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Na maioria das narrativas históricas a palavra Cariri tem a mesma significação que
tapuia. Os índios Tupi, conquistadores do litoral, denominavam de tapuia todas as
“outras” nações, geralmente inimigas, que não falavam a língua geral. Os
colonizadores portugueses tomaram emprestados dos Tupi o termo tapuia para
designar todas as nações indígenas que se localizavam nos desertões (sertões) e que
resistiam ao processo colonizador. Pode-se então definir que o Cariri compreende
todas as áreas dos sertões do Nordeste, ocupadas pela cultura tapuia ou Cariri que será
denominada, a partir de agora, de cabocla-cariri. Mais adiante, será objeto de
comentários neste texto a cultura que resultou do conflito e da almagação de diversas
culturas e etnias nos alicerces da nação sertaneja.
A Terra do Encantado
Para os índios que habitavam a região, o vale do Cariri cearense já era “território
sagrado”, bem antes que os primeiros colonizadores católicos chegassem para a
conquista, a posse e o saque. Foi em defesa dessa terra da fertilidade e da fartura,
onde se situava também o “espaço mítico”, que os índios Cariri fizeram guerras contra
os invasores brancos e mestiços colonizadores e, bem antes, contra as tribos dos
sertões que, empurradas pela escassez de víveres e pelas secas periódicas, tentavam se
estabelecer na região. Índios, negros e mestiços do Nordeste já conheciam o Cariri
cearense como “terra da fertilidade”, como “chão sagrado”, bem antes das pregações
do padre Ibiapina e de Antônio Conselheiro, do milagre da beata Maria de Araújo e da
fama do padre Cícero. O “caldo mítico” original foi propício à fecundação e eclosão
dos futuros movimentos religiosos e crenças messiânicas populares. Os expulsos do
“Paraíso” sonhavam com o retorno.
Reliogisidade e mitos
A lenda com o tempo passa por modificações ao sabor das necessidades históricas.
Para os romeiros que chegavam a Juazeiro, cidade vizinha ao Crato, a profecia da
grande enchente era inquietante, pois, mesmo para a lógica mais elementar,
significava que se o Crato fosse inundado, o Juazeiro também o seria. Surgiu, então, a
“boa nova” de que o Padre Cícero amarrara a “Pedra da Batateiras” com grossas
correntes de ferro e teria pedido a proteção da Mãe do Belo Amor (a primeira imagem
adorada pelos índios Cariri na Missão do Miranda). A pedra só iria rolar no final dos
tempos e Juazeiro seria suspenso no céu para que as águas passassem devorando as
iniqüidades do mundo. Baixas as águas, teria início a era do “Espírito Santo” e os
pobres e deserdados da terra herdariam o “Paraíso”. Nas suas andanças pelo Cariri, na
época em que negociava com cachaça, Antônio Conselheiro escutou de caboclos da
região o lenda da “Pedra da Batateiras”, a partir da qual fundamentaria a profecia que
pregava nos sertões da Bahia: “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Esse
discurso “messiânico” encontrou eco nos caboclos dos sertões baianos, fazendo com
que os índios Cariri de Mirandela e Saco do Morcego, catequizados pelos frades
capuchinhos, contribuíssem com a força de 300 caboclos flecheiros na defesa do
Império Sagrado de Canudos, contra a fúria insana dos exércitos enviados pela jovem
República brasileira.
A constelação
Como expressão dessa cultura, temos as histórias escritas com sangue nas areias do
deserto e adivinhadas em versos pelos cegos rabequeiros; as formas de vida
modeladas no barro e revitalizadas pelo sopro da beleza; o coração dos homens que,
habitando a terra bruta, se faz terno ao ser ferido pelos espinhos da poesia mais
agreste; um mundo de realidades sonhadas nos contrastes das xilogravuras que
ilustram os milagres e maravilhas da literatura de cordel; o dom dos mil ritmos nas
canções dos cantadores ambulantes; os pastoris e caboclinhos cheios de graça e de
luz; o encanto dos reisados de Congo e de bailes com suas fitas coloridas e espelhos
que refletem o sol; as romarias como caminhos iniciáticos - festas de prazeres e ritos
de penitências, onde o povo caboclo-cariri sabe o nome da sua Mãe: N. S. das Dores,
N. S. das Candeias, N.S. do Belo Amor... todas uma mesma e Única-Mulher que
gerou o mundo e o fez pulsar em um ciclo eterno de mortes e de ressureições. Para
esse povo também não existe nenhuma dúvida que o “Bom Espírito” se chama Cícero,
assim como poderia se chamar Ibiapina, Conselheiro, Lourenço ou Damião.
Nomes, nomes, centenas de nomes que flutuam ao sabor da memória, como estrelas
no céu. Se nas grandes constelações, apenas algumas estrelas são identificadas e
nomeadas, milhões de outras estrelas anônimas não deixam de brilhar e de fazer mais
belo o mundo. Assim também é a cultura tradicional de um povo - luz e trevas de toda
a humanidade. A esses homens e mulheres eu devo a minha arte mais profunda - o
sonho. Devo também o nome pelo o qual eu me anuncio ao mundo: Cariri.
ROSEMBERG CARIRY
Especial para o Caderno 3
Natural do município de Farias Brito, Rosemberg Cariry é cineasta e pesquisador
das culturas tradicionais.