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‘Uma galinha’ e a rainha do lar

‘Uma galinha’, de Clarice Lispector, é um dos treze contos de Laços


de família, livro publicado em 1960, no qual a autora explora diferentes formas
de aprisionamento dos indivíduos na ‘bem sucedida’ sociedade burguesa do
Rio de Janeiro no período pós-guerra.

A história é simples. Trata-se de uma galinha que, na iminência de


se tornar o almoço de domingo, abre as asas e, de voo em voo, alcança o
telhado da casa. O dono sai em seu encalço e ela se afasta cada vez mais até
que, em um momento de distração, o homem a apanha. Colocada no chão com
certa violência, a galinha afobada acaba botando um ovo. A partir daí, o pai e a
filha recusam-se a matar a ave e a transformam em a ‘rainha da casa’.
Passam-se os tempos e a lembrança da fuga heroica vai se apagando da
memória de todos, até da própria ave. O conto se encerra da seguinte forma:
“Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos”.

Como os demais contos, ‘Uma galinha’ traz uma crítica ácida aos
laços de família responsáveis pelo aprisionamento do indivíduo. Desta vez, o
foco é a mulher de classe média, resguardada pelo conforto econômico, em
seu papel de dona de casa, situação para a qual a autora cria a história da
galinha. A metáfora não é nova e sempre muito valiosa para retratar pessoas
que ficam aquém de suas possibilidades, pois, a galinha, ave cujo potencial
permite voos escoa a vida presa ao chão. A situação guarda aproximação com
a da mulher em foco restrita à maternidade e à gestão do bem estar da família.
Sem projeto próprio, acaba entrando em crise quando os filhos crescem e, ou o
marido sai de casa. Clarice mostra o engodo do projeto e não suaviza as
palavras ao apresentar a personagem.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.


Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É
verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava
consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas
galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se
fora a mesma. (LISPECTOR, 1983, p. 34)

Para imaginar o impacto dessas palavras, basta lembrar que foram


escritas no período em que Juscelino Kubitschek adota uma política
desenvolvimentista cuja inspiração cultural vinha do American Way of
Life. Estilo de vida baseado nas tecnologias desenvolvidas durante a II Guerra
Mundial e baseado também na produção em massa para o consumo. Momento
em que a propaganda de rádio e a música de David Nasser e Herivelto Martins,
interpretada por Ângela Maria e João Dias, exaltava o papel da mãe: “Ela é a
dona de tudo/ Ela é a rainha do lar/ Ela vale mais para mim? Que o céu, que a
terra, que o mar.” Se considerarmos o momento, perceberemos que ‘Uma
galinha’ é um balde de água fria no otimismo das classes médias do Rio de
Janeiro, mas não só, pois, como todo bom texto literário, rompe com a
ideologia dominante de sua época.

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