articulação política criada pelas as-
quanto dos que vinham dos PRDs que não fundaram sociações permitiu que os embates locais fossem in-
ONGs (Ministério da Saúde, 2003b). Redutores de seridos num circuito de trocas e mobilizações através
danos, travestis, usuários de drogas, profissionais de de redes nacionais. A inclusão do usuário de drogas
saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes e pes- nos serviços de saúde não só como um paciente, mas
quisadores criaram uma gestão democrática através de como ator corresponsável pelas políticas, vem sendo o
redes abertas de interação e cooperação, evitando que os desafio da RD. Nas associações de redutores de danos,
PRDs ficassem isolados e restritos a um contexto local. os usuários de drogas participam como agentes políticos
A consolidação dessa rede fez emergir um outro plano colaboradores na produção de redes de cuidado e de
de produção das políticas de RD, que não se reduzia comunicação, criando uma mobilização coletiva, uma
nem ao plano e local, nem ao plano estatal e federal. A gestão do comum.
tecedura dessa rede possibilitou a inclusão de grupos O que estamos chamando de comum? Tomemos,
minoritários num circuito de relação, em que se passou então, o conceito de “multidão” de Negri e Hardt
a trocar muito mais do que seringas descartáveis. O (2005). Segundo os autores, o conceito de multidão
método da RD foi, aos poucos, se descolando do foco se distingue tanto do de povo quanto do de massa. O
específico de prevenir, efetivado através do dispositivo povo preservaria um caráter identitário e unitário do
de troca de seringas, e assumiu objetivos mais amplos, governo. Uma certa tradição da filosofia política define
acionados por novos dispositivos de gestão e atenção. que somente o que é uno pode governar, seja o monarca,
A cooperação em rede fundou uma plataforma política o partido, o povo ou indivíduos. Para essa corrente

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filosófica, sujeitos sociais que não são unificados, mas (Campos, 2000, p. 42). Como exemplo, nas associa-
múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ções de RD os usuários de drogas podem colaborar na
ser governados. produção de projetos, construir projetos, estabelecer
A multidão, ao contrário, é uma multiplicidade contratos, votar e se candidatar para a direção das ins-
composta por diferenças singulares que encontram na tituições em que participam.
gestão do comum um novo modo de governo. A RD in- Observa-se na experiência de gestão da RD que
dicou uma forma de governo da multiplicidade, lutando muitos usuários de drogas abandonam ou diminuem o
pela manutenção da heterogeneidade que se encontra uso de drogas quando experimentam um contexto no qual
numa multidão e ao mesmo tempo pela consolidação de se sentem acolhidos. Além disso, o uso abusivo pode
um compromisso comum, sem reduzir o usuário de dro- comprometer a execução de compromissos assumidos
gas a formas identitárias como o doente ou criminoso. coletivamente: seja o trabalho de campo, acessar outros
Através das associações, os usuários de drogas foram usuários de drogas em situações de vulnerabilidade,
incluídos numa gestão comum organizada em rede. participar de uma reunião nos conselhos municipais
Segundo Negri e Hardt (2005), a mobilização ou nas assembleias da associação de que faça parte. A
do comum segue dois aspectos: um aumento intensivo mobilização introduziu os usuários de drogas em redes
das forças democráticas na esfera local e um aumento locais de gestão comum, nas quais o consumo de drogas
extensivo das lutas, quando passam a se comunicar com é constantemente ressignificado por acordos coletivos.
outras lutas, constituindo uma organização em rede. Podemos observar, a partir da RD, uma construção
O modo como o movimento da RD foi se orga- coletiva e comum para as experiências com as drogas,
nizando permitiu que singularidades locais fossem in- indicando uma inseparabilidade entre atenção e gestão.
seridas numa rede de interação nacional e internacional. Mediante esse modo de organização, além de participa-
Podemos dizer que as associações de redução de danos rem na gestão das políticas, muitas pessoas cessaram ou
são como nós de uma rede que consolidou um movimen- diminuíram o uso de drogas: das pessoas que usavam
to social de grupos minoritários, dando passagem para drogas abusivamente, 70% dos que se tornaram redu-
uma gestão do comum baseada na diferença, articulando tores de danos deixaram de ser dependentes químicos
com outros movimentos sociais: luta antiproibicionista, (Lancetti, 2006). A RD evidenciou que o governo de uma
luta dos portadores de HIV, luta dos gays, travestis e associação, por exemplo, e o governo de si são instâncias
profissionais do sexo e luta antimanicomial. A RD se que se distinguem, porém não se separam.
coloca como uma luta que comunica e, sobretudo, cria Segundo Campos, o método da cogestão realizado
uma plano de comunicação entre lutas. em Espaços Coletivos nos permite pensar uma copro-
Nesse modo de organização, o movimento de RD dução de coletivos e de sujeitos autônomos. “Espaços
propôs e construiu uma gestão do comum exercida por existenciais contíguos, interagindo uns sob os outros,
uma multiplicidade, não reduzindo as singularidades a criando zonas autônomas, mescladas e de mútua in-
um governo unitário: uma gestão de grupos que lutam fluência, a que os Sujeitos estariam constrangidos a
pela expressão das diferenças, constituindo redes de desvendar e a lidar para seguir vivendo” (Campos,
mobilização e comunicação. 2000, p. 68). A gestão comum, ou cogestão, produz
O comum é este plano de comunicação entre lutas uma inseparabilidade entre coprodução de coletivos e
fazendo da gestão do comum o acordo que se tece entre coprodução de sujeitos autônomos, o que nos traz uma
os que estão em luta. Pensar a dimensão pública das importante indicação para analisarmos a inseparabili-
políticas de drogas como gestão do comum é afirmar dade entre governo comum e governo de si enquanto
a um só tempo que a prática democrática no campo da prática ou cuidado de si.
saúde é a condução comunitária da gestão e também a A criação de uma rede coletiva e participativa
gestão que se faz do que nos é comum, isto é, o comum produziu efeitos clínicos altamente significativos.
como agente da gestão e o comum como objeto da Chama a atenção, nesse caso, que a RD não impôs aos
gestão; o comum que gere e é gerido a um só tempo. usuários, como condição de participação coletiva, parar
de usar drogas. No entanto, cabe ressaltar que o método
O método da cogestão e o cuidado de si da RD propõe certas regras de conduta que devem ser
pactuadas coletivamente.
A mobilização em rede introduziu os usuários de Enquanto a abstinência está articulada com uma
drogas em diversos dispositivos de gestão, nos quais era proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a
possível compartilhar interesses singulares e construir proposta de reduzir danos possui como direção a pro-
diretrizes comuns. A gestão do comum é um modo de dução de saúde, considerada como produção de regras
operar com os efeitos gerados pela mobilização, é um autônomas de cuidado de si. No caso da RD, a própria
método de cogestão realizado em Espaços Coletivos abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, porém

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mesmo nesses casos trata-se de uma meta pactuada, e Paradoxos e desafios


não de uma regra imposta por uma instituição. As regras
da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria A partir de 2004, muitas associações tiveram
experiência e não se exercem de forma coercitiva, en- suas ações paralisadas e algumas acabaram pela falta
quanto regras transcendentais. de financiamento. O movimento da RD mostrou uma
A corresponsabilidade emerge como efeito da certa fragilidade e dificuldade de se manter ativo fren-
coprodução de saúde, uma vez que as regras de conduta te às descontinuidades e instabilidades das políticas
são criadas na situação de um encontro e a partir dos de financiamento do PN – DST/AIDS (Ministério da
vínculos que esse encontro é capaz de instaurar. Muitas Saúde, 2003b). Apesar de as associações terem ativado
vezes, os redutores de danos propõem determinadas importantes ações na consolidação desse movimento,
regras de conduta como, por exemplo, substituir crack a estreita relação com as políticas estatais eram mar-
por maconha, ou substituir a via injetável pela inalável. cadas por processos de terceirização e precarização do
Entretanto, o processo de corresponsabilização depende trabalho em saúde. Eis aí um jogo paradoxal diante do
do modo como os usuários de drogas se apropriam dessa qual se encontra o movimento da RD.
regra, depende das atitudes que começam a emergir desse Esses acontecimentos representaram uma frag-
encontro, gerando muitos desdobramentos possíveis, mentação da rede de redução de danos. Porém, o fim dos
pois são muitos os dispositivos que a RD dispõe para financiamentos a associações de RD foi antecedido por
dar continuidade a esse processo. O protagonismo dos um importante acontecimento institucional para a RD: a
usuários pode caminhar de uma dimensão mais indivi- Política do Ministério da Saúde para Usuário de Álcool
dual para uma dimensão mais coletiva, passando de um e Outras Drogas, criada em 2003 (Ministério da Saúde,
cuidado de si para um cuidado do outro, dependendo dos 2003a). Nesse momento, a RD passou por um grande
dispositivos que os usuários de drogas passam a integrar. rearranjo, migrando do campo exclusivo das políticas
Esses podem ser colaboradores no território, podem fazer de DST/AIDS e se tornando uma importante diretriz na
parte da gestão das associações, podem ser redutores de constituição dos Centros de Atenção Psicossocial Álco-
danos, ou podem simplesmente cuidar de si. ol e outras Drogas (Caps-AD). Apesar dos incentivos
É preciso entender como a criação de redes de criados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental
cooperação altera a relação com as drogas à medida para implementação de ações de RD em Caps-AD, não
que delimita um território existencial para os usuários houve uma adesão significativa que permitisse uma
de drogas. O método empírico de cuidado se apresenta nova institucionalidade para a Redução de Danos.
como um pragmatismo clínico já que refuta uma moral Esses impasses político-institucionais colocam
aplicada de forma homogênea a todos os sujeitos, como, desafios para a continuidade desse movimento, que
por exemplo, a ideia transcendental de cura. O usuário vem ao longo doa anos ganhando novos contornos e
de drogas deixa de ser considerado um doente a ser cura- novas direções. Quais direções o movimento de RD vai
do, e os encaminhamentos passam a ser múltiplos: parar criar diante desses desafios? Que redes se constituirão?
de usar? Diminuir o uso? Substituir cocaína injetável Devemos manter essas perguntas vivas ativando e
por maconha? Usar somente nos finais de semana? acompanhando o devir do movimento da RD.
Não podemos esquecer, e certamente isto é o
mais essencial, que a RD é um método construído
Notas
pelos próprios usuários de drogas e que restitui, na
contemporaneidade, um cuidado de si subversivo às
* Agencia de financiamento: CNPq
regras de conduta coercitivas. Os usuários de drogas 1
A Lei de Entorpecentes 6368/76 foi sancionada no ano de
são corresponsáveis pela produção de saúde à medida 1976 e ficou em vigor até 2006, ano em que é sancionada a
que tomam para si a tarefa de cuidado. Reduzir danos nova lei de drogas: Lei 11.343 (http://www.planalto.gov.br/
é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm)
cenário democrático e participativo. 2
Durou quatro anos, terminando em dezembro de 1998 e cus-
A RD se torna uma estratégia ampliada de clínica tou, aproximadamente, dez milhões de dólares, sendo cerca
que tem ofertas concretas de acolhimento e cuidado de 80% desse montante proveniente do Tesouro Nacional.
3
Dessas últimas, destaca-se a Associação de Usuário de Álcool
para pessoas que usam drogas, dentro de arranjos de
e Drogas de Pernambuco, fundada em 2002, constituindo-se
cogestão do cuidado, tendo como um dos principais de forma diferencial, pois a maioria dos associados não é
desafios a construção de redes de produção de saúde vinculada a projetos de troca de seringas, “embora se consi-
que incluam os serviços de atenção do próprio Sistema derem redutores, quanto ao significado político que o termo
Único de Saúde, Emergências Hospitalares e interna- tem” (Ministério da Saúde, 2003b, p. 21).
ções breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da
Família, Caps-ad.

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