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Cariri, a nação das utopias

Para além de seus recortes físicos, de suas demarcações geográficas, o Cariri se


afirma por saberes, fazeres e memórias de um Ceará mítico

A região do Cariri cearense é um oásis, o verde coração do semi-árido nordestino.


Apesar de ser uma terra de farturas e de portentos, sua história revela a tragédia do
processo civilizatório sertanejo no destino de um povo -os Cariri (Kariri ou Quiriri) -
que se fundiu na carne e na alma dos seus inimigos: fazendeiros, criadores de gados,
agricultores e vaqueiros oriundos de Sergipe, de Pernambuco e da Bahia. Ao Cariri
cearense, centro geográfico com eqüidistância para as principais capitais do Nordeste,
desde meados do século XVII até os dias de hoje, continuam a chegar multidões
sertanejas, em um fluxo constante, atraídas pela fertilidade e pela sagração do
território como espaço mítico.

É muito pobre a definição do Cariri apenas como um espaço geográfico. O Cariri,


antes, trata-se de uma nação de mestiços Tapuia que têm em comum a mesma
formação histórica e cultural. Mesmo se levarmos em conta apenas o espaço
geográfico onde os Cariri habitaram e deixaram a sua marca na cultura popular
teremos que considerar ainda os sertões do Piauí, da Bahia, de Alagoas, de Sergipe e
do Rio Grande do Norte. Os sertões desses estados formam o território físico e
cultural da grande Nação Cariri.

Na maioria das narrativas históricas a palavra Cariri tem a mesma significação que
tapuia. Os índios Tupi, conquistadores do litoral, denominavam de tapuia todas as
“outras” nações, geralmente inimigas, que não falavam a língua geral. Os
colonizadores portugueses tomaram emprestados dos Tupi o termo tapuia para
designar todas as nações indígenas que se localizavam nos desertões (sertões) e que
resistiam ao processo colonizador. Pode-se então definir que o Cariri compreende
todas as áreas dos sertões do Nordeste, ocupadas pela cultura tapuia ou Cariri que será
denominada, a partir de agora, de cabocla-cariri. Mais adiante, será objeto de
comentários neste texto a cultura que resultou do conflito e da almagação de diversas
culturas e etnias nos alicerces da nação sertaneja.

O Cariri vai virar mar

Os remanescentes das tribos Cariri, alocados na Missão do Miranda, guardaram


codificados, na sua sensibilidade, intuição e memória, a evocação da “lagoa
encantada” - lugar mítico das suas origens. Para eles, todo o vale do Cariri era um mar
subterrâneo. Debaixo da terra dormia a Serpente d´Água, cujo imenso caudal era
represado pela “Pedra da Batateiras”, ao sopé da chapada do Araripe. Precisamente,
onde hoje está situada a Matriz do Crato, erigida sob a invocação de N.S. do Belo
Amor, era a cama da baleia (na simbologia cristã : o peixe que guia a arca nas águas
do dilúvio). Os pajés Cariri profetizavam que a “Pedra da Batateiras” iria rolar, todo o
vale do Cariri seria inundado e as águas, em fúria, devorariam os homens maus que
tinham roubado a terra e escravizado os índios. Quando as águas baixassem, a terra
voltaria a ser fértil e livre e os Cariri voltariam para repovoar o “Paraíso”.
Não se sabe em que momento surgiu a lenda da “Pedra da Batateiras”, mas é possível
que tenha surgido com o aldeamento dos índios Cariri na Missão do Miranda (1740 -
1750). É certo que, por volta de 1779, na mesma época em que eram despojados mais
uma vez das suas terras, por decisão de José César de Meneses, governador de
Pernambuco, os caboclos-cariri atribuíam a profecia de que “o Cariri iria virar mar”
ao frei Vital Frescarolo, missionário apostólico capuchinho. Em um momento de
crise, de dissolução da cultura e do sentido de “comunidade”, os caboclos-cariri
buscavam, assim, uma “autoridade” exterior para dar à lenda foros de verdade sagrada
e manter a coesão do grupo. Irineu Pinheiro registra que, em 1803, o frei Vital aldeou,
nos sertões de Pernambuco, tribos remanescentes da grande Nação Cariri.

A Terra do Encantado

Sérgio Buarque de Holanda, em “A Visão do Paraíso”, demonstrou como a terra


brasileira, com a sua fertilidade e clima temperado, revelou-se aos europeus como o
“Paraíso”, uma terra de prodígios e maravilhas. Os conquistadores projetavam na
Nova Terra os delírios hedonistas do “Pays de Cocagne”, narrativa popular medieval
que fala de uma espécie de Paraíso (do qual se originou o nosso cordel “País de São
Saruê”), onde tudo existia com abundância e todos os desejos do homem podiam se
realizar.

No Livro “Espelho Índio - a formação da alma brasileira”, Roberto Gambini diz:


“Sendo o Paraíso o lugar das delícias, é onde o homem brinca livremente nos campos
do Senhor até desobedecê-lo e onde tudo é dado de presente. É o lugar da fruição:
basta estender a mão e apanhar o fruto, a mulher, o pau-brasil, o braço escravizado...
Nessa nova terra ignota e ´descoberta´, que não era de ninguém e que além do mais
recebe a projeção do Paraíso sobre si, constitui-se dessa forma a matriz de uma
consciência para qual é possível e desejável apropriar-se da cornucópia e sugar para
sempre, como eternos filhos que nunca crescem, o leite de um seio inexaurível”.

Situado em meio à seca e às agruras do semi-árido nordestino, o Cariri cearense, com


seu clima temperado, suas fontes de águas cristalinas, suas terras verdes e férteis,
também revelar-se-ia ao conquistador como o lugar da fruição.

Para os índios que habitavam a região, o vale do Cariri cearense já era “território
sagrado”, bem antes que os primeiros colonizadores católicos chegassem para a
conquista, a posse e o saque. Foi em defesa dessa terra da fertilidade e da fartura,
onde se situava também o “espaço mítico”, que os índios Cariri fizeram guerras contra
os invasores brancos e mestiços colonizadores e, bem antes, contra as tribos dos
sertões que, empurradas pela escassez de víveres e pelas secas periódicas, tentavam se
estabelecer na região. Índios, negros e mestiços do Nordeste já conheciam o Cariri
cearense como “terra da fertilidade”, como “chão sagrado”, bem antes das pregações
do padre Ibiapina e de Antônio Conselheiro, do milagre da beata Maria de Araújo e da
fama do padre Cícero. O “caldo mítico” original foi propício à fecundação e eclosão
dos futuros movimentos religiosos e crenças messiânicas populares. Os expulsos do
“Paraíso” sonhavam com o retorno.

Reliogisidade e mitos
A lenda com o tempo passa por modificações ao sabor das necessidades históricas.
Para os romeiros que chegavam a Juazeiro, cidade vizinha ao Crato, a profecia da
grande enchente era inquietante, pois, mesmo para a lógica mais elementar,
significava que se o Crato fosse inundado, o Juazeiro também o seria. Surgiu, então, a
“boa nova” de que o Padre Cícero amarrara a “Pedra da Batateiras” com grossas
correntes de ferro e teria pedido a proteção da Mãe do Belo Amor (a primeira imagem
adorada pelos índios Cariri na Missão do Miranda). A pedra só iria rolar no final dos
tempos e Juazeiro seria suspenso no céu para que as águas passassem devorando as
iniqüidades do mundo. Baixas as águas, teria início a era do “Espírito Santo” e os
pobres e deserdados da terra herdariam o “Paraíso”. Nas suas andanças pelo Cariri, na
época em que negociava com cachaça, Antônio Conselheiro escutou de caboclos da
região o lenda da “Pedra da Batateiras”, a partir da qual fundamentaria a profecia que
pregava nos sertões da Bahia: “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Esse
discurso “messiânico” encontrou eco nos caboclos dos sertões baianos, fazendo com
que os índios Cariri de Mirandela e Saco do Morcego, catequizados pelos frades
capuchinhos, contribuíssem com a força de 300 caboclos flecheiros na defesa do
Império Sagrado de Canudos, contra a fúria insana dos exércitos enviados pela jovem
República brasileira.

O Caldeirão das culturas

O Cariri cearense é um dos berços do processo civilizatório sertanejo; é o grande


caldeirão das culturas e etnias do Nordeste. Esse processo civilizatório, que se moveu
sobre destroços e ossadas gerou uma cultura original que deita raízes nas principais
vertentes das culturas ocidentais, notadamente das culturas tapuia, européias (ibéricas
e mediterrâneas), norte africanas e afro-brasileiras. A grande riqueza e a grande
contribuição do Cariri ao Brasil e ao mundo, não acontece através da cultura letrada e
erudita, nem mesmo através do vigor da sua economia ou da sua importância política
regional. O ouro dessa região é a cultura popular ou, como preferem os politicamente
corretos, as culturas populares que possibilitaram um verdadeiro renascimento
artístico - síntese e ensaio de uma brasilidade herdeira do mundo. A cultura cabocla-
cariri, nascida da violência e do caos colonial, com seus heróis e suas artes de mil
faces, com seus arquétipos e mitos, com sua orgia de forma e de cores, é uma cultura
que ensaia uma nação brasileira mestiça e profunda. A cultura cabocla-cariri é,
sobretudo, uma cultura generosa, pois nascida da violência e da exclusão se fez
encontro e reciprocidade; crescida no múltiplo se fez síntese e, novamente, se afirmou
na diversidade.

A constelação

Como expressão dessa cultura, temos as histórias escritas com sangue nas areias do
deserto e adivinhadas em versos pelos cegos rabequeiros; as formas de vida
modeladas no barro e revitalizadas pelo sopro da beleza; o coração dos homens que,
habitando a terra bruta, se faz terno ao ser ferido pelos espinhos da poesia mais
agreste; um mundo de realidades sonhadas nos contrastes das xilogravuras que
ilustram os milagres e maravilhas da literatura de cordel; o dom dos mil ritmos nas
canções dos cantadores ambulantes; os pastoris e caboclinhos cheios de graça e de
luz; o encanto dos reisados de Congo e de bailes com suas fitas coloridas e espelhos
que refletem o sol; as romarias como caminhos iniciáticos - festas de prazeres e ritos
de penitências, onde o povo caboclo-cariri sabe o nome da sua Mãe: N. S. das Dores,
N. S. das Candeias, N.S. do Belo Amor... todas uma mesma e Única-Mulher que
gerou o mundo e o fez pulsar em um ciclo eterno de mortes e de ressureições. Para
esse povo também não existe nenhuma dúvida que o “Bom Espírito” se chama Cícero,
assim como poderia se chamar Ibiapina, Conselheiro, Lourenço ou Damião.

A cultura cabocla-cariri se transfigura em arte através de nomes como Patativa do


Assaré, José Bernardo da Silva, Dona Ciça Fonseca, Cego Oliveira, Mestre Elói Teles
de Morais, João de Cristo Rei, Mestre Aldenir Calou, Geraldo Gonçalves de Alencar,
Mestre Ticola, Mestre José Ribeiro, Dona Assunção Gonçalves, Beata Rosinha, Cego
Heleno de Nova Olinda, Dona Perpétua, As Três Marias (Maria de Lourdes, Maria do
Socorro e Maria Cândido Monteiro), João Alexandre Sobrinho, Waldemar dos
Passarinhos, Manoel Caboclo, Zé Gato, Luiz Gonzaga, Mestre Aprígio, José Ferreira,
Expedito Sebastião da Silva, Mestre Dedé de Luna, Severino Batista do berimbau de
lata, Pedro Bandeira, José Aves de Jesus, Francorli, Mestre Noza, Mestre Tico, Cego
Aderaldo, Joaquim Mulato, Mestre Zulmira, José Lourenço, Mestre Severino do sítio
Cabaceiras, Chico Mariano do Casimiro Coco, Dona Ciça do Barro Cru, Maria do
Barro Cru, Nego, Madrinha Dodô, Mestre Sebastião Cosmo e Dona Fátima, Mestra
Margarida, Geraldo Amâncio, Cizin, Dona Maria dos Benditos, os Irmãos Aniceto
(Chico, João, Antônio, Raimundo, Benedito, Cícero e Britim), Walderedo Gonçalves,
Zé de Matos, Mestre Miguel Florentino, Mestre Manuel Graciano, Mestre Nino do
Crato...

Nomes, nomes, centenas de nomes que flutuam ao sabor da memória, como estrelas
no céu. Se nas grandes constelações, apenas algumas estrelas são identificadas e
nomeadas, milhões de outras estrelas anônimas não deixam de brilhar e de fazer mais
belo o mundo. Assim também é a cultura tradicional de um povo - luz e trevas de toda
a humanidade. A esses homens e mulheres eu devo a minha arte mais profunda - o
sonho. Devo também o nome pelo o qual eu me anuncio ao mundo: Cariri.

ROSEMBERG CARIRY
Especial para o Caderno 3
Natural do município de Farias Brito, Rosemberg Cariry é cineasta e pesquisador
das culturas tradicionais.

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