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sentidos: em torno da
proposta bakhtiniana de
estudos da linguagem
Adail Sobral
UCPel; LEAL-CNPq
Karina Giacomelli
UFPel; LEAL-CNPq
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acts. We are not going to describe here dialogical theory
and analysis, since we discuss from an epistemological
point of view aspects of this theory, instead of writing a
paper in specific works of its authors. According to this
proposal, significations in the language system are
mobilized to create sense in language uses. Significations
manifest in sentences and senses in utterances. For
creating senses, the mobilization of significations, which
have a higher degree of stability, by utterances is
affected, as we intend to show, by instabilities that
constitute interactions, even though they are used in
speech genres, which have a relative stability, but which
are not elements able to delimit once and for all what
takes place in the process of sense production.
Introdução
1
Este texto nasceu de vários eventos: o livro Dialogismo: Bordas, Fronteiras,
Imprecisões, Sentidos, organizado por Adail Sobral e Hilário Bohn, editora
EDUCAT, que reuniu textos apresentados no evento II Diálogos
Transdisciplinares, promovido pelo LEAL – Laboratório de Estudos Avançados
de Linguagens, da Ucpel, coordenado por Sobral e Giacomelli), e dos diálogos
que os dois autores vêm travando acerca de língua e linguagem em Bakhtin,
bem como de questões éticas que cercam a filosofia do pensador russo
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pensar que, para Bakhtin e o Círculo, língua é já linguagem, e
a linguagem, para ele, é algo vivo, concreto, impuro,
impreciso. Como decorrência disso, uma teoria de linguagem
bakhtiniana só pode ser uma hermenêutica, só pode propor
uma descrição fenomenológica, em vez de uma explicação ou
descrição formal, porque, submetida a generalizações da
ciência normal, a linguagem perde justamente seu
componente mais importante, a singularidade de cada
enunciação, algo que de modo algum prejudica o que há de
comum a todas as enunciações, mas que em muitos casos é
desprezada como se fosse supérflua (cf., p. ex., BAKHTIN,
2003; VOLOSHINOV, 1976; MEDVIÉDEV, 2012).
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fronteiras entre os vários aspectos de cada
linguagem envolvida, e de linguagens entre
si, terreno fértil para imprecisões de variada
natureza que constituem a vida das
linguagens (...).
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Assim, o que há antes da realização de um projeto de
dizer é um amálgama, ou feixe, de possibilidades de sentido,
que só se realizariam, ou não, nas interações. Na verdade, as
marcas da posição enunciativa residem nas imprecisões,
oscilações, hesitações... Os meandros do fio do discurso são
um labirinto que só se pode cruzar conjuntamente, na inter
constituição negociada de sentidos: “o que você quer dizer
com isso?” é algo que sempre perpassa o interlocutor, mesmo
que ele não o diga. Talvez possamos nos arriscar a dizer que
também o locutor, ao enunciar, no fundo se pergunta: “o que
meu interlocutor vai pensar que quero dizer com isso?”
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sentidos. Este envolve a situação de
enunciação, que podemos identificar com
maior ou menor precisão no enunciado
(produto desse processo) recorrendo a isso a
marcas linguísticas (Idem, Ibidem).
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combinação desses elementos no âmbito do
projeto enunciativo do gênero e do locutor,
voltado para seu interlocutor típico [e
alteradas de acordo com a situação de
enunciação, incluindo o interlocutor
concreto].
2
Usamos aqui a edição francesa: BAKHTINE, 2003, p. 56. A edição brasileira
traz o trecho na página 84.
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último que se possa realizar, embora se realizem sentidos, de
validade provisória, delimitada, sujeita a ressignificações:
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rememoração/esquecimento, ou seja, as bases da valoração.
O princípio pode se manter, mas só as circunstâncias de cada
evento individual de recordação nos dirão que valoração
envolve o evento rememorado. O momento no tempo e o
momento do sujeito, bem como seu lugar e os interlocutores
envolvidos, constroem valorações distintas do mesmo
evento.
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se restringe a reagir a outros sujeitos presentes. Para essa
concepção, os seres humanos se definem constitutivamente
como interagentes. Nessa condição, somos conjunturalmente
seletivos, porque esquecemos e lembramos nos termos do
conjunto de nossas relações sociais e das circunstâncias
específicas, mutáveis, nas quais temos de ou queremos
lembrar e esquecer de algo.
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outro, condeno (em nome de uma coletividade que vai além
dos membros do júri).
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A memória também tem que ver com a história,
porque está constitutivamente vinculada com as
transformações pelas quais passa a sociedade. E essas
mudanças afetam as práticas de linguagem das comunidades
discursivas, tanto no sentido amplo de uma sociedade como
no sentido mais restrito dos grupos que constituem as
sociedades. Há, assim, uma memória histórica das práticas de
linguagem mais gerais, práticas da sociedade como um todo
(postas em vigor, naturalmente, a partir de um poder central),
e práticas de linguagem mais específicas, dos vários grupos
sociais (e mesmo de subgrupos), por vezes restritas aos
membros destes, e, de certo modo, estruturadas em oposição
às do(s) grupo(s) dominante(s). Dessa forma, a memória
histórica envolve tanto a busca de hegemonia pelos
dominantes como a resistência dos dominados.
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implícitas ou explícitas, dos sujeitos nas sociedades. Quanto
maior o acesso a práticas, tanto maior o repertório de
discursividades que o sujeito guarda na memória e, portanto,
o repertório de gêneros a que recorre em suas relações
interlocutivas e suas possibilidades de negociação de sentidos
(SOBRAL, 2006).
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Em outras palavras, não posso delimitar o outro, mas
vê-lo tal como se apresenta a mim; não posso me por em seu
lugar nem ver o mundo tal como ele vê. Posso apenas afastar-
me dele para vê-lo em seu horizonte (mais amplo), sem nunca
poder estar em seu ambiente (mais restrito). Como o explica
Amorim (Op. cit.; loc. cit.),
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e, a fim de negociar sentidos, precisa reconhecer e afirmar a
posicionalidade irredutível do outro. Seu primeiro movimento
de compreensão do outro ocorre em seus termos (a posição
de um eu-para-mim); em seguida, para que sua compreensão
ativa se sustente, o sujeito rememora o outro, tenta ver o
ponto de vista dele em relação ao seu (a posição de eu-para-
o-outro). Para isso, o sujeito se afasto do outro, contempla-o
e depois volta à posição inicial. Em outras palavras, começo na
posição de eu-para-mim, passa à de eu-para-o-outro e retorna
à posição de eu-para-mim. Esses três momentos constituem a
compreensão ativa, seja do outro ou de seus enunciados.
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O passado tem acabamento; o futuro, prospecção,
uma vez que não podemos prevê-lo. Trata-se de dominantes:
também o estético é ético, e este tem seu componente
estético em termos da arquitetônica do projeto enunciativo
dos sujeitos, mas cada memória tem sua marca mais forte.
Disso trata este importante esclarecimento de Amorim (Op.
cit., p. 10): “Isso não quer dizer que a estética não seja ética,
mas o ato ético do artista não coincide com o ato do herói e,
em relação ao herói que o artista retrata, o trabalho da
memória é um trabalho de acabamento.”
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quase passando por cima da memória
individual subjetiva dos autores. (grifamos).
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Bakhtin (e esse é um aspecto bem pouco explorado)
aborda os gêneros como o que se pode chamar de forma
estruturante da memória discursiva. Essa forma está no todo
do discurso, não apenas em partes suas. Em Os gêneros do
discurso (1997, p. 302-3), ele o faz nos seguintes termos:
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Destacamos da passagem acima o trecho "ao ouvir a
fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras
palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a
extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura
composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início somos
sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da
fala, evidenciará suas diferenciações". Esse destaque visa
enfatizar que essas diferenciações são precisamente o que
temos chamado de imprecisões, o fato de, ao dizer, o sujeito
ser lançado num turbilhão de possibilidades de sentido,
inclusive porque a recepção ativa do outro afeta seu dizer,
interconstituindo-o.
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existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos,
se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da
fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível". Ou
seja, os gêneros são recursos de organização das interações
que permitem aos sujeitos ter parâmetros para comunicar-se,
ao mesmo tempo em que lhes dá a liberdade de usar esses
recursos segundo suas necessidades de interlocução.
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primeiro ponto é que as forças centrípetas e centrífugas se
fazem presentes aqui: de acordo com a conjuntura e suas
necessidades enunciativas, o sujeito sempre se afasta (força
centrífuga) do que não é pertinente para suas necessidades
enunciativas, e se aproxima (força centrípeta) do que o é.
Outro ponto é que aqui vemos a presença da pravda, a
veridicidade, verdade situada, sem validade universal (que é o
domínio da “outra” verdade, a istina): ao recorrer aos
elementos de memória que lhe interessam, o sujeito afirma a
verdade de sua circunstância específica e seleciona os
elementos que melhor sirvam à sua interação com seus
interlocutores específicos.
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elementos do senso comum, mesmo que haja alguns
elementos compartilhados. Logo, o senso comum também é
social e histórico.
(...)
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em seu processar-se, ainda que compartilhe
com todos os outros uma dada estrutura de
conteúdo.
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prever-lhe o fim, ou seja, desde o início,
somos sensíveis ao todo discursivo que, em
seguida, no processo da fala, evidenciará
suas diferenciações (grifamos).
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presentes, que variam tal como variam os gêneros do
discurso, em sua maleabilidade bem mais ampla do que as das
formas da língua.
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tensão) do mundo e do processo de apropriação, individual,
dessa objetivação.
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A memória coletiva exibe tanto traços comuns a
todos os sujeitos de uma coletividade como traços dos grupos
sociais e dos subgrupos de que são parte os sujeitos, bem
como traços das formas específicas como os sujeitos em
interação se apropriam desses traços, o que reforça a ideia da
seletividade valorativa como a base da relação entre sujeito,
discurso e memória. O que é lembrado e o que é esquecido
não vêm de algum determinismo, mas das circunstâncias
estruturais e conjunturais específicas em que os sujeitos se
veem. Os sujeitos do discurso, portanto, lembram e esquecem
em termos dos projetos enunciativos que os mobilizam e a
que recorrem para alcançar seus fins discursivos.
Considerações Finais
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No sistema da língua (domínio da significação) há
uma ordenação em morfemas, palavras e frases, uma
combinatória na qual, a partir de alguns componentes e de
umas quantas regras, se produzem frases; há nele, portanto,
certa invariância. Essa invariância não impede que se produza
um número indefinido de frases. No plano de exercício do
repertório enunciativo, há, para além de regras
combinatórias, uma maior variância, configurada nos
gêneros, que, na definição tão repetida, são “relativamente
estáveis”, ou seja, estáveis o suficiente para serem
identificados como tais e flexíveis o suficiente para serem
alterados de múltiplas maneiras, imprecisamente, portanto.
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[We shall not cease from exploration/And the
end of all our exploring /Will be to arrive
where we started/And know the place for the
first time.]
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A identidade, assim como os sentidos, tem
mobilidade, e vai se alterando de acordo com a soma das
relações sociais de que participa cada sujeito, mas contém
certos elementos estáveis que o identificam como o sujeito x,
e não y...n, e é a partir dessa integração, tensa, entre o estável
e o instável que a memória funciona: cada sujeito sempre
lembra (e esquece) à sua maneira, a par de adequar-se a seu
interlocutor, seu grupo social etc.
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Na língua e no agir em geral, é essencial, portanto, a
oposição, tensão permanente entre estabilidade e fixidez, ou
forças centrípetas e forças centrífugas, respectivamente.
Porque aí residem as diferenças, e é das diferenças que
nascem os sentidos. Logo, a seletividade, o esquecimento -
enfim, a valoração - são inevitáveis e vitais. E, em sua base,
estão as imprecisões. Podemos dizer que nada no agir
humano, por ser o humano uma transcendência simbólica do
biológico, foge ao impreciso.
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negociação, seja de sentidos ou da própria convivência
humana. Este último ponto pode ser lamentável, mas é
constitutivo da vida humana em sociedade. Muitos são os
esforços para superar o conflito e permanecer no confronto,
na arena de vozes que de algum modo negociam.
Referências
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BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Tradução: Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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A. Gêneros – Entre o Texto e o Discurso. Campinas: Mercado
de Letras, 2016.
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