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Porto Alegre
Imaginalis
2015
Baixado em www.imaginalis.pro.br por Anelise De Carli em 26 de novembro de 2015
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
BIBLIOTECA
ISBN: 978-85-69699-00-278
1. Imaginário.
2. Comunicação I. Barros, Ana Taís Martins Portanova. (Org.). II. Titulo.
CDU: 159.954
Coordenação geral
Ana Taís Martins Portanova Barros (PPGCOM/UFRGS/Brasil)
Organizadores
Ana Taís Martins Portanova Barros (PPGCOM/UFRGS/Brasil)
Jean-Jacques Wunenburger (Université de Lyon 3/ Lyon, França)
Comissão científica
Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Brasil)
Artur Simões Rozestraten (USP, Brasil)
Eduardo Portanova Barros (UNISINOS, Brasil)
Jean-Jacques Wunenburger (Université de Lyon III, França)
Lucia Maria Vaz Peres (UFPel, Brasil)
Maria Cecília Sanchez Teixeira (USP, Brasil)
Philippe Walter (Université de Grenoble III, França)
Comissão organizadora
Andriolli de Brites da Costa
Anelise Angeli de Carli
Annelena Silva da Luz
Carlos André Echenique Dominguez
Danilo Fantinel
Francisco dos Santos
Renata Lohmann
Apoio
CNPq, processo 466118/2014-7
CAPES, processo PAEP 3825/2015-49
Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil)
Jean-Jacques Wunenburger (Université Jean Moulin, Lyon 3, France)
Organizadores do II Congresso Internacional da rede CRI2i
Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brésil)
Jean-Jacques Wunenburger (Université Jean Moulin, Lyon 3, France)
Comité d'organisation du II Congrès du réseau CRI2i
Jean-Jacques WUNENBURGER.......................................................................... 15
L’anthropologie de l‘imaginaire selon Gilbert Durand : Contextes, options, enjeux
Mesa redonda 1:
Subversões imagéticas e filosofia de vida .................................. 81
Mesa redonda 2:
Imaginação simbólica: mídia, culto e religiosidade ...................... 153
Mesa redonda 3:
Da representação tecnológica à fenomenologia do corpo .............. 235
Mesa redonda 4:
O paradigma da complexidade e a Teoria Geral do Imaginário ........ 333
Monique SILVA
Vanessa VASCONCELLOS
Valeska Fortes de OLIVEIRA .............................................................................. 354
As contribuições do imaginário para a educação: um estado da arte
Elza Kioko Nakayama Nenoki do COUTO e Samuel de Sousa SILVA ............. 891
O olhar que distorce o tempo e o espaço: mitocrítica do discurso científico
Resumo
Compreendido como sistema organizador de experiências com dinamismo próprio, o
imaginário constitui-se como eixo articulador para resgatar formas de expressar o real, bem
como para projetar maneiras de transformá-lo. As reflexões sobre esse tema pressupõem uma
abrangência integradora e interdisciplinar que incita a compreensão de fenômenos humanos e
culturais sob múltiplos olhares, entre os quais se destaca a arte literária. Essa rede de
associações de imagens singulariza tanto o estilo individual do autor, quanto sugere traços do
mundo social e cultural. É nosso intuito, neste trabalho, analisar, à luz da Literatura
Comparada, elementos que servem de vetores à imaginação simbólica nesse corpo de
significação vivo que é a obra literária. Nossa proposta é investigar a matéria imaginária que
organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago.
Palavras-chave: imaginário; literatura comparada; José Saramago.
Abstract
Considered as an organizing system of the experiences with a singular dynamism, the
imaginary constitutes a central theme to rescue means to express reality as well as to point
ways to change it. Today, the reflections on this topic assume an integrative and
interdisciplinary scope urging the understanding of human and cultural phenomena from
multiple perspectives, among which is the literary art. This network of images distinguishes
both the individual author's style and suggested features of the social and cultural world. It is
our intention in this paper to analyze, in Comparative Literature perspective, elements that act
as vectors to the symbolic imagination in the body of alive meaning that is the literary work.
Our proposal is to investigate the imaginary matter that organizes the aesthetic and the
political project of José Saramago.
Key words: imaginary; comparative literature; José Saramago.
Introdução
1
mariazildacunha@hotmail.com
2
dorafada@ig.com.br ou mbaseio@uol.com.br
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Mostra-se bastante aguda à nossa percepção a ideia de que a realidade em que nos
inserimos hoje se tece de uma complexidade que nos desafia continuamente a buscar novas
formas para compreendê-la. A mudança paradigmática de que somos partícipes problematiza
e provoca fissuras em verdades, valores e modelos explicativos que serviram de sustentação
para nosso pensar, sentir e agir por muitos séculos.
Se, de acordo com Gilbert Durand (1997, p.14), o imaginário pode ser compreendido
como um “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do
homo sapiens”, o estudo dessa complexa rede semântica permite, de alguma maneira,
capturar o que se delineia, ainda que de forma cifrada, nos pensamentos e sentimentos
humanos neste nosso tempo.
É fato que as reflexões sobre o imaginário assumem abrangência interdisciplinar nesse
novo contexto, permitindo a compreensão dos fenômenos humanos e culturais de maneira
multidimensional. Muito embora entendamos que os estudos do imaginário engendrem muitas
produções, neste artigo pretendemos analisar sua figuração na arte literária.
É nossa intenção perscrutar a rede de imagens que se integram e compõem este corpo
de significação vivo, que é a obra literária, analisar elementos que servem de vetores à
imaginação simbólica, tornando-se, assim, possível apreender sentidos importantes para o
homem neste momento de seu percurso de humanização. Pretendemos investigar a matéria
imaginária que organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago, sinalizando
algumas configurações de imagens e suas relações com o contexto sócio-histórico e cultural
em que se enraízam. Para este momento, trabalharemos com as obras Jangada de Pedra e O
Conto da Ilha Desconhecida.
Cumpre esclarecer que nossa pretensão não é restringir este estudo às formas sigilosas
e distorcidas da ideologia, tampouco explorar relações entre forças sociais, mas abarcá-lo
como fenômeno de relação do homem com o mundo, observando a forma como se estrutura a
imaginação criadora, esta capaz de oferecer vias de acessibilidade ao mundo das afetividades,
as quais se engendram aos processos de racionalidade, aspecto que vai requerer uma
consideração especial para o entendimento da complexidade que constitui o homo sapiens
demens deste nosso milênio.
Para realizar este exercício crítico, tomamos por fundamento os instrumentais da
Literatura Comparada, perspectiva interdisciplinar de estudos que opera com a comparação de
diferentes literaturas ou entre literatura e outras artes ou ainda com outras áreas do saber.
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Cabe ressaltar, em consonância com as novas teorias críticas, que esse campo de
estudos abre canais para exercícios reflexivos sobre o caráter histórico e cultural do fenômeno
literário, tornando-se solo fértil para problematizar a experiência humana de maneira
pluridimensional, na medida em que amplia seus raios de ação para vários recortes
epistemológicos do conhecimento humano, como a Sociologia, a Antropologia etc., embora
considerando a ideia de G. Durand (1996, p.145) de que a Ciência do Homem seja uma só.
Ao abrir possibilidades de colocar em diálogo diferentes obras, a Literatura
Comparada, com seus métodos específicos, auxilia na percepção do sistema de imagens que
transita de uma obra para outra. A despeito das diferenças e singularidades de cada texto – o
que resguarda sua autenticidade, conforme Cândido (1997), faz-se possível estabelecer
conexões capazes de tornar visíveis os elementos de similaridade e, portanto, encontrar pistas
para compreender os elementos semânticos que fazem pulsar o imaginário.
Retomando as ideias de Wunenburger (2007, p.35), independente do método com que
se pretende operacionalizar, o imaginário pode ser “apreendido como uma esfera organizada
de representações na qual fundo e forma, partes e todo se entrelaçam”. E acrescenta:
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relações com Pedro Orce, o que provoca um clima de tensão nos viajantes, ainda que
permaneçam juntos. A Jangada de Pedra para. Portugal fica voltado para os Estados Unidos e
a Espanha para a Europa.
Ainda que as demais personagens não percebam o movimento da terra, Pedro Orce
afirma que ela ainda treme, o que acaba por se confirmar com a retomada do movimento
peninsular, de modo a girar, durante um mês, em torno de seu próprio eixo. Finalmente, o
movimento cessa e as mulheres percebem que estão grávidas. Morre Pedro Orce no momento
em que a galera para e se percebe que a terra não treme mais. O grupo descansa para depois
retomar a viagem.
Notamos que essa obra de Saramago encanta pelo conjunto de imagens que se tecem
inexplicavelmente no imaginário do leitor, para as quais ele deseja encontrar sentidos.
O título Jangada de pedra é alegórico e amalgama múltiplas significações. A jangada
remete ao tema da navegação e da viagem – referência histórica, literária e mitológica - todas
elas enoveladas no tecido hipertextual.
Já a matéria de que é feita - a pedra - metaforiza a ação humana de construção.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1996), a pedra é símbolo da Terra-mãe.
Observamos que o espaço da narrativa é a Jangada de Pedra, representação metafórica
da Península Ibérica que se desloca pelo Atlântico, em um tempo sem marcas cronológicas
precisas, um tempo labiríntico condensado no espaço e na ação: a viagem - percurso da
humana aprendizagem.
A Jangada de Pedra evoca, no imaginário do leitor, uma pluralidade de viagens,
colocando em marcha o percurso dos heróis em busca de si mesmos. O texto nos transporta,
pelas ondas do imaginário mítico, à Odisseia, à Arca de Noé e a outros lugares de memória de
onde podemos ponderar sobre a condição e a identidade do homem.
Sabe-se que o contexto histórico de produção desse romance coincide com Portugal
em face da tensão pós-Abril, que remete à integração de Portugal na Comunidade Econômica
Europeia (como nação periférica) e identificação, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias.
A Ibéria transformada em jangada leva o leitor a acercar-se da gloriosa história do
povo português em suas grandes navegações em busca de um novo mundo, entretanto com
uma visão outra, marcada pelo olhar crítico de quem revê os acontecimentos e vislumbra
outras perspectivas. A península ibérica não pode ser compreendida sem sua relação histórica
com a América e com a África. Daí a importância de as comunidades de Língua Portuguesa
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Guarvaia, a primeira cantiga medieval cantada em solo lusitano - é a Ariadne que fornece os
fios para construir essa nova trama da história.
Esse conjunto de imagens metafóricas e simbólicas, advindas dos mitos, da literatura e
da história, semantizadas em um novo discurso que se tece labiríntico no corpo vivo da
palavra literária, engendra faces de um comprometimento social, cultural, ético, político e
estético do autor lusitano.
A vara que risca o chão metaforiza o lápis a traçar fantasticamente a narrativa, axis
mundi a revelar o poder de recriação da estória animado pelo desígnio de refazer, pela
palavra, a História. Vara mágica e de poder clarividente, sob mãos femininas - vale ressaltar -
faz acordar para a consciência e transformar o que existe como dado.
Ao conjugar o imaginário feérico, mitológico e alegórico, o autor incita reflexões
críticas sobre a importância dos laços comunitários em resistência às forças do discurso
hegemônico, construindo esteticamente um novo imaginário. As personagens se juntam
mobilizadas por fatos que ocorrem de forma inusitada na vida cotidiana e lançam-se na
construção de uma nova ordem, de um novo lugar. Elas vão construindo sua humanidade na
convivência bem pouco pacífica. A jangada, em seu deslocamento, gira sobre si mesma, antes
de parar estrategicamente, conotando uma busca da própria identidade e do sentimento de
pertença a um entrelugar cultural em que se partilha a expressão pela língua.
Para além das amarras da história, ampliando para uma visão da arte como
problematizadora da condição humana, essa sintaxe simbólica e semântica, da forma e da
expressão, tecida ao modo de labirinto, encanta o leitor contemporâneo, também ele em busca
de sentidos de si mesmo pelos sentidos do outro.
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ele queria ser atendido pelo rei, então se deitou frente à porta e acabou atrapalhando as
pessoas, o que provocou revoltas sociais, até que o rei atendeu o homem e lhe deu o barco.
O rei solicitou que o homem procurasse o capitão do porto e arrumasse a tripulação. A
mulher da limpeza resolvera ir com ele à procura da ilha. Ao chegar às docas, conseguiu uma
caravela reformada, que foi limpa pela mulher, enquanto o homem procurava por uma
tripulação, a qual não encontrou, pois ninguém acreditava que houvesse uma ilha
desconhecida. Seguiram ele e a mulher por insistência dela. Jantaram na primeira noite e
adormeceram. Ele sonhou com uma grande tripulação: homens, mulheres, crianças e levava
sementes, terra, animais e árvores; aportaram e, ali, fizeram brotar nova vida. Ao acordar, ao
lado da mulher da limpeza, nomearam o barco de ilha desconhecida e este barco-ilha parte
para o mar, à procura de si mesmo.
O título instiga o leitor a descobrir onde é e como se vive na ilha desconhecida. E
inicia abrindo portas para sua navegação, oferecendo uma ponta do fio: o barco.
A entrada da trama são as portas: do rei, das petições, dos obséquios, das decisões e
outras, pelas quais o leitor penetra no texto e, ao lado das personagens, dispõe-se em viagem
imaginária para a Ilha Desconhecida. Os desafios do labirinto e da aventura da viagem
instauram-se logo no início da trama.
A obra semantiza redes de elementos míticos, históricos, literários, de códigos
diversos e de diferentes linguagens, reunindo, em palimpsesto, textos culturais, épocas
civilizatórias, sonhos e ideais humanos. Traz temas que perpetuam pelos diferentes
imaginários e modulam a compreensão de cada época. Os grandes navegadores, Noé, Ulisses,
Simbad o marujo, heróis históricos, míticos e literários inscrevem no corpo do texto o factual,
o sagrado e o insólito, revelando múltiplas possibilidades para o impulso da aventura humana
em busca do conhecimento.
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relembra outras formas de poder autoritário que compuseram a história não apenas lusitana,
mas também de outros países. Para analisar o discurso crítico que a arte cria com a história, o
tom irônico do narrador modula o texto, abrindo novas portas para a releitura e a re-escritura
da História. Destronado, o rei senta-se na cadeira de palha da mulher da limpeza:
[...] Mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu
quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem
és, [...] dizia que todo homem é uma ilha [...] Que é necessário sair da ilha
para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós. (SARAMAGO,
1998, p.40-41)
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A ilha desconhecida representa Portugal que busca sua própria identidade em um novo
contexto, que já não é o das caravelas.
A arquitetura imaginária que Saramago nos convida a penetrar torna-se uma aventura
de navegação. O leitor é arremessado no interior do processo labiríntico do texto e para além
das malhas textuais. O inusitado uso da pontuação, o complexo itinerário imaginário tecido de
múltiplas rotas que ativam a capacidade mnemônica para construção de sentidos motivam o
leitor a recuperar o passado, questionar o presente e projetar o futuro. Nessa viagem imóvel e
imaginária possibilitada pela arte literária, o leitor refaz caminhos de descoberta e
significação, reescrevendo a história. Carece a ele, no transitar por entre as tramas dos signos
verbais e não verbais, encontrar o fio de Ariadne e enfrentar com coragem e ousadia as
adversidades que antecedem a descoberta.
Assim, podemos concluir que O conto da ilha desconhecida reatualiza os elementos
imaginários da viagem, bem como os motivos labirínticos, tanto no plano do conteúdo, quanto
no plano da expressão.
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Como matéria mítica, renova-se, nessas obras, a imagem de Ulisses como herói
paradigmático que, segundo a crença, fundou a cidade de Lisboa (BORGES, 1983, p.39) e,
como líder, convida seus companheiros a uma notável aventura.
Igualmente, nos dois textos, é possível reler a figura bíblica de Noé, importante
personagem para o imaginário cristão, imagem literarizada para semantizar a construção de
uma nova humanidade.
De acordo com Wunenburger (2007, p.49), os mitos, compartilhados pelos narradores
orais, são renovados permanentemente e, no exercício da escritura, são literalizados, seus
conteúdos são transfigurados, evidenciando sua perenização. Na passagem do mito tradicional
para o mito literário, há processos de releitura, entre os quais a “bricolagem” (a reorganização
da arquitetura narrativa, de forma que o mito seja decomposto e recomposto sob nova
perspectiva, ou ainda a “transfiguração barroca”(WUNENBURGER,2007, p.50), em que
“uma formação mítica se vê transformada por uma reescritura lúdica que atua por meio de
inversões, de paródias, ou de aparências”(WUNENBURGER,2007, p.50) – ambos processos
intencionalmente presentes nas obras analisadas neste ensaio.
Cumpre assinalar, na esteira do referido autor:
Essa rede imaginária de textos e contextos que se entrama na forma jogo literário
convida-nos a retecer percursos da memória e a providenciar caminhos para o futuro. Nas
palavras de Saramago: “o sonho é um prestidigitador hábil, muda a proporção das coisas e as
suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as”. (SARAMAGO, 1998, p.50).
E a matéria imaginária que compõe a literatura é de natureza onírica. Saramago organiza as
duas narrativas com mitos que vão sendo semantizados para compor um imaginário social e
político que lhe traduz o sonho diurno. Conforme Benjamin Abdala Junior, em De Vôos e
Ilhas (2003, p. 18), inspirado em Ernst Bloch: “é o sonho de quem procura novos horizontes
[...] Essa atitude é mais adequada do que o sonho noturno, que teima obsessivamente em olhar
para trás, melancolicamente contemplando as ruínas”.
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Nas duas narrativas, figura a viagem tomada também como escrita da viagem. A
escrita torna-se pretexto para a busca da identidade – uma espécie de odisseia interna, como
expansão do império interior.
A escrita da viagem é metáfora escolhida para um novo encontro: do autor com o
leitor. Ela atualiza o sujeito no seu permanente movimento de formação e de reformulações na
busca de um lugar cultural. Conforme Hatoum:
A identidade não deve ser uma adesão passiva ao real com que fomos
enformados. Forma compacta, o estereótipo é uma fábrica de convenções,
um antídoto contra a invenção. Nesse sentido, a identidade é uma busca.
Para um escritor, essa busca se perde em um labirinto de vivências e
experiências, mediado pelo aparato da linguagem.[...] (HATOUM, 1994,
p.77).
Considerações finais
Distintas marcas históricas singularizam as formas artísticas, as várias migrações e
reinvenções de imagens, concepções e estruturas que se afirmam como metáforas para
formulação de conceitos estéticos. Os espaços textuais, ao se retecerem em fluxos operativos,
convocam a participação do leitor para complementar o diagrama de significações delineado
pelo autor.
Saramago, em seu criativo projeto estético e político, revela profunda consciência de
linguagem, reinventando imaginários e incitando reflexões sobre a importância dos laços de
afeto em resistência às severas forças do discurso hegemônico, construindo esteticamente um
novo imaginário.
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REFERÊNCIAS
ABDALA JR., Benjamin. De vôos e ilhas: literaturas e comunitarismos. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
_____. Estudos comparados: teoria, crítica e metodologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.
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MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro:
Atlântica, 2004.
SARAMAGO, J. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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