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OS ESCRAVOS DA MISERICÓRDIA

Article  in  Amazônica - Revista de Antropologia · February 2014


DOI: 10.18542/amazonica.v5i2.1499

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1 author:

Marcio Couto Henrique


Federal University of Pará
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Os escravo
da Misericórd

386 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2):


os Os escravos
dia da Misericórdia

MÁRCIO COUTO HENRIQUE


Universidade Federal do Pará e Instituto Histórico e Geográfico
do Pará, Brasil

387
Henrique, M. C.

O S ES CRAVOS DA M IS E RICÓ RDIA


Resumo
Este artigo analisa a relação da Santa Casa de Misericórdia do Pará com
seus próprios escravos, ao longo do século XIX. Com base na documen-
tação produzida pelos presidentes da província do Pará e nos relatórios
dos provedores da Santa Casa, faz-se um apanhado histórico do trata-
mento dispensado aos escravos, os tipos de trabalhos em que eles eram
usados e em que condições, a importância do trabalho escravo enquanto
fonte de renda para a instituição, o papel dos escravos durante as epidemias,
as doenças que os acometiam e as formas de tratamento. A pesquisa
mostra que, se muitas vezes puderam fazer uso dos serviços médicos da
instituição, não seria em irmandades como a Santa Casa de Misericórdia
que os escravos encontrariam espaço para expressar suas angústias di-
ante das tensões da escravidão.
Palavras-chave: Santa Casa de Misericórdia do Pará, hospital, escravidão.

THE SLAVES OF MERCY


Abstract
This article analyzes the relationship of the Holly House of Mercy of Pará
with their own slaves, along the 19th century. Based on documents produced
by the presidents of the Province of Pará and the Holly House providers'
reports, the article presents a historical account of the treatment dispensed to
the slaves, the tasks were asked to perform, the conditions provided for such
tasks, the importance of the slave work force as a source of income for the
institution, the slaves' role during times of epidemics diseases, the diseases
they were subjected to and the treatment they received. The research shows
that, if eventually they used the institution medical services, it wouldn't be
in hospitals as Holly House of Mercy that the slaves would find support to
express their distress under the pressures of servitude.
Keywords: Holly House of Mercy of Pará, hospital, slavery.

LOS ESCLAVOS DE LA MISERICORDIA


Resumen
En este artículo se analiza la relación de la Santa Casa de Misericordia de
Pará con sus propios esclavos, durante el siglo XIX. En base a la docu-
mentación presentada por los presidentes de la provincia de Pará y de
los informes de los proveedores de la Santa Casa, se ofrece un histórico
del tratamiento a los esclavos, los tipos de puestos de trabajo en el que se
utilizavan y en qué condiciones, la importancia del trabajo esclavo como
fuente de ingresos para la institución, el papel de los esclavos durante las

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Os escravos da Misericórdia

epidemias, las enfermedades que los afligian y las formas de tratamiento.


La investigación muestra que, aunque a menudo pueden hacer uso de los
servicios médicos de la institución, no sería en hospitales como la Santa
Casa de Misericordia que los esclavos iban a encontrar espacio para ex-
presar su angustia por las cepas de la esclavitud.
Palabras clave: Santa Casa de Misericordia de Pará, hospital, esclavitud.

Endereço do autor para correspondência: Faculdade de História da


UFPA, Av. Augusto Correa nº 01, bairro: Guamá CEP 66075-110,
Belém, Pará. E-mail: marciocouto@ufpa.br

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OS “HOMENS ABONADOS” E OS aprovado em 1854, por exemplo, dizia


“DESVALIDOS DA SORTE” que “os fins da irmandade consistem na
prática de obras pias e de misericórdia em
Muito embora vários estudos tenham
favor e socorro dos pobres e dos enfer-
apontado para a presença do negro
mos desvalidos”.2 Mas leitura mais atenta
na Amazônia (Salles 1988; Vergolino-
destes estatutos mostra que não seria em
Henry & Figueiredo 1990; Bezerra-Ne-
irmandades como a Santa Casa de Mi-
to 2001), a singularidade da experiência
sericórdia que os escravos encontrariam
escrava na irmandade da Santa Casa de
espaço para expressar suas angústias di-
Misericórdia do Pará (SCMP) ainda é
ante das tensões da escravidão.
tema não explorado em profundidade.
Ampla documentação composta por Em primeiro lugar, os escravos não
relatórios, mensagens e falas dos presi- participavam da Santa Casa como con-
dentes da Província do Grão-Pará no freiros, ou seja, como membros asso-
século XIX constitui fonte preciosa ciados, haja vista que o estatuto desta
para o estudo da experiência escrava irmandade proibia tal participação. A
na Amazônia, bem como para estudo proibição se dava desde o primeiro
ligado ao campo da história das insti- Compromisso adotado pela SCMP
tuições, principalmente em se tratan- (1650), e que tinha como base o da
do de instituição presente na história Santa Casa de Lisboa, de 1618, que exigia
do Pará desde 1650. Lembre-se que que seus membros não apresentassem
Belém foi fundada em 1616, apenas 34 “impureza de sangue pela mescla com
anos antes da fundação da irmandade judeu ou mouro”, que soubessem ler
da misericórdia. Desde suas origens, e escrever e possuíssem bens (Vianna
tratava-se de associação voltada para o 1992: 10). Evidentemente, esses crité-
serviço de caridade junto aos doentes, rios excluíam os escravos, tanto pelo
pobres, órfãos e prisioneiros. O termo desconhecimento da leitura e da escri-
“misericórdia”, portanto, é utilizado ta, como por não “dispor de meios de
no sentido de caridade, de serviço segura subsistência” e serem estigma-
prestado aos mais necessitados. tizados pelo sangue considerado “in-
fecto”.3 Segundo Charles Boxer, para
Vicente Salles já havia observado que
ser sócio da Santa Casa era necessário
“entre as instituições possuidoras de
“ter situação suficientemente confor-
escravos merece destaque a Santa
tável para impedir qualquer tentativa
Casa de Misericórdia do Pará” (1988:
de desviar fundos da Misericórdia, e
178). A julgar por determinados artigos
servi-la sem que isso lhe causasse ne-
do Compromisso da SCMP,1 poder-se-
nhum embaraço financeiro” (2002: 300).
ia inferir, anacronicamente, que por se
tratar de associação religiosa, voltada Com relação à proporção de alfabetiza-
para a assistência médica e espiritual aos dos entre os escravos no Brasil, Edu-
“desvalidos da sorte”, a irmandade dis- ardo Silva (1989:15) observa que, em
pensaria tratamento mais generoso aos 1872, por exemplo, menos de um a
seus próprios escravos. O Compromisso cada mil escravos sabia ler e escrever.

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Os escravos da Misericórdia

Vicente Salles, por sua vez, em “O ne- era muito valorizado devido ao eleva-
gro no Pará” (1988:146-7), afirma que do status social que proporcionava ao
“para os escravos era taxativamente ve- ocupante, embora pudesse levar um
dada a educação”. No Liceu Paraense, homem consciencioso a ficar extrema-
fundado em 1841, único estabeleci- mente endividado” (2002: 302). Nem
mento público de instrução secundária todos os nomes acima citados ocu-
da Província ao longo da segunda param a função de provedor, mas sua
metade do século XIX, a matrícula presença na condição de sócios serve
era proibida aos que tinham moléstias de indicativo do prestígio social alcan-
contagiosas e aos que não eram livres. çado pela SCMP.
Como em outras partes do Brasil, a Em 1849, o patrimônio da SCMP com-
irmandade da SCMP reunia em seus preendia o templo de Santo Alexandre,
quadros elementos da elite econômica o “hospício” dos lázaros na fazenda
e intelectual paraense. Em 1891, constavam Tucunduba, o Hospital Bom Jesus dos
na “Lista dos sócios da Santa Casa de Pobres, quatro fazendas: Pinheiro (atual
Misericórdia” 310 nomes. Dentre eles, Icoaraci), Graciosa (no rio Capim), Ca-
havia 30 doutores, 20 bacharéis, cinco viana (na foz do Amazonas) e Bom
tenentes-coronéis, cinco engenheiros, Jesus (no Marajó), um cacoal no rio
quatro majores, três comendadores, Capim, 31 casas de aluguel e 162 es-
três cônegos, dois conselheiros, dois cravos (Vianna 1992). Estes últimos
coronéis, um capitão, um desembar- eram utilizados em fazendas de criação
gador e um padre-Dr. Diversos só- de gado, na indústria extrativa, no tra-
cios da SCMP ocuparam os cargos balho de lavoura e em profissões tais
de deputado estadual, presidente da como pedreiros, carpinteiros, ferreiros,
província ou governador (a partir da calafates, enfermeiros, cozinheiros e
República). Dentre os mais conheci- serventes do cemitério. Nos episódios
dos, citam-se Antonio Lemos (eleito narrados a seguir, pode-se ter ideia do
intendente de Belém, equivalente a tratamento que a irmandade dispen-
prefeito municipal, em 1897), Antonio sava a estes “desvalidos da sorte”.
Nicolau de Monteiro Baena (senador
Em 25 de setembro de 1839, conforme
entre 1890-1897, vice-governador en-
Arthur Vianna (1992), estiveram pre-
tre 1897-1898), Justo Leite Chermont
sentes à reunião da mesa administra-
(1857-1926, deputado provincial, gover-
tiva da Santa Casa “três míseras pre-
nador do Pará, ministro e senador),
tas” que haviam fugido da fazenda do
Augusto Montenegro (governador do
Capim. Tendo os mesários discutido
Pará), barão de Guajará (Domingos
a punição que deveria ser imputada a
Antonio Raiol, 1830-1912, foi presi-
elas, decidiram por unanimidade de
dente das províncias de Alagoas, Ceará
votos que cada uma deveria receber
e São Paulo) e Francisco da Silva Cas-
seis dúzias de palmatoadas dentro do
tro (1837-1899, médico).4 Conforme
Hospital do Bom Jesus dos Pobres, em
Charles Boxer, “o cargo de provedor
Belém, onde se achavam reunidos, no

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Largo da Sé.5 Se, por um lado, o fato prestavam serviços à Instituição,


das três “míseras pretas” terem fugido recebiam um ordenado. Todos
da fazenda da SCMP pode servir de tinham ocupação, um salário, com
indicativo de tratamento que não lhes roupa, alimentação, remédios e
agradava, as seis dúzias de palmatoadas eram livres” (1981: 23)
não deixam dúvida quanto ao recurso O autor resolve o que parece ser um
à violência enquanto estratégia de con- desconforto em assumir a existência
trole por parte da administração da ir- da escravidão numa instituição que ele
mandade. define como “fonte de luz, caridade
Não foi diferente a “sorte” de Felippe e justiça” acomodando de forma bas-
e Lázaro, também escravos da Santa tante confusa e anacrônica trabalhadores
Casa, que haviam fugido do Pinheiro que são, ao mesmo tempo, “cativos”
e foram presos em Belém. A mesa que prestam serviço à Santa Casa e
administrativa (1843-1844), com o “livres” assalariados. Postura bem
consentimento do chefe de polícia, diferente é adotada por Vianna, ao se
ordenou que fossem dados nos dois referir à relação da irmandade paraense
“seiscentos açoites”. Felippe chegou a com a escravidão:
receber o “bárbaro castigo” como de- “A Misericórdia desde longa data
nominou Arthur Vianna, “porém o seu possuía escravos, em não pequeno
infeliz companheiro antecipou a tarefa número, nem lhe era permitido
dos carrascos garroteando-se em uma prescindir d’elles quando dos seus
árvore” (1992:145). Fica evidente que braços sahiam exclusivamente os
serviços de criadagem, da industria
o fato de Felippe e Lázaro e as “três
extractiva e pastoril, do amanho
míseras pretas” serem escravos de uma das terras de lavoura, das artes
irmandade, ou seja, de associação reli- manufactureiras; ela os comprou,
giosa voltada para fins de caridade, de vendeu, permutou e empregou
serviço aos pobres, não os torna isen- como qualquer capitalista, sem ter
tos da violência do controle senhorial. por elles mais compaixão do que os
outros, sem ver nelles outra cousa
Se Arthur Vianna apresenta sem em- que não o emprego do capital, cu-
baraço o tratamento que a SCMP dis- jos juros auferia” (1992: 145)
pensava aos escravos, nota-se que ao
escrever sobre a instituição em outras Nascido em 1873, Arthur Vianna ainda
partes do Brasil, alguns autores eviden- conviveu com a escravidão, tendo 15
ciam certo desconforto ao tratar do anos de idade por ocasião da Abolição.
mesmo tema. É assim que, ao tratar da Além dos fatos que guardou em sua
escravidão na Santa Casa de Misericór- memória, ele teve acesso a ampla e
dia do Rio de Janeiro, Dahas Chade variada documentação, na qual pôde
Zarur afirma que visualizar a relação da Santa Casa de
Misericórdia do Pará com seus escravos.
“nunca existiu a escravatura na Ir-
mandade da Misericórdia, embora
tivesse cativos, porém, quando

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Os escravos da Misericórdia

A CABANAGEM E O (DES)CONTROLE nada tem produzido depois da Revolução”


DOS ESCRAVOS (Pará 1838: 38). Na mesma data, a fa-
zenda Graciosa (também chamada de
A SCMP não passou incólume aos
Caridade), no Rio Capim, tinha 99 es-
acontecimentos da Cabanagem. Até
cravos, mas somente 35 destes eram
14 de agosto de 1835, os negócios da
“de serviço” (Pará 1838: 38). Na fazen-
instituição estiveram a cargo de Sebas-
da Bom Jesus, de gado vacum e cavalar,
tião José da Silva, nomeado por Felix
na ilha do Marajó, restou apenas “um
Antonio Clemente Malcher, primeiro
escravo velho” (Pará 1838:18). Crítico
presidente cabano, definido por Arthur
dos “mais cannibaes attentados contra
Vianna como “presidente intruso”
a propriedade particular” e defensor
(1992:135). Da referida data até a reto-
da legalidade que veio “restabelecer a
mada de Belém pelas forças legalistas
paz”, Vianna observava que “por toda
(13/05/1836), a provedoria foi ocu-
a parte o rasto vermelho da lucta fra-
pada pelo enfermeiro Carlos dos Reis
trecida deixára manchas indeleveis”
Magos, que voluntariamente assumiu
(1992:137).
o cargo. No Hospital do Senhor Bom
Jesus dos Pobres, os rebeldes cabanos Uma das principais tarefas a que se
levantaram uma trincheira guarnecida dedicou a SCMP depois da retomada de
com canhão de pequeno calibre. Ao Belém pelas forças legalistas foi exata-
avaliar as “peripécias da revolução e mente a de readquirir seus escravos.
as suas consequências” para os negó- Muitos escravos de ganho estavam
cios da SCMP, Vianna afirma que “os dispersos pelas casas de seus aluga-
escravos em sua maioria tinham-se dores e a Irmandade teve de recorrer
aproveitado do cataclysma, fazendo à presidência da província para “ar-
causa comum com os cabanos ou rancar as suas alimarias humanas das
fugindo para quilombos ou sítios igno- mãos dos que gozavam-lhe os serviços
rados” (1992:137). Como indicativo do braçais” (Vianna 1992:145).
aspecto polissêmico da Cabanagem, Em 1844, o presidente da província,
note-se que muitos destes escravos Manoel Paranhos da Silva Vellozo,
lutaram lado a lado com membros parabenizava o provedor da SCMP,
da diretoria da Santa Casa, tais como João Baptista de Figueiredo Tenreiro,
o provedor Ignacio José Pestana, que pelos melhoramentos que vinha fazen-
apoiou a aclamação de Malcher, sendo do nos negócios da instituição
morto ao longo do conflito.
“... tratando do concerto e bem-
Durante a Cabanagem, as fazendas feitorias do seu Templo, Hospital,
da SCMP tornaram-se alvo fácil de e de vinte e duas propriedades, do
saqueadores. Ao descrever os bens da aproveitamento de suas Fazen-
fazenda Caviana (na foz do Amazo- das, que estavam em abandono, e
nas), em 1838, o presidente da provín- em ruína, e no aumento de seus
cia, Soares Andréa, afirmou que “nesta rendimentos, concorrendo as-
fazenda existem 35 escravos da Casa, e sim eficazmente para que este Pio

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estabelecimento vá surgindo do Misericórdia — Januário, preto,


estado decadente a que o levou a baixo, barrigudo, de 48 anos de
crise devastadora porque passou idade, pouco mais ou menos, sus-
a Província, deixando-o reduzido peitando-se andar para o distrito
aos únicos rendimentos de uma do Rio Capim — Izidoro, preto,
Fazenda e de alguns prédios e es- baixo, 30 anos pouco mais ou me-
cravos artistas com que teve de ir nos, — Jesuíno, preto fulo, esta-
socorrendo os enfermos no seu tura regular, carapinha um pouco
hospital e os infelizes Lázaros” branca, voz grossa, de idade de 50
(Pará 1844: 26). a 60 anos; suspeita-se estar na Ilha
Caviana: quem os capturar e os en-
À essa época a fazenda Graciosa pos- tregar nesta cidade ao mordomo
suía 90 escravos, nove a menos do que dos escravos Paulo Maria Perdigão,
em 1838, sendo que a maior parte era ou ao Provedor Joaquim António
formada por velhos, mulheres e cri- Alves, será recompensado conveni-
anças. Talvez por isso o presidente entemente” (Salles 1988:324)
da província tenha lamentado que a
Tanto no rio Capim quanto na região
referida fazenda “produz um muito
do Marajó, onde ficava a fazenda Ca-
tênue rendimento com que são man-
viana, havia quilombos que acolhiam
tidos os escravos que ali existem, os
escravos fugidos, conforme mostra
quais pelas suas circunstâncias pouco
mapa elaborado por Vicente Salles
serviço prestam” (Pará 1844: 27).
(1988: 219). Em abril de 1851, Manoel
Com relação à fazenda do Pinheiro,
Gonçalves do Rêgo, morador de São
dizia o presidente da província que,
Caetano, anunciava no periódico “O
quando passou ao domínio da Santa
Planeta” a fuga de dois de seus escravos,
Casa, estava “em ruína, e os escravos
acrescentando: “consta-lhe estarem
tinham perdido o hábito do trabalho,
pelo distrito de Chaves em Marajó, na
não chegando os rendimentos para
fazenda da Santa Casa, acoutados por
sua manutenção” (Pará 1844: 27). De
um prêto de nome Ponciano” (Salles
certa forma, esta desestruturação pa-
1988: 215). Este dado é importante na
rece ter significado certa flexibilidade
medida em que evidencia a articulação
no controle senhorial, pois os escravos
e solidariedade entre companheiros de
da fazenda Caviana nada produziam
infortúnio, bem como a atitude auda-
depois da “Revolução” e os da fazenda
ciosa dos escravos da SCMP ao darem
Pinheiro “tinham perdido o hábito do
couto aos fujões, mesmo sabendo do
trabalho” e mal produziam para seu
rigor das penalidades que incidiam so-
próprio sustento.
bre esta prática. Os anúncios de fuga de
As fugas dos escravos da Santa Casa escravos geralmente terminavam com
eram anunciadas nos jornais de Belém, expressões do tipo “protestando-se
como a que foi publicada em O Pla- contra o acoutamento ou quem tiver
neta, aos 17 de agosto de 1850: parte em sua fuga”, “protesta-se con-
“Fugiram no corrente ano os se- tra quem o ocultar” ou “protesta-se
guintes escravos da Santa Casa de com todo o rigor da lei contra quem

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Os escravos da Misericórdia

lhes der couto (op. cit: 318-325). deixando à revelia os serviços de que
estava incumbido” (1992:145). De
O fato das fazendas ficarem muito dis-
todo modo, as constantes queixas dos
tantes de Belém e o suposto “desleixo
provedores com relação à baixa produ-
dos administradores” dificultava maior
tividade ou à “inércia” dos escravos
controle dos escravos. Pelo menos é o
da Misericórdia evidenciam atitudes
que diz o presidente da província Faus-
explícitas de enfrentamento por parte
to Augusto de Aguiar em seu relatório
dos escravos.
de 1852:
“À exceção da do Pinheiro, todas es-
sas fazendas estão a longas distâncias OS ESCRAVOS E SEUS OFÍCIOS
desta capital e, em tais circunstâncias,
torna-se impraticável exercer sobre Se os escravos empregados nas fazen-
elas uma inspeção eficaz; ao que das eram motivo de descontentamento,
acresce terem habituado os escravos, os escravos “artistas” constituíram im-
que nelas existem, a uma vida de inér- portante fonte de renda para a SCMP.
cia, da qual sem muita energia e per- Em 1845, o presidente da província
severança não é possível arrancá-los” dizia que “de sua escravatura parte está
(Pará 1852: 80) empregada no serviço das Fazendas, e
A proximidade entre a fazenda do Hospitais e parte são artistas e apren-
Pinheiro e a capital paraense tornava dizes de ofícios” (Pará 1845:43). Vimos
o controle dos escravos mais eficaz, mais acima que no pós-Cabanagem,
o que pode ter sido determinante na além de uma fazenda e de alguns pré-
fracassada tentativa de fuga de Felippe dios a SCMP ficou reduzida a alguns
e Lázaro, conforme vimos mais acima. escravos artistas com que teve de ir so-
Pesquisa mais aprofundada poderia correndo os enfermos no seu hospital
demonstrar se os escravos que trabalha- e os Lázaros do Tucunduba.
vam nas fazendas da SCMP estavam O presidente da província Francisco
realmente mergulhados numa vida de Carlos de Araújo Brusque, em seu
“inércia” ou se simplesmente aproveita- relatório de 1861, informou que nesta
vam a ausência de controle efetivo data a SCMP possuía 125 escravos,
para se dedicar a outras tarefas, pres- avaliados em 62:100$000. Brusque
tando serviços para outros fazendeiros observou que “desta relação dos bens
da região ou estabelecendo comércio patrimoniais é fácil concluir que, en-
com regatões, por exemplo. Segundo tre eles figuram, em primeiro lugar e
Vianna, uma inspeção realizada pela com maior valor, os escravos que infe-
administração da SCMP na fazenda lizmente são os que oferecem menor
Bom Jesus, pouco depois da Cabana- garantia, por isso que sua existência é a
gem, revelou “que o feitor Francisco, mais precária” (Pará 1861:17). Os 125
escravo da Misericórdia, passava todo escravos da SCMP valiam mais do que
o tempo na fazenda do commendador os 29 prédios que a instituição aluga-
Seixas, a quem servia voluntariamente, va para terceiros em Belém, avaliados

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Henrique, M. C.

em 50:000$000. Dos 125 escravos, 15 ainda que a especialização dos escra-


pagavam jornal, 20 estavam alugados vos estava relacionada a atividades al-
e cinco fugidos. Em 1863, as receitas tamente valorizadas à época, enquanto
provenientes de jornais de escravos possibilidade de obtenção de lucros
alcançaram a cifra de 3:637$180, consti- com a mão-de-obra escrava. Dos 13
tuindo a maior fonte de receita da insti- escravos com “ofício”, 12 trabalhavam
tuição (Pará 1863:18). Neste ano, 28 es- na capital, Belém. Mas, possivelmente,
cravos eram classificados na condição de o escravo carapina Américo também
“ganhador”, sendo todas mulheres entre era da capital posto que, segundo a
cinco e 51 anos (op. cit. anexo 4). observação do escrivão Francisco
Breton Ferreira Monforte, Américo es-
Muitos escravos da Santa Casa uti-
tava “na fazenda Graciosa, em correção
lizaram o pecúlio acumulado em anos
por ser vicioso”. Diz Salles que “nas ci-
de trabalho “de ganho” para comprar
dades (Belém e São Luís) havia artesãos
sua carta de alforria, como os dez que
livres, mas a grande maioria era mesmo
foram manumitidos em 1868 (SCM
composta de escravos: propriedade ou
1868:12). O fato de escravos de “existên-
de um mestre europeu ou de senhores
cia precária” constituírem o principal
necessitados de especialistas para suas fa-
patrimônio da SCMP preocupava o
zendas e engenhos, que os entregavam,
presidente da província. Em 1862,
crianças ainda, a um mestre artesão a fim
Araújo Brusque novamente observava
de formá-los oficiais” (1988:161)
que “os escravos estão sujeitos a tantas
eventualidades que o capital que repre- Considerando os escravos aprendizes na
sentam é muito precário” (Pará 1862:73). capital, além dos três escravos serem
aprendizes do mesmo ofício, pedreiro,
O relatório da provedoria da SCMP
chama atenção a idade dos aprendizes:
referente ao ano de 1867 apresenta a
Ovídio, o mais novo, tem apenas oito
“Relação nominal dos escravos perten-
anos. Já Alfredo, o mais jovem dos
centes à Santa Casa da Misericórdia do
aprendizes, tem 12 anos, a mesma idade
Pará” (SCM 1868: 8-9), na qual é possível
do pedreiro Manoel, que já prestava
ver em detalhes quais as ocupações dos 92
serviços na capital na condição de pe-
escravos que a irmandade possuía àquela
dreiro especializado. Mas na “Relação
data. No quadro 1, constam aqueles que
nominal dos escravos pertencentes à
aparecem na “Relação” associados a al-
Santa Casa da Misericórdia do Pará em
gum tipo de atividade ou “ofício” que
setembro de 1863”, o nome de Alfre-
implicasse em lucro para a SCMP.
do já consta como aprendiz, com sete
Note-se que, dentre os 92 escravos da anos de idade (SCM 1863).
SCMP em 1867, havia seis pedreiros,
Entre os escravos de ofício mais velhos,
quatro carapinas (ou carpinteiros), dois
Felippe, Marcelo e Fernando têm 48
ferreiros, um calafate, seis serventes
anos, o que pode ser indicativo da
do cemitério (um deles era carapina),
quantidade de anos que estes escra-
quatro trabalhavam no hospital e três
vos suportavam em tais condições,
eram aprendizes de pedreiro. Note-se

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Os escravos da Misericórdia

Quadro 1
Escravos da Santa Casa da Misericórdia do Pará e seus “ofícios” em 1867
NOME IDADE OFÍCIOS OBSERVAÇÕES

ESCRAVOS COM “OFÍCIO”


Américo 46 Carapina Na fazenda Graciosa, em correção
por ser vicioso
Porfírio 23 Carapina Na capital
Innocêncio 19 Carapina Na capital
Felippe 48 Pedreiro Na capital
Marcelo 48 Pedreiro Na capital
Marcos 26 Pedreiro Na capital
Manoel 12 Pedreiro Na capital
Prisco Antonio 19 Pedreiro Na capital
Victório Antonio 36 Pedreiro Na capital
Aniceto Antonio 30 Ferreiro Na capital
Fernando 48 Ferreiro Na capital
Laurianno 35 Calafate Na capital

ESCRAVOS APRENDIZES
Alfredo 12 Na capital, aprendendo a pedreiro
Arnaldo 10 Na capital, aprendendo a pedreiro
Ovídio 8 Na capital, aprendendo a pedreiro

ESCRAVOS SERVENTES DO CEMITÉRIO


Bento Antonio 23 Servente do cemitério
Domingos Barbosa 23 Servente do cemitério
Ezequiel 28 Servente do cemitério
Hortêncio Antonio 40 Carapina Servente do cemitério
Mamede 22 Servente do cemitério
Pedro 35 Servente do cemitério

ESCRAVOS SERVENTES DO HOSPITAL


Clarindo 19 Servente do hospital
Porcino da Cruz 23 Servente do hospital
Joanna Baptista 60 Cozinheira do hospital
Raymundo Theodoro 43 Enfermeiro do hospital

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Henrique, M. C.

expostos a trabalhos pesados a partir fundidos, tanto entre escravos negros


dos sete anos. De um modo geral, os como gentios, foi o de calafate, impor-
mapas elaborados pelos provedores in- tante para a conservação das embar-
dicam que poucos escravos da SCMP cações fluviais” (1988:165). Mais do
passavam dos 60 anos. Em 1868, dos que nunca, os rios da Amazônia àquela
92 escravos, apenas oito deles tinha 60 época funcionavam como ruas e mui-
anos ou mais. Em todo caso, destes tos doentes chegavam ao hospital da
oito, três tinham 74 anos, sendo duas Santa Casa por via fluvial, em peque-
mulheres e um homem. Talvez as mulheres nas embarcações, às vezes pertencen-
estivessem envolvidas em atividades tes à própria Santa Casa. Calafates,
menos desgastantes fisicamente. A pedreiros, carpinteiros e ferreiros
escrava Joanna Baptista, por exemplo, poderiam ser utilizados tanto em ser-
aos 60 anos de idade era cozinheira do viços na instituição quanto poderiam
hospital Bom Jesus dos Pobres, onde ser alugados ou prestarem serviços a
muito provavelmente desempenhava terceiros. Eram, portanto, os escravos
funções menos desgastantes do que as mais valorizados, alcançando a avalia-
mulheres que estavam empregadas nas ção de cada um a cifra de 1:000$000,
roças. Em todo caso, Antonio Louren- enquanto os escravos que trabalhavam
ço, o escravo que aparece na relação na roça, por exemplo, raramente ultra-
de 1868 com 74 anos, sem indicação passavam a avaliação de 800$000 (Pará
de ofício, é uma exceção, pois na rela- 1863: anexo 4).
ção de 1863 ele consta como pedreiro,
Com relação aos escravos que eram
muito embora seja definido como “in-
serventes no hospital, as queixas eram
válido”. Seis dos escravos com 60 anos
constantes. Matéria publicada no
ou mais viviam na fazenda Graciosa,
periódico “Publicador Paraense”, aos
espaço que servia de “retiro para os
11 de março de 1850, criticava o aten-
velhos, aposentados ou reformados,
dimento dispensado aos marinheiros
que vão lá para buscar descanso” (SCM
enfermos:
1863:12). Ao registrar uma observação
ao lado do nome do escravo Américo, “Que importa porém tanto desvelo
carapina de 46 anos, o escrivão Fran- da parte do zeloso facultativo (Dr.
Malcher), se na sua ausência tudo
cisco Breton Ferreira Monforte revelou
ali fica entregue às moscas! E ape-
uma função estratégica da fazenda nas lá quando muito lhe parece é
Graciosa. Afinal, Américo estava lá que o negro servente sujo e estúpi-
“em correção por ser vicioso”. do, anima a cabeceira do infeliz a
O fato de que em 1867 a SCMP ainda melancólica dieta, e tarde e às más
horas entorna na própria vasilha
funcionava no Hospital Bom Jesus dos
dela a nauseabunda mesinha para
Pobres, no largo da Sé, de frente para a
ser tomada pela mórbida mão do
baía do Guajará, explica a especialidade nauta sem sentidos! E sem socor-
do escravo Laurianno, calafate. Con- ro!!...” (Salles 1988:179-180)
forme Salles, “um dos ofícios mais di-
Em 1868, o escrivão da SCMP, Francisco

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Os escravos da Misericórdia

Breton Ferreira Monforte, reclamava que tumba especial os cadáveres de seus


“o serviço de enfermeiro e ser- associados, sendo proibido o trans-
ventes das enfermarias é feito por porte dos corpos em rede, prática até
escravos da Santa Casa, e por isso então comum no enterro da gente po-
mesmo é muito irregular, porque bre da região. Durante as epidemias de
além desses escravos serem vicio- cholera-morbus, varíola e febre ama-
sos, fazem o serviço de muito má rela, ocorridas no Pará no século XIX,
vontade, e lembro-vos que fosse os escravos da SCMP exerceram um
esse serviço feito por homens papel decisivo. Eram eles que condu-
livres e mais caritativos para com
ziam sobre seus ombros os cadáveres
os enfermos” (SCM 1868: 2)
do hospital e das residências para o ce-
Na mesma data, uma enfermeira bran- mitério da Soledade, onde também fa-
ca e livre trabalhava no hospital da ziam as vezes de coveiro.7 O Soledade
Santa Casa recebendo mensalmente foi construído em 1850, para o enterro
6$000, o que pode ajudar a entender dos acometidos por febre amarela.
a “má vontade” com que os escravos Durante a epidemia de cholera-mor-
desempenhavam a mesma função sem bus (1855), quatro canoas tripuladas
nada receber. Além do transtorno de por escravos da Santa Casa serviam
serem obrigados a desempenhar tra- de transporte aos doentes que eram
balho para o qual não foram prepara- conduzidos ao hospital da Misericór-
dos, os escravos serventes do hospital dia (Vianna 1992: 205). Não é difícil
da SCMP ainda tinham que conviver imaginar que esta proximidade com os
com o tratamento discriminatório mortos, com a morte e com doenças
daqueles que os consideravam sujos, infecciosas, sujeitava os escravos da
estúpidos e viciosos. Em 1884, chegou SCMP que executavam estas funções a
a Belém o grupo das primeiras Irmãs toda sorte de estigmatizações. Lembra
Filhas de Sant’Ana, religiosas italianas Salles que “havia ofícios que, por seu
que substituiriam os escravos no ser- caráter deprimente, apenas aos escra-
viço do hospital.6 vos era dado executar: coveiros, car-
Note-se que seis escravos estavam na regadores de excrementos humanos,
condição de “serventes do cemitério”: carrascos, etc.” (1988:162).
Bento Antonio, Domingos Barbosa, Nos rituais de enforcamentos exis-
Ezequiel, Hortêncio Antonio, Mamede tentes no Pará até meados do século
e Pedro. Em 1785, a SCMP obteve da XIX, os escravos da SCMP também
Coroa portuguesa o privilégio da con- constituíam presença importante.
dução dos cadáveres aos cemitérios. Digo rituais porque, de fato, a prática
Com o passar dos anos, a irmandade dos enforcamentos seguia todo um
descuidou deste privilégio, só vindo a conjunto de ritos, utilizados pelos po-
recuperá-lo das mãos de particulares deres públicos para mostrar, por meio
em 1851. Apenas as corporações religio- de um “exemplo salutar”, a força de
sas tinham o direito de transportar em sua disciplina e moral (Cruz s/d:187).8

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Henrique, M. C.

Antes da execução, ainda de madru- dos gritos, gargalhadas e gracejos da


gada, alguns escravos da Santa Casa multidão que insistia em fazer da morte
examinavam as traves e as cordas da do outro uma festa (Reis 1991). Como
forca, muitas vezes armada no largo este momento também era de discipli-
de São José (em frente ao atual Pólo narização, o ritual terminava com sermão
Joalheiro) e no largo da Pólvora (na proferido por um frade, que procurava
atual Praça da República). Também na aproveitar “aquela comovente tragédia
madrugada, o homem do balandrau para a predica moral” (Vianna 1992: 251).
azul, membro da irmandade que tinha Só então a multidão se dispersava e os es-
como função fazer os anúncios e con- cravos da Santa Casa metiam o cadáver
vites da Santa Casa, percorria as ruas no caixão.
badalando sua campa e clamando
A partir da leitura dos relatórios dos
aos devotos: “Orai pelo nosso Irmão
provedores da Santa Casa, pode-se
padecente”.
depreender que os escravos serven-
As palavras do homem do balandrau tes do cemitério estavam sujeitos a
azul soavam como convite para um es- péssimas condições de trabalho. Aos
petáculo. Era grande o movimento nas cinco de outubro de 1863, o provedor
ruas no dia marcado para a execução. da SCMP, Dr. Francisco da Silva Cas-
Segundo a descrição de Vianna, os es- tro, afirmava em seu relatório que “a
cravos atribuíam significado próprio condução dos cadáveres dos pobres e
àquele momento: escravos, tem-se feito de janeiro em di-
“Era o meio de liberdade que goza- ante em um veículo funerário, apropri-
vam (...) longe dos vergalhos e dos ado, o qual representa a forma de uma
suplícios (...) todos dispensados a catacumba. Com esta reforma muito
pretexto de verem no castigo in- tem lucrado a saúde dos escravos, ser-
fligido ao criminoso um exemplo ventes do Cemitério” (SCM 1863:10).
salutar” (Vianna 1992: 247).
Apesar de não indicar claramente
Em todo caso, para os escravos da como era feito o transporte dos pobres
SCMP o ritual de enforcamento não e escravos mortos antes da adoção da
representava distância dos suplícios, catacumba, o Dr. Silva Castro reconhece
pois era a eles que cabia a função de que o sistema anterior era inapropriado e
– vestidos de preto – carregar nos causava problemas à saúde dos escra-
ombros “a grande tumba dos pobres, vos da SCMP que eram serventes do
negro caixão abahulado, com enorme cemitério.
cruz branca sobre a tampa, que devia
Quem esclarece o sistema anterior de
transportar o corpo do enforcado para
condução dos cadáveres é Cândido
a obscura sepultura” (Vianna 1992: 249).
do Prado Pinto, provedor interino, no
Depois de celebrada missa, todos se di- relatório da SCMP datado de 30 de
rigiam ao local do enforcamento, onde o junho de 1868. O provedor interino
escrivão lia a sentença e o carrasco dava faz referências à atitude de um vice-
fim ao sofrimento do padecente, ao som provedor que teria suspendido a con-

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Os escravos da Misericórdia

dução dos cadáveres de pessoas po- do carro funerário em que são emprega-
bres e escravos pelo carro funerário, dos dois escravos somente.
substituindo-o pelo esquife. Cândido Acresce mais que para o serviço fu-
do Prado Pinto apenas diz que o vice- nerário é de rigorosa necessidade
provedor teve “poderosas razões” para estarem pelo menos seis escravos
tomar esta atitude, mas é bem provável empregados no cemitério para não
que o carro funerário estivesse sendo haverem faltas nos enterramentos, já
usado apenas para a condução dos na abertura das sepulturas, já na con-
cadáveres de pessoas de posses, en- dução dos cadáveres, o que se poderá
quanto os pobres e escravos eram con- evitar, sendo o serviço feito por meio
do carro funerário em que se em-
duzidos no esquife.
pregarão dois escravos e os mais em
Ao justificar porque determinou o re- outros serviços.” (SCM 1868:3)
torno do carro funerário, o provedor
O número de escravos utilizados em
interino argumenta que a condução
cada um dos modos de condução dos
por meio do esquife era, além de pe-
cadáveres foi determinante na decisão
nosa para os escravos, mais dispendi-
do provedor a favor do transporte no
osa para a Santa Casa. Havia dias em
carro funerário. Mas mesmo os carros
que era necessário fazer quatro a cinco
funerários utilizados pela SCMP eram
viagens de busca e condução de cadá-
alvos de críticas do provedor interino
veres, muitas vezes em pontos extre-
Cândido do Prado Pinto. Diz ele que:
mos da cidade de Belém e este serviço
ocupava quatro escravos. Segundo o “Tenho presenciado que o carro
provedor, “bem se vê que um corpo, funerário que atualmente usa a
ainda que por melhor nutrido que seja, Santa Casa, em vez de infundir respeito
causa horror, e para que a povoa-
ressente-se com um serviço tão pesa-
ção não repugne tanto essa espé-
do e contínuo” (SCM 1868:3). Dificil- cie de condução dos cadáveres,
mente este era o caso dos escravos em- lembro-vos mandar fazer um carro
pregados no cemitério, sujeitos a uma apropriado como os que se usa no
alimentação deficitária. Rio de Janeiro, Bahia e Pernam-
buco, onde a Santa Casa tem como
Muito embora demonstre certa preocu-
renda avultada carros de 1ª, 2ª e 3ª
pação com as condições de trabalho dos classes, encarregando-se a mesma
escravos, a maior parte dos argumen- dos enterramentos por um preço
tos do provedor estão relacionados ao estipulado conforme as posses de
caráter dispendioso da condução dos cada um” (SCM 1868: 3)
cadáveres por meio do esquife.
Ao invés de destinar o carro funerário
Quanto a ser dispendioso, a razão é fácil de apenas para as pessoas de posses, o
compreender-se: provedor preferia fazer carros apro-
“são precisos quatro escravos vestidos priados, que não causassem horror à
ou fardados de preto para a condução população, e que pudessem ser dis-
do esquife, o que já não acontece com o ponibilizados “conforme as posses de

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Henrique, M. C.

cada um”. Desta forma, além de melho- guns escravos, conforme demonstra o
rar a imagem que a população tinha quadro 2.
do carro funerário, haveria aumento
Lina e Clara morreram de “tubérculos
nos lucros obtidos com o serviço. De
pulmonares”. A tuberculose pode afetar
fato, a partir de 1869 o transporte dos
quase todos os tecidos ou órgãos do
corpos passou a ser feito apenas em
corpo, sendo mais comum nos pul-
carros funerários, divididos em quatro
mões. Os sintomas mais gerais são
“classes”. Os indigentes, as recolhidas
a sudorese (suor excessivo), febre e
no colégio de Nossa Senhora do Am-
emagrecimento (Stedman 1996: 376).
paro e os que falecessem nas enferma-
rias do Exército e da Armada teriam Segundo o Dicionário de Medicina
transporte gratuito. Como dito antes, Popular, de Chernoviz, o “amoleci-
não é difícil imaginar que os escravos mento do cérebro” é caracterizado
da SCMP, responsáveis pela condução “por um enfraquecimento gradual das
dos cadáveres, tivessem sua imagem faculdades intelectuais, da sensação,
pessoal associada ao esquife ou ao do movimento, pela diminuição da
carro funerário que, ao invés de sus- memória, dificuldade no falar, dores
citarem respeito, causavam horror e de cabeça, e, nos casos mais graves,
repugnância. pela paralisia geral” (1878:158). Não
sabemos a idade de Bruno, o escravo
que morreu de “amolecimento cerebral”,
CAUSAS DE MORTE DOS ESCRAVOS mas Chernoviz afirma que se trata de uma
DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA “moléstia própria da velhice, e excessiva-
DO PARÁ mente rara nas crianças” (op. cit.: 159).
Os relatórios dos provedores da Santa Eczema é um termo genérico utilizado
Casa de Misericórdia do Pará também em medicina para condições infla-
nos revelam as causas de morte de al- matórias agudas ou crônicas da pele,

Quadro 2
Causas de mortes dos escravos da Santa Casa de Misericórdia do Pará
NOME CAUSA DA MORTE FONTE
Lina Tubérculos pulmonares SCM 1863:15
Clara Tubérculos pulmonares SCM 1863:15
Bruno Amolecimento cerebral SCM 1863:15
Justiniano (menor) Eczema sifilítico SCM 1863:15
Basília (menor) Febre meningo gástrica SCM 1863:15
Joaquim Caetano Hepatite aguda SCM 1863:15
Zeferino Gastro hepatite aguda SCM 1868: 14
Joaquim de Santana Gastrite ligeira SCM 1868: 14
Silvestre Asfixia por submersão SCM 1868: 14

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Os escravos da Misericórdia

geralmente acompanhada por sensações De modo geral, os escravos estavam


de prurido e ardência (Stedman 1996: sujeitos a condições de higiene pre-
404). No caso do “eczema sifilítico” que cárias em suas habitações, a ritmo
acometeu o escravo Justiniano, trata-se intenso de trabalho, dieta carente de
das manifestações dermatológicas da sífi- nutrientes e falta de repouso para re-
lis, doença muito comum no século XIX, cuperar as energias. Corpos mal ali-
a tal ponto de ser chamada de “o mal da mentados e trabalhando em excesso
virada do século” (Carrara 1996). Em tornavam-se alvo fácil de doenças,
se tratando de escravo menor de idade, principalmente das infecto-parasíticas,
é bem provável que Justiniano tenha ad- como a tuberculose ou de problemas
quirido sífilis de forma congênita (trans- no aparelho digestivo, como as gas-
mitida por sua mãe durante a gestação). trites. Este mesmo quadro já foi apon-
tado para outras regiões do Brasil, con-
O escravo Joaquim Caetano morreu
forme mostraram Mary Karasch (2000)
em consequência da “hepatite aguda”,
e Thiago dos Reis (2007) para o Rio de
inflamação do fígado causada geral-
Janeiro da primeira e segunda metade
mente por infecção virótica, mas que
do século XIX, respectivamente.
também pode ser causada por agen-
tes tóxicos (Stedman 1996:584). No É preciso considerar também que o
caso de Zeferino, empregado na roça, diagnóstico muitas vezes era impre-
que morreu com 57 anos, de “gastro ciso, como no caso da “febre meningo
hepatite aguda”, trata-se de complica- gástrica” e o tratamento das doenças
ções que atingiram ao mesmo tempo inadequado. Apesar de que muitos es-
o estômago e o fígado. Também mor- cravos recebiam tratamento no hospi-
reu com problemas estomacais, aos 34 tal da própria SCMP, os mais velhos e
anos, o escravo Joaquim de Santana, doentes, tidos como “inválidos e inuti-
empregado na roça. A gastrite é uma lizados”, eram levados para a fazenda
inflamação, especialmente da mucosa Graciosa, no rio Capim, onde espe-
do estômago, que causa muitas dores ravam a hora da morte. Um indicativo
(Stedman 1996:526). das condições de moradia dos escravos
da fazenda Graciosa é a observação do
Silvestre, calafate de 25 anos, mor-
Dr. Francisco da Silva Castro, que es-
reu afogado, fato definido no
teve pessoalmente na fazenda em 1863:
relatório como “asfixia por sub-
“os ranchos dos escravos também ca-
mersão”. Segundo Chernoviz, “os
recem de pequenas obras, que as man-
afogados morrem de asfixia, isto é,
dei fazer” (SCM 1863:12). O provedor
da privação do ar atmosférico, que
contabiliza na Graciosa 40 escravos,
eles não podem respirar, por terem
sendo 15 crianças de um a sete anos de
a cabeça debaixo d’água” (1878: 47).
ambos os sexos, e 25 maiores, sendo 11
Sua morte deve ter representado
homens e 13 mulheres. Destes, porém,
enorme prejuízo para a SCMP, haja
só 13 trabalhavam no campo. Concluiu
vista que se tratava de escravo jovem
o Dr. Silva Castro que “os mais, uns
e especializado.

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Henrique, M. C.

trabalham pouco, porque estão meio banhos que os escravos tomariam na


velhos, e adoentados, outros nada fazenda Graciosa também fazia parte
trabalham, porque estão inteiramente dos procedimentos utilizados na época
velhos e gastos”. Se a situação dos ran- e que tinham na hidroterapia impor-
chos dos escravos chamou a atenção do tante aliado no re-equilíbrio das fun-
provedor, nada é dito sobre a neces- ções “nervosas” dos indivíduos (Mar-
sidade de cuidar da saúde dos que es- ras 2004). A fazenda Graciosa era o
tavam “meio velhos, e adoentados” ou purgatório dos escravos da Santa Casa
“inteiramente velhos e gastos”. Como de Misericórdia do Pará.
vimos mais acima, Silva Castro definia
a Graciosa como excelente retiro para
velhos, aposentados ou reformados, À GUISA DE CONCLUSÃO
além de “viveiro” para as crianças. Segundo Vianna (1992: 276), a partir
Além de funcionar como correção para de 1860, a SCMP vendeu vários de seus
escravos “viciosos” e abrigo para os que escravos e não comprou mais nenhum.
eram considerados “velhos e gastos”, a Aos três de abril de 1867, período em
fazenda Graciosa, ao que indica a docu- que a irmandade possuía 92 escravos,
mentação, acabou por adquirir ao longo decidiu-se oferecer ao presidente da
dos anos outra função estratégica. Aos província os escravos que estives-
cinco de outubro de 1863, o provedor sem em condições de serem alistados
Dr. Francisco da Silva Castro dizia em nas fileiras do exército brasileiro para
seu relatório que, dos oito escravos que marcharem para a guerra do Paraguai
foram internados na “enfermaria para (1864-1870). Segundo o provedor in-
alienados”, criada “para guardar os lou- terino, Candido do Prado Pinto, vári-
cos furiosos”, dentro do Hospital de os escravos se apresentaram volun-
Caridade “três foram mandados para a tariamente, sendo que 13 deles foram
fazenda Graciosa, da Santa Casa, no rio aceitos pelo presidente da província,
Capim, para tomarem banhos, arejarem que indenizou a SCMP em 14:300$000
e distraírem-se com o serviço do campo rs. (SCM 1868:4). Motivados pelas
em companhia dos escravos da Santa promessas de liberdade feitas àqueles
Casa ali existentes” (SCM 1863: 6-7). De que defendessem o Império brasileiro
acordo com os estudos neurofisiológi- no conflito com os paraguaios, os escra-
cos típicos da época, estes indivíduos vos da SCMP partiram numa aventura cujo
descontrolados, em função do dese- final desconhecemos, mas que possivel-
quilíbrio do sistema nervoso, pode- mente para muitos não teve retorno.
riam colocar em risco a própria vida Somaram-se aos muitos outros escravos
em sociedade. Disso resultava a neces- de diversas partes do país, que con-
sidade de isolá-los, variando o destino tribuíram para a “mudança na colora-
dos homens e mulheres “nervosos” ção” do exército brasileiro, recebendo
de acordo com o grau atribuído à sua dos paraguaios a alcunha pejorativa de
doença (Harris 1993). A referência aos “los macaquitos” (Schwarcz 2003:306).

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Os escravos da Misericórdia

Em 1880, no fervor da agitação aboli- “Cemitérios.


cionista e oito anos antes da Lei Áurea, Dispondo a lei do orçamento vigente
a Santa Casa alforriou os nove últimos que do 1º de julho em diante seriam
escravos que possuía. Não por vontade considerados livres os escravos da
própria, mas por determinação de José Santa Casa, mas, tendo esta proposto
Coelho da Gama e Abreu, presidente à presidência que se esperasse pela re-
da Província, que negou o pedido de união da assembléia provincial, para
indenização feito pela irmandade. De- ser realizada esta medida, solicitando
terminava a lei nº 1.026, de 2 de maio o ser indenizada da parte que per-
dia do valor de seu patrimônio com
de 1880: “No Iº dia do anno compro-
aquela manumissão, indeferi esta pro-
missal d’esta lei ficarão livres todos os posta, mantendo a disposição da lei, e
escravos da Santa casa, sem onus algum hoje não possui a Santa Casa escravo
para elles” (Vianna 1992:276). Muito algum.” (Pará 1881:63-64)
embora contrariada pela recusa ao
pedido de indenização, a mesa di- A relação da Santa Casa com seus es-
retora da irmandade não abriu mão cravos aponta para a diversidade de
de explorar simbolicamente aquela experiências vividas por senhores e
situação. Quatro dias depois, “reu- escravos e também ajuda a pensar a
niu-se a Meza em sessão, fez compa- importância da questão étnica como
recer os escravos e entregou-lhes as um elemento fundamental para a con-
cartas de alforria, completamente le- figuração das irmandades, donde sur-
galisadas” (Vianna 1992:277). Salles gem confrarias de pretos, de brancos
refere que o “espontaneísmo de cer- e até mesmo de índios (Figueiredo
tas libertações será, no Pará, como & Henrique 1997). Se para os escra-
nas demais províncias, tremenda- vos a experiência na Santa Casa era
mente espalhafatoso, com nome dos difícil, deve-se enfatizar que as ações
magnânimos doadores nos jornais, da Misericórdia eram comuns àquela
etc.” (1988:280). Talvez por isso os época e que o trabalho assistencial da
administradores da SCMP se preo- irmandade muito aliviou o sofrimento
cupassem em reunir os escravos em dos doentes, indigentes, condenados
sessão extraordinária, com vistas a à morte ou presidiários, muitas vezes
colher os frutos simbólicos de uma escravos. Conforme observou Charles
manumissão que, se nada tinha de Boxer, “enquanto a caridade de que a
espontânea, poderia render a sim- Misericórdia se ocupava estendia-se
patia dos escravos alforriados e dos amplamente aos pobres e necessita-
adeptos do abolicionismo. dos, as outras irmandades, laicas ou
confrarias das várias ordens religiosas,
O presidente da província divulgou em geral restringiam suas atividades
a notícia de que a SCMP não pos- caritativas a seus próprios membros
suía mais nenhum escravo, em 1881, e suas famílias” (2002:305). Bastante
no tópico do relatório referente aos significativas, neste sentido, são as pa-
cemitérios. Dizia o presidente: lavras do Dr. Silva Castro, ao afirmar

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Henrique, M. C.

que no Hospital Bom Jesus dos Po- paraense, fossem eles abonados ou
bres, no largo da Sé, “desvalidos da sorte”. Da mesma for-
“são recolhidos todos os doentes ma, aliviava as apreensões na hora da
de ambos os sexos, que o pro- morte, haja vista o pavor que se tinha
curam, sem distinção de cor, nacio- de uma morte súbita, sem preparação e
nalidade, ou religião e nele se exer- mais ainda o temor de ser enterrado sem
cita a caridade, como a recomenda funeral e sepultura adequados. Conforme
o nosso Divino Mestre e a ciência observou Vianna (1992:258), era co-
de Hipócrates. mum a crença de que a alma não entra-
Também nele se recebem pen- va no céu enquanto o corpo estivesse
sionistas escravos, ou livres, que insepulto ou enterrado em campo
careçam dos socorros da medicina. aberto. O serviço funerário prestado
O acesso para o hospital é franco e pela SCMP diminuía o pavor dos de-
livre de dependências; as suas por- votos, principalmente os mais pobres
tas estão sempre abertas para a po- e os escravos que não contavam com
breza necessitada, sem ser preciso
a proteção de nenhuma irmandade, de
licença do provedor ou do respec-
tivo mordomo. O regente tem or-
terem para sempre cerradas as portas
dem de recolher tudo quanto ver- do paraíso.
dadeiramente tiver cara de doente e Sem dúvida, a SCMP é uma das mais
de pobre. São estas as duas únicas importantes instituições da Amazônia,
condições que se requerem para o
estando ligada a muitos fatos históri-
impetrante auferir o direito de en-
cos da região e sendo responsável
trada” (SCM 1863: 235)
por várias instâncias do atendimento
Dentre as medidas adotadas pelo pro- médico na região. Até o início do sé-
vedor Mathias José da Silva Cunha culo XX, era ela quem administrava
(1837-1838) para superar as dificul- o chamado Hospício dos Lázaros do
dades da SCMP no período da Ca- Tucunduba, transformado em abrigo
banagem, Vianna (1992:146) cita a para os hansenianos desde 1814, no lo-
cobrança junto aos senhores de uma cal onde existiu antiga olaria antes per-
quantia para assistência dos escravos tencente aos religiosos mercedários.
com elefantíase. O custo com a inter- Em 1874, data de abertura do cemitério
nação de escravos no hospital era de de Santa Isabel, para receber as vítimas
responsabilidade dos senhores, mas da epidemia de varíola, também foi reser-
estes nem sempre cumpriam com suas vada à SCMP a sua administração. Os en-
obrigações. Em momentos críticos da terramentos no Cemitério da Soledade
história do Pará no século XIX, seja na foram suspensos em 1880. Ainda no
Cabanagem, nas epidemias de cólera, século XIX, a SCMP marcou presença
febre amarela ou varíola, a Santa Casa junto aos migrantes nordestinos que,
de Misericórdia cumpriu importante sonhando em melhorar de vida nos
papel de prestar auxílio médico aos seringais da Amazônia, foram flagela-
mais diversos segmentos da sociedade dos pela varíola.

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Os escravos da Misericórdia

Em 1890, o Governador Justo Cher- Cite-se, como exemplo, a Irmandade do


mont assinou decreto dando novo es- Glorioso São Benedito, organizada por
tatuto à SCMP, que deixou de ser Ir- escravos em lugares como Belém, Bra-
mandade e passou a ser Associação Civil gança, Cintra (atual Maracanã), Gurupá
de Caridade. Na mesma data, foi lançada e São Caetano de Odivelas, a de Nossa
a primeira pedra do novo Hospital da Senhora do Livramento da cidade de San-
Caridade, no bairro do Umarizal. Tam- tarém, a de Nossa Senhora do Rosário
bém em 1890, decreto republicano deter- dos Pretos da Campina ou a de São Rai-
minou a secularização dos cemitérios, em mundo Nonato, ambas em Belém. Certa-
função do que a SCMP entregou a ad- mente que muitos dos escravos da SCMP
ministração dos cemitérios da Soledade e participaram destas associações. Mas esta
de Santa Isabel à Intendência Municipal. já é outra história (Henrique 1997).
Para a SCMP isto representou enorme
prejuízo, por fechar-lhe importante fonte
de rendas e desfalcar-lhe o patrimônio. NOTAS
Em 1892, a SCMP passou a adminis-
1
Para atuar dentro da legalidade, as Irman-
trar o Hospício dos Alienados (depois dades precisavam ter seus Compromissos
aprovados em instâncias civil e religiosa,
Hospital Juliano Moreira, na atual av.
obedecendo as prerrogativas do regime
Almirante Barroso). Anos depois pas- de Padroado vigente no Brasil. Na instân-
sou a administrar também o Hospital cia civil, os Compromissos eram aprova-
de Isolamento, depois chamado Hos- dos pelo presidente da província a partir
pital Domingos Freire, construído de uma autorização que lhe foi conferida
para o recolhimento de doentes com pela Assembléia Legislativa Provincial,
moléstias infecto-contagiosas, situado em 1842. Mas antes da confirmação do
à rua Barão de Mamoré com Mundu- presidente da província, os compromis-
rucús, onde hoje se encontra o Hospi- sos deveriam ser analisados e confirmados
tal Barros Barreto. Escravos, indigen- pelo bispo diocesano. No século XVIII, os
compromissos deveriam ser enviados para
tes, “alienados”, pobres, hansenianos,
Lisboa, onde seriam confirmados pelo Tri-
“desvalidos da sorte” ou “homens bunal da Mesa de Consciência e Ordens
abonados”, todos faziam uso, de alguma (Cf. Scarano 1975:22)
forma, dos serviços prestados pela secu-
lar Santa Casa de Misericórdia do Pará.
2
Estatutos da Associação de Caridade
Santa Casa da Misericórdia. Pará Typ. de A
No século XIX, ruas, rios e praças eram Província do Pará, 1891, p. II.
palco de múltiplas experiências para os 3
Em 1849, no governo provincial de Jerônymo
escravos, espaços ambíguos e conflitan- Coelho, adotou-se um novo Compromisso
tes onde eles poderiam experimentar do para a Santa Casa de Misericórdia do Pará,
açoite ao batuque, da forca à coroa. Fe- a partir do qual se intensificou a subordina-
lizmente para os escravos, havia a possi- ção da irmandade aos poderes públicos da
bilidade de se organizar em suas próprias Província. Até então, vigorava o Compro-
irmandades, o que eles fizeram nas mais misso de 1618 (Vianna 1992: 155). Para uma
diferentes paragens do Pará oitocentista. interessante discussão das manifestações do

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 386-410, 2013 407


Henrique, M. C.

preconceito religioso e racial no Brasil, con- REFERÊNCIAS


ferir Carneiro 1988.
Beltrão, J. 2004. Cólera, o flagelo da Belém do
4
Cf. Estatutos da Associação de Caridade Grão-Pará. Belém: Museu Paraense Emílio
Santa Casa da Misericórdia. Pará Typ. de A Goeldi; Universidade Federal do Pará.
Província do Pará, 1891, pp. 11-17.
Bezerra-Neto, J.M. 2001. Escravidão negra no
5
O primeiro prédio da Santa Casa de Mi- Grão-Pará (sécs. XVII-XIX). Belém: Paka Tatu.
sericórdia do Pará situava-se no Largo das
Boxer, C. 2002. O império marítimo português (1425-
Mercês, no local onde atualmente se encon-
1825). São Paulo: Companhia das Letras.
tra a loja Paris N’América. Em 1807, todos os
bens do Hospital Bom Jesus dos Pobres, Campos, J.V. G. 1977. A última execução
construído por Frei Caetano Brandão no capital no Pará. Revista do Instituto Histórico e
Largo da Sé, foram incorporados à Santa Geográfico do Pará I(1):39-41.
Casa, que funcionou nesse local entre 1807
Carneiro, M. L.T. 1988. Preconceito racial: Portu-
e 1900. O Hospital Bom Jesus dos Pobres foi
gal e Brasil-Colônia. São Paulo: Brasiliense.
demolido na segunda metade do século XX e fi-
cava onde hoje se encontra um chafariz ao lado Carrara, S. 1996. Tributo a Vênus. A luta con-
da Casa das Onze Janelas, espaço de entretenimen- tra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos
to em Belém. Somente em 1900 a SCMP passou anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
a funcionar no prédio atual, situado à rua Oliveira
Chernoviz, P. L. N. 1878. Diccionario de Me-
Belo, bairro do Umarizal.
dicina Popular e das Sciencias Accessorias. Vol.
6
Essas religiosas prestaram serviços na I. Paris: em casa do autor. 5ª edição.
SCMP até o início da década de 1990,
Cruz, E. s/d. Belém: aspectos geo-sociais do mu-
quando a instituição tornou-se fundação
nicípio. Belém: Livraria José Olympio Editora.
ligada ao governo do Estado do Pará.
Figueiredo, A. M. de & M.C. Henrique.
7
Sobre a epidemia de cólera no Pará, ver
1997. Os Devotos do Vimioso: uma con-
Beltrão 2004.
fraria de índios no Pará do século XIX. Ca-
8
Em fevereiro de 1851, o escravo conhecido dernos de História Social 5: 71-77.
como pai Antonio foi enforcado na praça
Harris, R. 1993. Assassinato e loucura: me-
da matriz de Santarém, por ter sido acusado
dicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de
de assassinar seu feitor, que tentou obrigá-lo
Janeiro: Rocco.
a trabalhar, embora fosse sexagenário e es-
tivesse doente. Detalhe curioso deste episó- Henrique, M. C. 1997. O Senhor do Céu não é o
dio, é que o carrasco de Santarém, Domin- Senhor da Terra: a experiência religiosa dos escravos
gos Pixuna, era antigo cabano que aceitou nas Irmandades paraenses (1839-1889). Mono-
essa “profissão” como forma de livrar-se da grafia de Conclusão de Curso de Graduação.
morte (Campos 1977:39-41). Se é verdade Departamento de História, Universidade
que na vila do Tapajós (hoje Santarém), o elemento Federal do Pará, Belém.Inédito.
predominante na Cabanagem (1835-1840) foi Karasch, M. C. 2000. A vida dos escravos no
o índio e o caboclo, permanecendo os negros Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Com-
escravos geralmente fiéis aos seus senhores panhia das Letras.
(Santos 1986:24) e contribuindo na perse-
guição aos cabanos, neste episódio os papéis Marras, S. A. 2004. A propósito de águas vir-
se inverteram, tendo-se um ex-cabano atu- tuosas. Belo Horizonte: UFMG.
ando como carrasco de um escravo.

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Os escravos da Misericórdia

Reis, J. J. 1991. A morte é uma festa: ritos fúne- Fontes Documentais


bres e revolta popular no Brasil do século XIX.
Estatutos da Associação de Caridade Santa
São Paulo: Companhia das Letras.
Casa da Misericórdia. 1891. Pará: Typ. de A
Reis, T. de S. dos. 2007. Livro de Óbitos de Província do Pará.
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PARÁ, Governo. 1838. Discurso com que
Conceição de Vassouras: um estudo demográfico,
o presidente da província do Pará fez a
1865-1888. Monografia de Conclusão de
abertura da 1ª sessão da Assembléa Pro-
Curso de Graduação. Departamento de
vincial no dia 2 de março de 1838. Pará:
História, Universidade Federal do Estado
Typographia Restaurada de Santos e San-
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Inédito.
tos Menor.
Salles, V. 1988. O Negro no Pará. 2ª ed.
PARÁ, Governo. 1844. Discurso recitado
Belém: Secult.
pelo Exmo. Snr. Desembargador Manoel
Santos, J. 1986. Cabanagem em Santarém. Paranhos da Silva Vellozo, Presidente da
Santarém: Livraria Ática. Província do Pará, na abertura da primeira
Sessão da Quarta Legislatura da Assembléa
Scarano, J. 1975. Devoção e Escravidão: a Ir-
Provincial, no dia 15 de agosto de 1844.
mandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Pará, Typographia de Santos & Menores.
no Distrito Diamantino no Século XVIII. São
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pelo Exmo. Snr. Doutor João Maria de
Schwarcz, L.M. 2003. As barbas do Impera-
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dor: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São
Pará, na abertura da Segunda Sessão da
Paulo: Cia. das Letras.
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escravo que negocia, in Negociação e conflito: pographia de Santos & Filhos.
a resistência negra no Brasil escravista. Editado
PARÁ, Governo. 1847. Discurso recitado
por J. J. Reis & E. Silva, pp. 13-21. São Pau-
pelo Exmo. Sr. Dr. José Maria de Moraes,
lo: Cia. das Letras.
vice-presidente da Província do Pará, na
Stedman, T. L. 1996. Dicionário Médico. Rio abertura da segunda sessão da quinta leg-
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lonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Exmo. Snr. Conselheiro Jerônimo Fran-
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Gram-Pará, à Assembléa Legislativa Pro-
Vianna, A. 1992. A Santa Casa da Misericór-
vincial, na abertura da segunda sessão
dia Paraense: notícia histórica (1650-1902).
ordinária da sexta legislatura, no dia 1º de
Belém: SECULT.
outubro de 1849. Pará: Typographia de
Zarur, D. C.. 1981. A Santa Casa na história: fon- Santos e Filhos.
te de luz, caridade e justiça. Rio de Janeiro: S/E.
PARÁ, Governo. 1852. Relatório apresenta-
do ao Exmo. Snr. Dr. José Joaquim da Cunha,
presidente da Província do Gram-Pará pelo
Comendador Fausto Augusto de Aguiar por
ocasião de entregar-lhe a administração da

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 386-410, 2013 409


Henrique, M. C.

Província no dia 20 de agosto de 1852. Pará,


Typographia de Santos & Filhos.
PARÁ, Governo. 1861. Relatório dirigido
a Assemblea Legislativa da Província do
Pará na Segunda Sessão da XII Legisla-
tura pelo Exm. Sr. Dr. Francisco Carlos
de Araújo Brusque, Presidente da mesma
Província, em 17 de agosto de 1861. Pará,
Typographia do Diário do Gram-Pará.
PARÁ, Governo. 1863. Relatório apresen-
tado a Assemblea Legislativa da Província
do Pará na Segunda Sessão da XIII Legis-
latura pelo Excellentissimo Senhor Presi-
dente da Província Doutor Francisco Car-
los de Araújo Brusque, em 1º de novembro
de 1863. Pará, Typographia de Frederico
Carlos Rhossard.
PARÁ, Governo. 1881. Relatório apresen-
tado à Assembléa Legislativa Provincial na
2ª Sessão da 22ª Legislatura, em 15 de fe-
vereiro de 1881, pelo Exmo. Sr. Dr. José
Coelho da Gama e Abreu. Pará, Typ. do
Diário de Noticias, de Costa & Campbell.
SCM. 1863. Relatório da Santa Caza da
Mizericordia. Belém, Secretaria da Santa Caza
da Mizericordia do Pará, 5 de outubro.
SCM. 1868. Relatório da Santa Caza da
Mizericordia. Belém, Secretaria da Santa
Caza da Mizericordia do Pará, 9 de junho.

Recebido em 15/01/2013.
Aprovado em 20/03/2013.

410 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 386-410, 2013

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