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Memória, imprecisões,

sentidos: em torno da
proposta bakhtiniana de
estudos da linguagem

Adail Sobral

UCPel; LEAL-CNPq

Karina Giacomelli

UFPel; LEAL-CNPq

Resumo: Pretendemos, neste ensaio de discussão teórica, a partir


de considerações sobre memória e produção de sentido,
apresentar uma breve discussão sobre as imprecisões,
flutuações, modulações etc. que caracterizam o uso da
linguagem. Para isso, levamos em consideração, de um
lado, a imprevisibilidade que marca as interações (as
interações não têm delimitação precisa; dependem de
eventos que não se podem prever), e, do outro, a
parcialidade constitutiva do trabalho da memória nas
interações. Nesses termos, a memória é um
esquecimento seletivo, no sentido de que o sujeito
recorre ao repertório de rememorações de acordo com
as necessidades, imprevisíveis, de suas interações. Trata-
se de um trabalho que se inspira na teoria e análise
dialógica, ou análise dialógica do discurso, a qual permite
defender a existência de dispositivos enunciativos de
mediação entre repertório linguístico e agir discursivo.
Não vamos reapresentar aqui a teoria dialógica, uma vez
que fazemos uma discussão epistemológica de aspectos
seus, e não um artigo baseado em obras específicas
daquela. De acordo com essa teoria, as significações na
língua são mobilizadas para instaurar sentido na
linguagem. As significações se manifestam em frases e, o
sentido, em enunciados. A mobilização das significações,
que têm um maior grau de estabilidade, pelos
enunciados, a fim de criar sentidos, é afetada, como
pretendemos mostrar, pelas instabilidades manifestas
nas interações, mesmo que estas se realizem em
gêneros, que têm uma estabilidade relativa, mas que não
são elementos capazes de delimitar de uma vez por todas
o que ocorre no processo de instauração de sentidos.

Palavras-chave: significação; imprecisões; dispositivos enunciativos;


sentido

Title: Memory, imprecisions, senses: about the Bakhtinian


proposition on language studies

Abstract: We intend, in this theoretical essay, from considerations


on the role of memory in sense production, present a
brief discussion on imprecisions, fluctuations,
modulations etc. that characterize language use. For
doing this, we take into account, on the one hand, the
imprevisibility that marks interactions (these have not
precise delimitation, depending on events that one
cannot predict) and, on the other, the constitutive
partiality of memory’s work in interactions. In these
terms, memory is a selective oblivion, in the sense that
subjects resort to their remembrances’ repertoire
according to their interactions’ unpredictable
necessities. It is a work inspired by dialogical theory and
analysis or discourse dialogical analysis, which allows to
argue for the existence of enunciative devices for
mediating among linguistic repertoires and discursive

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acts. We are not going to describe here dialogical theory
and analysis, since we discuss from an epistemological
point of view aspects of this theory, instead of writing a
paper in specific works of its authors. According to this
proposal, significations in the language system are
mobilized to create sense in language uses. Significations
manifest in sentences and senses in utterances. For
creating senses, the mobilization of significations, which
have a higher degree of stability, by utterances is
affected, as we intend to show, by instabilities that
constitute interactions, even though they are used in
speech genres, which have a relative stability, but which
are not elements able to delimit once and for all what
takes place in the process of sense production.

Keywords: Signification; imprecisions; enunciative apparatuses;


sense

Introdução

O rumo de pensamento que nossas reflexões


tomaram nos últimos anos nos levou a pensar a imprecisão
como aquilo que caracteriza a linguagem, e a ver que para isso
apontam as teorias de Bakhtin e o Círculo no tocante à
instauração de sentidos.1 De certo modo, começamos a

1
Este texto nasceu de vários eventos: o livro Dialogismo: Bordas, Fronteiras,
Imprecisões, Sentidos, organizado por Adail Sobral e Hilário Bohn, editora
EDUCAT, que reuniu textos apresentados no evento II Diálogos
Transdisciplinares, promovido pelo LEAL – Laboratório de Estudos Avançados
de Linguagens, da Ucpel, coordenado por Sobral e Giacomelli), e dos diálogos
que os dois autores vêm travando acerca de língua e linguagem em Bakhtin,
bem como de questões éticas que cercam a filosofia do pensador russo
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pensar que, para Bakhtin e o Círculo, língua é já linguagem, e
a linguagem, para ele, é algo vivo, concreto, impuro,
impreciso. Como decorrência disso, uma teoria de linguagem
bakhtiniana só pode ser uma hermenêutica, só pode propor
uma descrição fenomenológica, em vez de uma explicação ou
descrição formal, porque, submetida a generalizações da
ciência normal, a linguagem perde justamente seu
componente mais importante, a singularidade de cada
enunciação, algo que de modo algum prejudica o que há de
comum a todas as enunciações, mas que em muitos casos é
desprezada como se fosse supérflua (cf., p. ex., BAKHTIN,
2003; VOLOSHINOV, 1976; MEDVIÉDEV, 2012).

Assim como cada sujeito é único, cada enunciação


(cada ato) é todo um universo de sentido singular cuja
inteligibilidade depende não só do cenário em que acontece
como de suas relações com enunciações já ocorridas e mesmo
de enunciações ainda não ocorridas a que o locutor procura
antecipar-se quando cria a arquitetônica de realização de seu
projeto de dizer, no aqui e agora de suas interações. Umas e
outras se fazem presentes a partir de uma memória de
enunciações passadas, tanto dos próprios sujeitos como de

(objeto dos estudos pós-doutorais de Sobral). Parte do aqui exposto vem


também dos desdobramentos de uma mesa redonda sobre linguagem e
memória de que participou Sobral, bem como dos estudos pós-doutorais de
Giacomelli, que teve Sobral como supervisor e abordou língua e linguagem
em Bakhtin.
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seus interlocutores, e de uma projeção de possíveis réplicas a
partir desse repertório enunciativo.

Em outros termos, a enunciação/discurso é para


Bakhtin (2003, p. ex.) um processo que envolve a
rememoração. Esta, nos termos da concepção de enunciado
do autor, tem dupla natureza: é tanto retrospectiva (a
recordação de enunciações passadas) como prospectiva.
Aquela é rememoração propriamente dita, ao passo que esta
não é propriamente rememoração, mas antes projeção, a
partir da experiência enunciativa dos sujeitos, de possíveis
réplicas dos interlocutores, o que serve de recurso de
antecipação a essas réplicas, com vistas a tornar aceitos os
sentidos que o sujeito propõe instaurar em seus enunciados.
Essa recordação e antecipação são, naturalmente, imprecisas,
uma vez que dependem da posição valorativa do sujeito, que
não é fixa. Como veremos, memória supõe esquecimento, ou
seja, seletividade, valoração, e estas dependem da situação
específica de enunciação, sendo, pois, constitutivamente
imprecisas.

Segundo (SOBRAL, 2016, p. 12-14; editado),

Os processos de instauração de sentidos


operam mediante procedimentos
enunciativos marcados por bordas e

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fronteiras entre os vários aspectos de cada
linguagem envolvida, e de linguagens entre
si, terreno fértil para imprecisões de variada
natureza que constituem a vida das
linguagens (...).

Isso significa que a estrutura formal dos


procedimentos, ou dispositivos enunciativos, não é tão rígida
quanto o são as bordas e fronteiras advindas da
imprevisibilidade das situações enunciativas. Ou seja, não é
porque podemos pressentir desde o começo o gênero e o
projeto enunciativo de um locutor que poderíamos descobrir
o rumo que essa sua enunciação vai tomar.

Falar de bordas, fronteiras, imprecisões, sentidos é,


segundo o autor,

(...) sugerir precisamente que o sentido nasce


do ‘não sentido’, isto é, das relações entre as
bordas, as fronteiras e as imprecisões: bordas
que se tocam, e afastam; fronteiras que
distinguem também, mas (se) confundem;
imprecisões que revelam a posição
enunciativa e o contexto dos enunciados, e
que requerem para isso conviver com a
tensão entre possibilidades de sentido
(Idem).

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Assim, o que há antes da realização de um projeto de
dizer é um amálgama, ou feixe, de possibilidades de sentido,
que só se realizariam, ou não, nas interações. Na verdade, as
marcas da posição enunciativa residem nas imprecisões,
oscilações, hesitações... Os meandros do fio do discurso são
um labirinto que só se pode cruzar conjuntamente, na inter
constituição negociada de sentidos: “o que você quer dizer
com isso?” é algo que sempre perpassa o interlocutor, mesmo
que ele não o diga. Talvez possamos nos arriscar a dizer que
também o locutor, ao enunciar, no fundo se pergunta: “o que
meu interlocutor vai pensar que quero dizer com isso?”

Destacando a importância da materialidade da


linguagem, já que muitas vezes se diz que as teorias de
discurso perdem de vista o texto, Sobral (2016) diz que:

(...) sustentar o aparente caráter vago dessas


formulações não perde de vista a realidade
das linguagens, sua materialidade. Nesse
sentido, trabalha-se com a
enunciação/enunciado e o discurso sem
descartar os mecanismos formais de
constituição de frases e textos. Mas a
unidade é o enunciado/enunciação, o
discurso, não a frase ou o texto por si sós.

Portanto, a ênfase está nas marcas


enunciativas, marcas que a enunciação deixa
no enunciado, ou seja, vestígios (explícitos ou
implícitos) do processo de instauração de

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sentidos. Este envolve a situação de
enunciação, que podemos identificar com
maior ou menor precisão no enunciado
(produto desse processo) recorrendo a isso a
marcas linguísticas (Idem, Ibidem).

Marcas linguísticas e marcas enunciativas têm entre


si a mesma relação que significações e sentidos: , assim como
os sentidos trazem em si significações, nas marcas
enunciativas estão integradas marcas linguísticas. As marcas
linguísticas apenas significam, no nível da língua, mas,
tomadas em termos enunciativos, servem à instauração de
marcas enunciativas no plano do sentido. É o que explicam
Sobral e Giacomelli (2016, p. xx). As marcas linguísticas são
entendidas

como parte da significação, no nível da


língua, enquanto a colocação em discurso
dessas marcas, ou seja, a mobilização
valorada dessas marcas segundo as
circunstâncias de enunciação (que envolve a
soma das relações sociais dos sujeitos
envolvidos) é responsável pelas ‘marcas
enunciativas’ (...).

A integração entre marcas linguísticas e


marcas enunciativas aqui proposta considera
três elementos: a) o objeto do enunciado; b)
o posicionamento dos componentes
linguísticos deste último na superfície
material do texto; e c) as modalidades de

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combinação desses elementos no âmbito do
projeto enunciativo do gênero e do locutor,
voltado para seu interlocutor típico [e
alteradas de acordo com a situação de
enunciação, incluindo o interlocutor
concreto].

Esses 3 planos correspondem a 3 categorias


de Bakhtin: o conteúdo (ou os entes
apresentados na enunciação); o material (ou
as materialidades linguísticas presentes aos
enunciados); e a forma (as maneiras de
articulação entre o objeto do enunciado e as
materialidades textuais para criar uma
forma-conteúdo, um gênero). Essa
articulação ocorre a partir de um ato
enunciativo, necessariamente valorado, de
acordo com os protocolos genéricos de cada
esfera, e considerando as possibilidades
expressivas do sistema da língua.

Ainda falando da imprecisão como condição do


sentido, Sobral (2016) evoca Lacan. Segundo ele, esse autor
mostra que embora desejos possam realizar-se, o desejo
jamais se realiza: nunca se alcança a plenitude do desejo, do
mesmo modo como Bakhtin alega que se realizam sentidos,
mas não o sentido. Mais do que isso, Bakhtin alerta em Para
uma filosofia do ato 2 que não se deve superestimar o poder
de expressão da linguagem, ou seja, que não há um sentido

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Usamos aqui a edição francesa: BAKHTINE, 2003, p. 56. A edição brasileira
traz o trecho na página 84.
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último que se possa realizar, embora se realizem sentidos, de
validade provisória, delimitada, sujeita a ressignificações:

Não se deve, obviamente, supervalorizar o


poder da linguagem: o ser-evento irrepetível
e singular e o ato que dele participa são, em
princípio, exprimíveis, mas na realidade essa
é uma tarefa muito difícil, estando a plena
adequação fora do alcance, ainda que
permaneça sempre dada-a-realizar.
(BAKHTINE, 2003, p. 56.)

Talvez para tentar contornar essa impossibilidade de


plena realização do sentido, essa nossa prisão ao impreciso,
Bakhtin sugere, na obra supra citada (BAKHTINE, 2003), que
devemos fazer um esforço por integrar a vida e a arte (ou a
ciência) em nosso viver, realizar a cada momento a
singularidade que cada pessoa é, responder com a vida pelo
que se aprende na arte (ou na ciência) e responder a
necessidades da vida na arte (ou na ciência). Podemos
entender vida e arte, em um de seus sentidos, como sendo a
enunciação concreta, o processo, e a transfiguração do
mundo no enunciado.

Levando esses elementos em consideração,


pretendemos com este ensaio de discussão teórica sobre as
imprecisões, flutuações, modulações (com suas bordas e
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fronteiras em tensão) como sendo elementos inerentes ao
exercício da linguagem. Nesses termos, defenderemos que
elas constituem, em termos procedurais, o principal
componente dos dispositivos enunciativos. Elas permitem
que se criem infinitos sentidos, uma vez que, nas distintas
situações enunciativas, não há sentidos estabelecidos de
antemão a ser apenas mobilizados, mas um processo de
mobilização da língua pelos dispositivos enunciativos para
instaurar sentidos na linguagem. Isso requer a mobilização da
memória, não em termos cognitivos estritos, mas
considerada, nos termos aqui desenvolvidos, como sendo
imprecisa, uma vez que dependente dos contextos específicos
de rememoração.

Imprecisões, memória, esquecimento e sentido

A memória é por definição falha, no sentido de não


poder ser precisa, dada as limitações humanas e o poder do
contexto de evocar algumas lembranças e de levar ao
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esquecimento de outras. O sujeito que rememora não é o
mesmo sujeito que viveu o rememorado, já que desde então
alterou os aspectos mutáveis de sua identidade. O
rememorado, portanto, também é resultado da valoração
presente do passado por um sujeito que viveu esse passado
evocado, mas, desde então, mudou e mobiliza esse passado
segundo suas necessidades presentes. Recordar um
“momento feliz” é, ao mesmo tempo, memória e construção
presente desse “momento feliz” quando da rememoração.
Portanto, recordar envolve ao mesmo tempo esquecer:
recordamos alguns aspectos, esquecemos outros, e, se
rememorarmos em momentos distintos o mesmo evento, não
haverá necessariamente coincidência entre os aspectos
lembrados e os esquecidos a cada recordação. Recordar
envolve seletividade.

Recordar traz em si, em consequência, uma “traição”


constitutiva: a seleção do recordado é feita segundo sua
utilidade para a instauração de sentidos no momento da
recordação (e não no momento vivido, que é agora
ressignificado). Pode-se mesmo recordar com alegria, num
dado momento, e com tristeza, em outro, o mesmo evento
vivido, ou mesmo com um misto de alegria pela satisfação tida
e pela impossibilidade de repeti-la. Fica a questão de
estabelecer, em cada caso, os critérios da

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rememoração/esquecimento, ou seja, as bases da valoração.
O princípio pode se manter, mas só as circunstâncias de cada
evento individual de recordação nos dirão que valoração
envolve o evento rememorado. O momento no tempo e o
momento do sujeito, bem como seu lugar e os interlocutores
envolvidos, constroem valorações distintas do mesmo
evento.

Só sujeitos são suscetíveis desse esquecimento


seletivo chamado memória, ou dessa memória (lembrança)
seletiva chamada esquecimento. Tal como o silêncio com
relação ao dizer, o esquecimento é a contraparte necessária
da memória, do lembrar, e esquecer pressupõe sempre
lembrar: o sujeito lembra de umas coisas e não de outras, a
depender de sua constituição subjetivo-social (deixamos de
lado aqui as capacidades estritamente cognitivas, ainda que
não as consideremos irrelevantes, pois o foco aqui é distinto)
e do tempo e lugar da enunciação. Memória e esquecimento
se manifestam discursivamente nesse nosso mundo humano,
trans-biológico, no qual que estamos sempre nos tornando
sujeitos, o que se reflete em nossas enunciações.

A seletividade é necessariamente valorativa, pessoal


e socialmente, nascendo da interação, mesmo que o sujeito
que lembra/esquece esteja fisicamente só. Porque interagir,
para a teoria bakhtiniana, como já se disse tantas vezes, não

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se restringe a reagir a outros sujeitos presentes. Para essa
concepção, os seres humanos se definem constitutivamente
como interagentes. Nessa condição, somos conjunturalmente
seletivos, porque esquecemos e lembramos nos termos do
conjunto de nossas relações sociais e das circunstâncias
específicas, mutáveis, nas quais temos de ou queremos
lembrar e esquecer de algo.

Quando dizemos que as situações sociais


estabelecem "quem pode dizer o quê a quem onde como",
dizemos que todo enunciado é endereçado, expressivo e
referencial a um só tempo, reportando-nos ao fato de que
dizer é um agir sempre situado. Queremos destacar aqui o
"quê" dessa expressão, por ele ser, por vezes, entendido
literalmente como algo já estabelecido antes do dizer, em vez
de um feixe de possibilidades de sentido. O “quê” já é dito
valorado.

Quando, por exemplo, não sendo o presidente de um


júri, profiro o enunciado "esse político é culpado/corrupto...",
não estou condenando o objeto de meu enunciado, mas o
estou declarando culpado no sentido de acusá-lo. Se o faço
como presidente do júri, eu o estou condenando. Mas, em
ambos os casos, posso dizer o que digo. Mas se o “quê”
permanece, seu sentido não é o mesmo. Em ambos os casos
censuro alguém, mas num caso dou minha opinião e, no

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outro, condeno (em nome de uma coletividade que vai além
dos membros do júri).

Logo, falar de "quem pode ou não dizer" não implica


assumir necessariamente uma perspectiva formalista que
chegue ao ponto de estabelecer esse o "quê" do ponto de
vista linguístico estrito. Mas implica pensar na valoração social
e conjunturalmente possível em cada caso, no papel social
que o sujeito proferidor exerce. E, por tudo isso, implica
pensar esse "quê" não como um conteúdo, mas como uma
espécie de pro forma que pode assumir distintos sentidos a
depender da conjuntura. Correndo os riscos dessa
aproximação, podemos talvez considerar esse “quê’, esse
tópico um significante em busca de um significado e, mais do
que isso, de um sentido.

O dito, marca linguística, aponta para esse sentido,


mas não o traz em si. O sentido vai vir da situação enunciativa,
que deixa marcas enunciativas, marcas da enunciação. Sem o
dizer, conjuntural, e, portanto, valorativo, não se pode buscar
o sentido. O dizer, que inclui o dito situado numa situação, é
sempre ação de um sujeito, que, em parte de modo
consciente, em parte de modo não consciente e em parte
inconscientemente, escolhe o que vai dizer, lembra e esquece
seletivamente de umas coisas e não de outras - a depender da
situação discursiva na qual se encontre.

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A memória também tem que ver com a história,
porque está constitutivamente vinculada com as
transformações pelas quais passa a sociedade. E essas
mudanças afetam as práticas de linguagem das comunidades
discursivas, tanto no sentido amplo de uma sociedade como
no sentido mais restrito dos grupos que constituem as
sociedades. Há, assim, uma memória histórica das práticas de
linguagem mais gerais, práticas da sociedade como um todo
(postas em vigor, naturalmente, a partir de um poder central),
e práticas de linguagem mais específicas, dos vários grupos
sociais (e mesmo de subgrupos), por vezes restritas aos
membros destes, e, de certo modo, estruturadas em oposição
às do(s) grupo(s) dominante(s). Dessa forma, a memória
histórica envolve tanto a busca de hegemonia pelos
dominantes como a resistência dos dominados.

Os sujeitos guardam de suas experiências dessas


práticas uma memória e um esquecimento específicos, que
dependem dos grupos sociais de que fazem parte - porque
nem todos são admitidos em todas as práticas sociais, ainda
que alguns tenham acesso a um número maior, a depender
de sua posição na sociedade em geral e nos grupos de que
fazem parte. Quanto maior o prestígio social de seu grupo, e
do sujeito dentro desse grupo, tanto maior o acesso do sujeito
a práticas - o que tem relação com as políticas excludentes,

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implícitas ou explícitas, dos sujeitos nas sociedades. Quanto
maior o acesso a práticas, tanto maior o repertório de
discursividades que o sujeito guarda na memória e, portanto,
o repertório de gêneros a que recorre em suas relações
interlocutivas e suas possibilidades de negociação de sentidos
(SOBRAL, 2006).

Em nossos termos, a memória, seja do passado,


como retrospecção, ou do futuro, como prospecção (esta
última fundada, naturalmente, nas experiências passadas e
presentes) é sempre memória de gênero, por ser o gênero a
forma de estruturação do uso da linguagem. Pode ser escrita,
oral ou, em nossos dias, informatizada (cf. AMORIM, 2009).

Embora não se dedique a tematizar essa questão,


Bakhtin se refere em mais de um momento à questão da
memória. Em O Autor e o Herói (BAKHTIN, 1997), ele se refere
à memória do passado (que é a memória estética, a que dá
acabamento ao herói) e à memória do futuro (que é a
memória do herói, não acabada, porque vinculada com o que
virá a ser). A primeira é aquilo que Amorim (op. cit., p. 9)
chama de memória exotópica, e que Bakhtin (1997, p. 144)
define assim: “Para uma abordagem estética da existência
interior do outro, é preciso, em primeiro lugar, não crer ou ter
esperanças nele, mas aceitá-lo em seus valores; é preciso não
estar com ele e nele”.

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Em outras palavras, não posso delimitar o outro, mas
vê-lo tal como se apresenta a mim; não posso me por em seu
lugar nem ver o mundo tal como ele vê. Posso apenas afastar-
me dele para vê-lo em seu horizonte (mais amplo), sem nunca
poder estar em seu ambiente (mais restrito). Como o explica
Amorim (Op. cit.; loc. cit.),

A memória exotópica é a memória que se


produz depois da compreensão, isto é, na
segunda etapa do processo de apreensão do
outro. Podemos mesmo dizer que a memória
exotópica se produz quando não
compreendo mais, quando não me identifico
mais com o ponto de vista do outro e
introduzo meu ponto de vista, aquilo que
vejo do que o outro vê.

Isso corrobora a afirmação de que a memória, ao ser


seletiva, e implicar um esquecimento, é necessariamente
valorativa, uma vez que se refere àquilo que o sujeito vê
daquilo que o outro vê, ou seja, daquilo que o sujeito
seleciona, de seu ponto de vista, dos elementos que o outro
vê do seu. Essa posição exotópica é o que permite ao sujeito
rememorar, selecionar memórias. O sujeito vê o outro (e seus
enunciados) a partir de sua própria posicionalidade irredutível

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e, a fim de negociar sentidos, precisa reconhecer e afirmar a
posicionalidade irredutível do outro. Seu primeiro movimento
de compreensão do outro ocorre em seus termos (a posição
de um eu-para-mim); em seguida, para que sua compreensão
ativa se sustente, o sujeito rememora o outro, tenta ver o
ponto de vista dele em relação ao seu (a posição de eu-para-
o-outro). Para isso, o sujeito se afasto do outro, contempla-o
e depois volta à posição inicial. Em outras palavras, começo na
posição de eu-para-mim, passa à de eu-para-o-outro e retorna
à posição de eu-para-mim. Esses três momentos constituem a
compreensão ativa, seja do outro ou de seus enunciados.

A memória do futuro (a do herói, que é proposta, da


mesma maneira, por Bakhtin) envolve uma projeção, e, mais
do que isso, uma posição ética: "A memória do passado é
submetida a um processo estético, a memória do futuro é
sempre de ordem moral” (BAKHTIN, 1997, p. 167). A memória
do passado é transfigurada, submetida a um tratamento
estético, porque estamos distantes do passado, mas um dia o
vivemos, e por isso ele é rememorado esteticamente, não
projetado moralmente. A memória do futuro não é bem
memória, como dissemos, mas uma projeção a partir do
passado e do presente; não tendo sido vivido, ele surge de
projeções que, envolvendo valores morais, são feitas a partir
de nossa posição moral.

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O passado tem acabamento; o futuro, prospecção,
uma vez que não podemos prevê-lo. Trata-se de dominantes:
também o estético é ético, e este tem seu componente
estético em termos da arquitetônica do projeto enunciativo
dos sujeitos, mas cada memória tem sua marca mais forte.
Disso trata este importante esclarecimento de Amorim (Op.
cit., p. 10): “Isso não quer dizer que a estética não seja ética,
mas o ato ético do artista não coincide com o ato do herói e,
em relação ao herói que o artista retrata, o trabalho da
memória é um trabalho de acabamento.”

Cabe abordar ainda a memória coletiva, a memória


que não se vincula diretamente com este ou aquele sujeito,
mas permanece viva na cultura, como cerne do que há de
comum aos membros da comunidade de sujeitos. Eis como
Bakhtin (2002, p. 354) a descreve, materialista e
fenomenologicamente:

As tradições culturais e literárias (inclusive as


mais antigas) se conservam e vivem não na
memória individual e subjetiva de um
homem isolado ou em algum “psiquismo”
coletivo, mas nas formas objetivas da própria
cultura (inclusive nas formas linguísticas e
verbais), e nesse sentido elas são
intersubjetivas e interindividuais
(consequentemente, também sociais); daí
elas chegam às obras literárias, às vezes

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quase passando por cima da memória
individual subjetiva dos autores. (grifamos).

Nesse nível, a memória tem que ver com as práticas


sociais em geral, e, no plano do discurso, com os gêneros,
cujos vestígios se conservam, naturalmente afetando a
memória dos sujeitos, mas quase passando por cima da
memória individual subjetiva dos autores ou locutores em
geral. Naturalmente, os sujeitos recorrem a essa memória,
m+as o fazem de modo bem menos consciente, ou mesmo
inconsciente. Trata-se da memória substrato, a memória que
faz que o sujeito não tenha de reinventar, a cada dizer seu,
novas formas de dizer. Essa memória se acha registrada
conjunturalmente, transfigurada, nas formas objetivas da
própria cultura (inclusive nas formas linguísticas e verbais).

Aqui se unem o aparato cognitivo típico do homem,


que busca sempre a economia de meios para obter o máximo
de resultados em termos de sentido, e sua constituição social,
sua necessidade imperiosa de ter proficiência nas formas de
rememoração das práticas de sua sociedade, aquilo que
Medvedev (2012) denominou "gêneros interiores",
entendidos como a internalização das formas de gênero, o
repertório de dispositivos enunciativos a que recorrem os
sujeitos em suas interações.

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Bakhtin (e esse é um aspecto bem pouco explorado)
aborda os gêneros como o que se pode chamar de forma
estruturante da memória discursiva. Essa forma está no todo
do discurso, não apenas em partes suas. Em Os gêneros do
discurso (1997, p. 302-3), ele o faz nos seguintes termos:

As formas da língua e as formas típicas de


enunciados, isto é, os gêneros do discurso,
introduzem-se em nossa experiência e em
nossa consciência conjuntamente e sem que
sua estreita correlação seja rompida.
Aprender a falar é aprender a estruturar
enunciados (porque falamos por enunciados
e não por orações isoladas e, menos ainda, é
óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do
discurso organizam nossa fala da mesma
maneira que a organizam as formas
gramaticais (sintáticas). Aprendemos a
moldar nossa fala às formas do gênero e, ao
ouvir a fala do outro, sabemos de imediato,
bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o
gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão
aproximada do todo discursivo), a dada
estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou
seja, desde o início, somos sensíveis ao todo
discursivo que, em seguida, no processo da
fala, evidenciará suas diferenciações. Se não
existissem os gêneros do discurso e se não os
dominássemos, se tivéssemos de criá-los
pela primeira vez no processo da fala, se
tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria
quase impossível.

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Destacamos da passagem acima o trecho "ao ouvir a
fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras
palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a
extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura
composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início somos
sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da
fala, evidenciará suas diferenciações". Esse destaque visa
enfatizar que essas diferenciações são precisamente o que
temos chamado de imprecisões, o fato de, ao dizer, o sujeito
ser lançado num turbilhão de possibilidades de sentido,
inclusive porque a recepção ativa do outro afeta seu dizer,
interconstituindo-o.

Aqui se unem as duas modalidades de memória a que


nos temos referido: a dos sujeitos per se, de que falamos ao
mencionar a memória do passado (ou exotópica) e a memória
do futuro (ou memória ética), e a da coletividade de sujeitos,
aquela que nos permite saber "de imediato, bem nas
primeiras palavras" o gênero que nosso interlocutor mobiliza
e que temos registrado em nosso repertório de gêneros,
interiores porque internalizados, isto é, não por ser posse
subjetiva de cada sujeito.

Nesses termos, a memória de gênero tem grande


importância para a vida simbólico-discursiva dos sujeitos em
sociedade. Como diz Bakhtin no trecho acima, "Se não

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existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos,
se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da
fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível". Ou
seja, os gêneros são recursos de organização das interações
que permitem aos sujeitos ter parâmetros para comunicar-se,
ao mesmo tempo em que lhes dá a liberdade de usar esses
recursos segundo suas necessidades de interlocução.

Da memória do repertório de formas típicas de


enunciados (não de seu conteúdo), depende a comunicação
verbal. Todo gênero é, segundo Medvedev (Op. cit.),
"ideologia criadora de forma", sendo que "forma" não se
reduz a estrutura, mas indica uma totalidade de sentido de
acordo com maneiras típicas, relativamente estáveis, de
elaborar enunciados, de realizar projetos de dizer, projetos
enunciativos, para o que se necessitam de relações
interlocutivas configuradas em discursos. Os gêneros
envolvem sempre organizar o mundo discursivamente de
acordo com o recorte ideológico que se faz do mundo,
processo que, como mencionamos, combina objetivação
social e apropriação individual.

Podemos então afirmar, feito esse percurso, que a


seletividade da memória é o espaço da valoração, espaço da
escolha interessada, não indiferente, do que recordar. Um

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primeiro ponto é que as forças centrípetas e centrífugas se
fazem presentes aqui: de acordo com a conjuntura e suas
necessidades enunciativas, o sujeito sempre se afasta (força
centrífuga) do que não é pertinente para suas necessidades
enunciativas, e se aproxima (força centrípeta) do que o é.
Outro ponto é que aqui vemos a presença da pravda, a
veridicidade, verdade situada, sem validade universal (que é o
domínio da “outra” verdade, a istina): ao recorrer aos
elementos de memória que lhe interessam, o sujeito afirma a
verdade de sua circunstância específica e seleciona os
elementos que melhor sirvam à sua interação com seus
interlocutores específicos.

Por vezes, para fazer que sua pravda seja aceita, o


sujeito recorre ao senso comum, por assim dizer à istina, que
está a meio caminho entre a veridicidade e a verdade
universal. Para o senso comum, a verdade que a ciência
consideraria veridicidade, ou seja, verdade fundada num
modo específico de ver o mundo, tem a validade da istina: é
verdade válida em todos os casos e não circunstancialmente.
O senso comum cria assim uma veridicidade com ares de
universalidade, ou seja, algo válido situacionalmente é
tomado como válido em todas as situações. Essa pravda-istina
também é fruto da seletividade da memória da coletividade:
não há duas coletividades com exatamente os mesmos

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elementos do senso comum, mesmo que haja alguns
elementos compartilhados. Logo, o senso comum também é
social e histórico.

Como afirmam Sobral e Giacomelli (2015, p. 219), os


níveis da identidade, pensando em termos das propostas de
Bakhtin, são 2:

(a) os aspectos psíquicos que lhe permitem


perceber em si uma dada continuidade
psíquica (“esse sou eu”) e

(b) os elementos sociais e históricos de seu


ser no mundo.

Para Bakhtin, a junção, variável e móvel,


desses elementos em cada sujeito, em
distintos momentos, marca uma
continuidade no fluxo: sou eu, mas me
modulo, me nuanço, de várias maneiras, nos
contatos com os outros. O equilíbrio entre
esses elementos cria outro componente da
identidade (...): (c) a avaliação responsável
(no sentido de o sujeito ser responsável e
responsabilizável, mesmo que nem sempre
assuma a responsabilidade) que o sujeito faz
ao agir, com base no que veio a formar como
seu eu (a) e as coerções das relações sociais
de que é parte (b).

(...)

Vemos que (a) e (b) marcam certa primazia


da repetibilidade, mas (c) é o espaço
específico da irrepetibilidade (cf., acima as
considerações sobre o ato): cada ato é único

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em seu processar-se, ainda que compartilhe
com todos os outros uma dada estrutura de
conteúdo.

Nesses termos, o sujeito seleciona os elementos a


que vai recorrer em suas interações de acordo com sua
identidade (com a mobilidade e estabilidade apontadas),
vinculada com a soma total de suas relações sociais, sua
experiência interativa que o constitui ao longo do tempo, na
história, como o sujeito que é (e não algum outro). Como
dissemos, a seletividade é tanto coletiva como individual, e
tanto sofre a influência do grupo social típico de cada sujeito
(bem como do grupo dominante de sua sociedade), em cada
conjuntura, como depende do eu específico de cada sujeito,
ou seja, dos elementos sociais (objetivação) e dos elementos
pessoais (apropriação).

Bakhtin (Op. cit. loc. cit) insinua a seletividade


valorativa da memória num trecho (já citado aqui de outro
ponto de vista), o qual destacamos aqui:

Aprendemos a moldar nossa fala às formas


do gênero e, ao ouvir a fala do outro,
sabemos de imediato, bem nas primeiras
palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-
lhe o volume (a extensão aproximada do todo
discursivo), a dada estrutura composicional,

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prever-lhe o fim, ou seja, desde o início,
somos sensíveis ao todo discursivo que, em
seguida, no processo da fala, evidenciará
suas diferenciações (grifamos).

Interessa-nos mais precisamente a afirmação:


"somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no
processo da fala, evidenciará suas diferenciações". Ao insistir
nisso, mostrando a mobilidade dos gêneros, Bakhtin fala
daquilo que, para Sobral (2009), são "modulações", ou seja,
os ajustes do projeto enunciativo às circunstâncias específicas
da situação interlocutiva em que se encontra cada sujeito.
Trata-se, a nosso ver, precisamente do espaço em que se
manifesta o aspecto seletivo da memória - dentre as
possibilidades de formas típicas de enunciados, o sujeito vai
selecionar as que melhor sirvam, conjunturalmente, às suas
necessidades enunciativas. E, nesse âmbito, vai chegar a um
nível mais próximo da interação específica: “O que importa
lembrar aqui e agora para realizar meu projeto enunciativo?”.

Logo, o discurso, sempre configurado em gênero e


mobilizando textos, é o espaço em que o sujeito recorre
seletivamente à memória do passado (retrospectiva) e do
futuro (a projeção prospectiva), individual (o histórico
interativo do sujeito) e coletiva (o histórico interativo da
comunidade, da sociedade etc.) a partir de suas necessidades

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presentes, que variam tal como variam os gêneros do
discurso, em sua maleabilidade bem mais ampla do que as das
formas da língua.

O discurso parte da significação, campo das formas


da língua, e a transfigura em sentido, de acordo com as formas
típicas dos enunciados, com maior ou menor liberdade, a
depender da situação enunciativa em que essas formas são
usadas, o que implica seletividade e, portanto, memória e
esquecimento, tanto individuais como coletivos. Dizer é
selecionar formas social e conjunturalmente adequadas de
dizer!

A memória coletiva, valorada individualmente nas


situações de discurso em que os sujeitos se veem, penetra as
próprias fibras da interlocução, de toda interlocução. Trata-
se, recordemos, da memória configurada nas formas objetivas
da própria cultura (inclusive nas formas linguísticas e verbais),
como já apontado. Observamos que Bakhtin, a par de afirmar
esse caráter comum aos atos de todos os sujeitos de uma
dada coletividade, afirma ainda a irredutibilidade do caráter
valorativo, avaliativo, de todo enunciado. Claro que essas
formas objetivas da cultura são também seletivas, fruto do
processo de objetivação coletiva (de uma sociedade e dos
grupos que a compõem, dilacerados em suas valorações em

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tensão) do mundo e do processo de apropriação, individual,
dessa objetivação.

Pensando mais especificamente os elementos que


conferem à memória sua seletividade valorativa, recorremos
aos conceitos bakhtinianos de entoação avaliativa e de
responsividade ativa, que se pressupõem mutuamente, e
estão presentes em todo ato de dizer, em todo ato discursivo 3.
A entoação avaliativa (BAKHTIN, 2003) vem de uma seleção
dos recursos expressivos que melhor atendam, em cada
circunstância, ao projeto de dizer do locutor, nos termos de
sua interação específica com o interlocutor, que, nesse
sentido, participa da seleção, da memória e do esquecimento
constitutivos de todo discurso, que são sempre valorativos.

Ao definir o estatuto do interlocutor, Bakhtin (2003)


diz ser ele dotado de responsividade ativa: a resposta
concreta deste é que permite que se materialize a
compreensão daquilo que lhe é proposto pelo locutor, e que
este lhe propõe em termos de uma dada entoação avaliativa.
Portanto, só faz sentido para os sujeitos aquilo que responde
a alguma coisa e só as coisas às quais é dada uma resposta, no
intercâmbio verbal. Isso supõe memória como rememoração
e memória como projeção, o retrospectivo e o prospectivo.

3 Retomamos aqui elementos da tese de doutorado de Sobral (SOBRAL, 2006).

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A memória coletiva exibe tanto traços comuns a
todos os sujeitos de uma coletividade como traços dos grupos
sociais e dos subgrupos de que são parte os sujeitos, bem
como traços das formas específicas como os sujeitos em
interação se apropriam desses traços, o que reforça a ideia da
seletividade valorativa como a base da relação entre sujeito,
discurso e memória. O que é lembrado e o que é esquecido
não vêm de algum determinismo, mas das circunstâncias
estruturais e conjunturais específicas em que os sujeitos se
veem. Os sujeitos do discurso, portanto, lembram e esquecem
em termos dos projetos enunciativos que os mobilizam e a
que recorrem para alcançar seus fins discursivos.

Considerações Finais

Como vimos, o domínio do sentido se inicia mais


propriamente quando os sujeitos humanos mobilizam
contextualmente os recursos linguísticos, e, enfrentando as
inevitáveis imprecisões que constituem as interações, criam,
dialogicamente, sentido, ou, melhor dizendo, sentidos,
porque negociados com os diferentes parceiros.

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No sistema da língua (domínio da significação) há
uma ordenação em morfemas, palavras e frases, uma
combinatória na qual, a partir de alguns componentes e de
umas quantas regras, se produzem frases; há nele, portanto,
certa invariância. Essa invariância não impede que se produza
um número indefinido de frases. No plano de exercício do
repertório enunciativo, há, para além de regras
combinatórias, uma maior variância, configurada nos
gêneros, que, na definição tão repetida, são “relativamente
estáveis”, ou seja, estáveis o suficiente para serem
identificados como tais e flexíveis o suficiente para serem
alterados de múltiplas maneiras, imprecisamente, portanto.

O trecho de um poema de T. S. Elliot (2014, aqui


traduzido pelos autores) serve para descrever a atividade de
pesquisa em termos dialógicos, ao lidar com a imprecisão não
apenas da linguagem, mas especialmente da vida:

Não cessemos de explorar.

E o final de toda a nossa exploração

Será voltar ao mesmo lugar

E conhecê-lo pela primeira vez.

(T. S. Elliot. O Rei de Espadas.)

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[We shall not cease from exploration/And the
end of all our exploring /Will be to arrive
where we started/And know the place for the
first time.]

[T. S. Elliot – Four Quartets – Section V

Esse trecho do poema mostra a nosso ver que a vida,


e a enunciação, são uma busca eterna, uma exploração, cujo
final é justamente o retorno ao ponto de partida. Mas, tendo
feito o percurso, nosso olhar se altera e passamos a ver como
novo o que antes considerávamos conhecido ou a ver o
conhecido de outra perspectiva. O fenômeno material
permanece o mesmo, mas o olhar que faz dele um objeto, ao
ser alterado, passa a vê-lo como se ainda não o tivesse visto.
Sem o percurso, marcado pela imprecisão, pela passagem por
territórios desconhecidos, não haveria essa mudança de olhar
e permaneceríamos vendo o lugar apenas de um dado ponto
de vista (no plano da significação apenas). O percurso da
enunciação é assim: para voltar ao mesmo lugar, e descobrir
que ele não é mais o mesmo (porque seu sentido se alterou),
cabe explorar, partir em expedição. Sem cessar.

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A identidade, assim como os sentidos, tem
mobilidade, e vai se alterando de acordo com a soma das
relações sociais de que participa cada sujeito, mas contém
certos elementos estáveis que o identificam como o sujeito x,
e não y...n, e é a partir dessa integração, tensa, entre o estável
e o instável que a memória funciona: cada sujeito sempre
lembra (e esquece) à sua maneira, a par de adequar-se a seu
interlocutor, seu grupo social etc.

Rememoração e projeção, constitutivas da


enunciação, não são genéricas, uma vez que têm como ponto
de referência o realizado, o discurso/ato efetivamente
enunciado/realizado, a experiência enunciativa dos sujeitos,
certa estabilidade que permite justamente a negociação do
instável, do novo, do inédito. Bakhtin insiste que todo
enunciado e todo ato são uma unidade, dado que são
constituídos por outros enunciados/atos (no caso dos
enunciados, intertextual, interdiscursiva e
intergenericamente), resultam de uma mobilização de
textos/discursos/gêneros/atos constitutivos e remetem
direta ou indiretamente a textos/atos futuros, buscando
antecipar-se a possíveis objeções, criando assim um todo
integrado que não é mera soma de seus elementos
constituintes.

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Na língua e no agir em geral, é essencial, portanto, a
oposição, tensão permanente entre estabilidade e fixidez, ou
forças centrípetas e forças centrífugas, respectivamente.
Porque aí residem as diferenças, e é das diferenças que
nascem os sentidos. Logo, a seletividade, o esquecimento -
enfim, a valoração - são inevitáveis e vitais. E, em sua base,
estão as imprecisões. Podemos dizer que nada no agir
humano, por ser o humano uma transcendência simbólica do
biológico, foge ao impreciso.

A imprecisão é a base do sublime e da barbárie na


vida humana. Dela vem a escuta alteritária, entendida como a
ressonância entre eus, na qual um eu busca propor ou
compreender outro de seu próprio ponto de vista, mas
considerando o ponto de vista desse outro. Trata-se de um
espaço no qual cabe o confronto constitutivo, advindo do
simples fato de que os sujeitos têm de negociar sentidos na
interação, de que eles não falam automaticamente da mesma
coisa, uma vez que todo sentido é objeto de uma negociação:
se o locutor fala em termos de sua entoação avaliativa, o
interlocutor recebe o dito em termos de sua resposta ativa.

Da imprecisão vem igualmente o conflito, que pode


degenerar em guerra sem quartel, em promoção do ódio,
incapacidade (ou falta de vontade) de escutar ou ao menos
ouvir, o outro, a polarização absurda que é inimiga da

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negociação, seja de sentidos ou da própria convivência
humana. Este último ponto pode ser lamentável, mas é
constitutivo da vida humana em sociedade. Muitos são os
esforços para superar o conflito e permanecer no confronto,
na arena de vozes que de algum modo negociam.

Nem por isso devemos combater as imprecisões. De


um lado, por ser inútil, uma vez que elas são constitutivas do
humano: os esforços de objetividade, de estancamento do
impreciso, criaram algumas das grandes tragédias da
humanidade, mesmo que também tenham produzido
prodígios. E, do outro, porque, sem imprecisões, haveria
apenas, no agir e no enunciar, a letra (ou ação material
repetível, generalizável, sem sujeitos), mas não o espírito (ou
ato não repetível de sujeitos situados). Sem o espírito, não
mais haveria sentido, e a vida deixaria de ser humana, porque
os seres humanos são seres de sentido.

Referências

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bakhtiniana e algumas questões para a educação.
Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v. 1,
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BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Tradução: Paulo
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discursivos: a fase "parasitária” de uma vertente do gênero de
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