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OS ESCRAVOS DA MISERICÓRDIA
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Henrique, M. C.
Vicente Salles, por sua vez, em “O ne- era muito valorizado devido ao eleva-
gro no Pará” (1988:146-7), afirma que do status social que proporcionava ao
“para os escravos era taxativamente ve- ocupante, embora pudesse levar um
dada a educação”. No Liceu Paraense, homem consciencioso a ficar extrema-
fundado em 1841, único estabeleci- mente endividado” (2002: 302). Nem
mento público de instrução secundária todos os nomes acima citados ocu-
da Província ao longo da segunda param a função de provedor, mas sua
metade do século XIX, a matrícula presença na condição de sócios serve
era proibida aos que tinham moléstias de indicativo do prestígio social alcan-
contagiosas e aos que não eram livres. çado pela SCMP.
Como em outras partes do Brasil, a Em 1849, o patrimônio da SCMP com-
irmandade da SCMP reunia em seus preendia o templo de Santo Alexandre,
quadros elementos da elite econômica o “hospício” dos lázaros na fazenda
e intelectual paraense. Em 1891, constavam Tucunduba, o Hospital Bom Jesus dos
na “Lista dos sócios da Santa Casa de Pobres, quatro fazendas: Pinheiro (atual
Misericórdia” 310 nomes. Dentre eles, Icoaraci), Graciosa (no rio Capim), Ca-
havia 30 doutores, 20 bacharéis, cinco viana (na foz do Amazonas) e Bom
tenentes-coronéis, cinco engenheiros, Jesus (no Marajó), um cacoal no rio
quatro majores, três comendadores, Capim, 31 casas de aluguel e 162 es-
três cônegos, dois conselheiros, dois cravos (Vianna 1992). Estes últimos
coronéis, um capitão, um desembar- eram utilizados em fazendas de criação
gador e um padre-Dr. Diversos só- de gado, na indústria extrativa, no tra-
cios da SCMP ocuparam os cargos balho de lavoura e em profissões tais
de deputado estadual, presidente da como pedreiros, carpinteiros, ferreiros,
província ou governador (a partir da calafates, enfermeiros, cozinheiros e
República). Dentre os mais conheci- serventes do cemitério. Nos episódios
dos, citam-se Antonio Lemos (eleito narrados a seguir, pode-se ter ideia do
intendente de Belém, equivalente a tratamento que a irmandade dispen-
prefeito municipal, em 1897), Antonio sava a estes “desvalidos da sorte”.
Nicolau de Monteiro Baena (senador
Em 25 de setembro de 1839, conforme
entre 1890-1897, vice-governador en-
Arthur Vianna (1992), estiveram pre-
tre 1897-1898), Justo Leite Chermont
sentes à reunião da mesa administra-
(1857-1926, deputado provincial, gover-
tiva da Santa Casa “três míseras pre-
nador do Pará, ministro e senador),
tas” que haviam fugido da fazenda do
Augusto Montenegro (governador do
Capim. Tendo os mesários discutido
Pará), barão de Guajará (Domingos
a punição que deveria ser imputada a
Antonio Raiol, 1830-1912, foi presi-
elas, decidiram por unanimidade de
dente das províncias de Alagoas, Ceará
votos que cada uma deveria receber
e São Paulo) e Francisco da Silva Cas-
seis dúzias de palmatoadas dentro do
tro (1837-1899, médico).4 Conforme
Hospital do Bom Jesus dos Pobres, em
Charles Boxer, “o cargo de provedor
Belém, onde se achavam reunidos, no
lhes der couto (op. cit: 318-325). deixando à revelia os serviços de que
estava incumbido” (1992:145). De
O fato das fazendas ficarem muito dis-
todo modo, as constantes queixas dos
tantes de Belém e o suposto “desleixo
provedores com relação à baixa produ-
dos administradores” dificultava maior
tividade ou à “inércia” dos escravos
controle dos escravos. Pelo menos é o
da Misericórdia evidenciam atitudes
que diz o presidente da província Faus-
explícitas de enfrentamento por parte
to Augusto de Aguiar em seu relatório
dos escravos.
de 1852:
“À exceção da do Pinheiro, todas es-
sas fazendas estão a longas distâncias OS ESCRAVOS E SEUS OFÍCIOS
desta capital e, em tais circunstâncias,
torna-se impraticável exercer sobre Se os escravos empregados nas fazen-
elas uma inspeção eficaz; ao que das eram motivo de descontentamento,
acresce terem habituado os escravos, os escravos “artistas” constituíram im-
que nelas existem, a uma vida de inér- portante fonte de renda para a SCMP.
cia, da qual sem muita energia e per- Em 1845, o presidente da província
severança não é possível arrancá-los” dizia que “de sua escravatura parte está
(Pará 1852: 80) empregada no serviço das Fazendas, e
A proximidade entre a fazenda do Hospitais e parte são artistas e apren-
Pinheiro e a capital paraense tornava dizes de ofícios” (Pará 1845:43). Vimos
o controle dos escravos mais eficaz, mais acima que no pós-Cabanagem,
o que pode ter sido determinante na além de uma fazenda e de alguns pré-
fracassada tentativa de fuga de Felippe dios a SCMP ficou reduzida a alguns
e Lázaro, conforme vimos mais acima. escravos artistas com que teve de ir so-
Pesquisa mais aprofundada poderia correndo os enfermos no seu hospital
demonstrar se os escravos que trabalha- e os Lázaros do Tucunduba.
vam nas fazendas da SCMP estavam O presidente da província Francisco
realmente mergulhados numa vida de Carlos de Araújo Brusque, em seu
“inércia” ou se simplesmente aproveita- relatório de 1861, informou que nesta
vam a ausência de controle efetivo data a SCMP possuía 125 escravos,
para se dedicar a outras tarefas, pres- avaliados em 62:100$000. Brusque
tando serviços para outros fazendeiros observou que “desta relação dos bens
da região ou estabelecendo comércio patrimoniais é fácil concluir que, en-
com regatões, por exemplo. Segundo tre eles figuram, em primeiro lugar e
Vianna, uma inspeção realizada pela com maior valor, os escravos que infe-
administração da SCMP na fazenda lizmente são os que oferecem menor
Bom Jesus, pouco depois da Cabana- garantia, por isso que sua existência é a
gem, revelou “que o feitor Francisco, mais precária” (Pará 1861:17). Os 125
escravo da Misericórdia, passava todo escravos da SCMP valiam mais do que
o tempo na fazenda do commendador os 29 prédios que a instituição aluga-
Seixas, a quem servia voluntariamente, va para terceiros em Belém, avaliados
Quadro 1
Escravos da Santa Casa da Misericórdia do Pará e seus “ofícios” em 1867
NOME IDADE OFÍCIOS OBSERVAÇÕES
ESCRAVOS APRENDIZES
Alfredo 12 Na capital, aprendendo a pedreiro
Arnaldo 10 Na capital, aprendendo a pedreiro
Ovídio 8 Na capital, aprendendo a pedreiro
dução dos cadáveres de pessoas po- do carro funerário em que são emprega-
bres e escravos pelo carro funerário, dos dois escravos somente.
substituindo-o pelo esquife. Cândido Acresce mais que para o serviço fu-
do Prado Pinto apenas diz que o vice- nerário é de rigorosa necessidade
provedor teve “poderosas razões” para estarem pelo menos seis escravos
tomar esta atitude, mas é bem provável empregados no cemitério para não
que o carro funerário estivesse sendo haverem faltas nos enterramentos, já
usado apenas para a condução dos na abertura das sepulturas, já na con-
cadáveres de pessoas de posses, en- dução dos cadáveres, o que se poderá
quanto os pobres e escravos eram con- evitar, sendo o serviço feito por meio
do carro funerário em que se em-
duzidos no esquife.
pregarão dois escravos e os mais em
Ao justificar porque determinou o re- outros serviços.” (SCM 1868:3)
torno do carro funerário, o provedor
O número de escravos utilizados em
interino argumenta que a condução
cada um dos modos de condução dos
por meio do esquife era, além de pe-
cadáveres foi determinante na decisão
nosa para os escravos, mais dispendi-
do provedor a favor do transporte no
osa para a Santa Casa. Havia dias em
carro funerário. Mas mesmo os carros
que era necessário fazer quatro a cinco
funerários utilizados pela SCMP eram
viagens de busca e condução de cadá-
alvos de críticas do provedor interino
veres, muitas vezes em pontos extre-
Cândido do Prado Pinto. Diz ele que:
mos da cidade de Belém e este serviço
ocupava quatro escravos. Segundo o “Tenho presenciado que o carro
provedor, “bem se vê que um corpo, funerário que atualmente usa a
ainda que por melhor nutrido que seja, Santa Casa, em vez de infundir respeito
causa horror, e para que a povoa-
ressente-se com um serviço tão pesa-
ção não repugne tanto essa espé-
do e contínuo” (SCM 1868:3). Dificil- cie de condução dos cadáveres,
mente este era o caso dos escravos em- lembro-vos mandar fazer um carro
pregados no cemitério, sujeitos a uma apropriado como os que se usa no
alimentação deficitária. Rio de Janeiro, Bahia e Pernam-
buco, onde a Santa Casa tem como
Muito embora demonstre certa preocu-
renda avultada carros de 1ª, 2ª e 3ª
pação com as condições de trabalho dos classes, encarregando-se a mesma
escravos, a maior parte dos argumen- dos enterramentos por um preço
tos do provedor estão relacionados ao estipulado conforme as posses de
caráter dispendioso da condução dos cada um” (SCM 1868: 3)
cadáveres por meio do esquife.
Ao invés de destinar o carro funerário
Quanto a ser dispendioso, a razão é fácil de apenas para as pessoas de posses, o
compreender-se: provedor preferia fazer carros apro-
“são precisos quatro escravos vestidos priados, que não causassem horror à
ou fardados de preto para a condução população, e que pudessem ser dis-
do esquife, o que já não acontece com o ponibilizados “conforme as posses de
cada um”. Desta forma, além de melho- guns escravos, conforme demonstra o
rar a imagem que a população tinha quadro 2.
do carro funerário, haveria aumento
Lina e Clara morreram de “tubérculos
nos lucros obtidos com o serviço. De
pulmonares”. A tuberculose pode afetar
fato, a partir de 1869 o transporte dos
quase todos os tecidos ou órgãos do
corpos passou a ser feito apenas em
corpo, sendo mais comum nos pul-
carros funerários, divididos em quatro
mões. Os sintomas mais gerais são
“classes”. Os indigentes, as recolhidas
a sudorese (suor excessivo), febre e
no colégio de Nossa Senhora do Am-
emagrecimento (Stedman 1996: 376).
paro e os que falecessem nas enferma-
rias do Exército e da Armada teriam Segundo o Dicionário de Medicina
transporte gratuito. Como dito antes, Popular, de Chernoviz, o “amoleci-
não é difícil imaginar que os escravos mento do cérebro” é caracterizado
da SCMP, responsáveis pela condução “por um enfraquecimento gradual das
dos cadáveres, tivessem sua imagem faculdades intelectuais, da sensação,
pessoal associada ao esquife ou ao do movimento, pela diminuição da
carro funerário que, ao invés de sus- memória, dificuldade no falar, dores
citarem respeito, causavam horror e de cabeça, e, nos casos mais graves,
repugnância. pela paralisia geral” (1878:158). Não
sabemos a idade de Bruno, o escravo
que morreu de “amolecimento cerebral”,
CAUSAS DE MORTE DOS ESCRAVOS mas Chernoviz afirma que se trata de uma
DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA “moléstia própria da velhice, e excessiva-
DO PARÁ mente rara nas crianças” (op. cit.: 159).
Os relatórios dos provedores da Santa Eczema é um termo genérico utilizado
Casa de Misericórdia do Pará também em medicina para condições infla-
nos revelam as causas de morte de al- matórias agudas ou crônicas da pele,
Quadro 2
Causas de mortes dos escravos da Santa Casa de Misericórdia do Pará
NOME CAUSA DA MORTE FONTE
Lina Tubérculos pulmonares SCM 1863:15
Clara Tubérculos pulmonares SCM 1863:15
Bruno Amolecimento cerebral SCM 1863:15
Justiniano (menor) Eczema sifilítico SCM 1863:15
Basília (menor) Febre meningo gástrica SCM 1863:15
Joaquim Caetano Hepatite aguda SCM 1863:15
Zeferino Gastro hepatite aguda SCM 1868: 14
Joaquim de Santana Gastrite ligeira SCM 1868: 14
Silvestre Asfixia por submersão SCM 1868: 14
que no Hospital Bom Jesus dos Po- paraense, fossem eles abonados ou
bres, no largo da Sé, “desvalidos da sorte”. Da mesma for-
“são recolhidos todos os doentes ma, aliviava as apreensões na hora da
de ambos os sexos, que o pro- morte, haja vista o pavor que se tinha
curam, sem distinção de cor, nacio- de uma morte súbita, sem preparação e
nalidade, ou religião e nele se exer- mais ainda o temor de ser enterrado sem
cita a caridade, como a recomenda funeral e sepultura adequados. Conforme
o nosso Divino Mestre e a ciência observou Vianna (1992:258), era co-
de Hipócrates. mum a crença de que a alma não entra-
Também nele se recebem pen- va no céu enquanto o corpo estivesse
sionistas escravos, ou livres, que insepulto ou enterrado em campo
careçam dos socorros da medicina. aberto. O serviço funerário prestado
O acesso para o hospital é franco e pela SCMP diminuía o pavor dos de-
livre de dependências; as suas por- votos, principalmente os mais pobres
tas estão sempre abertas para a po- e os escravos que não contavam com
breza necessitada, sem ser preciso
a proteção de nenhuma irmandade, de
licença do provedor ou do respec-
tivo mordomo. O regente tem or-
terem para sempre cerradas as portas
dem de recolher tudo quanto ver- do paraíso.
dadeiramente tiver cara de doente e Sem dúvida, a SCMP é uma das mais
de pobre. São estas as duas únicas importantes instituições da Amazônia,
condições que se requerem para o
estando ligada a muitos fatos históri-
impetrante auferir o direito de en-
cos da região e sendo responsável
trada” (SCM 1863: 235)
por várias instâncias do atendimento
Dentre as medidas adotadas pelo pro- médico na região. Até o início do sé-
vedor Mathias José da Silva Cunha culo XX, era ela quem administrava
(1837-1838) para superar as dificul- o chamado Hospício dos Lázaros do
dades da SCMP no período da Ca- Tucunduba, transformado em abrigo
banagem, Vianna (1992:146) cita a para os hansenianos desde 1814, no lo-
cobrança junto aos senhores de uma cal onde existiu antiga olaria antes per-
quantia para assistência dos escravos tencente aos religiosos mercedários.
com elefantíase. O custo com a inter- Em 1874, data de abertura do cemitério
nação de escravos no hospital era de de Santa Isabel, para receber as vítimas
responsabilidade dos senhores, mas da epidemia de varíola, também foi reser-
estes nem sempre cumpriam com suas vada à SCMP a sua administração. Os en-
obrigações. Em momentos críticos da terramentos no Cemitério da Soledade
história do Pará no século XIX, seja na foram suspensos em 1880. Ainda no
Cabanagem, nas epidemias de cólera, século XIX, a SCMP marcou presença
febre amarela ou varíola, a Santa Casa junto aos migrantes nordestinos que,
de Misericórdia cumpriu importante sonhando em melhorar de vida nos
papel de prestar auxílio médico aos seringais da Amazônia, foram flagela-
mais diversos segmentos da sociedade dos pela varíola.
Recebido em 15/01/2013.
Aprovado em 20/03/2013.