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PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 73 · OUTUBRO 2022

A ASCENSÃO
DOS FASCISMOS
• Como tudo começou • A ilusão da Itália
de Mussolini • Ecos imediatos em Portugal
• O horror da Alemanha nazi
• O longo Estado Novo português • As ligações
entre o salazarismo e o nazismo
• A sangrenta Espanha franquista

FRENTE A FRENTE
FERNANDO ROSAS VS JAIME NOGUEIRA PINTO:
O SALAZARISMO FOI UM FASCISMO?
SUMÁRIO

Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.


Sede: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte, Edifício Fernão de
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Principal acionista: Luís Delgado (100%)
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Diretora: Cláudia Lobo


Editor: Luís Almeida Martins
Coordenação: Clara Teixeira
Textos: Annarita Gori, António Costa Pinto, Carlos Manuel Martins, Clara Teixeira, Cláudia
Ninhos, Fernando Rosas, Filipe Luís, Giulia Albanese, Jaime Nogueira Pinto,
Luís Almeida Martins, Manuel Loff e Xosé Manuel Nuñez Seixas.
Grafismo: Teresa Sengo (editora) e Raquel Leal
Revisão: António Ribeiro
Fotografia: AML (Arquivo Municipal Lisboa), ANTT (Arquivo Nacional Torre do Tombo
(ANTT), Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (BAFCG), Fundação Amélia
de Mello, Getty Images

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e Fernando Negreira (fotografia).

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2770-190 Paço de Arcos – Tel.: 218 705 000
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Tiragem média: 16 000 exemplares Relações do Estado Novo
Registo na ERC com o n.º 125 643
Depósito Legal n.º 276 678/08 A Marcha sobre Roma vista com o III Reich
de Portugal ³ Por Annarita Gori 34 ³ Por Cláudia Ninhos 68
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A ascensão do totalitarismo Um fascismo tardio
Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ³ Por Cláudia Ninhos 38 ³ Por Manuel Loff 72
ilustrações sob quaisquer meios e para quaisquer fins.

Perseguição e genocídio Uma guerra civil transnacional


dos judeus ³ Por Cláudia Ninhos 48 ³ Por Xosé M. Núñez Seixas 78

Afinidades entre líderes Carmona e os filhos


ASSINATURAS ³ Por Cláudia Ninhos 49 de Mussolini 82
Ligue já
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Dias úteis – 9h às 19h
vá a loja.trustinnews.pt Foto da capa: Francisco Franco, Benito Mussolini, Adolf Hitler (Getty Images)
e Oliveira Salazar (Estúdios Novais/BAFCG)

VISÃO H I S T Ó R I A 3
FASCISMOS // SUMÁRIO

Viagem ao fundo da noite

F
az este mês exatamente cem anos
que ocorreu a chamada Marcha so-
bre Roma (28 de outubro de 1922)
e que o líder fascista Benito Mus-
solini se tornou chefe do Governo
italiano. Três anos depois instituiria
uma ditadura implacável, cujo modelo seria
replicado noutros países. Como a História
se repete, embora nunca da mesma forma
– há quem diga que da primeira vez como
tragédia e da segunda como farsa – tomou
recentemente posse, na mesma Itália, um
Executivo chefiado por uma remota herdeira
dos (necessariamente adaptados ao presente)
«ideais» fascistas. E a Itália não é caso úni-
co, pois têm vindo a ascender ao poder, na
Europa, governos populistas iliberais que, de
alguma forma, possuem no seu ADN alguns
dos valores mais conservadores dos velhos
fascismos surgidos nas décadas de 1920 e
1930. Este número é, pois, dedicado ao perío-
do da ascensão dos totalitarismos de direita
na Europa e àquela que os historiadores de- Marcha sobre Roma Mussolini (de faixa) entre outros dirigentes fascistas, em outubro de 1922
signam por «era dos fascismos» – ou seja, o
período entre as duas guerras mundiais. Em- exemplos tidos por mais representativos na António Costa Pinto (aos quais endereçamos
bora tenham eclodido nesse tempo muitos Europa ocidental: a Itália fascista, a Alema- especiais agradecimentos pela colaboração no
regimes totalitários e altamente repressivos, nha nazi, o Portugal salazarista do Estado desenho do número), Manuel Loff, Cláudia
persecutórios da liberdade de expressão e Novo e a Espanha franquista. Como é habi- Ninhos, Annarita Gori, Carlos Manuel Mar-
de outros direitos humanos fundamentais, tual, incluímos colaborações de especialistas tins, Jaime Nogueira Pinto, Giulia Albanese
escolhemos, para desenvolvimento, os quatro no tema, designadamente Fernando Rosas, e Xosé Manoel Nuñez Seixas.

Correções
Berenice
No número 72 sobre o Antigo Egito, o artigo -sarcófagos para os órgãos internos do faraó.
‘Tutankhamon em Portugal’, publicado na pág. 76, é Na pág. 81, a fotografia de F. de Carvalho
da autoria também de Susana Mota, e não apenas de Henriques aparece truncada. A verdadeira
José Candeias Sales. é a que agora publicamos. B-r-n-y-g-

Na pág. 54, publica-se uma foto de Carter Na pág. 45, saíram trocados os hieróglifos
e Arthur Mace, e este último está erradamente correspondentes aos nomes Ptolomeu Ptolomeu
identificado como Carnarvon. e Berenice. Ei-los agora na ordem certa

Na pág. 63, a imagem está identificada como Nos textos desta edição, houve nomes
P-t-w-l-m-y-s
‘o sarcófago de Tutankhamon’, quando, grafados de forma desencontrada. Aos autores
na verdade, se trata de um dos quatro mini- dos textos e aos leitores pedimos desculpa.

4 VISÃO H I S T Ó R I A
A CULTURA
EM APENAS DUAS LETRAS

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das 9h
9h à
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FASCISMOS // CRONOLOGIA

Ascensão e queda dos fascismos


1883 ocidentais e à Rússia (a Entente, 1919 12 SET Numa Itália descontente
29 JUL Benito Mussolini nasce ou os Aliados), e da qual emergirá, 5 JAN Eclode em Berlim a insurrei- com as compensações territoriais
em Predappio, na Emilia-Romagna, quatro anos depois, um novo ção espartaquista, de caráter comu- que lhe couberam ao ter terminado
Itália, filho de um ferreiro e de uma mundo. Portugal alinhará nista, que é esmagada ao fim de dez a guerra do lado vencedor, o poeta
professora primária. em 1916 com os Aliados, o dias numa repressão governamental e dramaturgo Gabrielle d’Annunzio
mesmo tendo sucedido à Itália coroada com as execuções de Rosa dirige uma força paramilitar que
1889 em 1915. A Espanha mantém Luxemburgo e Karl Liebknecht. ocupa a cidade de Fiume (Rijeka),
20 ABR Adolf a neutralidade. na Croácia.
Hitler nasce 23 MAR São fundados por Benito
na cidade 1917 Mussolini, em Milão, os Fasci 16 NOV Concorrendo apenas
fronteiriça de 8-16 MAR Na Rússia, uma Italiani de Combatimento, na altura em Milão, os fascistas obtêm um
Braunau am revolução conduz à abdicação com uma tonalidade de extrema- resultado fraco nas legislativas.
Inn, no Império do czar Nicolau II e instaura um -esquerda.
Austro- regime republicano e democrático. 1920
-Húngaro, 15 ABR Os squadristi (braço 24 FEV Já sob a liderança
filho de um 7 NOV Ainda na Rússia, a armado dos FasciItaliani di de Hitler, o Partido dos
funcionário alfandegário (que revolução bolchevique coloca no Combatimento) atacam e saqueiam Trabalhadores muda
alterara o apelido de Schicklgruber poder os sovietes (assembleias) e destroem a sede do Avanti, jornal de nome para Partido
para Hitler, o que viria a «facilitar a de operários e camponeses, na do Partido Socialista. Nacional-Socialista dos
vida» ao futuro Führer...) e de uma prática o Partido Comunista; Trabalhadores Alemães
dona de casa. seguir-se-á uma longa guerra civil. (Partido Nazi); Hitler

1883
28 ABR António de Oliveira 8 DEZ Em Portugal, um golpe de apela à criação de um Estado
Salazar nasce em Vimieiro, Santa Estado dirigido pelo major Sidónio «racista e nacional-socialista»,
Comba Dão, distrito de Viseu, filho Pais e com o apoio de monárquicos, fazendo a síntese do ideário völkisch
de trabalhadores rurais. integralistas e católicos suspende (populista, nacionalista e racista),
a República parlamentar e instaura 6 JUN Os Fasci Italiani di Combati- que remontava ao século XIX.
1892 uma ditadura, frequentemente mento publicam o seu manifesto.
43 DEZ Francisco Franco nasce no considerada uma antecessora do 15 ABR É fundado o Partido
Ferrol, Galiza, filho de um oficial da fascismo. 28 JUN É assinado o Tratado de Comunista Espanhol.
Armada e da filha do comissário Versalhes, que sela as condições
naval do porto. 1918 de paz após a Grande Guerra: a 24-25 MAI Num Congresso, os
7 MAR O Partido dos Alemanha fica obrigada a ceder a Fasci di Combatimento abandonam
1910 Trabalhadores Alemão é fundado Alsácia-Lorena à França, Eupen e a inspiração esquerdista.
5 OUT Triunfa, em Portugal, a em Munique por Anton Drexler. Malmédy à Bélgica, o Schleswig do
revolução que instaura a República. Norte à Dinamarca e largas partes 13 JUL Nacionalistas e fascistas
11 NOV Com a assinatura do da Prússia à ressuscitada Polónia. incendeiam a Casa do Povo de
1914 armistício entre os Aliados e a Trieste, sede das organizações
Alemanha, termina a I Guerra 20-21 JUL Uma greve geral em dos eslovenos triestinos.
Mundial. Itália constitui um ponto quente
do chamado «Biénio Vermelho», 12 NOV A Itália assina com o recém-
13 DEZ É fundado, por Rosa marcado por greves, ocupações -criado Reino dos Sérvios, Croatas
Luxemburgo e Karl Liebknecht, o de fábricas e toda a espécie de e Eslovenos (futura Jugoslávia) o
Partido Comunista da Alemanha, a choques sociais. Tratado de Rapallo, que lhe assegura
partir da Liga Espartaquista, saída a posse da Ístria e das cidades de
em 1914 da ala esquerda da social- 11 AGO A República Alemã, Triste, Gorizia e Zara, enquanto
-democracia. sucessora do Império Alemão Fiume é declarada cidade livre.
28 JUL O Império Austro- derrotado na guerra, é proclamada
-Húngaro declara guerra à 14 DEZ Sidónio Pais é em Weimar, onde decorreram os 17 DEZ O Völkischer Beobachtrer
Sérvia e, pelo jogo das alianças assassinado em Lisboa; proclama- trabalhos constituintes (por Berlim (Obervador Étnico) torna-se
militares, a Europa mergulha -se depois, no Porto, a Monarquia estar a ferro e fogo) e ficará por isso órgão oficial do Partido Nazi.
na I Guerra Mundial, que opõe do Norte e, após uma breve guerra conhecida por República de Weimar;
os Impérios Centrais (Alemão e civil, a República parlamentar os políticos são perseguidos pela 1921
Austro-Húngaro, a que se juntará portuguesa será reinstaurada em calúnia de terem negociado a paz à 21 JAN É fundado
o Otomano) às democracias fevereiro de 1919. revelia dos militares. o Partido Comunista Italiano.

6 VISÃO H I S T Ó R I A
A primeira metade do século XX caracterizou-se pela emergência de regimes
ditatoriais totalitários, fundamentalmente derrotados na II Guerra Mundial, dois
deles, porém – o português e o espanhol – sobreviveram até à década de 1970

6 MAR É fundado o Partido lei segundo a qual o partido que 20 DEZ Hitler é libertado, após ministro das Finanças britânico,
Comunista Português. obtiver 25% dos votos conquista apenas seis meses na cadeia. elogia o regime de Mussolini,
dois terços dos lugares da Câmara «antídoto contra o comunismo».
13 ABR Constitui-se o Partido dos Deputados. 1925
Comunista de Espanha, pela 3 JAN Mussolini assume-se como 3-9 FEV Em Portugal, são
fusão do PC Espanhol com outras 15 SET Em ditador da Itália. derrotadas, no Porto e em Lisboa,
organizações. Espanha, as últimas grandes revoltas
o general 29 MAR O marechal Erich militares contra a ditadura.
15 MAI Os fascistas conquistam Miguel Ludendorff, apoiado pelos nazis,
apenas 35 lugares, num Primo de é severamente derrotado nas 1928
parlamento italiano de 535. Rivera chefia eleições presidenciais alemãs pelo 20 MAR Nas eleições
um golpe de marechal Paul Hindenburg. parlamentares alemãs, os nazis
5 OUT Como braço armado do Estado e, com obtêm (apenas) 2,6% dos votos.
Partido Nazi e sob a liderança a aquiescência 1 JUL As tropas francesas de
de Ernst Röhm, são fundadas de Afonso XIII, ocupação evacuam a Renânia. 27 ABR Salazar entra no Governo
na Alemanha as SA de boa parte português, como ministro das
(«Destacamento Tempestade»). do patronato, 18 JUL Hitler publica o primeiro Finanças, e declara na tomada de
das forças armadas e do clero, volume de Mein Kampf (A Minha posse: «Sei muito bem o que quero
9 NOV A partir dos Fasci Italiani instala uma ditadura, mais Luta), escrito na prisão, de início e para onde vou.»
di Combatimento, é fundado o moderada e conservadora do que com um sucesso modesto mas
Partido Nacional Fascista. o fascismo italiano. depois considerada a «bíblia» do 4 JUN O comunista italiano

1931
1922 30 SET Atestando a hiperinflação nazismo, Antonio Gramsci é condenado a
24 JUN É na Alemanha, passam a ser com tiragens 20 anos de prisão pelo Tribunal
assassinado por precisos 60 milhões de marcos fabulosas Especial do Estado.
uma organização para perfazer 1 dólar (em julho a partir de
terrorista de 1922 eram 670 marcos). 1930. 1929
antissemita o JAN Heinrich
industrial e político alemão judeu 9 NOV O Partido Nazi tenta um 11 NOV São criadas as SS Himmler torna-
Walter Rathenau; milhões de golpe em Munique (conhecido por (Esquadrão de Proteção), como -se chefe das SS e
pessoas assistem ao seu funeral. «Putsch da Cervejaria»), mas o guarda pretoriana de Hitler. transforma-as numa
resultado é um rotundo fracasso, força poderosa.
2 AGO Por ação dos fascistas, sendo presos os principais 1926
fracassa em Itália uma greve geral conspiradores, incluindo Hitler. 28 MAI Em Portugal, um golpe 11 FEV A Itália e a Santa Sé
lançada pelos socialistas. de Estado liderado pelo marechal assinam os acordos de Latrão,
1924 Gomes da Costa põe termo que selam a criação do Estado do
24 OUT Num comício em Nápoles, 1 ABR Hitler é condenado
enado à I República Portuguesa, abole Vaticano.
Mussolini anuncia a Marcha sobre a cinco anos de prisão.
o. os partidos políticos e instaura a
Roma, para exigir o poder. Ditadura Militar; a imprensa passa a 1930
10 JUN O deputado socialista ser censurada. 28 JAN Primo de Rivera apresenta
28 OUT Milhares de fascistas, tteoti,
italiano Giacomo Matteoti, a demissão ao rei de Espanha
de camisa negra, fazem egime italiano,
adversário do novo regime 3-4 JUL Um congresso de e este nomeia para chefiar um
a Marcha sobre Roma; Vítor halada por
é assassinado à punhalada «refundação» do Partido Nazi governo de «normalização» o
Emanuel III nomeia Mussolini uma milícia fascista.. decorre em Weimar. general Dámaso Barenguer.
presidente do Conselho.
27 JUN Em protesto o contra Musso- NOV Em Itália, são 14 SET Com 6 milhões de
15 DEZ Reúne-se pela primeira vez lini, a oposição socialista,
lista, republica- dissolvidos os partidos e votos nas eleições, o Partido
o Grande Conselho do Fascismo. na e liberal deixa de participar nos sindicatos não fascistas Nazi torna-se o segundo
trabalhos parlamentares.
tares. e é instaurado o Tribunal maior da Alemanha.
30 DEZ Terminada a guerra civil Especial do Estado para
na Rússia, é fundada a União das 16 AGO Por iniciativa
va dos EUA e da julgar «crimes» políticos. 1931
Repúblicas Socialistas Soviéticas. ntado o Plano
França, é implementado 14 ABR Em Espanha, os
Dawes, postulando a retirada das 1927 partidos republicanos
1923 tropas de ocupação o franco-belgas 20 JAN De visita a Itália, ganham as eleições
21 JUL É aprovada em Itália uma da zona industrial do Ruhr. Winston Churchill, locais nas principais

VISÃO H I S T Ó R I A 7
FASCISMOS // CRONOLOGIA

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cidades, Afonso XIII parte para o 27 FEV O edifício do Reichstag, o organizar os tempos livres dos Portuguesa, inspirada nos Balilla
exílio e é proclamada a República. parlamento alemão, é destruído trabalhadores. italianos e na Juventude Hitleriana.
por um violento incêndio, cuja
1932 responsabilidade é atribuída aos 1934 18 JUL Militares «nacionalistas»
10 ABR Hindenburg é reeleito comunistas pelos nazis. 11 ABR Num pacto celebrado a pronunciam-se contra o Governo da
Presidente da Alemanha, com bordo do navio Deutschland, Hitler República espanhola; o que era para
53% dos votos; Hitler, que também 19 MAR obtém o apoio das chefias militares ser um golpe irá transformar-se
concorre, obtém 37% e o candidato É aprovada, à sua pretensão de suceder a numa longa guerra civil.
comunista, Thälmann, 10,2%. por plebiscito, Hindenburg na chefia do Estado
uma nova alemão, em troca da expansão do 19 JUL A Itália entra na guerra
5 JUL Salazar (à direita) Constituição Exército e da Marinha e da redução de Espanha,, ao lado dos
é nomeado pelo presidente portuguesa, dos efetivos e da importância das stas».
«nacionalistas».
corporativa, SA e das SS.
começando o 25 JUL A Alemanha envia
Estado Novo. 30 JUN-2 JUL Na Noite das a lutar em Espanha
aviões para
Facas Longas, a pretexto de uma ao lado doss «nacionalistas»
22 MAR Na Alemanha, alegada conspiração, quase duas ondor).
(Legião Condor).
é inaugurado o campo de centenas de membros das SA,
concentração de Spandau, incluindo Ernst Röhm, são presos 1 AGO A França propõe
para internar oposicionistas e executados, o mesmo sucedendo à Europa a não
ao nazismo. ao ex-chanceler Schleicher. ão em Espanha.
intervenção

1932
Carmona, presidente do Conselho 23 MAR O parlamento alemão, 2 AGO O presidente Hindenburg 30 SET É criada a
de Ministros. instalado num teatro, confere morre. rtuguesa, uma
Legião Portuguesa,
plenos poderes a Hitler, milícia de camisa verde
31 JUL Na Alemanha, principiando a ditadura nazi. 19 AGO Na sequência de um inspirada nas SA alemãs
o Partido Nazi é o mais votado plebiscito organizado pelo regime misas negras»
e nos «camisas
nas legislativas (37%), mas 26 ABR É criada a Gestapo, nazi, Hitler passa a acumular, com italianos.
não consegue formar um polícia política do estado nazi, o título de Führer (guia), as funções
governo de coligação. à semelhança da OVRA italiana, de chefe do Governo e de chefe de 1 OUT Franco,
anco, que já comandava
que data de 1927. Estado. os exércitos
os «nacionalistas», passa
10 AGO Em Espanha, fracassa um h l
a chefiar um governo espanhol
golpe contra a República liderado 10 MAI Ocorrem queimas de livros 16-17 DEZ Um Congresso alternativo, sedeado em Burgos.
pelo general Sanjurjo, que se públicas em diversas cidades da Internacional Fascista reúne-se em
refugia em Portugal. Alemanha. Montreux, na Suíça. 23 OUT Portugal corta
relações com a República
28 OUT Assinalando os dez 14 JUL Hitler proíbe todos 1935 Espanhola e concede auxílio aos
anos da Marcha sobre Roma, é os partidos políticos alemães 3 OUT A Itália desencadeia a «nacionalistas».
inaugurada na capital italiana a à exceção do Nazi, que fica invasão da Etiópia, que acarretará
Exposição da Revolução Fascista. a ser partido único. sanções internacionais e 1 NOV A Itália fascista e a
terminará no ano seguinte com Alemanha nazi anunciam o
2 DEZ O general Kurt von 28 AGO Segundo o modelo da a transformação do antigo reino pacto do Eixo Roma-Berlim (ou
Schleicher torna-se o último Gestapo, é fundada, em Portugal, africano em colónia. simplesmente Eixo).
chanceler alemão da República a Polícia de Vigilância e Defesa
de Weimar. do Estado (PVDE), a partir de outras 10 DEZ Para ajudar a financiar a 18 NOV A Alemaha e a Itália
organizações já existentes. guerra, é pedido aos italianos que reconhecem o governo de Franco.
1933 doem ao Estado as suas alianças
30 JAN Após a demissão de 29 OUT José Antonio Primo de de casamento. 1937
Schleicher, Hitler, com o apoio Rivera, filho do antigo ditador 9 JAN Os EUA decretam embargo
da direita tradicional alemã, é espanhol, funda a Falange, uma 1936 de armas a ambos os lados que
nomeado chanceler pelo presidente organização política de inspiração 9 MAI Após a anexação da Etiópia, combatem em Espanha.
Hindenburg, passando a liderar fascista. Mussolini proclama o Império
um governo de coligação Italiano. 19 FEV Um atentado (falhado)
dos nazis com os conservadores 27 NOV É fundada, na Alemanha, contra Rodolfo Graziani, vice-rei da
do Partido Nacional Popular. a Força pela Alegria, para 19 MAI É criada a Mocidade Etiópia, é ferozmente reprimido,

8 VISÃO H I S T Ó R I A
1 Escombros do incêndio
no Reichstag, 1933
2 Mussolini, Hitler e Ciano,
durante a II Guerra Mundial
3 Juventude Hitleriana no
Congresso de Nuremberga
de 1936
4 Membros da Balilla,
a organização
de juventude de Mussolini
5 Elementos da Mocidade
Portuguesa, criada em 1936
3 4 5

com cerca de 20 mil etíopes a 7 ABR A Itália anexa a Albânia. 25 JUL Mussolini é destituído pelo da Alemanha e o processo de
serem massacrados. Grande Conselho do Fascismo. desnazificação do país.
22 MAI A Alemanha nazi e a
25-29 SET Mussolini visita Berlim Itália fascista assinam o Pacto 3 SET O novo governo italiano, 1946
e assiste, ao lado de Hitler, a uma de Aço. chefiado pelo marechal Badoglio, 2 JUN Por referendo, a Itália
impressionante parada militar. assina um armistício com os transforma-se numa República.
1 SET A Alemanha invade a Aliados; estes desembarcam na
1938 Polónia e desencadeia a II Guerra Itália continental, enquanto os 1949
1 FEV Em Itália, é lançada a Mundial. alemães ocupam a metade norte 23 MAI É fundada a República
campanha em prol do tratamento do país. Federal da Alemanha, nas zonas
por tu e contra o aperto de mão, 1940 ocupadas pelos ocidentais.
substituído pela saudação romana. 10 MAI A Alemanha lança 12 SET Mussolini, que se
o ataque a ocidente, invadindo encontrava detido, é libertado 7 OUT Nasce a República Demo-
13 MAR A Alemanha nazi anexa a a Holanda, a Bélgica, pelos alemães e, dias depois, crática Alemã, na zona soviética.
Áustria, no chamado Anschluss. o Luxemburgo e a França. anuncia a criação da República
A Itália entra na guerra, ao lado Social Italiana, com capital em 1950
da Alemanha, contra a França Salò, no território controlado 1 AGO Os EUA emprestam 110
e a Grã-Bretanha. pelos alemães. milhões de dólares à Espanha; a
ditadura franquista passa para o lado
13 OUT A Itália declara guerra dos «bons» no cenário anticomunista
à Alemanha. da Guerra Fria.

1975
3-9 MAI Hitler visita Roma e 1944 1955
assiste, por sua vez, a uma parada 8-10 JAN No Processo de Verona, 16 DEZ Apesar de terem governos
fascista. são julgados os «traidores» de ditatoriais, Portugal e Espanha são
28 OUT A Itália invade a Grécia, 25 de julho; Galleazzo Ciano, genro admitidos nas Nações Unidas.
14 JUL O Giornale d’Italia publica o mas é repelida. de Mussolini e ex-ministro dos
«Manifesto da Raça», que desenca- Negócios Estrangeiros, é fuzilado. 1961
deia uma onda de antissemitismo. 1941 15 MAR Com massacres de
10 ABR Com a tomada de Adis- 4 JUN Roma é libertada pelos colonos em Angola, começa,
7 SET Começam a ser lançadas -Abeba pelos britânicos e pelos Aliados. para Portugal, uma guerra
em Itália leis raciais. resistentes etíopes, termina o colonial que se alastrará
Império Italiano. 6 JUN Os Aliados desembarcam à Guiné e a Moçambique e minará
29 SET Em Munique, os chefes na Normandia e começa a grande a ditadura.
dos governos britânico e francês 22 JUN As tropas alemãs invadem ofensiva contra a Alemanha nazi.
vergam-se às ambições de Hitler a União Soviética. 1968
e, em nome da paz, dão luz verde à 1945 27 SET Salazar, doente, é
ocupação da Checoslováquia. 1942 28 ABR Preso por resistentes exonerado e substituído por
20 JAN Na Conferência de comunistas, Mussolini é executado Marcelo Caetano, que promete
9-10 NOV Na Noite de Cristal, são Wannsee, os líderes nazis e o seu corpo será exposto no dia «evolução na continuidade».
atacadas e destruídas casas, lojas, implementam a «solução final seguinte numa praça de Milão.
escolas, hospitais e outros estabeleci- para a questão judaica»: 1974
mentos de judeus um pouco por toda deportação de judeus para campos 30 ABR Hitler suicida-se, quando 25 ABR O Movimento
a Alemanha e Áustria, sendo assassi- de extermínio na Polónia. tropas soviéticas estão já em das Forças Armadas derruba a
nadas perto de cem pessoas. Berlim. ditadura em Portugal, três décadas
1943 depois do fim do fascismo italiano e
1939 2 FEV Forças alemãs rendem-se 8 MAI A Alemanha do nazismo alemão.
1 JAN Na Alemanha, todos os aos soviéticos em Estalingrado, na rende-se
negócios de judeus são banidos. maior derrota alemã na guerra até incondicionalmente. 1975
à data; mas a luta prossegue, agora 20 NOV Morre Franco,
28 MAR Tropas «nacionalistas» com os soviéticos na ofensiva. 17 JUL-2 AGO o último ditador
entram em Madird, terminando Na Conferência fascista «clássico»,
a guerra civil; começa a ditadura 10 JUL Os Aliados anglo- de Potsdam, os EUA, e começa, em
franquista em toda a Espanha; a -americanos desembarcam na a URSS e o Reino Unido Espanha, a transição
repressão será violentíssima. Sicília. organizam a ocupação democrática.

VISÃO H I S T Ó R I A 9
FASCISMOS // ORIGEM
A EMERGÊNCIA DOS
FASCISMOS
NA EUROPA
Longe de «cair do céu aos trambolhões», o fascismo nasce
da realidade multifacetada saída da I Guerra Mundial

Por
Fernando
Rosas
Professor emérito
e professor catedrático
jubilado
da Universidade Nova
de Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A 11
FASCISMOS // ORIGEM

Q
uem se interessa pela história dos fascismos
na Europa do século XX entre as duas guerras
mundiais haverá de ter em conta três preven-
ções metodológicas e de conteúdo. A primeira
é que o fascismo não cai do céu aos trambo-
lhões, mas é uma ideia na moda, não é um
produto maléfico saído da psique perturbada
de alguns chefes, não é uma expressão do-
entia de características específicas de certos
povos ou etnias, ou seja, não é uma misteriosa
aberração política e ideológica que se abate
inopinadamente sobre as sociedades europeias
do primeiro pós-guerra.
O grande cenário para a emergência dos
fascismos na Europa é a crise multímoda do capitalismo liberal
oligárquico na transição do século XIX para o século XX, ra-
dicalizado pela ocorrência de dois eventos maiores: os efeitos
económicos, sociais, políticos e de sistema de valores provocados
pela hecatombe da guerra (designadamente o colapso dos quatro
impérios: os Hohenzollern do II Reich alemão, os Habsburgos
do Império Austro-Húngaro, os Romanov do império czarista e o
Império Otomano) e o impacto destruidor da Grande Depressão
de 1929. É neste contexto que o fascismo se torna inteligível, ou
seja, se pode entender como fenómeno e categoria histórica.
A segunda observação respeita à necessidade de distinguir anali-
ticamente o fascismo enquanto movimento do fascismo enquanto
regime. Essa é a distância que vai do fascismo plebeu, radical, mi-
liciano e desordeiro para o partido que acede ao poder e o partilha
com os aliados conservadores das classes possidentes no quadro dos
regimes fascistas. E estes representam compromissos que em aspetos Adolf Hitler
importantes os desviam do revolucionarismo fascista plebeu. Precisa-
mente é dos fascismos enquanto regimes que tratamos neste artigo.
Finalmente, contrariamente ao que no debate historiográfico
advogam as correntes taxonómicas ou tipológicas, os fascismos não finais do século XIX, manifestam-se na Europa antes
correspondem a um arquétipo rígido de características formais, o da eclosão da I Guerra Mundial. Mas o avassalador
que torna o fascismo um fenómeno estranho ao movimento histó- impacto global do conflito acelera, agudiza e generaliza
rico, evacua o seu contexto económico e social e, em última análise, a crise e os seus efeitos: uma crise económica do mo-
faz dele uma quase inexistência, sobretudo quando se transforma delo de acumulação do capitalismo, uma crise social
em poder político. Ou seja, privilegia-se subjetivamente a diversi- marcada pela massificação da política, uma crise do
dade atomizada dos fenómenos de autoritarismo em prejuízo da Estado que atinge a sua legitimidade, uma rotura de
essencialidade comum de um fascismo feito regime que, todavia, valores que se exprime na crise do racionalismo e no
se desdobra em várias expressões e modalidades consoante os equi- pessimismo antropológico.
líbrios internos que regem a sua aliança fundadora (dos fascismos Nesta crise global há, todavia, uma geografia políti-
plebeus com parte das direitas tradicionais fascistizadas) e o caldo ca distintiva no tocante à emergência dos fascismos na
de cultura das sociedades onde se implantam. Europa e que acompanha o diferente grau de desenvol-
Assim sendo, vejamos quais são os principais fatores condicio- vimento do capitalismo nesses países e o diferente tipo
nantes da emergência do fascismo no rescaldo da Grande Guerra. de efeitos da crise. Em países como a Grã-Bretanha, a
Bélgica, os Países Baixos, os Estados «nórdicos» ou a
França, ou seja, nos países capitalistas desenvolvidos
A crise do sistema liberal do norte e noroeste da Europa, sobretudo dos que saem
e os efeitos da guerra como vencedores do conflito mundial e beneficiam dos
Os sintomas da crise sistémica do liberalismo oligárquico, com sobrelucros da exploração colonial, a crise sistémica ou
raiz nas transformações económicas e sociais do capitalismo nos os efeitos da guerra não afetam nem o poder do Estado

12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Benito Mussolini

O grande cenário para a emergência


dos fascismos são os efeitos provocados
pela hecatombe da I Guerra
e o impacto destruidor
da Grande Depressão de 1929

Deste mundo periférico surtirão três pulsões subversoras: desde


logo, o bolchevismo vitorioso na revolução russa de 1917, inspira-
dora da vaga de insurgência revolucionária e de agitação social que
sacode a Europa desde as fronteiras ocidentais do novo Estado
soviético até à Península Ibérica entre 1918 e 1924 (data da última
revolta armada na Turíngia alemã). Em segundo lugar, a progres-
siva radicalização fascizante de boa parte das direitas liberais e das
antiliberais: a rendição do mundo conservador tradicional que
dirige o Estado à «eficácia» contrarrevolucionária dos movimen-
tos fascistas emergentes. E a rápida proliferação destes a partir
da fundação em Milão, em março de 1919, dos Fasci Italiani di
Combatimento liderados por Benito Mussolini. Três anos depois
o Partido Nacional Fascista chega ao poder legalmente pela mão
do rei e da monarquia de Saboia. O que terá um efeito exemplar
e propulsor para a multiplicação dos agrupamentos fascistas na
Europa. Na realidade, e esse é o terceiro motor, nos países peri-
féricos sacudidos pelos efeitos económicos e sociais da guerra, os
movimentos fascistas plebeus irão dar voz à frustração, à revolta,
ao medo de largos setores intermédios ou marginais da sociedade
não representados pelos partidos existentes, fossem as formações
políticas burguesas do sistema ou as do movimento operário.
O populismo radical fascista explorava com sucesso os sen-
timentos difusos ou reais das classes intermédias – pequeno
nem a capacidade económica de lhes responder com patronato, funcionários e reformados, titulares de rendimentos
políticas que conjugam medidas de prudente integração fixos, oficiais de baixa patente, intelectuais marginalizados, estu-
social com as de coerção. Nessa situação, como escreve dantes, jornalistas, artesãos – dos desempregados, da multidão dos
David Beetham, a burguesia era suficientemente forte ex-combatentes maltratados pela sociedade a que regressavam.
para controlar a classe trabalhadora através de meios Eram o pânico e o medo de uma pequena burguesia assustada
puramente económicos, ou para a derrotar através dos com o risco de despromoção social com que ameaçavam a crise
dispositivos políticos existentes. económica e financeira e os «plutocratas», por um lado, e a
revolução proletária, por outro. A que se juntava a humilhação

A
s coisas são diferentes para os países da periferia da derrota ou da «vitória truncada» imposta pelos vencedores.
europeia ou para os lá empurrados pelo efeito da A propaganda fascista explorava com mestria esse vulcão de raiva
guerra, como é o caso da Alemanha derrotada. e desespero e fazia dela a sua base social de apoio.
Países em geral atrasados, com forte peso da agricultura
tradicional, que saem da guerra endividados, por vezes
esbulhados territorialmente, vários deles debatendo-se
A derrota da ofensiva revolucionária
com confrontações revolucionárias, em diversos casos so- do movimento operário
mando à derrota na guerra o desemprego, a hiperinflação Neste contexto, sob a influência e com o apoio da revolução soviética
e a marginalidade crescente dos setores intermediários triunfante e, depois de 1919, do Kommintern, desencadearam-se a
da sociedade. Neste cenário não haverá força política, partir de 1918, na Alemanha, na Finlândia, nos países bálticos, na
nem capacidade financeira, nem espaço, nem tradição Hungria, na Áustria, na Eslováquia e na Bulgária uma sucessão de
liberal para políticas de integração. insurreições «vermelhas». Na Europa ocidental estalam agitações

VISÃO H I S T Ó R I A 13
FASCISMOS // ORIGEM

e greves de caráter revolucionário: na Itália (o biennio rosso de


1919/20), na Catalunha, na Andaluzia, nas Astúrias, e o impulso
chega a Portugal com a greve geral de novembro de 1918. Até na
Suíça (1919) e na Grã-Bretanha (1926) se lançarão greves gerais.
Todas as tentativas insurrecionais (à exceção da soviética) serão
vencidas pelos governos conservadores e os seus exércitos. O mesmo
acontece com o movimento grevista. É depois disso que os fascismos
entram em cena. Só na Itália as squadre fascisti desempenham um
papel relevante na repressão terrorista das greves e ocupações das
fábricas ou das terras do Norte e do Centro. Mas é no espaço aberto
pela derrota da grande esperança revolucionária, pelo refluxo do
movimento operário duramente reprimido e na maioria dos casos
empurrado para a clandestinidade que os movimentos fascistas
encontram caminho livre para encarar a tomada do poder. Como
escreverá o socialista austríaco Otto Bauer, o fascismo não ganhou
quando a burguesia estava ameaçada pela revolução proletária, mas
sim quando o proletariado já tinha sido enfraquecido e reduzido
à defensiva. Era uma derrota crucial, pois atingia a única classe
social que nessa época podia constituir-se organizadamente como
fulcro da resistência ao avanço do fascismo.

A rendição do liberalismo
Mas a rotura e a queda dos sistemas capitalistas liberais começam
no seu interior. As direitas tradicionais, liberais ou antiliberais,
apercebem-se nos países periféricos de que a sua capacidade de
fazer frente à crise revolucionária e ao colapso financeiro exige
meios excecionais e ilegais de força que os arremedos de Estado
de Direito subsistentes dificultavam. Para desmantelar de forma
duradoura o movimento operário organizado, para liquidar o par-
lamento e o sistema pluripartidário, para organizar uma decisiva
intervenção do Estado na economia com vista à estabilização e
recuperação das taxas de lucro era preciso mudar o regime, uma
ditadura de novo tipo. E as direitas tradicionais, passada alguma
desconfiança inicial, começam a olhar com crescente simpatia
para o que os movimentos fascistas plebeus lhes podem oferecer
As direitas tradicionais,
nesse sentido: a violência irrestrita, miliciana, à margem da lei, passada alguma desconfiança
por um lado, para eliminar o movimento operário organizado e inicial, começam a olhar
a agitação revolucionária; por outro, a base de massas de apoio à com crescente simpatia
contrarrevolução que a velha oligarquia fora perdendo. para o que os movimentos
Os grupos fascistas começam por ser contratados por agrários fascistas plebeus lhes podem
e empresários para atacar greves, jornais, autarquias, sindicatos,
cooperativas «vermelhas», depois são chamados a participar em
oferecer: a violência irrestrita,
coligações eleitorais com as direitas tradicionais, finalmente, segu- miliciana, à margem da lei,
ros da força que ganharam, impõem, às direitas tradicionais, aliás por um lado, para eliminar
crescentemente fascistizadas, o seu acesso à liderança do Governo. o movimento operário
Vítor Emanuel III nomeia Mussolini capo do Governo a 29 de organizado e a agitação
outubro de 1922, e o velho marechal Hindenburg, cedendo ao revolucionária; por outro,
Zentrum de Von Papen e aos grupos de Junkers e industriais, cha-
ma Hitler para chanceler em 30 de janeiro de 1933. Em Portugal,
a base de massas de apoio à
após 1934, a direita republicana civil e militar rende-se ao Estado contrarrevolução que a velha
Novo e o fascismo plebeu dos «camisas azuis» é maioritariamente oligarquia fora perdendo
integrado no regime sob a hegemonia salazarista. Por essa Europa
fora, figuras liberais de referência apoiam a emergência do fascismo:

14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O populismo radical fascista explorava
com sucesso os sentimentos difusos
ou reais das classes intermédias, dos
desempregados, da multidão dos ex-
-combatentes da I Guerra maltratados
pela sociedade a que regressavam.
Eram o pânico e o medo de uma
pequena burguesia assustada
com o risco de despromoção social

paz de Versalhes. A dimensão da tarefa contrarrevolucionária,


a que os movimentos fascistas preferiam chamar «revolução
de terceira via», impunha a unificação das várias direitas da
direita sob uma liderança centralizada e indiscutível no quadro
do novo regime fascista.

P
ara a concretizar contra possíveis tendências desviantes ou
centrípetas surge a figura do chefe carismático (o Duce, o
Führer, o Caudillo, o Chefe, o Conducator) acompanhada
da criação do partido único (com peso e um papel variável nos
diferentes tipos de fascismo/regime), de aparelhos de enuncia-
ção ou de inculcação ideológica totalizante e do recurso estatal
e partidário a uma violência política e social tendencialmente
irrestrita, fosse de vigilância preventiva ou de punição repressiva
de qualquer forma de dissidência.
Churchill visita a Itália para saudar a «obra antibolche- É claro que a lógica, o conteúdo e os métodos das instituições dos
vista» do mussolinismo. Unamuno, em Salamanca, apoia novos regimes diferiam nas suas concretizações nacionais em função
o golpe franquista. A rendição do liberalismo abre portas da relação de forças e dos equilíbrios, em cada situação, entre os
às alianças fundadoras das ditaduras de novo tipo: os fascismos plebeus e as direitas tradicionais. E consoante o caldo de
fascismos enquanto regime. cultura política, social e religiosa dos diferentes países onde o regime
fascista se implantara. E isso deu lugar a diferentes modalidades
do fascismo enquanto regime: os de clara hegemonia das direitas
A unificação das várias conservadoras fascistizadas que incorporam subordinadamente o
direitas da direita plebeísmo fascista (é o caso do Estado Novo); os de equilíbrio entre
Em nenhum país da Europa do século XX entre as duas o movimento fascista e as direitas tradicionais em que o movimento
guerras, o regime fascista resulta da tomada unilateral tem de conter e disciplinar as milícias e entender-se com os poderes
do poder por parte do fascismo plebeu e miliciano. tradicionais (é o caso de Mussolini com a monarquia de Saboia);
Ele resulta sempre de uma aliança desse «fascismo a os de real hegemonia do movimento fascista sobre as direitas dos
partir de baixo» com as direitas tradicionais, liberais interesses, apesar das cedências (das «facas longas») indispensáveis
ou antiliberais, crescentemente rendidas à necessidade à aliança entre si (a Alemanha nacional-socialista), e os casos de
de se entenderem com o plebeísmo fascista para impor instabilidade recorrente onde acordos de curta duração alternam
uma ditadura de novo tipo visando o «estabelecimento com choques violentos entre direitas conservadoras e movimentos
da ordem», a solução da crise económica e financeira fascistas plebeus (como na Roménia ou na Hungria).
e, em vários casos, a vingança da derrota, do esbulho Essa realidade multifacetada marca, no seu conjunto, aquilo a que
territorial ou até da «vitória mutilada» ditada pela a historiografia recente tem designado como a época dos fascismos.

VISÃO H I S T Ó R I A 15
FASCISMOS // ITÁLIA

FASCISMO ITALIANO

A GRANDE ILUSÃO
Durou 21 anos aquele que seria o protótipo dos regimes fascistas e o que
teve, literalmente, este nome. Implantado faz agora exatamente cem anos,
o fascismo italiano nasceu de uma conjuntura favorável à sua eclosão
e morreu violentamente nas ruínas da II Guerra Mundial, que foi o seu túmulo
Por Luís Almeida Martins

16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mussolini discursa
Numa pose que lembra a
de um pegador de touros,
o Duce arenga na Piazza
del Popolo, em 23 de abril
de 1932, data em que
o regime comemorou
o que entendeu ser
o aniversário da fundação
de Roma

VISÃO H I S T Ó R I A 17
FASCISMOS // ITÁLIA

N
o dia 28 de outubro de 1922, uma
mancha negra escorria nas estra-
das que convergem para Roma,
a velha «Cidade Eterna» aonde
todos os caminhos vão dar. A man-
cha, que nada tinha de fantástico
à maneira de H.P. Lovecraft, era feita de uma
multidão de dezenas de milhares de homens
e o tom carregado devia-se ao negrume das
camisas que envergavam. A Itália estava de
luto, diziam, e por isso se vestiam assim. Eram
squadristi dos Fasci Italiani di Combatimento
(à letra, Feixes Italianos de Combate), se-
guidores de um líder diferente de todos os Ocupação de Fiume, 1919 Duas crianças junto de dísticos de propaganda
da anexação da cidade croata pela força comandada por Gabriele d’Annunzio
outros chamado Benito Mussolini, desde esse
ano organizados em Milícia Voluntária para
a Segurança Nacional, tropa de choque do quase sempre era apenas aparente, e nalguns A Itália «irredenta»
Partido Nacional Fascista Italiano, fundado Estados da Europa Central e Oriental, afe- Foquemo-nos, pois, na Itália. Este país, ain-
pelo futuro ditador no ano anterior, a partir tados pela crise económica e pela agitação da jovem, unificado há pouco mais de meio
dos Fasci criados em 1919. social derivadas das carências causadas pela século, bateu-se na Grande Guerra pelo lado
Para compreendermos as razões da marcha guerra, fossem esses Estados monarquias ou dos vencedores, mas saiu dela muito des-
e o próprio nascimento dos Fasci e do partido repúblicas, os tais cogumelos que brotavam contente com os ganhos obtidos (que se
é necessário recuar até ao fim da então chama- eram venenosos e não tardariam resumiram ao Alto Ádige, ou
da Grande Guerra, travada entre 1914 e 1918 a nascer regimes autoritários. DUCE Tirol do Sul, antes pertencente
e mais tarde conhecida por I Guerra Mundial. Foi, porém, no sul da Europa, Palavra italiana à Áustria), ou seja, criticando
(do latim «dux»)
Depois do conflito, os americanos, que concretamente na Itália, que nas- amargamente a forma como
que significa chefe,
veneram a democracia como se fosse uma ceu a primeira ditadura moder- título adotado por tinha sido tratado pelos alia-
deusa e se empenham em espalhar o seu culto, na de tipo fascista. Se tomarmos Mussolini dos da véspera. Uma fórmula
afirmavam que a voz dos canhões se tinha des- como referência os modelos polí- então corrente postulava que
tinado a espalhar essa «fé» no mundo. Claro ticos anteriores à Grande Guerra, pode dizer- os italianos tinham vencido a guerra mas
que esta aparente ingenuidade, tão recorrente -se que se tratava de um absolutismo dotado perdido a paz. Com efeito, a aquisição da
na visão do mundo segundo Washington, de uma ideologia nova e muito forte, servido referida região alpina parecia-lhes escassa
funciona como cosmético para os jogos de por técnicas de propaganda e de persuasão e sentiam-se frustrados sobretudo no que
interesses económicos que, em última análise, igualmente inovadoras, ainda que, no fundo, toca à partilha das colónias, matéria em
serve. Os europeus, mais enredados no novelo radicado na velha tradição autoritária do po- que a Itália se considerava ludibriada. Não
das rivalidades entre os Estados, não pensa- der real absoluto, nascida no Renascimento esqueçamos que, até à II Guerra Mundial,
vam bem assim, tanto mais que o conceito e afirmada sobretudo no século XVII – a ne- as colónias de além-mar eram olhadas pe-
de democracia não estava muito presente na gação da democracia parlamentar, portanto. las potências europeias como um dado ad-
maior parte do Velho Mundo anterior a 1914, quirido, não sendo a sua independência,
apesar de existirem parlamentos e, em certos sequer, equacionada. A vitória na Grande
casos, uma imprensa livre. De qualquer modo, Guerra era – pensava o comum dos italianos
em 1918 esse objetivo messiânico apontado – uma vitória mutilada. As reivindicações
pelos Estados Unidos parecia atingido. As
Quando foi expulso de Roma sobre a cidade de Trieste, a Ístria,
democracias ocidentais, com o Reino Unido do Partido Socialista a Dalmácia (litoral da Croácia, antigamente
e a França à cabeça, tinham ganhado a guerra e do seu órgão detida pela República de Veneza) e, muito
e haviam sido derrubados os velhos regimes Avanti!, Benito concretamente, a cidade de Fiume (atual
dinásticos mais ou menos absolutistas vigen- Rijeka) não foram acatadas pelos aliados
tes nos impérios Alemão, Austro-Húngaro,
Mussolini fundou da véspera, que entretanto repartiam entre
Russo e Otomano. Implodidos os impérios, o jornal Il Popolo si as possessões alemãs em África. Também
brotavam repúblicas por toda a parte, como d’Italia considerados territórios irredentos (ou seja,
cogumelos, dotadas de constituições novi- não resgatados) eram a Córsega e a região
nhas em folha e, em teoria, exemplares. Mas de Nice, administradas pela França ou dela
(porque há um «mas») esta democratização parte integrante, já para não falar da Saboia,

18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Camisas negras Fascistas preparam-se para pegar fogo a Julho de 1920 Mussolini, ladeado por correligionários,
retratos de Marx e Lenine, aquando das eleições de maio de 1921 dirige-se a seguidores na Piazza Sant’Elena

da Tunísia e de Malta. Foram estas as pri- longo da década de 1920, grupos esses que nidamente as despesas, desequilibrando os
meiras deceções no que toca às esperanças desempenharam um papel considerável na orçamentos. Para colmatar o défice, o go-
depositadas quanto ao fim do conflito. queda dos regimes democráticos. verno desvalorizou a moeda, pediu dinheiro
O ressentimento nacionalista levou o es- emprestado e aumentou os impostos. Visto
palhafatoso poeta e dramaturgo (e aviador) Casa em que não há pão o sistema fiscal não ser progressivo, estas
Gabrielle d’Annunzio a ocupar, à cabeça de Para além das frustrações de caráter terri- medidas atingiram sobretudo a pequena e a
uma tropa de voluntários auxiliados pelo torial, neste trágico pós-guerra a Itália viu-se média burguesias – profissões liberais, qua-
exército italiano, o porto de Fiume, reivin- mergulhada numa profunda crise económi- dros do comércio e da indústria, rendeiros
dicado simultaneamente pela Itália e pela ca, de que resultaram grandes convulsões e pequenos proprietários. O custo de vida
recém-constituída Jugoslávia. Esta espeta- sociais. A ruína das classes médias retirou quintuplicou. Este quadro inflacionista faz
cular ação militar de iniciativa civil ilustra à monarquia parlamentar o seu principal pensar na Alemanha desse tempo, mas com
bem o fenómeno da formação de grupos apoio eleitoral. A guerra, longa e dispen- a diferença de a Itália, ao contrário daquele
armados paramilitares a partir de 1919 e ao diosa, obrigara o Estado a aumentar indefi- país, não ter sido derrotada na guerra.

VÍTOR EMANUEL III PIETRO BADOGLIO DINO GRANDI ITALO BALBO GALEAZZO CIANO
Conhecido por il piccolo Escolhido pelo rei, em Fascista da primeira hora, Militar e político Um dos fundadores
re («o pequeno rei»), julho de 1943, para ocupou diversos postos fascista mais conhecido do fascismo, casou-se
por ter apenas 1,53 m suceder a Mussolini na governativos. Contrário pelos seus feitos com Edda Mussolini, filha
de altura, a partir chefia do Governo italiano, à entrada na como aviador (liderou do Duce. Sucessivamente
de 1922 deu toda era um marechal que II Guerra Mundial, vários cruzeiros aéreos ministro da Propaganda
a cobertura ao começara por se opor aos foi autor da moção transcontinentais e da Imprensa e dos
regime fascista de fascistas e depois apresentada em 24 de na época heróica da Negócios Estrangeiros,
Mussolini, mas os se aliou a eles. julho de 1943 ao Grande aviação), foi ministro exerceu papel importante
desaires da guerra e Foi um dos comandantes Conselho do Fascismo, da Aeronáutica na formação das alianças
o descontentamento militares durante a que determinou a queda e governador da com a Alemanha
popular levaram-no a invasão da Etiópia, onde – e a posterior prisão – de Líbia. Viria a morrer e o Japão. Na reunião
retirar-lhe a confiança e ordenou o uso de gases Mussolini. Condenado ingloriamente em 1940, do Grande Conselho
a ordenar a sua detenção venenosos em combate. por traição no processo quando o seu avião foi do Fascismo
em julho de 1943. Não aplaudia a aliança de Verona, conseguiu abatido por engano de 23-24 de julho de 1943,
Afastado do trono em com a Alemanha e fugir para Espanha e pelos disparos de um votou a favor da moção
1946, no referendo em desaconselhou a entrada depois para Portugal cruzador italiano. que determinou a queda de
que os italianos optaram na II Guerra Mundial. À (onde viveu entre 1943 e Mussolini. Condenado
pela República, morreu frente do Governo assinou 1948), Argentina e Brasil. no processo de Verona,
no ano seguinte um armistício Regressado a Itália, foi fuzilado em janeiro
exilado no Egito. com os Aliados. morreu em 1988. de 1944.

VISÃO H I S T Ó R I A 19
FASCISMOS // ITÁLIA

Quadrúnviros Mussolini com faixa e os quatro líderes fascistas (De Bono, Italo Balbo, Michele Bianchi e Cesare Maria) que organizaram
a Marcha sobre Roma

O triunfo da revolução bolchevique na Rús- encorajada pela propaganda «vermelha» da as bandeiras vermelhas e ao som dos sinos»
sia, em 1917, implementou um impetuoso CGT, chegou a estar na agenda parlamen- que se desenvolveu, em 1919 e 1920, um forte
movimento comunista por toda a Europa, tar e houve mesmo um deputado católico movimento de ocupação de terras.
que suplantou o «velho» anarquismo e atri- que assumiu a chefia daquilo a que então No plano político, a democracia, paralisada
buiu uma cor e uma ideologia dominantes às se chamou «comunismo branco». Foi, pois, por disputas partidárias, não dava mostras de
lutas laborais que marcaram o período pós-I como alguém escreveu sugestivamente, «sob encontrar respostas à altura da gravidade da
Guerra Mundial. Como as indústrias estavam situação. Além disso, os líderes eram medío-
praticamente arruinadas, em vez de fazerem cres e o povo caracterizava-se pela imaturi-
greve, os operários italianos optavam por ocu- dade e a falta de cultura cívica. Havia um rei
par as fábricas e vender diretamente, a preço – Vítor Emanuel III, chamado il piccolo re, o
de saldo, o fruto do seu trabalho. O sistema, pequeno rei, por ter apenas 1,52m de altura –
porém, não durou muito tempo, pois em 1920 mas os seus poderes eram tão limitados como,
os trabalhadores revelaram-se incapazes de por exemplo, os do monarca britânico. O Par-
manter o fluxo produtivo, por falta não só de tido Socialista Italiano, com 156 deputados
quadros técnicos mas também – talvez sobre- em 508, era o mais forte, seguindo-se-lhe o
tudo – de financiamento. Desmoralizado, sem Partido Popular, de tonalidade católica, com
coesão e sem força, o movimento operário cem parlamentares eleitos em 1919. Mas os
esmoreceu e a fome reinava nos pobres lares católicos eram reticentes a coligações, uma vez
operários, dos Alpes à Sicília. que permanecia por resolver o litígio entre o
Mas apesar da existência de grandes grupos Estado italiano e a Santa Sé, e o Papa, antes da
industriais, como a FIAT, a grande massa unificação italiana senhor de vastos domínios
dos italianos dedicava-se à agricultura. Num O símbolo do Fascismo que iam de costa a costa, continuava a consi-
país essencialmente rural, cerca de 90% das inspirava-se nos derar-se «prisioneiro do Vaticano». Por isso,
explorações agrícolas tinham menos de um os partidos que faziam funcionar o regime
feixes de varas que
hectare e os restantes 10% aproximados, eram os muito minoritários Liberal, Radical
correspondentes aos latifúndios, eram mal representavam o poder e Republicano, mesmo assim mergulhados
cultivados. A questão da reforma agrária, na Roma Antiga em permanentes disputas.

20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
E as dificuldades económicas iam-se sora primária, mais tarde proprietários de discursos contra a sociedade burguesa e a
multiplicando, com a pilhagem de lojas, uma pequena estalagem. De temperamento religião que arrebatavam os ouvintes e eram
a já referida ocupação de fábricas e outras irrequieto e conflituoso, voltado para os ideais coroados por imensos aplausos. A certa al-
cenas de violência. de esquerda, o jovem Benito completou aos tura foi preso pela posse de propaganda
Entretanto, a questão das reivindicações 18 anos o curso do magistério, como aluno contra a guerra na Tripolitânia, uma região
dos territórios «irredentos» permanecia e externo, mas foi mestre-escola apenas durante da atual Líbia que a Itália estava a disputar
os nacionalistas indignaram-se com o «Na- alguns meses, já que era excessivamente tru- pelas armas ao Império Otomano. (Diga-se,
tal Sangrento» de 1920, quando o Exército culento e proferia demasiados palavrões para à laia de curiosidade, que nesse conflito foi
italiano, cumprindo o acordado no Trata- exercer uma profissão tão socialmente respei- pela primeira vez na História efetuado um
do de Rapallo, que pusera fim ao conflito tável. Assim, logo deixou para trás aquela vida bombardeamento aéreo).
territorial com a Jugoslávia, expulsou à que considerava burguesa, muniu-se de um Depois estalou a Grande Guerra. Inicial-
força de Fiume os voluntários de d’Annun- medalhão com a efígie de Karl Marx à laia de mente pacifista e neutralista, o jornalista
zio. Em síntese, o terreno era fértil para a amuleto e emigrou à aventura para a Suíça Benito Mussolini alinhava nesta posição
eclosão de radicalismos e, falhadas quer as e para a Áustria, onde exerceu duros ofícios com os socialistas, em cujas fileiras mili-
desajeitadas manobras parlamentares quer manuais, desde pedreiro a moço de recados. tava e – já o vimos – cujo jornal dirigia,
as desarticuladas tentativas de solução de «Eu era um boémio», diria mais tarde. «Di- mas a sua sede de agir levou-o a mudar
esquerda, tudo parecia conduzir para uma tava as minhas próprias regras e nem sequer bruscamente de perspectiva e a defender
resposta diferente de tudo quanto fora as cumpria.» Entretanto, lia muito, mas sem a entrada da Itália no conflito, ao lado da
até então posto em prática: uma forma de método, defendendo normalmente as ideias França e da Inglaterra. Expulso do partido
radicalismo de direita, ou seja, o fascismo. do autor do último livro que lhe passara pe- e do jornal, fundou então o seu próprio ór-
las mãos. Filho de um meio revolucionário, gão de informação, o Popolo d’Italia, onde
A lenda de Mussolini aderiu ao movimento operário e começou a reclamava abertamente a beligerância do
O movimento fascista é indissociável da fi- ser conhecido como orador de massas. lado dos Aliados. As suas ideias acabariam
gura de Benito Mussolini. O futuro Duce Regressado à Itália, fez-se jornalista do por triunfar. Ele próprio foi mobilizado,
(Chefe) nasceu em 29 de julho de 1883 numa Avanti, o órgão oficial do Partido Socialista combateu contra os austro-húngaros, foi
aldeia da Emilia-Romagna na chamada Italiano, de que se tornou diretor em 1912. ferido e depois evacuado para a retaguarda.
ferid
Predappio, filho de um ferreiro
rreiro au- De verbo fácil e voz bem timbrada (uma Foi na pele de um nacionalista interessado
Fo
todidata autor de textos dee defesa admiradora inglesa diria mais tarde que era pelas questões sociais que Mussolini viveu o
do socialismo e de uma profes- a mais bela que jamais escutara), proferia imediato pós-guerra. Deitou para trás das
imed

‘Duce’ dixit «Só um país inferior, vulgar,


insignificante, pode ser democrático;


um povo forte e heroico
tende para a aristocracia»

«O meu programa é
«Antes viver um dia como um leão do
simples: quero governar»
que cem anos como um cordeiro»

«A liberdade é um cadáver putrefacto»


«Farei da minha vida
uma obra-prima»
«Quem quer governar
deve aprender a dizer ‘não’»
«Não se pode colocar todos ao mesmo
nível; a igualdade é antinatural
«E mais fácil convencer e anti-histórica»
uma grande massa do que
uma só pessoa»

«A verdade é que os homens


«Silêncio é a única resposta que devemos
dar aos tolos; onde a ignorância fala,
a inteligência não dá palpites»

estão cansados de liberdade»

VISÃO H I S T Ó R I A 21
FASCISMOS // ITÁLIA

costas o ideário socialista e fundou em 1919,


em Milão, o movimento fascista, que foi bus-
car o nome à designação dada aos grupos de
ativistas: cada um deles – como já vimos no
início deste texto – era chamado um fascio di
combatimento (um feixe de combate), sendo o
feixe um conceito que foram pedir emprestado
à antiga Roma, concretamente aos molhos de
varas atadas (fasces lictoris) usados para sim-
bolizar o poder. Os fascistas gostavam de dizer
que se uma vara podia ser facilmente vergada,
um feixe permanecia sólido como uma rocha.
Este movimento – sem programa nem dou-
trina («a nossa doutrina é a ação», proclama-
vam os fascistas dos primeiros tempos) – rece-
beu a pronta adesão de antigos combatentes
nacionalistas fanáticos da «Itália irredenta»,
inadaptados a uma vida civil que lhes parecia
monótona depois dos tempos perigosos mas,
do seu ponto de vista, exaltantes, passados na
frente. No final de 1920 o movimento fascista
contava já com 300 mil aderentes, agrupa-
dos em 2 mil secções (os tais feixes). Porém,
mais ainda do que o número, o que conferia Numa cerimónia Gestos espalhafatosos e teatrais eram característicos
da postura pública de Mussolini
força ao movimento era a organização. Um
aderente da primeira hora, o famoso oficial e xalmente, este fracasso acabaria, contudo, impotente, cruzava os braços, os homens de
aviador Italo Balbo, organizou militarmente por favorecer a ascensão dos fascistas ao po- Mussolini lançaram um ultimato aos grevistas
os fascistas, armando-os, atribuindo-lhes a der, pois os primeiros-ministros que então se e ao Executivo: «Se, passadas 48 horas depois
emblemática camisa negra e instituindo a sucederam à cabeça do Executivo (Giovanni do começo da greve, esta não tiver cessado,
prática da saudação dita romana, de braço Giolitti e Luigi Facta) acharam que poderiam os fascistas encarregar-se-ão diretamente do
estendido. Outro aderente desde a fundação, adormecê-los fazendo-os entrar no sistema assunto.» E foi o que aconteceu: através da
Dino Grandi, criou e dirigiu os sindicatos de alianças governamentais tradicionais. Es- ameaça, da pistola e do fogo posto, os fascistas
fascistas, que recrutavam desem- tavam enganados, uma vez que conseguiram, a 3 de agosto, forçar os sindi-
pregados e os transformavam fa- SQUADRISTI os seguidores de Mussolini não catos a dar uma contraordem, e os grevistas
cilmente em furadores de greves. Grupos constituíam um partido como os retomaram o trabalho. Deste modo Musso-
Os latifundiários e os industriais, paramilitares outros e gozavam de poderosos lini comprovou a incapacidade do regime
que intimidaram
preocupados com a agitação apoios, como vimos inclusive no e demonstrou que o seu movimento era a
e reprimiram
social, contribuíram com uma os adversários seio da família real. única força capaz de preencher o vazio de
significativa ajuda financeira, políticos, poder político e de salvar a Itália do chamado
enquanto a pequena burguesia, rapidamente A Marcha sobre Roma «perigo bolchevista».
absorvidos pelo
irritada com a desordem das fascismo
A atmosfera de guerra civil em No entanto, seria formalmente por vias
greves infindáveis, aderia ao que a Itália vivia desde 1920 foi- legais que os fascistas chegariam ao poder.
fascismo e dava-lhe a sua importância nu- -se agravando. As «expedições punitivas» No discurso de abertura do Congresso do
mérica. O próprio palácio real não foi imune das equipas de squadristi multiplicaram-se partido, a 24 de outubro desse ano de 1922,
ao fascismo, pois quer a rainha quer o duque no verão de 1922, assassinando dirigentes em Nápoles, Mussolini exigiu a direção do
que Aosta, primo de Vítor Emanual III, eram sindicalistas, atacando e incendiando se- Estado. «Não estamos dispostos a vender
simpatizantes de Mussolini. des de organizações socialistas e câmaras o nosso admirável direito de primogenitura
Em 1921, como já se disse, o movimento municipais geridas por forças de esquerda por um miserável prato de lentilhas ministe-
fascista transformou-se em partido político e e furando greves à força. rial», bradou, textualmente. E afirmou noutro
concorreu às eleições marcadas para maio. O Os sindicatos de esquerda, aterrorizados passo: «O problema apresenta-se e impõe-se
resultado foi uma desilusão para os partidá- com este clima de violência impune, marca- como um problema de força.» Sintetizando,
rios de Mussolini: dos 535 deputados eleitos, ram uma greve geral que teria início em 31 esclareceu para que não restassem dúvidas:
só 35 pertenciam à nova formação. Parado- de julho à meia-noite. Enquanto o Governo, «Queremos tornar-nos o Estado.»

22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Jovens fascistas Um grupo de filiados na Obra Nacional Balilla (inspiradora da Mocidade Portuguesa) aclama Mussolini, num comboio

Não foram palavras ditas só por dizer. haveria de manter, durante três anos, uma torno do novo líder. A criação oficial de um
A Itália inteira sabia que estava prevista para fachada parlamentar. O estabelecimento da exército do partido, a Milícia, e o assassinato
a cidade de Perúgia uma grande mobilização ditadura era inevitável, dadas as características à punhalada, levado a cabo por elementos
geral dos fasci di combatimento, e que outros do movimento fascista e atendendo à própria desta força, do deputado Giacomo Mattteoti,
grupos congéneres se reuniriam em Foligno, letra dos discursos de Mussolini, mas seria líder do grupo parlamentar socialista e muito
Monterotondo, Tivoli e Civitavecchia, loca- progressivo, decorrendo entre 1922 e 1925. crítico do fascismo, a 10 de junho de 1924,
lidades do Lácio e da Úmbria a partir das Na sequência do convite de 29 de outu- puseram fim às ingénuas ilusões dos liberais.
quais marchariam, no dia 28, sobre a capital. bro, Mussolini estabeleceu um Governo de O homicídio, não assumido por Mussolini,
Mas a célebre «Marcha sobre Roma», tantas coligação em que participavam os partidos teve grandes repercussões (o corpo de Matteoti
vezes evocada ao longo deste século exato tradicionalmente no poder. Mas o clima mu- só seria encontrado mais de dois meses depois,
que desde então passou, haveria, afinal, de se dara e o novo chefe do Executivo conseguira após intensa busca, num local remoto) e fez
revelar inútil, ou de se resumir a uma mera fazer-se atribuir plenos poderes. Novas elei- que o Partido Fascista perdesse apoios, pois
manifestação. Com efeito, a 27 o governo ções deram depois aos fascistas 65% dos votos para grande parte da opinião pública ordem
de Luigi Facta apresentou a demissão e no e 374 lugares no parlamento. Ainda hoje se e terror não eram sinónimos. Mussolini teve,
dia seguinte o rei tentou em vão formar um discute se teria havido fraude eleitoral ou se pois, de promover políticas populistas, capazes
Executivo de união nacional, no qual Musso- os resultados traduziram uma genuína ade- de satisfazerem o grosso da população.
lini se recusou, desdenhosamente, a entrar. são popular a um Governo mais forte e mais Em 1925 começa a verdadeira ditadura.
Finalmente, no dia 29, Vítor Emanuel III estável do que os anteriores, mas o que ficou O regime parlamentar desaparece, Mussolini
encarregou o líder fascista de formar um foi a ideia de uma relativa unanimidade em passa a nomear e a destituir os ministros à sua
Governo multipartidário em que a sua forma- vontade (antes disso, o parlamento tinha uma
ção desempenhasse o principal papel. A tão palavra a dizer) e é apenas responsável – a
decantada Marcha sobre Roma efetuou-se de título meramente simbólico – perante o rei.
facto, mas foi apenas um desfile de vitória, O modelo do Estado Mussolini batizou de Estado Corporativo o
a primeira grande parada do novo regime. regime que engendrou (e cujo modelo viria,
Corporativo, engendrado
em Portugal, a ser seguido por Salazar, pelo
A caminho da ditadura por Mussolini, seria menos em teoria). Profundamente antimar-
Nascido no respeito pelas regras constitu- adotado por Salazar xista, o fascismo negava a luta de classes e
cionais, o novo poder legalmente investido em Portugal defendia que multiplicidade de níveis sociais

VISÃO H I S T Ó R I A 23
FASCISMOS // ITÁLIA

Novo ‘Império Romano’


Um mosaico numa
parede representa
um mapa mostrando
os países dominados
pela Itália fascista: a
Líbia, a Etiópia, a Eritreia,
a Somália, mas também
partes da Croácia
então pertencentes
ao reino da Jugoslávia

e a sua interdependência harmoniosa consti- que enalteciam a vida «feliz» da pequena bur-
tuíam uma necessidade; do marxismo-leni- guesia urbana (semelhantes às portuguesas
nismo, retinha, no entanto, a ideia de que o da mesma época) coexistam com a temática
Estado devia ser dirigido pelo partido único, já da antiga Roma imperial…
que as massas, consideradas amorfas, tinham A juventude, mais maleável do que os pais
de ser orientadas. ou os avós, foi facilmente capturada pelas ma-
lhas da propaganda. A Obra Nacional Ballila
O regime fascista (do nome de um jovem genovês herói de um
No regime fascista italiano, cada profissão levantamento anti-austríaco em meados do
tinha um sindicato operário e um sindicato século XVIII) absorveu todos os organismos
patronal únicos, cujos quadros eram, obvia- de juventude preexistentes. A partir de então,
mente, fascistas. Sendo considerada a luta uma engrenagem completa capturou o jovem
de classes um enviesamento «diabólico», italiano entre os 8 e os 18 anos, fornecendo-lhe
os conflitos sociais, pura e simplesmente, uma instrução cívica muito orientada onde
Guerra da Etiópia Veteranos partem
não podiam ter lugar, e assim sendo eram a leitura e o «estudo» dos discursos do Duce
de novo rumo às fileiras, em 1935, desta vez
proibidas quer a greve quer o lock-out. As para ocupar o reino de Hailé Selassié ocupavam espaço preponderante.
pessoas eram livres de pertencer, ou não, O Duce, chefe único e providencial, era a
ao sindicato da sua profissão (claro que era que viemos encontrar e que é alheia à nossa fonte de todo o poder. Sentencioso e suposta-
«conveniente» que o fossem...), mas mesmo mentalidade e à nossa paixão de fascistas.» mente didático, fazia-se rodear de ministros
que não aderissem eram obrigadas a pagar O partido único era o grande motor do re- e de outros colaboradores escolhidos que não
uma quotização elevada; o sindicalismo tor- gime, e o Grande Conselho Fascista, que o hesitassem em o considerar a única e verdadei-
nou-se assim um auxiliar do fisco. dirigia, compunha-se de fascistas da primei- ra autoridade. A megalomania transformou
Em paralelo com os sindicatos ra hora, líderes da tão evocada assim este homem – que ao princípio até cul-
havia as corporações, em cujos CAMISAS NEGRAS Marcha sobre Roma. tivava uma certa simplicidade – numa perso-
órgãos diretivos coexistiam, em Uniforme usado Pode dizer-se que o Estado nagem ávida de glória. Figuras relevantes de
igual número, patrões e empre- pelos membros da fascista, totalitário como era, toda a Europa e da América comparavam-no
Milícia Voluntária
gados, e que eram dirigidas por preenchia por completo os sem ponta de ironia com Napoleão ou com
para a Segurança
um Conselho Nacional consti- Nacional, fascista cérebros da população. A sua Cromwell e aclamavam-no como se se tratasse
tuído por delegados nomeados propaganda, inflamada e quase de um génio, ou mesmo de um super-homem.
por ambas as partes segundo um sistema sempre mentirosa (diríamos hoje que era As jovens estudantes dos liceus apaixonavam-
complexo. Depois de ter desempenhado du- assente em fake news), refletia-se na impren- -se por ele, como se fosse um ator de cinema.
rante muito tempo um papel consultivo, a sa censurada e ecoava nas paradas majesto- A sua fotografia, recortada de jornais ou de
partir de 1938 este Conselho Nacional subs- sas, nos discursos encenados perante vastas revistas, decorava as paredes de todos os ca-
tituiria, pura e simplesmente, a Câmara dos multidões, nos cenários impressionantes, nas sebres e frases retiradas dos seus discursos
Deputados. Já antes disso, em 1933, Mussolini estátuas colossais, nas perspectivas infinitas, eram afixadas nos muros das aldeias, para que
afirmara: «A Câmara dos Deputados tor- na arte mobilizada ao serviço do poder, nos todos os alfabetizados as fossem lendo. Era
nou-se um anacronismo: é uma instituição jornais, na rádio, no cinema onde comédias verdadeiramente popular e, tudo o indicava,

24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
genuinamente admirado – por vezes até ao
arrebatamento – pelos mais largos setores de
uma população pobre e pouco escolarizada.
Todos os seus gestos eram espetaculares, to-
das as suas atitudes estudadas, todos os seus
procedimentos fora do comum.
Certa vez (contou um jornalista), durante
umas manobras, o Duce caminhava por uma
extensa planície de mato ressequido rodeada
de verdes colinas arborizadas e campanários a
espreitarem. Os camponeses acorriam de to-
dos os lados, ofegantes, só para vê-lo, tocar-lhe,
aclamá-lo. Uma das suas secretárias seguia
os seus passos, transportando uma carteira
de pele com as dimensões exatas das notas No campo Mussolini com um feixe de varas autêntico durante uma visita a Littoria, cidade
de mil liras. Ele recebia as notas das mãos criada após a drenagem dos Pântanos Pontinos. Em baixo; uma criança faz a saudação romana
dela e distribuía-as pelos mais esfarrapados, segurando um «pão do Duce»
reproduzindo o gesto do jogador que dá as toleradas. Isto não quer dizer que o «casamen-
cartas. Daí a nada o Duce seguia à cabeça de to» tenha sido perfeito, pois logo surgiram
uma procissão espontânea de milhares de se- mal- entendidos, como, por exemplo, o facto
guidores frenéticos e roucos de tanto o vitoriar. de a juventude do Estado fascista ser educada
Quem assistiu aos seus comícios nunca po- no culto da ação e no amor da guerra, valores
derá esquecer as praças a abarrotar de gente opostos aos propalados pela Igreja, o que
para o escutar, as cabeças muito juntas como tornou tensas as relações bilaterais.
as pedrinhas de um mosaico romano, os olhos No plano económico, o regime de Mussolini
todos focados na figura que discursava de desenvolveu a produção, movido pela aspi-
forma clara mas lenta e sincopada, para no ração de autarcia (ou seja, autossuficiência
final de cada frase de efeito acelerar, num económica) e pelo desejo de produzir mais
desfecho estrondosamente aplaudido. É pos- riqueza para, dentro dos limites capitalistas,
sível encontrar na internet pedaços de um ou poder distribuí-la pelos milhões de necessita-
dois discursos de Mussolini e recomenda-se dos. Uma vez que a iniciativa cabia a agentes
a quem estiver interessado que os procure, privados, o papel do Estado consistia em atri-
para ficar a conhecer o estilo. O escritor Al- buir prémios de produção e lançar slogans,
berto Moravia, que era antifascista, escreveu Um desses casos de sucesso foi a paz com a num ambiente impregnado de propaganda.
certa vez, já em plena República Italiana do Igreja Católica. Desde 1870 que o Papa – já Não havendo uma planificação geral, foram
pós-guerra, que «se a política externa de Mus- o vimos – se considerava prisioneiro do Vati- lançadas campanhas em setores específicos
solini tivesse sido tão sagaz como a doméstica, cano e se recusava a reconhecer a existência e particularmente sensíveis; foi o caso da
talvez ainda hoje continuasse a ser Duce». do jovem Estado italiano. Ora, num país tão «batalha do trigo», que fez aumentar em
No polo oposto a esta fachada, nas som- impregnado de catolicismo como era a Itá- cerca de um terço a produção deste cereal.
bras da clandestina luta antifascista, os opo- lia, este problema envenenava a atmosfera. Também a irrigação de terras de sequeiro foi
sicionistas eram perseguidos e presos pela Os acordos de Latrão, assinados em 1929, levada a cabo pelo regime, mas a obra mais
omnipresente OVRA (Organizzazione per selaram a reconciliação da Igreja e do Esta- propagandeada foi a drenagem dos Pântanos
la Vigilanza e la Repressione des Antifascis- do. A hostilidade do novo Papa, Pio XI, ao Pontinos, uma região a sul de Roma onde
mo), a implacável polícia política do regime, bolchevismo, e a habilidade diplomática de tradicionalmente imperava a malária.
modelo da Gestapo alemã e da portuguesa Mussolini, que tornou obrigatórios o ensino Por todo o país multiplicavam-se os esta-
PVDE, antecessora da PIDE. religioso nas escolas e a presença de crucifixos leiros de obras, rasgavam-se autoestradas,
nas salas de aula e em todas as repartições procedia-se à eletrificação das linhas fér-
Realizações concretas oficiais, facilitaram a conciliazione. O Papa reas e construíam-se centrais hidroelétricas.
Este regime, herdeiro dos problemas que no tornou-se soberano de um Estado indepen- A produção do aço triplicou e a do alumínio
pós-I Guerra Mundial tinham enfraquecido a dente, a Cidade do Vaticano, e, em contra- aumentou para o dobro. Claro que o esforço
democracia parlamentar, resolveu, há que re- partida, reconheceu a soberania da casa de fiscal exigido era enorme e a liberdade de
conhecê-lo, alguns deles e fez assentar nesses Saboia sobre toda a Itália. A religião católica expressão e de associação não existia, num
relativos êxitos o grosso da sua propaganda. tornou-se oficial e as restantes eram apenas país altamente policiado e onde qualquer

VISÃO H I S T Ó R I A 25
FASCISMOS // ITÁLIA

pessoa podia, como já atrás se disse, ser


presa por delito de consciência.
A política demográfica tendia a fazer da
Itália um país superpovoado. Enquanto pe-
sados impostos incidiam sobre os solteiros, e
uma intensa propaganda louvava incessante-
mente as «alegrias da família», a emigração
foi proibida, à exceção da que se destinava às
colónias italianas. A Itália poderia desse modo
mobilizar um exército numeroso e, tal como a
Alemanha nazi e o Japão militarista, seus futu-
ros aliados, dispor de um «espaço vital» para lá
dos estreitos limites das fronteiras nacionais.
A obra social era profundamente im-
pregnada pela propaganda e pelo condi-
cionamento dos espíritos, ou, se quisermos
ser mais diretos, pela lavagem ao cérebro.
A Obra Nacional dos Tempos Livres, ou
simplesmente o Dopolavoro, destinava-se a
desenvolver a instrução e a educação artística Mussolini com Hitler
e a promover a assistência social e sanitária. O Duce e o Führer são
Nasceram assim milhares de bibliotecas, de aclamados em Munique,
durante uma visita
ranchos folclóricos, de orquestras esforçadas
do líder fascista
e de grupos de teatro amador. à Alemanha,
em junho de 1940
O sonho no novo Império Romano
Fora das fronteiras italianas, o regime fascis-
ta levou a cabo uma política resolutamente
imperialista. O culto da ação, a permanente
evocação extática de um passado distante
com recorrentes referências oratórias à Roma
Antiga e ao Mare Nostrum (o Mediterrâneo No leste africano, a Itália possuía desde A política de presença no Mediterrâneo
«romano»), a herança colonial do jovem reino o século XIX a Somália e a Eritreia, cujo traduziu-se por ajuda moral e material à in-
italiano, o patriotismo barato das massas, a hinterland comum era o reino da Etiópia, surreição «nacionalista» contra a República
expansão demográfica, tudo isto contribuiu um dos dois únicos Estados independentes Espanhola, traduzida pela guerra civil de
para uma política de intervenção sistemática do continente (o outro era a Libéria). Em 1936-1939 e origem da longa ditadura fran-
na bacia mediterrânica e nas suas imediações. 1896, os italianos tinham tentado apoderar- quista. E, em 1939, a Itália invadiu e anexou
A Líbia, conquistada em 1911, tinha de ser -se deste antigo reino africano, de religião a Albânia, cujo rei, Zog I, se exilou na Grécia.
«pacificada». A tarefa não era fácil, e só em cristã, mas a – humilhante do ponto de vista Desta forma, Vítor Emanuel III, depois de ter
1935 os últimos beduínos insubmissos da colonialista – derrota de Aduá desfizera as acrescentado ao seu título de rei da Itália o
Cirenaica poriam cobro àquilo suas ilusões e deixara-lhes um de imperador da Etiópia, pôde completar a
a que os fascistas chamavam OVRA amargo de boca. O desejo de des- lista dos seus títulos com o de rei da Albânia.
«atos de pirataria». A atua- Organização forra e a política de expansão A presença italiana no Mediterrâneo
ção italiana foi brutal, com um para a Vigilância a qualquer custo num mundo apoiou-se igualmente na existência de nu-
e Repressão
sexto da população líbia a ser onde as regiões suscetíveis de merosas colónias de emigrantes ao longo da
do Antifascismo,
deslocada à força. Apesar de a polícia política serem colonizadas eram já ra- bacia ocidental deste mar. No protetorado
as condições serem desfavorá- do regime ras explica a guerra da Etiópia francês da Tunísia, os súbditos italianos go-
veis, os italianos conseguiram (1935-1936), de profundas re- zavam de um estatuto especial, com escolas
povoar com colonos e valorizar economica- percussões internacionais. Após a conquista e uma jurisdição própria. Em Malta, então
mente a quase desértica orla costeira líbia, do reino africano, Mussolini proclamou, na pertencente ao Império Britânico, um partido
plantando cereais e oliveiras e construindo típica linguagem altissonante do fascismo, político pediu a ligação da ilha à Itália. Na
cidades modernas, com edifícios e monu- «o ressurgimento do império nas colinas Argélia e no sul de França os colonos italianos
mentos em estilo Art Déco. sagradas de Roma». agruparam-se nas chamadas «Casas de Itá-

26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
‘La’ Petacci
Mussolini teve muitas amantes, mas a
mais famosa foi Clara (Claretta) Petacci,
uma bela jovem romana da alta burguesia
(o pai era médico do Vaticano e dono de
uma clínica) 29 anos mais nova do que
ele. Conheceram-se em 1932, na zona
de Ostia, perto de Roma, quando o carro
em que seguia a jovem ultrapassou,
buzinando, o do Duce. Pararam,
conversaram e ela confessou-lhe a
atração fatal que sentia por ele, mesmo
sem o conhecer pessoalmente.
Tornaram-se amantes em 1936,
Clara Petacci Amante de Mussolini durante
depois de ela já se ter casado com
nove anos, morreria, executada, a seu lado
um oficial da Aeronáutica, de quem
viria a obter o divórcio. Claretta próprio Palazzo Venezia, Claretta era
acompanhou Mussolini nas horas boas frequentada diariamente pelo Duce, que
e más, tentou – em vão – que ele se acedia a todos os caprichos dela e dos
divorciasse da sua mulher, Rachele, e parentes, numa relação tumultuosa em
manteve um diário em que descreve que por vezes a agredia.
pormenorizadamente as relações Depois de temporariamente separados,
íntimas de ambos, apimentadas por Claretta conseguiu juntar-se a
práticas sadomasoquistas. Mussolini nos últimos dias de vida de
Muito criticada nos próprios meios ambos, quando o antigo Duce tentava
fascistas pelos gastos que acarretava, escapar dos partigiani e atravessar a
a relação com Claretta prejudicou a fronteira para a Suíça. Foram abatidos
imagem pública de Mussolini, que acedia juntos e juntos pendurados e expostos
constantemente às onerosas exigências ao escárnio popular na Piazzalle
da família da amante. Instalada no Loreto, em Milão.

lia», uma espécie de centros de acolhimento aliança natural, dadas as semelhanças exis- Não obstante a aliança com a Alemanha,
e de propaganda que impediam a assimilação tentes entre a ditadura fascista e o totalitaris- Mussolini hesitou em entrar na guerra em
dos colonos pela cultura francesa. mo nazi. Foi já no âmbito deste alinhamento setembro de 1939, quando Hitler invadiu a
Nas vésperas da II Guerra Mundial, toda que os italianos, expulsos da Sociedade das Polónia e desencadeou o maior dos conflitos
esta política imperialista criou uma fachada Nações na sequência da invasão da Etiópia, que a História regista. Acabaria, no entanto,
que causou impressão no exterior, mas trazia intervieram na guerra civil de Espanha e que, por fazê-lo em 10 de junho de 1940, quando
em si mesma os germes da própria queda em setembro de 1940, rubricaram com o Ja- a França baqueou face à invasão alemã e
do regime. Com efeito, ao multiplicar as pão militarista (igualmente uma ditadura) o Governo gaulês se retirou de Paris para
anexações territoriais e ao organizar gran- o Pacto de Aço. A entrada em vigor de leis Bordéus. Colocando-se do lado do que lhe
des manifestações de massas eletrizadas, antissemitas em Itália foi uma consequência parecia vir a ser o vencedor do conflito, o
Mussolini alimentava um clima passional da ligação ao regime de Hitler. Duce contava vir a receber, na partilha dos
que conduziria à entrada no conflito, para despojos, algumas das colónias africanas da
a qual o país não estava preparado. França e da Grã-Bretanha. As operações
Em outubro de 1936, Roma assinara com militares, contudo, correriam mal à Itália, e
Berlim o pacto do Eixo, depois de Mussolini por mais do que uma vez foi necessário que os
ter, durante algum tempo, hesitado entre Muitos fascistas alemães acorressem em seu auxílio – primeiro
aliar-se à Alemanha ou à França, no grande eram contra a contra os britânicos no norte de África e em
jogo dos alinhamentos da década de 1930. entrada da Itália seguida contra a Grécia, que a Itália atacou
Persuadido de que a ligação ao regime nazi mas não conseguiu vencer.
lhe traria as vantagens decorrentes de uma si-
na II Guerra Mundial, A machadada final contra o regime fascista
tuação de liderança na Europa, o Duce acabou decisão que seria seria dada em julho de 1943, quando uma in-
por se decidir por aquilo que era, aliás, uma fatal para o regime vasão anfíbia de forças norte-americanas e do

VISÃO H I S T Ó R I A 27
FASCISMOS // ITÁLIA

Um «M» humano
Fascistas, com
as suas camisas negras,
mantêm-se em sentido
sobre uma estrutura
que delineia uma
gigantesca inicial do nome
do Duce, durante
uma visita deste ao vale
de Aosta, no norte
da Itália, em 1939

Império Britânico foi lançada contra a Sicíliatituições anteriores à Marcha sobre Roma. prisão num hotel do alto do monte Sasso, nos
e, na sequência desta operação, contra o sul da
Esta decisão, que determinou a queda do Apeninos centrais, Mussolini foi levado para o
bota italiana. Enquanto os alemães lutavam fascismo, tem sido objeto das mais diversas norte e ali fundou, por imposição de Hitler, a
denodadamente, os italianos rendiam-se aos interpretações, mas radica-se sobretudo na República Social Italiana, uma estado satélite
milhares, pois a aliança com Berlim e a po- mudança da sorte da guerra e nas rivalidades da Alemanha nazi sedeado em Salò, uma pe-
lítica de guerra nunca tinham tido a adesão entre os membros do Conselho, muitos deles quena cidade da margem do lago de Garda.
popular dos súbditos de Vítor Emanuel III, invejosos da posição de Mussolini. Em 28 de abril de 1945, Mussolini foi mor-
sendo até muitos fascistas da primeira hora O rei encarregou então o ma- to por resistentes comunistas na
opositores silenciosos dessa decisão. rechal Pietro Badoglio de dirigir VENTENNIO NERO localidade de Mezzagra e o seu
Mesmo antes de terminar a campanha da a política nacional e este entrou As duas décadas corpo exposto publicamente
Sicília, já o regime implantado 21 anos antes de imediato em negociações (1922-1943) de numa praça de Milão, pendu-
duração do regime
se desmoronava em condições melodramá- com os ingleses e os americanos. rado de cabeça para baixo, jun-
fascista
ticas. No dia 24, Mussolini reuniu o Grande A 3 de setembro, no dia em que tamente com o da sua amante
Conselho Fascista para comunicar aos pró- estes desembarcavam na Itália continental, Clara Petacci, abatida na mesma altura pelos
ceres do regime a intenção de Hitler de fazer foi assinado um armistício em Siracusa e dois partigiani. Assim terminou a aventura do
evacuar a metade setentrional da Itália e de meses mais tarde a Itália passou a alinhar com fascismo de Mussolini, depois conhecido em
concentrar no norte a resistência contra os os Aliados – e portanto contra a Alemanha – Itália por ventennio nero (vinténio negro), pe-
anglo-saxónicos. Algo inesperadamente, o no conflito. A reação de Hitler foi tudo menos ríodo durante o qual os anos foram contados,
órgão supremo do regime fez aprovar, por amorfa: 30 divisões germânicas entraram em numeração romana, a partir da data da
19 votos contra oito, a demissão de Musso- em Itália e ocuparam as zonas do país que Marcha sobre Roma. Em 1946, os italianos
lini (que seria detido), o restabelecimento não estavam ainda nas mãos dos Aliados. – e, pela primeira vez, as italianas – optaram
das prerrogativas reais e o regresso às ins- Libertado por um comando alemão da sua pela República num referendo sobre o tipo
de regime, o novo rei Humberto II veio viver
exilado para Portugal e uma nova Constituição
entrou em vigor em 1948.
Teria Moravia razão quando escreveu que,
se não fosse a política externa, Mussolini se
teria mantido por mais largos anos no po-
der? Talvez sim, se levarmos em conta que o
salazarismo em Portugal e o franquismo em
Espanha duraram mais três longas décadas,
firmes como a rocha escudados nas suas po-
Cadernos escolares Capas de propaganda do regime, para moldar os jovens estudantes líticas totalitaristas e repressivas.

28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Queda no abismo
O líder outrora idolatrado por multidões
um prenúncio do desmoronar do seu próprio
regime nazi na Alemanha.

Resgate espetacular
O certo é que os alemães conseguiram os seus
teve um fim miserável intentos, pois Mussolini foi mesmo resgatado

F
do monte Sasso através de uma espetacular
oram as sucessivas derrotas italianas nha; em ambos os locais de exílio, Mussolini, ação de comandos, com recurso a planadores,
em diferentes campos de batalha, a transtornado e abatido, padecendo há quase liderada pelo oficial das SS Otto Skorzeny.
intervenção em força dos Aliados um ano de dores excruciantes provocadas por Conduzido ao norte da Itália, à zona ocu-
anglo-americanos no Mediterrâneo úlceras duodenais, lia as obras de Nietzsche pada militarmente pelos alemães, fundou
e as greves antiguerra que estalaram numa edição alemã que lhe fora oferecida ali a chamada República Social Italiana, um
em Milão e Turim na primavera de por Hitler através do marechal Kesselring estado fantoche satélite da Alemanha nazi,
1943 que determinaram o fim da carreira (comandante das tropas germânicas de ocu- acalentado e protegido por Hitler, com ca-
de Mussolini. Em pano de fundo, lavrava pação da Itália) e comparava o seu destino aos pital na pequena cidade de Salò, na margem
em toda a Itália um vasto descontentamen- de Napoleão e de Jesus Cristo. Da Maddale- do Lago de Garda. Governada por um Mus-
to popular com a participação do país na na foi uma vez mais transferido, dessa feita solini transformado em zombie, a chamada
II Guerra Mundial e o curso adverso que por para um hotel de uma estância de esqui no «República de Salò» manter-se-ia por dois
ela tomado. A rendição da Itália anos, enquanto a Itália de Badoglio
apresentava-se como inevitável, passava para o lado dos Aliados
sobretudo quando os Aliados e declarava guerra à Alemanha.
desembarcaram na Sicília, em A sua mais espetacular ação foi o
9 de julho, prenunciando o ata- processo de Verona, movido contra
que direto à «bota». Após longas os «traidores» que haviam votado
hesitações e não menores receios, pela destituição do Duce, entre os
o rei Vítor Emanuel III, com o quais figurava o conde Galeazzo
apoio dos altos comandos milita- Ciano, ex-ministro dos Negócios
res e dos mais destacados líderes Estrangeiros e genro do próprio
fascistas, decidiu demitir o Duce. Mussolini (casado com a sua filha,
O momento fundamental da Edda, cujos rogos não conseguiram
queda de Mussolini foi a reunião levar o pai a indultá-lo).
do Grande Conselho do Fascis- Na primavera de 1945, quando as
mo de 23 de julho desse ano de potências do Eixo estavam já de
1943, que se prolongou por muito rastos, recrudesceu o movimento
tempo até altas horas da madru- Como carne num talho Os corpos do ex-Duce e companheiros de guerrilhas comunistas (os parti-
pendurados de cabeça para baixo numa praça de Milão
gada de 24 e que culminou com giani) no norte de Itália, e Mussolini
a aprovação de uma moção apesentada por alto do monte Sasso, nos Apeninos Centrais. acabaria por ser detido por um desses grupos
Dino Grandi, segundo a qual Mussolini renun- A mudança de locais de detenção destinava- quando tentava escapar para a Suíça. Abatido a
ciaria e as responsabilidades do poder seriam -se a despistar os alemães, que não desistiam 28 de abril (dois dias antes do suicídio de Hitler
devolvidas ao rei. Antes, Vítor Emanuel III de o libertar e de o restaurar no poder numa no seu bunker berlinense) – juntamente com
sondara o marechal Pietro Badoglio sobre se zona da Itália ainda não ocupada pelos a sua mais famosa amante, Claretta Petacci –
estaria disposto a aceitar a chefia do Governo, Aliados, uma vez que Hitler receava que a seria exposto, pendurado de cabeça para baixo,
ao que este respondera afirmativamente com queda do fascismo na península transalpina como uma peça de carne num talho, nas vigas
a condição de esse Executivo não ser fascista. fosse vista pela opinião pública mundial como de uma estação de serviço em construção na
Quando, na tarde do dia seguinte, o Duce foi Piazzale Loreto, em Milão. De seguida, o corpo
chamado ao palácio real, o rei veio recebê-lo do antigo Duce foi enterrado em segredo no
ao fundo das escadas, denunciando nervosis- cemitério de Musocco, também em Milão, de
mo, e comunicou-lhe que lhe seria concedi- Preso, Mussolini, onde seria roubado em 1946 por neofascistas
da proteção policial contra a ira dos muitos foi libertado por um e entregue aos franciscanos de um convento de
descontentes. Na verdade, o ex-Duce estava Pavia. Em 1957 foi confiado à viúva, Rachele
preso. Depois de uma estada na pequena ilha
comando alemão e Mussolini, que o fez sepultar em Predappio,
de Ponza, no mar Tirreno, foi transferido para governou um Estado a terra natal do Duce, sob uma lápide com o
outra ilha, a da Maddalena, junto da Sarde- fantoche símbolo do Fascio. L.A.M

VISÃO H I S T Ó R I A 29
FASCISMOS // ITÁLIA

GIULIA ALBANESE
Nascida em Veneza em 1975, formou-se pela
Universidade da sua cidade natal e obteve
o doutoramento no Instituto Universitário
Europeu. É professora da Universidade de
Pádua e presidente do Instituto Veneziano
para a História da Resistência e da Sociedade
Contemporânea. Especialista no tema da
crise do liberalismo, da violência política e do
advento do Fascismo na década de 1920
em Itália, é autora, por exemplo, do livro
La Marcia su Roma (The March on Rome,
Routlege, 2019) e organizadora de Rethinking
the Italian Fascism (Routlege, 2022).

ENTREVISTA

‘Há uma crise das instituições


liberais que é assustadora’
Para a historiadora Giulia Albanese, a vitória da direita populista em Itália
não é apenas um problema nacional, mas também europeu.
E essa realidade ainda pode piorar, com a inflação e com a guerra
Que significado teve a Marcha sobre tugal salazarista podem fornecer-nos alguma regime fascista na guerra determinou uma
Roma? hipóteses. Mas, por outro lado, o Fascismo crise de legitimidade e credibilidade interna.
A Marcha sobre Roma foi, ao mesmo tempo, italiano não poderia deixar de participar na
um ato subversivo, uma demonstração de for- II Guerra Mundial, pelo que esta questão Até que ponto o Vaticano foi cúmplice do
ça e uma tentativa – bem conseguida devido não tem, verdadeiramente, sentido: o regime Fascismo italiano?
à falta de vontade de combatê-la – de ocupar fascista aspirava, desde as suas origens, a al- Depende da forma como se entende a pala-
o território italiano por parte dos fascistas. terar a ordem internacional estabelecida em vra «cumplicidade», mas é indubitável que o
Tem também, sem dúvida, uma dimensão de Versalhes, pretendia levar a cabo uma política Vaticano encontrou no Fascismo um regime
política-espetáculo, sobretudo interessante externa agressiva e demonstrar a capacidade empenhado em resolver muitos dos conflitos
pela sua modernidade, mas isto não deve da Itália para combater e vencer. Com um que ainda dividiam o Estado italiano e a
obscurecer os significados mais concretos. programa político destes, concretizado de for- Igreja e em questionar a democracia liberal,
Do ponto de vista político, aquele momento ma mais ou menos explícita de acordo com a um dos principais inimigos da Igreja naquele
permitiu legitimar a ação squadrista e trans- conjuntura internacional mas que é constante tempo. A Igreja esteve ao lado do regime e
formar o que aparentemente poderia parecer ao longo do tempo, o fracasso da entrada do apoiou-o praticamente sempre ao longo da
um governo de coligação como tantos outros


no início da ditadura fascista, na medida em
que uma força armada posta à disposição do
presidente do Conselho e uma ideia política Havia um profundo
violenta constituem um elemento de rotura consenso das classes
profunda da ordem constitucional.
dominantes italianas
Se a Itália não tivesse entrado na II Guerra em relação ao Fascismo
Mundial, o Fascismo ter-se-ia mantido por
muito mais tempo?
e uma aquiescência em
Não podemos, obviamente, sabê-lo, e os relação à violência
exemplos da Espanha franquista e do Por- por eles exercida
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Benito Mussolini

“ O Fascismo italiano não poderia deixar


década de 1920, permitindo, essencialmen-
te, a eliminação da experiência popular e a
formação de uma oposição católica antifas- de participar na II Guerra Mundial. O regime fascista
cista, mas também fornecendo significativos aspirava, desde as suas origens, a alterar a ordem
elementos de legitimidade ao regime. Esteve,
pois, ao lado do regime nas guerras coloniais
internacional estabelecida em Versalhes, pretendia
e não pronunciou uma só palavra contra a levar a cabo uma política externa agressiva e demonstrar
perseguição racial a partir de 1938. Sem este
apoio, não sabemos se o regime teria durado
a capacidade da Itália para combater e vencer
20 anos, nem de que modo. Mas também é
significativo que, apesar de tudo isto, se ve- aspetos – forças essas que ganharam vigor Em Portugal nunca houve um culto de
rificasse uma concorrência entre a Igreja e o ao longo da década de 1930, quando a crise massas do líder como em Itália ou na Ale-
regime no que toca ao controlo das consciên- atingiu o Velho Continente. manha. Que semelhanças – e que diferen-
cias dos jovens, algo a que tanto o Vaticano ças – encontra entre o Fascismo italiano e
como o regime totalitário aspiravam e que, O Estado Francês liderado por Pétain o Estado Novo português?
forçosamente, os punha em confronto. (França dita «de Vichy») deveu os seus A situação económica e social, mas também
contornos ao facto de ser um satélite da o papel internacional e o estatuto colonial de
Em seu entender, porque não triunfaram, Alemanha nazi ou correspondeu a um de- dois países como Portugal e a Itália diferem
nas décadas de 1920 e 1930, movimentos siderato da população? muito. Em Itália, o fascismo criou raízes bem
fascistas em países europeus democráticos A França construiu durante muito tempo mais fortes nas cidades do que nos campos,
como, por exemplo, o Reino Unido ou a um discurso público em torno da alergia ao e mais nas zonas que conheceram a transi-
França? fascismo por parte das próprios instituições e ção para um capitalismo mais avançado do
A razão principal tem que ver com a estabi- da população, mas desde há uns tempos para que naquelas em que tal passagem não se
lidade das instituições liberais e os projetos cá a historiografia internacional e francesa verificou.
de democratização desses países, que por reconhece o consenso de uma parte consi- São estas as áreas em que o fascismo con-
um lado tornaram as instituições sólidas derável da população francesa em relação segue mobilizar as massas e realizar uma
e por outro estabilizaram o consenso em ao regime de Vichy, consenso esse favorecido parte do seu projeto totalitário: as coisas são
torno destas, embora nesses Estados não pelo terrível e inesperado conflito militar que muito diferentes nas regiões de Itália ainda
tivessem faltado forças que reclamavam o pôs em evidência as limitações militares dos marcadas pelo latifúndio, nas zonas rurais
fascismo e a direita radical – em França governos franceses e questionou, de modo que satisfazem o desejo de desenvolvimento
mais do que no Reino Unido, sob alguns mais profundo, os seus valores. demográfico da nação, mas que, do ponto de

VISÃO H I S T Ó R I A 31
FASCISMOS // ITÁLIA

Crianças de uma
colónia de férias
esperam o Duce,
1937

vista da vida política, cumprem muito menos da capacidade do fascismo de penetrar em Creio que a diferença tem que ver com as di-
os seus objetivos. realidades muito diferentes. ferentes condições socioeconómicas a que há
Parto deste ponto para observar as se- pouco me referi, com as estreitas bases sociais
melhanças e as diferenças entre o Fascismo Como explica a sobrevivência do salaza- que a República democrática portuguesa sou-
e o Estado Novo, mais do que das diferenças rismo em Portugal e do franquismo em be mobilizar e com o perfil político de Benito
culturais, de formação e provavelmente tam- Espanha por mais 30 anos, depois da que- Mussolini, que veio do Partido Socialista e
bém de caráter dos dois líderes. Parece-me, da da Itália fascista e da Alemanha nazi? tinha em mente uma ideia de mobilização
no entanto, que não obstante as profundas Com a capacidade dos dois líderes que geriam de massas que a maioria dos líderes políticos
diferenças, não se entende o Estado Novo se o poder de se adaptarem a um novo contexto da década de 1920 não tinha. Além disso,
o virmos como um regime autoritário com- político e com a vontade das classes dirigentes reconhecer a violência nas ruas dos grupos
pletamente voltado para a restauração do locais e internacionais, num contexto como o paramilitares não deve fazer-nos esquecer
passado e sem relação com as transformações da Guerra Fria, de evitar uma transformação que havia um profundo consenso das classes
políticas da modernidade radical da direita, política de consequências imprevisíveis. dominantes italianas em relação ao Fascismo
e que nesse sentido, embora com a devida e uma aquiescência em relação à violência
diversidade, a política de massas, ainda que Em Itália, o Fascismo triunfou a partir de por eles exercida.
limitada, realizada no Estado Novo, mas ações de rua e de outros tipos de pressão
também a atenção dada às transformações levadas a cabo por grupos paramilitares. O Estado Novo português deixou marcas
iniciadas pela Itália e pela Alemanha, de- Em Portugal, foi imposto de cima para profundas na estrutura psicológica dos
vem ser valorizadas como um dos aspetos baixo. Porquê esta diferença? indivíduos. Em Itália aconteceu o mesmo?
O italiano comum – o chamado «homem
da rua» – foi também «moldado» pelo


Fascismo?
Sim, profundamente, mas creio que, em Itá-
O Fascismo deixou impressa no país uma lia, a experiência da guerra e da resistência
relação entre poder e consenso baseada na coerção permitiram de algum modo enfatizar a trans-
formação e a mudança dos italianos, o que
e na corrupção que há muito estruturou parte foi importante para alguns grupos, mas não
da estrutura social e até institucional do país para a população como um todo. O Fascismo

32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
deixou impressa no país uma relação entre
poder e consenso baseada na coerção e na Giorgia Meloni
corrupção que há muito estruturou parte da
estrutura social e até institucional do país.

O regime democrático da República Ita-


liana do pós-II Guerra Mundial manteve
«vícios» provenientes do Fascismo?
Do ponto de vista institucional, a Carta Cons-
titucional é uma rutura profunda, mas as leis
continuaram a ser durante muito tempo as
do Fascismo e isso significa que a estrutura
repressiva do Estado, emendada em alguns
dos aspetos piores, permaneceu de pé. Isso
significa que, sob muitos aspetos, a República
Italiana continuou nos primeiros anos da sua
existência, principalmente após a vitória da
Democracia Cristã em 1948 e com a Guerra
Fria, a ser um país não só profundamente


conservador, mas também com uma ideia
limitada, hierárquica e autoritária da demo-
cracia. As coisas mudaram profundamente Hoje, o contexto histórico, político e social
entre o final da década de 1950 e a de 1960.
é completamente diferente. Mas há uma crise das instituições
O «perigo fascista» na Itália de hoje aponta liberais em Itália e em toda a Europa que não deixa de ser
para que se venha a reproduzir um regime assustadora. É evidente que uma parte da população
semelhante ao de Mussolini, ou trata-se de
realidades diferentes? (e até da classe dirigente) começa a pensar que a democracia
O contexto histórico, político e social é com- parlamentar já não é um regime político capaz de garantir
pletamente diferente.
Mas há uma crise das instituições liberais
as melhores condições de vida da população, e as únicas
em Itália e em toda a Europa que não deixa de alternativas que vê provêm da direita populista.
ser assustadora, pois é evidente que uma parte
da população (e até da classe dirigente) deste
E face à inflação e ao cenário de guerra que temos diante
continente começa a pensar que a democra- dos olhos, as coisas só podem piorar
cia parlamentar já não é um regime político
capaz de garantir as melhores condições de
vida da população, e as únicas alternativas Prefiro dizer que, no que respeita à Europa mas viva em símbolos e no imaginário, de
que vê provêm da direita populista, e face Ocidental, o problema é o da relação entre a que o fascismo constitui uma alternativa à
à inflação e ao cenário de guerra que temos democracia social e a democracia liberal, que crise da democracia liberal. Uma ideia tam-
diante dos olhos, as coisas só podem piorar. se coloca desde a década de 1970 e com mais bém fundada em muitos lugares-comuns
Nesta conjuntura, parece-me – digo-o força desde a de 1990: acredito que o cerne da que pouco têm que ver com a realidade his-
mais como cidadã do que como historiado- questão esteja no desfasamento desse vínculo tórica do período do Ventennio Nero: não
ra – que as liberdades cívicas e políticas e a e na lentidão com que está a refletir-se sobre sabemos como tudo isto afetará as opções
dignidade das pessoas já não estão no centro o assunto no seio dos movimentos e partidos políticas destes homens e destas mulheres
das preocupações da política: a responsabi- democráticos e na esquerda, mas o resulta- num contexto que é, repito, muito diferente.
lidade desta situação não é da direita, embo- do é a força que os movimentos de direita e Isto é, obviamente, um problema enorme,
ra devamos, sem dúvida, interrogarmo-nos populistas estão a obter em quase toda parte. mas que ocorre em condições institucionais
acerca do comportamento democrático das Nesse contexto, um partido como os e internacionais completamente diferentes
classes dirigentes – seguramente em Itália, Irmãos de Itália não só pertence à direita das do passado: se o quadro institucional e
mas talvez mais na generalidade da Europa populista, mas também cultiva uma evidente internacional conseguir sustentar a demo-
– e também na consciência democrática das nostalgia do passado fascista do país – com cracia, esta pode não estar em risco, mas o
populações europeias. a ideia, raramente admitida abertamente, problema – repito – não é apenas italiano.

VISÃO H I S T Ó R I A 33
FASCISMOS // ITÁLIA

A Marcha sobre Roma


vista de Portugal
A tomada do poder por Mussolini suscitou depois
o interesse da opinião pública portuguesa
e o fascínio de intelectuais de direita
Por Annarita Gori*

A
28 de outubro de 1923, a Itália povo-menino que não tem cultura, que não
celebrava o primeiro aniversário tem inteligência, que tem apenas olhos e diz
da Marcha sobre Roma, o golpe só o que vê». Ferro perguntava na rua se a
de Estado que fizera ascender Itália tinha mudado depois da Marcha so-
Benito Mussolini à chefia do Go- bre Roma. As respostas reportadas, que em
verno. Embora não fosse ainda princípio deveriam deixar patente o quanto
uma festividade reconhecida – sê-lo-á apenas as pessoas comuns amavam Mussolini, por
a partir de 1926 – o Estado emitiu moedas vezes eram ridículas. Um operário sustenta-
e selos comemorativos e em várias cidades va que «quando vejo passar Mussolini vejo
foram organizadas celebrações de massas. passar um camarada, porque ele é o maior
A mais imponente foi a de Roma. operário da Itália»; um ferroviário declarava:
Entre o público que acorreu naquela ma- «Se o comboio chega à tabela? Com certeza!
nhã encontrava-se um jornalista português Desde que Mussolini está no poder, todos os
do Diário de Notícias que andava a viajar comboios e todos os funcionários chegam a
pela Europa «à volta das ditaduras». A per- horas...»; uma mulher do povo afirmava que
sonagem em questão era, obviamente, An- «de um homem assim é que se precisava lá
tónio Ferro, futuro diretor do Secretariado em casa» (António Ferro, Viagem à Volta das
da Propaganda Nacional (SPN). Ditaduras, Lisboa, Diário de Notícias, 1927, correr à mesma hora em Itália passou quase
Ferro teve oportunidade de ver em primeira 59-61, 119-121). A participação nas celebrações em surdina.
mão o que o tinha levado à Itália: o culto do da Marcha sobre Roma foi decisiva para que Por outro lado, a natureza politicamente
chefe, a importância do carisma e a devoção Ferro viesse a colaborar na construção do mito confusa da Marcha sobre Roma determinou,
que as massas tributavam ao Duce. «O fascis- político do fascismo, que o historiador italiano provavelmente, uma certa prudência por parte
mo vai passar, finalmente, em carne e osso, Emilio Gentile definiu como «o culto do Litto- da imprensa portuguesa. Com efeito, a tomada
perante os meus olhos curiosos e esfomeados», rio» (Laterza, Roma, 1993); mas foi também do poder não fora um pronunciamento clás-
escreveu. Ao descrever o dia, deixou transpare- ocasião para reacender o debate sobre este sico. Não tinha sido um militar a exprimir-se
cer este seu entusiasmo e ofereceu aos leitores acontecimento. No ano anterior, com efeito, contra o status quo, mas sim Benito Mussolini,
portugueses uma versão idílica das celebrações o golpe italiano encontrara reduzido eco nos líder de um movimento político minoritário
feitas de aplausos, alegria, rufar de tambores jornais portugueses. chamado Partido Nacional Fascista. Este
e bandeiras desfraldadas. A reportagem dava não esperara que os militares se lhe juntas-
a entender que a Marcha sobre Roma tinha Uma aventura ou uma ideia sem, optando por organizar grupos armados
salvo a Itália do caos político e que Mussolini em marcha? paramilitares chamados «camisas negras».
gozava de um apoio popular incondicional. Dois dias antes de Mussolini tomar o poder, O regime político não fora completamente
Ferro dedicou uma das suas entrevistas à pró- Sacadura Cabral e Gago Coutinho regres- derrubado, uma vez que o próprio rei nomeara
pria população de Roma. A imagem que dela saram do Brasil depois de terem efetuado Mussolini chefe de um governo em que os
deu respeitava aquele estereótipo que poucos a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. fascistas contavam apenas com três ministros
anos mais tarde estaria na base da propaganda Ao longo de vários dias as primeiras páginas em treze. Finalmente, o Duce não tinha real-
do Estado Novo: «As vendedoras de fruta, publicaram fotografias dos dois «heróis do mente marchado sobre Roma. Esperara em
os velhinhos rotos, os mendigos trôpegos, os ar» envolvidos nas festejos que lhes foram Milão que os quatro quadrúnviros à frente
pequenos comerciantes, os bons operários.» tributados. Ao lado do apoteótico regresso da coluna de «camisas negras» chegassem ao
Em resumo, o povo ingénuo e cândido, «o dos dois aviadores, o golpe que estava a de- Quirinal e expusessem o estado de sítio ao rei,

34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Entrevistador e entrevistado
A foto autografada
de Mussolini, aquando
da entrevista feita por
António Ferro, em 1926,
para o Diário de Notícias.
Logo em 1923 o futuro diretor
do SPN havia publicado uma
série de reportagens em Itália
sobre o Duce, reunidas em
‘Viagem à Volta das Ditaduras’

juntando-se a eles de comboio dois dias depois Ou seja, se a situação política saída da Marcha (O Século, 28 e 31 de outubro; A Capital, 28 de
para marcharem juntos pelas ruas da capital. estava destinada a durar. A Capital perguntava outubro, 3 e 4 de novembro; Diário de Lisboa,
Não admira, pois, que O Século publicasse a se o fascismo era «uma aventura ou uma ideia 30 de outubro; Ilustração Portuguesa, 11 de
28 de outubro de 1922 umas poucas linhas no- em marcha». Uma marcha também descrita novembro de 1922).
ticiando que a situação em Itália era grave e que como uma grande aposta de resultados difíceis A opinião pública portuguesa tentou res-
A Capital apenas se fizesse eco de «lacónicos de prever. «Será lícito esperar dos fascistas uma ponder a estas perguntas e compreender como
telegramas» que confirmavam a crise política. obra de organização, de tranquilidade e de fora possível que um partido para todos os
Nos dias seguintes, depois de dada a notícia de paz?», questionava o jornal lisboeta. «Não sei», efeitos minoritário – nas eleições de março de
que Mussolini tinha sido encarregado pelo rei foi a resposta. E continuava: «Sei apenas que 1921 obtivera apenas 35 deputados em 535 – se
de formar um novo governo, a opinião pública um dos distintivos dos soldados de Mussolini tivesse transformado numa força política ca-
começou a interrogar-se sobre o que acontece- é simplesmente uma bengala enorme, nodosa, paz de tomar o poder e, aparentemente, gozar
ra. O Diário de Lisboa e O Século declararam pesada, com um ar de cacete que impressiona» do apoio da população. Foram tidos em conta
que só o tempo poderia dizer se a Marcha vários fatores: o trauma da guerra, o torpor do
sobre Roma tinha sido uma coisa boa ou uma sistema liberal, o problema da mobilização dos
coisa má. Publicando uma foto do governo de veteranos, o facto de ter havido uma resposta
Mussolini, a Ilustração Portuguesa interrogava Devido ao regresso violenta à também violenta movimentação
se o Duce seria capaz de dominar e fazê-las do Brasil de Gago operária que se seguiu à revolução bolchevi-
conviver com aquilo a que chamava o sistema Coutinho e Sacadura que. O Século aproximou as figuras de Lenine
das correntes mais impetuosas às no interior do e Mussolini, escrevendo que eram produtos
fascismo e fazê-las conviver com o que restava
Cabral, o golpe em de sinal oposto surgidos em consequência da
do sistema político giolittiano (o período da Itália passou quase Grande Guerra, formas diferentes de remediar
história italiana que vai de 1903 a 1914, cuja em surdina nos o caos que o conflito havia gerado. A Capital
figura de proa foi o político Giovanni Giolitti). jornais portugueses sustentava que ambas as revoluções estavam

VISÃO H I S T Ó R I A 35
FASCISMOS // ITÁLIA

ligadas por um hipernacionalismo


visando um engrandecimento da pá-
tria que transformou a política numa
«verdadeira religião» (O Século, 1 de
novembro; A Capital, 22 de novem-
bro). Os primeiros comentários apa-
rentemente positivos foram tecidos
por Joaquim Manso e Augusto de
Admirador Impressionado
Castro. Para o diretor do Diário de com o Duce, que conheceu
Lisboa, tinha sido este «grito ardente pessoalmente, Homem Christo
de inspiração nacionalista» que fizera Filho publicou em 1923 um
que Mussolini fosse «apoiado por sol- livro sobre o ditador. Os
dois encontrar-se-iam com
dados, camponeses, operários, senho- regularidade até 1928
ras, estudantes, escritores, artistas,
intelectuais e proprietários». Castro,
no Diário de Notícias dois dias depois guir uma entrevista com o artífice da
da Marcha sobre Roma, falava já de mudança que pretendiam também
«fascismo triunfante» (Diário de Lis- para os seus países. Em março de
boa, 31 de outubro; Diário de Notícias, 1923, antes ainda de Ferro se mistu-
1 de novembro de 1922). Finalmente, rar com a multidão que acorreu para
duas semanas após o evento, O Imperial – em os nacionalistas da órbita do jornal Portugal e participar nas celebrações do primeiro aniver-
cujas páginas António Ferro escreveu vários os nacional-sindicalistas de Rolão Preto. Este sário da Marcha, Homem Christo Filho foi
artigos em novembro de 1922 – assumiu uma último, ainda que cético quanto às possibi- recebido pelo Duce. Graças ao amigo comum
posição ainda mais clara: se Portugal queria lidades imediatas de uma ação idêntica em Luigi Federzoni – que durante o golpe atuou
libertar-se das amarras da situação política, Portugal e contrário a mimetismos políticos, como mediador entre o rei e Mussolini – o
devia seguir o exemplo e organizar-se «como figurou entre os primeiros apoiantes de Mus- encontro estendeu-se para além da canónica
se organizaram em Itália os fascistas» (Antó- solini. Até à proibição dos «Camisas Azuis», meia hora que o Duce concedia aos seus in-
nio Costa Pinto, Os Camisas Azuis, Edipucrs, em 1934, Preto foi também o interlocutor terlocutores. Impressionado pelo encontro,
Porto Alegre, 2016). privilegiado dos fascistas italianos, que con- poucos meses depois Homem Christo Filho
Com a consolidação do regime italiano e a sideravam o seu movimento mais próximo do publicou o volume Mussolini Bâtisseur d’Ave-
progressiva deterioração do sistema político deles do que a União Nacional de Salazar. Isto nir (Paris, Fast, 1923). Como escreveu Miguel
da I República, as vozes a favor do fascismo valeu-lhe a ironia de Fernando Campos, que, Castelo Branco, que analisou detalhadamente
far-se-iam ouvir cada vez mais. Pouco antes numa carta a João Ameal, invetivava Preto, a obra, no livro o ditador retratado era um
do golpe em Portugal, entre os poucos espaços chamando-lhe «Rolino Pretolini» (Annarita condottiero romântico que tinha conquistado
que ainda acolhiam críticas à ditadura mus- Gori, Rita Almeida de Carvalho, «Italian Fas- Roma com a promessa da paz social, e não
soliniana subsistia a Seara Nova. Em março cism and Portuguese Estado o squadrista ou o republicano
de 1926, numa legenda de Raul Proença sob Novo», Intellectual History anticlerical que inflamara as
um retrato de Mussolini lia-se: «Mussolini, o Review, 2020, 3, 6). páginas do Avanti! (Homem
déspota italiano que governa pela violência, a Se muitos intelectuais segui- Christo Filho. Do Anarquismo
supressão de todas as liberdades, a flagelação ram com interesse a Marcha ao Fascismo, Nova Arrancada,
e o óleo de rícino. É um dos tiranos mais sobre Roma, foram – como Lisboa, 2001, 131). Era um che-
desprezíveis de toda a história. O seu Império escreveu Ernesto Castro Leal fe capaz de guiar as multidões.
envergonha o mundo moderno. O seu rosto – sobretudo «António Ferro Um líder cesarista que, anos
é um dos maiores argumentos contra o fas- e Homem Christo Filho que depois, Homem Christo Filho
cismo» (Seara Nova, 27 de março de 1926). introduziram a vertigem au- não encontraria em Carmona.
toritária europeia em Portugal» Com efeito, poucos dias antes
Ver o fascismo realizado (António Ferro. Espaço Político de ser exilado, escrevia em A In-
Embora com várias nuances, nos meses que e Imaginário Social, Cosmos, Revista ‘Seara formação que «uma verdadeira
se seguiram à Marcha sobre Roma vários gru- Lisboa). Nova’, março de ditadura é feita pelo povo e com
pos de direita declararam-se abertamente a Ambos foram «turistas polí- 1926 «Mussolini é o povo (…) e o povo chama-se
um dos tiranos mais
favor da empresa mussoliniana. Entre estes, os ticos» que viajaram até Roma Mussolini, Rivera, Sidónio Pais,
desprezíveis de toda
sidonistas de O Independente, os fascistas por- para ver de perto os resultados a História», escrevia Gomes da Costa (A Informação,
tugueses de A Ditadura, de Raul de Carvalho, obtidos por Mussolini e conse- Raul Proença 2 de agosto de 1926).

36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Exposição documentária sobre a obra da Ditadura, Lisboa, 1934 Uma ideia de António Ferro, inspirada na Mostra da Revolução fascista italiana

Homem Christo Filho evocava também os construção identitária do fascismo que mais Também Castro teve oportunidade de pôr em
motivos e os sucessos da Marcha sobre Roma impressionaram Ferro e Castro. O primeiro, prática o que vira em Roma. Tendo participado
e traçava planos comuns para o futuro. Em numa série de artigos publicados no Diá- pessoalmente em muitas das comemorações
sua opinião, a Itália do pós-28 de outubro era rio de Notícias entre maio e novembro de da Marcha, apreendera o caráter «teatral» do
um país que tinha «retomado a consciência 1932, embora sem indicar expressamente o fascismo, capaz de suscitar, com uma «dou-
nacional, caracterizada pela paz interna, a seu nome, autocandidatava-se a tratar das rada, rumorosa aparência», a popularidade
extinção da luta de classes, a fusão obrigatória «paradas, emblemas, ritos indispensáveis» entre as massas e a solidez do partido (Ofício
dos partidos, a conquista da prosperidade». a fim de evitar que o regime que se estava a de Augusto de Castro, 24 de outubro e 7 de
Em suma, um modelo que os países latinos prefigurar em Portugal não se resumisse a novembro de 1932). Viu igualmente a forma
deveriam adotar para contrastar quer com a «uma ditadura banalmente conservadora, como o fascismo usara o mito histórico da
abulia do sistema liberal quer com a amea- destinada a ser ultrapassada pelos aconte- Roma Antiga para legitimar o regime e o impé-
ça comunista.» Este projeto esteve na base cimentos». A obra de autopromoção foi tão rio recentemente readquirido, por ocasião das
de um plurianual diálogo entre Mussolini persuasiva que, nos anos 1930, Ferro, como comemorações do bimilenário de Augusto, em
e Homem Christo Filho que apenas seria diretor do SPN, organizou algumas das mais 1937. Uma lição que Castro propôs adaptada
interrompido em 1928, quando este último importantes celebrações do regime. A primei- ao contexto português, na pele de comissá-
sofreu um acidente de automóvel mortal ao ra, em 1934, foi a comemoração da marcha rio-geral da exposição do Duplo Centenário,
dirigir-se para Roma a fim de tratar com o sobre Lisboa de Gomes da Costa: a Revolução em 1940.
Duce da organização de um grande congresso Nacional de 1926. O fascínio pelo modelo ita- É sobretudo no plano das comemorações e
destinado a lançar as bases de uma rede de liano esteve patente sobretudo na Exposição das representações que se denotam os maio-
nações reacionárias, corporativas e latinas Documentária da Obra da Ditadura, de que res impactos da Marcha sobre Roma na so-
nas duas margens do Atlântico. Ferro foi comissário. Embora em escala mais ciedade e na política portuguesas dos anos
Nos anos do fascismo plenamente consoli- reduzida, tinha uma estrutura muito seme- seguintes. Não obstante a tomada do poder
dado, outros relatos na primeira pessoa ofe- lhante à Mostra della Rivoluzione Fascista por Mussolini ter sido considerada por muitos
recem-nos olhares portugueses sobre a forma organizada dois anos antes em Roma. Ambas intelectuais próximos do regime como um
como a Marcha sobre Roma se concretizou apresentavam as etapas da história recente dos exemplos de maior sucesso no derrube
e, sobretudo, sobre a maneira como esta se como um percurso inevitável concluído com os do Estado liberal, o Estado Novo moveu-se
celebrou e institucionalizou como o início de respetivos golpes de Estado celebrados como numa conjuntura política e social peculiar
uma nova era. De entre estes, ressaltam como o epílogo vitorioso da ordem sobre o caos. que ditou a sua própria originalidade. Como
particularmente interessantes as observações escreveu João Ameal a propósito da Revolu-
de António Ferro compiladas durante as suas ção Nacional: «Não se trata, portanto, de uma
estadas entre 1926 e 1934 e os relatórios en- No plano das reprodução. Trata-se de uma equivalência. Os
viados por Augusto de Castro na qualidade comemorações italianos fizeram a sua Revolução na Ordem.
de representante de Portugal no Vaticano e e representações Nós começámos a nossa. » A Revolução da
no Quirinal, de 1924 a 1929 e de 1931 a 1935. notam-se grandes Ordem (João Ameal, Lisboa, 1932).

Celebrar a Marcha impactos da Marcha * Annarita Gori, doutorada pela Universidade


de Siena (Itália), é atualmente investigadora
Foram sobretudo a utilização dos rituais, sobre Roma na do Instituto de Ciências Sociais
das cerimónias e do passado nacional na sociedade portuguesa da Universidade de Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A 37
FASCISMOS // ALEMANHA
Grande encenação Hitler
falando em Nuremberga,
em setembro de 1938,
à frente da Catedral de
Luz, um efeito cénico
criado por Albert Speer,
com focos de defesa
anti-aérea, usado nos
comícios do Partido Nazi

38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ALEMANHA NACIONAL-SOCIALISTA

A MARÉ ALTA
DO TOTALITARISMO
Nunca um regime político com tão curta duração (apenas 12 anos)
exerceu tão grande influência nos destinos do mundo.
A história do tomada do poder e do seu exercício por Adolf Hitler

VISÃO H I S T Ó R I A 39
FASCISMOS // ALEMANHA

e em 1929-1933. 933. No início da década de


1920, Hitler beneficiou de uma conjuntu-
ra política favorável,
vorável, já que, na Baviera do
pós-guerra, o governo de extrema-direita
tolerou e apoiouiou as atividades dos grupos
paramilitares, s, que encarou como espécie
de antídoto aos os eventos revolucionários de
Por
Cláudia Ninhos
esquerda de 1918.
918. Nesta fase, descobriu o seu
Investigadora do talento para comunicar, que foi aperfeiçoan-
Instituto de História do ao longo dos anos. Os discursos claros,
Contemporânea da facilmente compreensíveis,
ompreensíveis, as palavras de
Universidade Nova
de Lisboa e autora, ordem que mobilizavam, a encenação ou os
entre outros livros, de gestos contribuíram
buíram para atrair aos comícios
Portugal e os Nazis centenas de pessoas, permitindo-lhe treinar

A
a sua liderançaça carismática.
s origens do Nacional-Socialismo Em 1922, a Marcha sobre
remontam a 1919, altura em que Roma e a chegada
egada ao poder
Anton Drexler fundou o Parti- de Benito Mussolini
ssolini trans-
do dos Trabalhadores Alemães. formou o líder er italiano
O partido de Drexler era apenas num modelo o para
um de uma miríade de grupos de Hitler, influencian-
ncian-
extrema-direita que surgiram na Baviera do do aspetos comoomo o
pós-I Guerra Mundial. Adolf Hitler foi incum- culto da persona-
rsona-
bido pelo Exército de espiar e obter informa- lidade ou levando
vando
ções acerca deste grupo, ao qual acabaria por à adoção de alguns
aderir e tornar-se seu líder. Em 1920, passou símbolos, como omo a
a chamar-se Partido Nacional-Socialista dos saudação fascista.
ascista.
Trabalhadores Alemães (NSDAP). Enquanto Hitler admirava
ava Mus-
os opositores o apelidavam jocosamente de solini e ambicionava
icionava
Partido «Nazi», os seus membros preferiam fazer uma «Marcha»
Marcha»
utilizar o conceito de «movimento nacional- sobre Berlim, aspiração
-socialista», já que consideravam o termo que acabou por or não ser
«partido» demasiado associado ao funciona- bem sucedida. a. Em 1923,
mento da democracia parlamentar. a tentativa dee golpe per-
Os investigadores têm-se dividido sobre os petrada na Baviera, que
motivos que levaram Hitler a tornar-se chan- ficou conhecidaida por «Pu-
celer de uma das potências europeias, hesitan- tsch da Cervejaria»,
ejaria», foi um
do em relação à ênfase posta nas qualidades fracasso e levou
ou à ilegalização
do Führer, na mensagem veiculada ou no con- do Partido Naziazi e do seu bra-
texto histórico. Nem sempre é fácil dar respos- ço armado SA, A, bem como ao
tas cabais sobre acontecimentos complexos. afastamento dos membros do
É certo que Hitler era um orador treinado, governo nacionalista
onalista que de al-
mas os alemães, muito afetados pela crise guma forma estiveram envol-
económica e pelo desemprego, mostraram-se vidos. Hitler deveria ter sido
recetivos face à mensagem difundida pelos condenado por or alta traição,
líderes nazis e pela propaganda. Além disso, o que poderia a valer-lhe a
não podemos esquecer o contexto histórico. A pena de morte, rte, mas as
Alemanha era um país derrotado, fortemente autoridades judiciais
atingido pelas consequências da revolução de foram complacentes
placentes
novembro de 1918, pela hiperinflacção de 1923 com ele e com m os im-
e, depois, pela Grande Depressão. plicados, ilibando
ando as
Os sucessos do NSDAP aconteceram precisa- altas figuras daa direi-
mente no contexto destas crises, em 1919-1923 ta conservadora.
ora.

40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Na sopa dos
do pobres De 1919 para 1920, o número de desempregados Dinheiro sem valor No início da década de 1920, a Alemanha
passsou de 1,3 milhões para 3 milhões viveu em hiperinflação

Com a prisão
p do seu líder, o NSDAP atra- preparado por Goebbels. Houve ainda um A crise de 1929 abriu uma nova fase pro-
vessou um período de crise, dividindo-se. Por esforço para fazer penetrar a sua influência missora para o Partido Nazi. Com a econo-
outro lado, a situação económica melhorou na junto dos colarinhos brancos e para ganhar, ou mia a entrar numa depressão prolongada, os
Alemanha, enquanto o pagamento das dívidas pelo menos neutralizar, os industriais. Foram alemães, que sofreram de forma avassaladora
de guerra ffoi reprogramado. Terminava aqui igualmente criadas organizações nazis que o custo dos cortes salariais, do desemprego
o primeiro período de êxito do NSDAP. Deste ajudaram a enquadrar os diferentes grupos e da inflação sentiram-se defraudados pela
fracasso re
resultaram algumas aprendizagens socioprofissionais de filiados, para os quais democracia de Weimar e pelos partidos do
que haveriam
haveri de contribuir para os futuros a propaganda era especialmente preparada. sistema. O descontentamento alimentou a
sucessos. Hitler
H teve de repensar a sua estraté- O antissemitismo, a criação de um «Espaço votação nos partidos de protesto, como o
gia para alcançar o poder. Desistiu da ideia Vital» para o povo alemão e o anticomunismo Partido Nazi e o Partido Comunista, cujas
de imitar
im Mussolini e compreendeu que eram elementos importantes desta ideologia, organizações paramilitares se defrontavam
precisava de mais apoios no seio do
pre que mesclava a herança de um passado mítico nas ruas, deixando o país à beira da guerra
poder político e do Exército do que
p com uma visão utópica para o futuro, que pas- civil. Como explicar o êxito do NSDAP, a
aqueles que conseguira em 1923. sava pela criação de uma comunidade nacional sua capacidade para atrair votos e filiados,
Em particular, necessitava seguir homogénea, racialmente pura, que permitisse sobretudo entre os que foram mais afetados
o caminho legal, parlamentar, ultrapassar as divisões de classe. A mensagem pela crise? Dois fatores explicam o sucesso na
para destruir a democracia, con- era capaz de apelar aos ressentimentos de vá- viragem da década e estão ligados a questões
quistando o eleitorado. rios grupos. No entanto, nas eleições de 1928 internas, de organização e estratégia do par-
o NSDAP apenas conseguiu 2,6% dos votos. tido, e externas, relacionados com a situação
Ideologia e propaganda socioeconómica. A propaganda foi capaz de
Hitler saiu da prisão no final de difundir entre uma audiência diversa uma
11924, muito antes de a pena termi- ideologia tosca e pouco coerente, mas eficaz,
nar. Iniciou então a reorganização
n cuja mensagem se centrava na oposição ao
do NSDAP, cuja proibição fora,
d Mussolini era um modelo parlamentarismo da República de Weimar,
eentretanto, revogada. Refundado para Hitler, influenciando no ataque ao Tratado de Versalhes e ao «ju-
eem 1925, foi capaz de impor a sua deo-bolchevismo», na ideia de renascimento
liderança e ultrapassar o facciosismo.
lid
aspetos como o culto nacional e de nacionalismo radical. Hitler
Apostou na propaganda, agora muito
Ap da personalidade tinha em torno de si um grupo de homens
focada na ideologia do «sangue e solo»,
foca ou levando à adoção de fiéis, alguns dos quais o seguiram até ao
que conquistará os pequenos e médios alguns símbolos, como a fim, e organizações como a SA e a SS, que se
proprietários agrícolas, que aderiram
prop ocuparam dos opositores e dos dissidentes.
do Partido
P Nazi, cujo número de filia-
saudação fascista. Hitler Na verdade, o colapso do sistema político
dos cresceu de forma exponencial. O ambicionava fazer uma democrático de Weimar antecedeu a chegada
«mito do Führer» foi cuidadosamente
«mi «Marcha» sobre Berlim de Hitler ao poder e foi uma pré-condição

VISÃO H I S T Ó R I A 41
FASCISMOS // ALEMANHA
FOTOS: GETTY IMAGES

Eleições para o Reichstag Nas primeiras eleições de 1924, Barricada nas ruas de Berlim, 1929 As alterações da ordem pública
o NSDAP obteve 24 lugares; em 1930, elegeria 107 deputados facilitariam a ascensão do nazismo

para que tal acontecesse. Quando foi implan- figuras de proa do Exército com os grupos de atingiu severamente a economia alemã,
tada, a República de Weimar recebeu uma he- extrema-direita e as organizações paramili- muito dependente de empréstimos estran-
rança difícil de gerir: a derrota numa guerra, tares, assim como os programas secretos de geiros a curto prazo. Em setembro de 1919
uma pesada dívida de guerra, a contestação rearmamento ou a abertura de escolas na havia 1,3 milhões de desempregados. Num
ao Tratado de Versalhes. O próprio funciona- Rússia para treinar oficiais à revelia do Tra- ano, o número cresceu para 3 milhões e,
mento da democracia parlamentar também tado de Versalhes. Entre a elite militar existia no início de 1933, atingiu os seis milhões.
não facilitava a estabilidade necessária. Era um ressentimento generalizado em relação Num período de agitação social e de pola-
um sistema representativo proporcional, com àquele documento, pelas perdas territoriais rização política, a primeira vítima foi a Gran-
vários partidos com posições diametralmente e pela redução de estatuto político e militar de Coligação que se encontrava no poder e
opostas em diversas questões domésticas e na que representou para a Alemanha. que unia o social-democrata SPD, o Partido
política externa, o que inviabilizava a existên- Apesar destes antecedentes, que ajuda- Democrata Alemão e o Partido do Centro.
cia de governos de coligação estáveis, com ram a pavimentar o caminho para a che- Nenhum outro governo pôde contar com o
apoio de uma maioria parlamentar. Num xa- gada ao poder de Hitler, foi a Depressão apoio do Parlamento. A partir de então, foi
drez político fragmentado, os governos eram que precipitou o colapso. A crise de 1929 o presidente Hindenburg e os que o rodea-
minoritários, instáveis e de curta duração, o vam que passaram a ter o poder nas mãos,
que contribuiu para descredibilizar o sistema. nomeando os governos e governando por
decreto, o que permitiu lançar as bases para a
Esvaziamento do centro criação de um regime autoritário. Manteve-se,
Perante uma paisagem partidária que se pau-
Apesar dos antecedentes, no entanto, longe do populismo dos nazis, até
tava pela divisão socioeconómica e cultural que ajudaram a perceber que, se queria ganhar o apoio das
e pela fragmentação, os partidos políticos pavimentar o caminho massas, teria de se aliar a Hitler.
extremistas cresceram e o centro esvaziou-se. para a chegada ao poder A partir da primavera de 1930, a queda
Por outro lado, a atuação do presidente Paul de governos tornou-se ainda mais acentua-
von Hindenburg, eleito em 1925 após a morte
de Hitler, foi a Depressão da, obrigando os alemães a voltar às urnas
prematura de Friedrich Ebert, não ajudou. que precipitou o colapso. sistematicamente. As eleições, antecedidas
Na verdade, o Presidente usou o seu poder A crise de 1929 atingiu de comícios, manifestações e desfiles, eram
para minar o sistema democrático e nunca severamente a economia marcadas pela violência nas ruas, com o exér-
escondeu que desejava erigir um sistema cito a ganhar uma predominância cada vez
político mais autoritário, contando com o
alemã, muito dependente maior. Nas eleições de setembro de 1930,
apoio dos militares. Desde o início dos anos de empréstimos o NSDAP conseguiu 6,4 milhões de votos
1920 que eram conhecidas as implicações de estrangeiros a curto prazo (18,3%) e 107 deputados. Os melhores resul-

42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
No poder Hitler com o presidente Paul von Hindenburg; em cima,
comício em Nuremberga, 1938

tados foram obtidos nas regiões protestantes e os nazis perdiam os votos de protesto. A Alargamento e consolidação do poder
e agrícolas e nas pequenas cidades do norte violência voltou às ruas e o país caminhava Ao longo de 1933 e 1934, Hitler seguiu uma
e do nordeste. As regiões católicas conti- para uma guerra civil. Hitler teve mesmo política de «coordenação» (Gleichschaltung)
nuaram a votar no Partido do Centro, que de apaziguar a atmosfera de violência, pois que lhe permitiu alargar e consolidar o poder.
manteve ao longo da República de Weimar temia que esta minasse os seus esforços de O sistema em que se movimentou era com-
uma votação estável, enquanto o eleitorado aproximação ao Exército, aos proprietários plexo, marcado por rivalidades entre vários
das áreas urbanas e industriais optou pelo rurais e aos industriais. Para as elites alemãs, centros de poder e pela luta pela influência.
SPD (Partido Social-Democrata Alemão) negociar com o líder nazi tornara-se inevi- Como Ian Kershaw concluiu, foi o carisma do
ou pelo KPD (Partido Comunista Alemão). tável, pelo que pressionavam o Presidente Führer que desempenhou um papel fulcral
No sufrágio de julho de 1932, o NSDAP era para que o NSDAP integrasse uma coligação no refrear destas tensões e na manutenção
já o partido mais votado (37,8%), com 230 de conservadores nacionalistas, de forma a de uma certa unidade interna.
deputados, mas não era ainda o momento obterem o apoio popular e isso obrigaria a As eleições de março de 1933 já não foram
para chegar ao poder. Hitler impôs como con- que oferecessem a Hitler o lugar de chance- um sufrágio livre, pois o incêndio do Reichs-
dição para participar no governo o cargo de ler. Hinderburg e o seu círculo caíram, no tag foi usado como pretexto para suspender as
chanceler, o que não foi aceite. Hindenburg entanto, num erro de cálculo ao acreditar que liberdades civis e para a prisão de comunistas
ofereceu-lhe o lugar de vice-chanceler, mas seriam capazes de o domesticar e manipular e social-democratas. A Lei de Concessão de
Hitler não quis, causando consternação no no seio de um governo minoritário. A 30 de Plenos Poderes, contra a qual apenas os de-
seio do partido pela oportunidade perdida. janeiro de 1933, Hitler tomou posse como putados do SPD presentes votaram (o KPD
Nas eleições de novembro, voltou a ser o mais chanceler. O NSDAP tinha apenas dois mi- já nem sequer estava no Parlamento), pôs fim
votado, ainda que tenha perdido dois milhões nistros, mas o seu líder era agora o chefe do à democracia. Estes meses foram marcados
de votos e passado para 196 deputados. O governo. Esta combinação de fatores explica, pela violência nas ruas, com espancamen-
efeito da Grande Depressão estava a passar portanto, a chegada de Hitler ao poder. tos e assassinatos. As sedes do KPD foram

Propaganda, eleições
de 1932 Apelo às
mulheres para votarem
em Hitler por ser o
melhor para as famílias
(2º cartaz); «A nossa
última esperança:
Hitler» (3º); «Contra a
fome e o desespero, vota
Hitler» (4º cartaz)

VISÃO H I S T Ó R I A 43
FASCISMOS // ALEMANHA

assaltadas e o partido ilegalizado e banido.


Seguiu-se o SPD, enquanto o Partido do Cen-
tro se autodissolveu depois da assinatura da
Concordata com o Vaticano.
A função pública foi objeto de uma purga,
que afastou opositores e judeus. Curiosa-
mente, desde final de janeiro de 1933 que o
número de adesões ao NSDAP vinha a crescer.
Simultaneamente, o poder dos Estados, os
Länder, foi reduzido e os sindicatos desman-
telados e substituídos pela Frente do Trabalho
Alemão, liderada por Robert Ley.
Com a morte do presidente Hindenburg,
em 1934, Hitler fundiu em si as funções de
chanceler e de Presidente, assumindo o co- Antissemitismo Um grupo de nazis canta para encorajar o boicote às lojas cujos
donos eram judeus, 1933
mando das Forças Armadas, satisfeitas com
as promessas de rearmamento e de uma po- de modelo à implementação de um sistema por transformar a Alemanha numa comu-
lítica externa agressiva. Era, agora, o senhor concentracionário em toda a Alemanha, onde nidade racial pura, livre dos que considerava
absoluto da Alemanha. Para apaziguar as os prisioneiros eram mantidos em condições impuros, como os deficientes, os ciganos, os
tensões com os militares e com a SS, levou a desumanas, sujeitos à violência arbitrária e homossexuais, os «associais» e, sobretudo,
cabo uma purga no seio da SA, que ameaçava forçados a trabalhar. Primeiro administrado os judeus.
fazer-lhe frente, aquando da «Noite das Facas pela polícia, o campo rapidamente passou
Longas», em junho de 1934. para as mãos da SS. Os opositores e inimi- ‘Ein Volk, ein Reich, ein Führer!’
Nos primeiros meses, começou igual- gos raciais do regime foram presos, inter- Os nazis promoveram paradas e eventos de
mente a construir todo o sistema de terror, nados, torturados e assassinados, mas estes massa que difundiram a ideia de unidade em
com a abertura do campo de concentração não eram ainda os campos de extermínio. O torno da liderança carismática de Hitler, sob
de Dachau, em março de 1933, que serviu projeto nacional-socialista passava também o lema «Ein Volk, ein Reich, ein Führer!»

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Execuções públicas na Polónia, 1941 Hilter tinha invadido o país em setembro de 1939, depois de assinar um pacto com a URSS
que previa a divisão do território entre os dois

44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Saudação nazi
Professora vigiando
um grupo de alunos
ao entrar na escola,
por volta de 1933

(«Um povo, um império, um chefe»). No


verão de 1933, as igrejas estavam controladas,
os partidos políticos e sindicatos proibidos, o
Exército e o Presidente neutralizados.
A criação do Ministério da Propaganda
e do Esclarecimento Popular, dirigido por
Goebbels, visava doutrinar as massas atra-
vés do controlo dos media e da cultura. A
«Queima dos Livros» de maio de 1933 foi
um ato simbólico disso mesmo, enquanto a
purga nas escolas e universidades permitiu
afastar professores, limitar e isolar os judeus
e coordenar as matérias com a ideologia
veiculada pelo regime. Foram ainda criadas
organizações que permitiram o enquadra-
mento ideológico da sociedade.
Os instrumentos e as instituições criadas
para exercer controlo, repressão e violên-
cia foram essenciais para explicar a longe-
vidade do Nacional-Socialismo no poder.
No entanto, o apoio das massas mostrou-se
determinante para a manutenção no poder Henrich Himmler rodeado por comandantes das SS, 1932 A repressão e a violência foram
essenciais para manter o Nacional-Socialismo no poder
destas modernas ditaduras. A mais recente
investigação veio demonstrar que grande violência e discriminação. Retirando-se para Economicamente, o renascimento prome-
parte da população alemã optou por adotar a sua esfera privada, para o seu núcleo fami- tido pelos nazis trouxe esperança a alguns
um comportamento conformista perante as liar, adotando um papel de «observadores», grupos socioprofissionais, como os pequenos
novas regras e normas sociais impostas pelo de silêncio, por medo, por indiferença ou por retalhistas, os industriais ou os agricultores,
regime nazi, não participando nas ações de não partilharem os ideais do novo regime. sem que existisse uma política económica

VISÃO H I S T Ó R I A 45
FASCISMOS // ALEMANHA

‘Noite de Cristal’, 1938 Mulheres judias em Linz, Áustria, são exibidas em público com cartazes dizendo «fui excluída da comunidade»,
durante o pogrom que marca o início do envio de judeus para campos de concentração

coerente. A economia foi colocada ao serviço teção do Sangue e da Honra Alemã impediu um «J» nos passaportes, o que vinha dificul-
do objetivo principal do Terceiro Reich, o a relação e o casamento entre judeus e não tar a emigração, tiveram de incluir «Israel»
rearmamento, ao qual foi dada prioridade judeus. O Pogrom de novembro de 1938, e «Sara» nos seus nomes.
máxima. A autarquia, ideia vaga expres- conhecido como «Noite de Cristal», foi um No que diz respeito à política externa, o
sa pela propaganda, implicava a conquis- novo passo nesta radicalização, com sina- Terceiro Reich foi, desde o início, uma ameaça
ta de territórios no leste europeu e estava gogas a serem incendiadas, lojas destruídas para a Europa. Os anos 1930 foram marcados
intimamente ligada à sua política externa e judeus atacados, mortos e enviados para pela tensão ideológica entre o fascismo, o bol-
revisionista. campos de concentração. Identificados com chevismo e o capitalismo. A balança de pode-
A relação entre a indústria, o Partido e o
‘Queima
Estado foi complexa, com os industriais a dos Livros’,
beneficiarem da colaboração direta com o maio de 1933
regime, mas os resultados ficaram aquém das A destruição dos
promessas eleitorais. Tentaram uma política títulos censurados
pelo regime foi uma
dirigista, que não foi bem-sucedida. ideia de Joseph
O Terceiro Reich radicalizou-se ao longo Goebbels, o ministro
da década. A discriminação em relação aos da Propaganda
judeus foi exemplo disso, tendo atravessado de Hitler entre
1933 e 1945
diversas fases. Depois de uma fase inicial, que
passou pela discriminação e afastamento da
vida cultural e de determinadas profissões, a
adopção das Leis de Nuremberga, em 1935,
FOTOS: GETTY IMAGES

veio introduzir duas categorias de cidadãos


e legalizou a discriminação racial. Os judeus
passavam a ser cidadãos de segunda, sem
plenos direitos políticos. A Lei para a Pro-

46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Gueto de Varsóvia, 1943 No ano anterior, 300 mil judeus do bairro tinham sido enviados para o campo de extermínio de Treblinka e assassinados

res criada no pós-guerra estava em mutação e os republicanos apenas foram apoiados pela Em 1938 foi a vez de a Áustria ser anexa-
as pulsões expansionistas poderiam conduzir União Soviética e pelo México. A Grã-Breta- da, algo que o Tratado de Versalhes proibia
o continente a um novo conflito. A Liga das nha e a França, defensoras de uma política terminantemente, e depois, através do Acor-
Nações, que a Alemanha abandonou, não de apaziguamento, optaram por não intervir, do de Munique, foi permitido que Hitler
foi eficaz na defesa da paz. Desrespeitando o anexasse os Sudetas (na Checoslováquia)
Tratado de Versalhes, a Alemanha iniciou o sob promessa de manter a paz. As potências
rearmamento e reintroduziu o serviço militar ocidentais não estavam preparadas para
obrigatório, enquanto a zona desmilitarizada
Grande parte da enfrentar o ditador alemão em defesa dos
do Reno foi ocupada e o Sarre reincorporado população alemã optou pequenos Estados da Europa Central.
no território do Reich, perante os protestos por um comportamento Os EUA mantinham-se fiéis à sua política
tímidos da Grã-Bretanha e da França. Estes conformista perante as isolacionista, enquanto a URSS estava ocu-
sucessos valeram a Hitler a admiração dos pada com a sua política interna. No entanto,
militares e dos alemães em geral.
novas regras e normas o ímpeto expansionista do Terceiro Reich era
Em 1936, a eclosão da Guerra Civil de Es- sociais impostas imparável e, em março de 1939, as provín-
panha veio colocar frente a frente as forças pelo regime nazi, cias checas da Boémia e da Morávia foram
reformistas-revolucionárias e os nacionalis- não participando nas ocupadas e transformadas num protetorado.
tas, parecendo reproduzir, em pequena escala, Em setembro de 1939 a Polónia foi invadida,
a tensão entre as democracias ocidentais e
ações de violência depois de Hitler assegurar a neutralidade
os regimes revisionistas totalitários. A opi- e discriminação. da União Soviética, com a qual assinou um
nião pública olhou para o conflito como uma Retirou-se para a sua pacto de não agressão, que previa a divisão
guerra entre o Bem e o Mal, debatendo-o esfera privada, por medo, do território polaco entre os dois ditadores.
com paixão. Apesar de ter sido travada em A Grã-Bretanha e a França não queriam a
território espanhol, o contexto internacional
por indiferença ou por guerra, mas não poderiam voltar a ser coni-
condicionou o seu desfecho. Enquanto a Ale- não partilhar os ideais ventes com o expansionismo alemão. Tinha
manha, a Itália e Portugal ajudaram Franco, do novo regime início a Segunda Guerra Mundial.

VISÃO H I S T Ó R I A 47
FASCISMOS // ALEMANHA

O antissemitismo
Já em 1919 Hitler se referia aos judeus como «uma raça
lismo que veiculava. Numa carta dirigida a
um camarada do Exército, em 1919, Hitler
referiu-se aos judeus como uma «raça estran-
geira» e defendeu a sua «remoção drástica
e total». Em dois discursos feitos em 1920,
estrangeira» e defendia a sua «remoção drástica e total» Hitler afirmou que os judeus deveriam ser

O
«exterminados», comparando-os a um bacilo.
antissemitismo não era um mero
elemento acessório da ideologia CONTRA OS JUDEUS Um ano depois, mencionava que a «solução
da questão judaica» deveria ser alcançada
nacional-socialista, mas sim a sua Também na Itália vigoraram leis raciais através da «força bruta». Em 1923, deixou a
pedra angular. Os nazis aspiravam ameaça: «Sabemos que quando deitarmos as
14 de julho de 1938
a revolucionar a Alemanha, res- O Giornale d’Italia publica o Manifesto mãos ao poder que Deus tenha pena de vós!»
taurar a «pureza» da raça ariana, da Raça, que desencadeia uma vaga Não conhecemos muitas referências de Hitler
o que implicava lutar contra os seus inimigos de antissemitismo aos judeus nesta fase inicial. Os 25 pontos do
raciais, os judeus. O antissemitismo de Hitler Programa do NSDAP também mencionavam
começou a germinar ainda no período em 22 de agosto de 1938 o «combate ao espírito judaico-materialista»
Recenseamento dos judeus italianos
que vivia na Áustria. Estas influências iniciais e a vontade de excluir os judeu da nação ale-
foram assimiladas na Viena imperial, numa 7 de setembro de 1938 mã. Já em Mein Kampf, o tema dominava
altura em que os preconceitos contra os judeus Começam a ser lançadas em Itália leis raciais aquele que é o manifesto político de Hitler.
estavam amplamente disseminados quer na No entanto, não havia ainda um plano para
literatura quer na imprensa nacionalista. Con- 12 de novembro de 1938 exterminar os judeus, mas sim um ódio om-
Os judeus alemães deixam
tudo, foi apenas nos pós-guerra, com a derrota nipresente. Os judeus começaram por ser
de poder transacionar bens
da Alemanha, país pelo qual combatera, e no identificados, definidos, estigmatizados, se-
período revolucionário que se seguiu, que o 1 de janeiro de 1939 gregados, excluídos do estatuto de cidadãos
antissemitismo assumiu um papel central na Na Alemanha, os negócios e da vida civil e cultural e forçados a emigrar.
sua mundividência. Associando o judeu ao de judeus são banidos Só com a invasão da União Soviética é que
bolchevique, encarava o marxismo como uma o genocídio começou, levando ao assassi-
20 de janeiro de 1942
grande ameaça. Rejeitava a luta de classes, a Os nazis implementam «solução final»: nato de cerca de seis milhões de judeus.
ditadura do proletariado e o internaciona- o extermínio dos judeus Cláudia Ninhos

Auschwitz Birkenau
Fichas de crianças
presas no campo
de extermínio

48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Hitler entre Mussolini e Ciano
O Führer alemão estuda um
mapa com o Duce e o genro
deste, ministro dos Negócios
Estrangeiros italiano

diplomacia emotiva diferenciava, por outro


lado, a aliança ítalo-alemã da franco-britâ-
nica, sendo uma das faces da construção do
culto do líder.
Estes espetáculos, encenados, fizeram da
relação entre Hitler e Mussolini uma repre-
GETTY IMAGES

sentação com significado político, quer para


uma audiência nacional quer, sobretudo,
para audiências internacionais. Os encontros
entre os dois líderes eram a tradução visual da

A relação
mensagem ameaçadora para os outros países
europeus, ao demonstrarem publicamente o
desejo de as duas potências, supostamente

Hitler-Mussolini
unidas por uma ideologia comum, quere-
rem colaborar na construção de uma Nova
Ordem que pusesse fim à hegemonia dos
regimes demoliberais. E isto também teve
Mais complexos do que pode parecer, impacto na balança de poderes e nas reações
os laços entre os dois líderes incluíram de outros países.
Este relacionamento pautou-se pelas
17 encontros pessoais ao longo de uma década complexidades, ambiguidades e tensões,

N
pela hostilidade e pela ambivalência, pela
o verão de 1944, depois de sofrer a independência deste país. No entanto, com adoração e pela inveja. Não é por acaso
um atentado que quase o vitimou, a ocupação da Etiópia e a Guerra Civil de que só em maio de 1939 é que o Pacto de
Hitler recebeu a visita de Musso- Espanha, passou a encarar a Alemanha como Aço foi assinado e que a Itália só entrou
lini. Dez anos antes, a primeira uma aliada preferencial para os seus planos na guerra em junho de 1940. Durante a
viagem que o Führer alemão fez revisionistas que visavam a reformulação da II Guerra Mundial, a Alemanha teve de ir
ao estrangeiro, depois de se tor- ordem europeia imposta por Versalhes. Até em auxílio da Itália nos Balcãs e no norte
nar chanceler, foi a Itália, para se encontrar ao final da década, as relações económicas, de África. Mussolini mostrou-se cada vez
com o Duce. Estes foram dois dos 17 encon- políticas e culturais entre os dois países in- mais dependente da Alemanha, situação
tros que os dois líderes mantiveram. O que tensificaram-se. que culminaria com a ocupação do norte e
unia e dividia os dois homens? A ideologia? Hitler e Mussolini construíram uma rela- do centro de Itália, depois de Mussolini ter
As ambições expansionistas? ção que foi instrumental para alcançar obje- sido deposto, em 1943.
A relação entre ambos é mais complexa tivos políticos e que deve ser compreendida A propaganda procurou esconder tudo
do que pode parecer à primeira vista. A Itá- à luz do significado das representações con- isto. Os encontros pessoais, cara a cara, eram
lia fascista foi um modelo na ascensão de tidas nos espaços onde se encontraram, nos representações cuidadosamente preparadas e
Hitler e do Nacional-Socialismo. O líder nazi gestos feitos, no vestuário que cada um dos difundidas pelos mass media. A propaganda
encarava Mussolini como um exemplo pela líderes usou. Na era da política de massas e da aproveitou para exaltar a relação entre Hitler
forma como assumiu os destinos de Itália, propaganda, os gestos públicos de amizade, e Mussolini, exibindo-se a unidade e a amiza-
resgatando-a da esquerda e transformando-a como as saudações, a troca de medalhas ou de através das visitas triunfais, escondendo as
numa ditadura musculada. No entanto, a re- a correspondência entre os dois ditadores tensões e os preconceitos que se mantiveram.
lação inverteu-se com os sucessivos êxitos de constituíam um conjunto de rituais que fa- Eram novas formas de representação e per-
Hitler na política externa ao longo da década ziam parte da estratégia propagandista que formance das quais as massas, a celebrarem
de 1930. Mussolini receava as pretensões procurava projetar a ideia de uma amizade os seus líderes, passaram a ser uma parte
alemãs em relação à Áustria, pois defendia que unia os povos alemão e italiano. Esta integrante. Cláudia Ninhos

VISÃO H I S T Ó R I A 49
FASCISMOS // PORTUGAL

PORTUGAL DO ESTADO NOVO

COMO SALAZAR
PLANEOU E EXECUTOU
O ASSALTO AO PODER
O mito do «sacrifício pela Pátria» foi pacientemente urdido entre 1926 e 1928.
Mas o futuro ditador tinha um projeto político e a espessura ideológica suficiente
para construir uma espécie de «fascismo de rosto humano». Veja como tudo aconteceu
Por Filipe Luís

50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Salazar no seu
gabinete de trabalho
O ditador português
tinha sobre a secretária
uma fotografia
emoldurada e dedicada
de Benito Mussolini

VISÃO H I S T Ó R I A 51
FASCISMOS // PORTUGAL

ANAIS DA REVOLUÇÃO NACIONAL


Maio-Junho de 1926 A entrada em Lisboa das tropas de Gomes da Costa (de espada erguida) e este general com Mendes Cabeçadas

P
junto de um hospital de campanha (à direita)

or ironia da História, foi num dia com papel nulo nos acontecimentos do 28 de posse e que lhe pede que reconsidere. No dia
25 de abril que António de Oliveira Maio, como o novo Presidente da República, 11 de junho, o comandante militar da cidade
Salazar fez a sua «marcha [pessoal] Óscar Carmona. Sinel de Cordes, que tinha do Mondego, Schiappa de Azevedo, desloca-se,
sobre Lisboa». Nesse dia de 1928, conspirado para afastar, primeiro, o coman- de automóvel, ao Vimieiro, terra do professor,
com efeito, o «mago financeiro» de dante Mendes Cabeçadas e, depois, o general onde este se encontra a passar uns dias, e insiste
Coimbra apanhou o comboio na es- Gomes da Costa, acabara por cair, também, em para que volte a Lisboa. Este ainda cede, e vai à
tação de caminhos-de-ferro da Lusa Atenas desgraça, cansado e doente, na sequência de capital, onde vários amigos o esperam: Mendes
e desceu à capital. E agora, depois de várias um mandato desastroso na pasta das Finanças, dos Remédios, Manuel Rodrigues, Diniz Luís
falsas partidas, era de vez. Aflita com a situação a mais importante do governo, dado o contexto Neto (presidente do Centro Católico). Come-
financeira do País, e depois de o general Sinel do tempo. Não sobreviveria mais do que um ça a construir a sua aura de imprescindível.
de Cordes, anterior ministro das Finanças e, ano e meio, tendo morrido desacreditado. E toma posse. Mas por pouco tempo. A si-
até então, o mais influente militar do novo Curiosamente, Mendes Cabeçadas, demasiado tuação militar e a luta entre fações agrava-se.
regime, ter caído, com estrondo, a ditadura conotado com a «República Velha» e, portanto, Mendes Cabeçadas está por um fio. Salazar dá
militar suplicava pelo «sim» do obscuro civil, com as correntes mais à esquerda da ditadura cinco dias de tolerância ao regime, não sem
beirão natural de Santa Comba Dão e pro- militar, fora o primeiro a lembrar-se de Salazar, antes fazer, no Conselho de Ministros, uma
fessor catedrático em Coimbra. Ciente das dois anos antes (quando presidira ao ministé- ampla exposição pessimista sobre o estado das
condições impostas por Salazar para aceitar o rio), por indicação de um oficial de confiança e Finanças, o que impacienta Gomes da Costa.
cargo de ministro das Finanças, o presidente ex-aluno do professor de Coimbra. O «finan- E é então que, a 17 de junho, Salazar se despede
do ministério, coronel Vicente de Freitas, terá ceiro» ainda aceitara o cargo, em 1926, mas, à de Cabeçadas. E de Lisboa. Aos jornalistas,
bramado: «Sim senhor, plenos poderes, totais, primeira abordagem a Lisboa, nem chegara a declara... nada ter a declarar: «Meus senhores,
absolutos, direito de veto, o que quiser… con- tomar posse. De fino faro político e senhor de volto hoje mesmo para Coimbra. » Não era a
tanto que venha!» uma intuição rara, Salazar olhara para as peças primeira vez, num curto espaço de dias, nem
Quem era Salazar e por que razão era tão dispostas no tabuleiro e concluíra que estava a segunda, se colocarmos o calendário menos
desejado pelos novos senhores, no poder desde conotado com o cavalo errado (Cabeçadas), de uma década atrás (como veremos daqui a
o golpe de 28 de Maio de 1926, evento ago- na corrida ao poder. Em dois dias frenéticos, pouco) que voltava costas às intrigas da capital,
ra conhecido como «Revolução Nacional»? entre 4 e 5 de junho de 1926, identificara, de intrigas que costumava diagnosticar e execrar
Um a um, os líderes da «Revolução de Maio», forma certeira, as tensões internas na ditadura, em poucas horas de observação silenciosa e
como também era chamada, Armando Ochoa, farejara as fraquezas do seu patrono, Mendes calculista.
Mendes Cabeçadas, Gomes da Costa, todos Cabeçadas, e sinalizara as ambições de Sinel.
foram caindo. Repetindo um clássico, a re- Voltou a Coimbra. Guardando reserva sobre A preparar o terreno
volução devorara os seus filhos. E ao poder as suas reais intenções, recebe, logo a seguir, o Agora, dois anos depois, vinha para ficar. Per-
ascendiam, agora, aderentes de última hora, seu amigo Mendes dos Remédios, que tomara cebera que as condições estavam reunidas para

52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA/AML

ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA/AML


4 de junho de 1926 Salazar à chegada à capital, com Mendes dos Remédios e Manuel Rodrigues

facilitar a sua ambição e a aplicação do seu empréstimo de 12 milhões de libras pedido não se me exija que chegue ao fim em poucos
projeto político-financeiro. A abrir o seu dis- às Nações Unidas revelara-se um beco sem meses. No mais, que o País estude, represente,
curso mais famoso – e fundacional do que viria saída. A comissão de peritos financeiros que reclame, discuta, mas que obedeça, quando
a ser Estado Novo – Salazar não estava a ser se haviam deslocado a Portugal, qual troika, chegar a altura de mandar.» Paulatinamente, o
completamente sincero quando, dirigindo-se tinham imposto que as finanças do País fossem «estudo», a «representação», a «reclamação»
a Vicente de Freitas, afirmou: «Não tem de controladas por uma delegação estrangeira de e a «discussão» foram caindo, sobrando, no
agradecer-me ter aceitado o encargo, porque credores, instalada em Lisboa e com a última final, a obediência.
representa para mim tão grande sacrifício palavra sobre as políticas públicas – uma situa-
que, por favor ou amabilidade, não o faria a ção inaceitável que a ditadura recusou, perante O plano e os homens de Salazar
ninguém. Faço-o ao meu País, como dever de a aclamação patriótica do País, em gigantescas E como é que Salazar construiu a sua aura de
consciência, friamente, serenamente cumpri- manifestações que invocavam as bravatas pós homem indispensável? Em 1926, as funções
do.» Ora, ele tinha trabalhado intensamente ultimaum inglês de 1890. de Presidente da República e chefe do gover-
para aquele momento. Mas as manifestações patrióticas não resol- no confundiam-se, embora o poder estivesse
Com efeito, o novo ministro, investido dos viam o problema financeiro. Salazar, talvez. No diluído entre os cabecilhas do Movimento
plenos poderes que havia exigido, mantive- mesmo discurso de tomada de posse de um Nacional. Mendes Cabeçadas, da Marinha,
ra, naqueles dois anos, uma intensa disputa cargo que só aceitara quando sentira a situação acumulava, nominalmente os cargos e, a 3
com Sinel de Cordes, relativamente às grandes suficiente madura para que pudesse controlar de junho desse ano, forma Governo com oito
opções políticas relacionadas com o urgente os militares, primeiro, e depois servir-se deles ministros, quatro dos quais civis, e três de entre
saneamento financeiro do País. Toda a sua para se manter no poder, acabou por preferir a estes professores de Coimbra (além de Salazar,
paciente construção narrativa, em impactantes frase que definiria os próximos 40 anos: «Sei Mendes dos Remédios – Instrução, e Almeida
artigos de jornal ou intervenções públicas, muito bem o que quero e para onde vou, mas Ribeiro, Justiça). Diga-se que Salazar, nesta
eram libelos demolidores contra a política se-
guida no Ministério das Finanças. Na verdade,
Salazar, que se sabia desejado pela ditadura, e
ainda mais por ter demonstrado desapego do
Salazar publicou
Poder e por continuar a fazer-se difícil, urdia no jornal católico
pacientemente a sua teia para que, no final da Novidades uma
jornada, ele fosse visto como o homem provi- série de artigos
dencial. A sua pugna pelo equilíbrio orçamen-
tal, explicada passo a passo por contraste com
atacando a política
as políticas de Sinel de Cordes, constituíra-se económica
como uma sólida alternativa política. O grande de Sinel de Cordes

VISÃO H I S T Ó R I A 53
53
FASCISMOS // PORTUGAL

ascensão, esteve longe de ser um solitário: evoluindo, captando o ar do tempo: a marcha cópias do modelo italiano sobreviria com a
Manuel Rodrigues, Cabral de Moncada, Nobre sobre Roma, de Benito Mussolini, e mais tar- Constituição plebiscitada em 1933 (em que
de Mello, Gonçalves Cerejeira, Bissaya Barreto, de o «biénio negro« de Primo de Rivera, em as abstenções contaram como votos a favor…),
Mário de Figueiredo e um influente padre de Espanha, e outros aggiornamentos de cunho que institucionalizava o Estado Corporativo.
origem britânica (embora nascido no Peru) conservador e totalitário, no centro-leste eu- Um modelo que pretendia substituir a luta
e enviado do Papa Pio XI a Portugal como ropeu (Letónia, Estónia, Áustria, Hungria, de classes preconizada pelo marxismo pela
emissário apostólico, Mateo Grawley-Beevey, Jugoslávia, Polónia, Roménia, Bulgária, Al- cooperação entre patrões e trabalhadores (e em
foram outros do núcleo duro salazarista de bânia, Grécia, Turquia, todos com regimes que, na prática, o Estado acabava por se colocar
Coimbra que levou ao colo o líder natural do autoritários de cunho direitista). O seu sistema ao lado do mais forte...), mas que, no modelo
grupo, até ao poder. foi muito construído em torno da resistência salazarista, existia mais na forma do que na
Um militar do 28 de Maio, o major de Arti- ao perigo bolchevista, emanado da Rússia pagã substância. Ao ponto de um corporativista
lharia, Pedro d’Almeida, falara a Mendes Cabe- de Vladimir Lenine. Salazar, que admirava convicto, como Marcelo Caetano, ter desaba-
çadas dos eminentes professores de Coimbra Mussolini pela sua obra social e de fomento fado que se vivia «num estado corporativo…
que podiam ajudar o País, entre os quais Sala- de obras públicas, bem como pela «ordem» sem corporações». Na verdade, o slogan dos
zar, de quem tinha sido aluno e de quem dizia trazida a Itália depois da guerra civil de baixa anos 1930 – «Quem vive? Portugal, Portugal
Portugal! Quem manda? Salazar, Salazar, Sa-
lazar! » era um programa político literal e um
Novembro projeto paternalista unipessoal.
de 1932 Salazar
e o ministro do
Comércio, Indústria
Ministro-sombra das Finanças
e Agricultura, Em 1926, Salazar intui que falta uma clarifica-
Sebastião Ramires, ção, para que, em caso disso, ele possa governar
cumprimentam tranquilamente. Clarificação que já existe em
Carmona no dia
do seu aniversário
1928. Pelo meio, um golpe palaciano afastara
Gomes da Costa e colocara Carmona em Be-
lém, tudo manobrado, na sombra, por Sinel
de Cordes, que assume o lugar no Ministério
das Finanças. Sinel pede o tal empréstimo de
12 milhões de libras esterlinas e nomeia uma
comissão, presidida por Salazar, para elaborar
um projeto de reforma tributária. Com a di-
tadura a fazer face a várias contrariedades – o
défice a aumentar, revoltas militares – uma
O SÉCULO/ANTT

aguerrida coligação de velhos republicanos


declaram, na imprensa internacional, que não
se responsabilizam por qualquer empréstimo
que o regime venha a contrair. É desta altura a
maravilhas. Salazar, não sendo abertamente intensidade que a «bota» viveu no período formação da Liga de Paris, um agrupamento
monárquico, era um descrente da República. entre o final da Grande Guerra (1914-18) e de opositores no exterior e com aderentes no
A desordem, o contraditório, o debate faziam- 1922, desconfiava, porém, do espavento mus- interior, de que se destacam nomes como Afon-
-lhe confusão. Em 1921 fora eleito deputado soliniano, do paganismo inerente ao fascismo, so Costa, Aquilino Ribeiro, António Sérgio,
pelo círculo de Guimarães nas listas do Centro da violência e da liturgia fascista. É verdade José Domingos dos Santos, Álvaro de Castro
Católico e exercera o mandato durante apenas que chegou a ter, em cima da sua secretária, e Jaime Cortesão.
um dia, apanhando, logo depois, o comboio, de em São Bento, uma foto autografada do líder Salazar anda aceita prestar a colaboração
volta à tranquilidade da sua cátedra coimbrã, italiano. Mas o «grande homem» tribunício, solicitada pelo regime. Os militares, que o
horrorizado com a liturgia parlamentar, feita o das fanfarras e das fanfarronadas, era visto sustentarão até à queda da cadeira, em 1968,
à base da «gritaria» dos partidos. Inicialmente por Salazar com uma certa condescendência. continuam a dever-lhe favores – e será ele,
imbuído da ideologia democrata-cristã, evo- Posteriormente, a formação de instituições no futuro, quem os salvará, regenerando as
luiu para um pensamento antidemocrático e decalcadas do totalitarismo italiano e alemão, contas e impondo a ordem do Estado Novo e
antiparlamentar que muito ficou a dever-se como a Legião Portuguesa ou a Mocidade Por- a famosa «Situação».
ao extenso «PREC» republicano e às lutas tuguesa, foi sempre mais uma concessão às Em junho de 1927, Salazar entrega a Sinel
entre fações a que, escandalizado, assistia. Pode modas da época do que uma partilha de poder o seu projeto de reforma tributária, um docu-
dizer-se que o seu pensamento ideológico foi por milícias ou grupos de pressão. Outra das mento que era muito mais do que um estudo

54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
SNI/ANTT
Salazar com António Ferro O novo chefe do Governo concedeu, em dezembro de 1932, uma longuíssima entrevista (publicada entre
19 e 23 desse mês no Diário de Notícias) ao homem que dirigiria depois o Secretariado de Propaganda Nacional

fiscal, mas que oferecia um autêntico progra- 1928, quando, finalmente, assenta arraiais Os ataques à política financeira do Governo
ma de governo. Mas dá-se, neste momento, em Lisboa, fora minuciosamente preparado, são constantes. Não sem que, em 1927, não
uma rutura decisiva que marcará o futuro do ao longo do último ano. O cálculo político não tenha tempo de viajar, na única vez em que se
País: Sinel de Cordes não só não publica a estivera isento de coragem: ao afrontar Sinel, aventurou além-Pirenéus, numa viagem que o
reforma, como não seguirá nenhuma das suas Salazar enfrentava o homem forte do Regime. levou a Lourdes, santuário mariano de França,
recomendações. Na sua mente um tanto ou Mas ele sabia que estava a constituir-se como e Paris, na companhia do amigo José Beleza
quanto tortuosa, Salazar autoproclama-se uma «reserva da Nação». dos Santos. Depois foi a Bruxelas e a Liège,
espécie de vigilante implacável das finanças para participar no I Congresso da Juventude
nacionais. Tomando Sinel de ponta, seguirá Operária Católica.
passo a passo cada movimento do ministro das Volta a Portugal revigorado. Em novembro
Finanças, demolindo, em artigos, sobretudo escreve sete artigos consecutivos no Novidades
no periódico católico Novidades, e noutras que definem o seu programa de Governo –
intervenções públicas – como uma entrevista embora, por enquanto, apenas para memória
ao Diário de Notícias, logo em julho de 1927 futura. Na sua visão, de nada serve pedir um
– cada uma das suas decisões. Com Sinel em empréstimo externo sem que se equilibre o or-
perda e um novo chefe do Governo, Passos de çamento. A 3 de janeiro de 1928, volta à carga:
Sousa, volta a ser convidado e volta a recusar. «Se não conseguirmos, à custa dos maiores
Uma e outra vez despede os emissários milita- sacrifícios, o equilibro orçamental, os milhões
res enviados a Coimbra, para o convencer. Por que venham do estrangeiro não serão mais do
tanto resistir, vai construindo o mito posterior O semanário que um alívio momentâneo, a ocasião para
do sacrifício pela Pátria. Na verdade, Passos humorístico Sempre algumas negociatas privadas e causa de ruína
de Sousa ainda não era, no faro apurado de para todos nós.» E remata com o exemplo
Salazar, o homem definitivo, como o tempo
Fixe assinalou com britânico, numa das suas frases mais citadas
demonstrou. Nenhum era enquanto durasse grande destaque a sobre a libra: «Sem este verdadeiro prodígio
a estrela de Sinel. O alegado «sacrifício» de criação da Censura de força de vontade, o Plano Cunliffe [que, no

VISÃO H I S T Ó R I A 55
FASCISMOS // PORTUGAL

Plebiscito de 1933 Cartazes


de propaganda da Constituição
do Estado Novo e um momento
da votação, em que as
abstenções contaram
como votos a favor

JORNAL O SÉCULO/ANTT

pós-guerra, implementara a revalorização da total sucesso, granjeando prestígio pessoal fascismo é um produto típico italiano como
libra esterlina e o regresso ao padrão ouro] não internacional. Resta conhecer melhor o seu o bolchevismo é um produto russo. Nem um
poderia ser tão fielmente executado por gover- programa político, depois de se ter revelado nem outro podem transplantar-se e viver fora
nos de vária índole e a libra já não seria hoje… a «mágico» no campo das Finanças. Salazar é da sua natural origem.’ O Estado Novo portu-
libra.» Salazar também estaria atento ao plano bastante claro: «A nossa ditadura aproxima- guês, ao contrário, não pode fugir, nem pensa
de revalorização da lira italiana, imposto, nesta -se, evidentemente, da ditadura fascista, no fugir, a certas limitações de ordem moral que
época, por Mussolini, contra todos os conselhos reforço da autoridade, na guerra declarada a julga indispensável manter, como balizas, à
dos seus economistas, e levando a fome a Itália, certos princípios da democracia, no seu caráter sua ação reformadora.»
mas que acabou por resultar, tornando o estado acentuadamente nacionalista, nas suas preo- Claro que, em 1930, ainda como ministro
italiano uma potência média mais respeitada cupações de ordem social. Afasta-se, porém, da Finanças mas já o homem forte – e o sal-
pelos mercados financeiros. Nesta altura, o nos seus processos de renovação. A ditadura vador! – da ditadura, Salazar fundara a União
pensamento ideológico de Salazar era ain- fascista tende para um cesarismo pagão, para Nacional, cujo nome dizia tudo: um partido
da marcadamente tecnocrático, o que casava um Estado Novo que não conhece limitações único autorizado que, em 1933, fundará a
bem com o seu conservadorismo católico e a e ordem jurídica ou moral, que marcha para PVDE, precursora da PIDE, e, em 1936, a
sua aversão às dinâmicas da democracia e do o seu fim, sem encontrar embaraços ou obs- Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa,
parlamentarismo. E é neste cadinho que vai táculos. Mussolini é um admirável oportu- mimetizando organizações do nazi-fascismo
construindo o seu projeto político. nista da ação… [Mas] ele próprio o disse: ‘O (como a Juventude Hitleriana). Na verdade,
das três instituições apenas a polícia política
O fascismo de rosto humano servirá de ferramenta todo-poderosa de sus-
Em 1932, Salazar ascende ao cargo de presi- tentáculo do regime, configurando-se, algumas
dente do ministério (chefe do Governo), subs-
Na proibição dos vezes, como um estado dentro do Estado. As
tituindo Domingos Oliveira, o 3º primeiro-mi- partidos, Salazar outras duas serviam, sobretudo, os propósitos
nistro com quem trabalhara, depois de Vicente incluiu o «seu» cénicos da propaganda salazarista.
de Freitas e Ivens Ferraz. António Ferro, que Centro Católico Na Constituição de 1933 surge uma espécie
será o propagandista do regime e o ideólogo da de presidencialismo do presidente do Conselho
«política do espírito» do salazarismo, faz-lhe
Português, pelo qual (chefe do Governo) com o poder executivo a
uma série de entrevistas, depois reunidas em fora no passado eleito sair consideravelmente reforçado. Para desfa-
livro. Salazar já cumprira o seu programa com deputado zer um paradoxo do regime, que coloca quem

56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
efetivamente manda (Salazar) sob a apresenta o seu projeto ideológico,
tutela de quem devia mandar (o Pre- plasmado na Constituição de 1933 de
sidente da República), António Ferro que cumprirá, na prática, os preceitos
inventará, mais tarde, um «ovo de mais «convenientes». A 29 de julho
Colombo» político: «O senhor mare- de 1933, Salazar proíbe a atividade da
chal Carmona é a ditadura e o senhor fação nacional-sindicalista de Rolão
prof. doutor Salazar é o ditador!» Preto e assina um decreto a extinguir
Na proibição de partidos políticos, o movimento fascista. Rolão Preto
Salazar inclui o «seu» Centro Cató- é exilado.
lico Português, por quem tinha sido
eleito deputado em 1921. Os próprios Requiem por um regime
estatutos da União Nacional defi- Isola-se no gabinete de trabalho de
nem-na, não como um partido, mas S. Bento e fomenta a imagem do sal-
como uma «associação cívica» que vador da Pátria, o trabalhador incan-
tem a missão de promover e assegu- sável que se sacrifica por ela. Nasce
rar, dentro da ordem política vigente, o mito, apoiado em ideólogos como
a prossecução e a defesa dos objetivos António Ferro, estetas como Leitão
da Revolução Nacional de 1926 e dos de Barros ou empreendedores como
princípios que inspiram a Constitui- Duarte Pacheco. As obras públicas
ção – onde, além das corporações, se do regime têm, na população, um
admitem outros valores nunca cum- impacto psicológico de ressonância
pridos, como as liberdades públicas italiana.
e políticas. Salazar recusa o epíteto Portugal é um «paraíso» parado
do totalitarismo, aplicado à UN: «Se no tempo, moldado pelo wishfull
fosse totalitária, teria significado de thinking de Salazar: a industria-
‘partido único’ em substituição de Sorridente A reportagem de imprensa destacava o facto inusitado lização adiada ou dependente do
todos os outros que a Revolução ba- de Salazar aparecer a sorrir em público Estado, a um passo da guerra colo-
niu. A ideia de unidade perfeita, de nial e da emigração em massa. Uma
forte coesão, de completa homogeneidade, se declara nacional-sindicalista e abertamente bomba-relógio.
clara e decidida no nosso espírito e na nossa fascista, sob o modelo italiano. Em 1933, já com A inteligentzia nacional é asfixiada e perse-
ação relativamente a este organismo, não exige os ventos da História a soprarem fortemente a guida. Os opositores implacavelmente banidos,
o exclusivismo partidário (…) A UN não é, favor do movimento fascista e Hitler instalado presos, torturados ou mortos. Portugal arras-
pois, um partido e, se o fosse, não poderia, sem no Reichstag, Salazar é confrontado com a ta-se e perde fôlego. A perda das possessões na
violência, ser o único – e deve ter a aspiração crescente popularidade, entre alguma elite, do Índia abalam a fé num Portugal uno, aquém
de contar no seu grémio o maior número pos- movimento fascista liderado por Rolão Preto, e além-mar. Como um kamikaze, atira-se,
sível de cidadãos e até de coletividades.» Para que quer ultrapassar o incipiente Estado Novo finalmente, para a guerra colonial. Isolado, or-
Salazar, um partido único não podia subsistir pela direita, opondo a rutura revolucionária à gulhosamente só, Salazar é uma fera acossada.
«sem violência», mas é isso mesmo que vai conciliação corporativista. Salazar, por feitio e No dia 3 de agosto de 1968, Salazar cai de
acontecer, ao longo da ditadura, sob o eufe- ceticismo intrínseco, alérgico aos movimentos uma cadeira de lona na residência de verão,
mismo hipócrita do «safanão dado a tempo». de massas, tem um programa totalmente opos- no Forte de Santo António do Estoril. Um mês
to: domesticação dos militarismos, conciliação depois é operado a um hematoma na cabeça.
A luta contra os fascistas duros com a religião, travão à agressividade da turba. Depois sofre um acidente vascular e já não
Um dos primeiros safanões é dado, precisa- Descontrolado, Rolão Peto é um adversário recupera. Morre a 27 de julho de 1970.
mente, à extrema-direita. Francisco Rolão Pre- temível que põe em causa todo um programa Jaz numa cova simples, sem mausoléu,
to, uma das figuras do Integralismo Lusitano de normalização e pode dinamitar o projeto em campa rasa, no pedaço do seu torrão
cultoras do Antigo Regime pré-constitucional, rural salazarista de «viver habitualmente». natal. Morria como viveu: em simplicidade
que, na juventude, se havia juntado a Paiva A sua prioridade é, pois, impedir que Rolão e voluntária pobreza. Para quem não tinha
Couceiro, na resistência à República, começa a Preto ganhe simpatias no Exército e desative a gastos nem prazeres – à exceção do copinho
colaborar com a ditadura militar logo no 28 de elite fascista. Prudentemente, procrastina, face diário de vinho do Porto – era um homem
Maio e pretende alçar-se como ideólogo de um às ambições restauracionistas dos monárqui- rico, a comandar um país pobre, ao qual, à
novo tempo. Licenciado em Direito pela Uni- cos, apoiando-se sempre nas Forças Armadas, sua imagem, retirara todas as ambições de
versidade de Toulouse, é um intelectual que se cuja Revolução – a do 28 de Maio – tinha salva- riqueza e crescimento. Depois dele, viria o caos.
inscreve na vanguarda revolucionária fascista e do com a sua competência tecnocrática. Depois Ou outro 25 de Abril.

VISÃO H I S T Ó R I A 57
FASCISMOS // PORTUGAL

O salazarismo foi um
Fernando Rosas
Professor emérito
e professor catedrático jubilado

N
da Universidade Nova de Lisboa

um dos seus «discursos fundadores» do novo regime, de alianças entre setores significativos das direitas políticas e dos
proferido a 30 de julho de 1930 com o objetivo de enun- interesses crescentemente radicalizados e os movimentos fascistas
ciar os «Princípios Fundamentais da Revolução Política», de base pequeno-burguesa e plebeia. Os distintos tipos de relações
Salazar pronunciou-se nestes termos acerca da relação de força que essa aliança traduzia deram origem a regimes fascistas
do regime emergente com a vaga de novas ditaduras de características diferenciadas. Mas o facto de em relação ao con-
de tipo fascista que varria a Europa: «Com motivos de junto deles se poder falar de regimes fascistas ou de tipo fascista,
ocasião no eclodir, sem dúvida; com a cor local que lhe dá a especial significa que têm características essenciais que lhes são comuns,
gravidade dos nossos problemas, certamente; mesmo que algumas delas, como veremos, pos-


com a modalidade que haviam de imprimir-lhe sam surgir mais nítidas ou mais atenuadas em
as circunstâncias da política portuguesa e a certos casos nacionais.
nossa maneira de ser e de sentir, a Ditadura O Estado Novo é um exemplo típico de um
(…) é um fenómeno da mesma ordem dos que regime solidamente hegemonizado pela direita
por esse mundo, nesta hora, com parlamentos
ou sem ele, se observam, tentando colocar o
A esse regime que foi salazarista e os seus seguidores integralistas,
republicanos conservadores, tecnocratas, que,
Poder em situação de prestígio e de força con- o Estado Novo creio em 1933 e 1934, persegue, divide e ilegaliza o
tra as arremetidas da desordem (…). Ir mais Movimento Nacional Sindicalista – a expres-
poder-se atribuir
longe ou mais perto nesta orientação depende
de possibilidades nacionais, sobretudo da pre-
paração do espírito público, mas não constitui
diferença essencial.»
Na sua solenidade programática, a afirma-

a natureza de um
fascismo conservador
são portuguesa do fascismo plebeu – mas que
integra o grosso dos seus militantes no Estado
Novo e nos postos chave para o processo de fas-
cistização do regime (aparelho de propaganda,
controlo dos lazeres, milícias, organização cor-
ção não era um pronunciamento isolado. Nas porativa, órgãos de inculcação ideológica, etc.).
célebres entrevistas com António Ferro em Ou seja, procede a uma integração subordinada
que se tratava de transmutar o «mago das fi- dos «camisas azuis» na aliança fundadora da
nanças» no «’chefe’ da Revolução Nacional», são inúmeras as nova ditadura, tutelada ferreamente pelas direitas oligárquicas
referências ao fascismo italiano e ao Duce, às suas opiniões, ao crescentemente fascistizadas. Ao regime de ditadura antide-
seu estilo e ao seu regime como modelo explícito ou implícito do mocrática e anticomunista, nacional-organicista e corporativo,
«caso português», como bússola, como referente. Salazar não se assente na violência policial (preventiva e repressiva) tendencial-
coíbe, «sem a mais leve hesitação», de explicar ao seu interlocutor mente irrestrita, de aptidão totalitária e partido único, cultor do
a «evidente» identidade essencial dos dois regimes: «A nossa carisma paternalista e clerical do ditador eterno, fautor de uma
Ditadura aproxima-se, evidentemente, da Ditadura fascista no retórica imperialista que mal escondia a violência e as misérias
reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da da sobrexploração colonial, a esse regime que foi o Estado Novo,
Democracia, no seu carácter acentuadamente nacionalista, nas creio poder-se atribuir a natureza de um fascismo conservador.
suas preocupações de ordem social.» Afastava-se dela, porém, É claro que ele declina no pós II Guerra Mundial, remando
«nos seus processos de renovação». contra os ventos da História e progressivamente sem alma já para
Ou seja, estava-se perante regimes de natureza comum, mas de moldar as almas de quem quer que fosse. Mas nada de essencial
realização parcialmente diferenciada. Na realidade, os fascismos mudou (a não ser o mundo). Um fascismo conservador fossilizado
enquanto regimes resultam historicamente de diferentes tipos e decadente foi o que viu Salazar desaparecer.

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
fascismo? Duas visões
em confronto
sobre a natureza
do Estado Novo

Jaime
Nogueira Pinto
Professor universitário e autor

E
de livros sobre História Contemporânea

mbora haja princípios comuns entre o fascismo italiano e Era anticlericalista e antiliberalista e defendia a nacionalização da
o Estado Novo – como o nacionalismo, o antiliberalismo banca e o nacionalismo radical. Era uma doutrina claramente revo-
e o anticomunismo – e até aspetos folclóricos e estéticos lucionária que, para Zeev Sternhell, o teorizador israelita das raízes
paralelos, os dois regimes são muito diferentes, quer na francesas do fascismo, procurava juntar as duas ideologias fortes do
ideologia quer na prática institucional. A identificação re- século XX: o nacionalismo e o socialismo.
sultou sobretudo de uma técnica de amálgama, à esquerda, Depois da Marcha sobre Roma, em outubro de 1922, Mussolini
baseada na reductio ad Hitlerum. Álvaro Cunhal, grande mestre negociou com as forças conservadoras – a Monarquia, o Exército,
nestas matérias de propaganda, gostava de re- a Indústria e a Santa Sé. Foi o preço para o Fas-


ferir-se ao «nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, cismo governar durante cerca de 20 anos. Mas,
Franco e Salazar», percorrendo uma vertiginosa apesar desses aliados conservadores, persistiu
via rápida de Auschwitz ao forte de Peniche, de uma ideologia prometeica, idealista, vanguardis-
Munique a Santa Comba Dão. ta, protagonizada por um partido único, o PNF,
Se as ideias têm consequências, os aconteci- Qualificar como que tinha um papel permanente e decisivo na
mentos também têm consequências nas ideias; e
sem os factos políticos do século XX – a Grande
fascista o salazarismo vida do Estado e da sociedade.
Em Portugal, o Estado Novo nasce do contrato
Guerra, o fim dos Impérios Centrais, a paz pu- é o mesmo que não escrito entre o Exército da Ditadura Militar,
nitiva de Versalhes e a Revolução e conquista
do poder pelos bolcheviques na Rússia – não é
possível entender a História que se seguiu.
A Revolução Comunista não se limitou a eletri-
zar as esquerdas revolucionárias europeias, que,

chamar ‘comunas’
aos dirigentes
e militantes do PS
implantada pelo 28 de Maio, e Salazar. Salazar é um
nacionalista conservador, inspirado no nacionalismo
realista de Maurras e na democracia-cristã dos papas
sociais (que era mais cristã e social que democrática).
Enquanto, seguindo Nietzsche, Mussolini e
em Berlim, em Budapeste, em Varsóvia, tentaram os fascistas pretendiam «viver perigosamente»,
repetir o Outubro Vermelho; acordou também Salazar queria que o País «vivesse habitualmen-
as várias direitas. Estas, perante o genocídio de te», até na crise, até na guerra. A trilogia Deus,
classe russo – que, em nome da História e do Futuro, liquidava senho- Pátria, Família é uma afirmação de valores espirituais, conservadores,
res e servos, elites e classes médias –, resistiram, respondendo quase defensáveis no autoritarismo, mas também em democracia. O sala-
sempre à violência com violência e à brutalidade com brutalidade. zarismo catalisou o cansaço do País em relação à Primeira República
A Europa conservadora, burguesa, liberal, não aguentou a radicalidade Democrática, que tinha sido, na prática, a ditadura do partido de
desta «guerra civil». A reação violenta ao «perigo vermelho» conheceu Afonso Costa, derrubada no 28 de Maio pela convergência de todas
duas modalidades: uma militar, ordeira, que foi apoiada pelos Exércitos as forças vivas do País.
e instalou regimes ditatoriais, autoritários e nacionais conservadores; Salazar não teve partido único, governou com uma tecnoburocracia
outra político-partidária e revolucionária, de rua, que empossou regimes de «competências» de juristas e engenheiros. A União Nacional servia
como o fascismo italiano e os seus émulos na Europa e no mundo. para recrutar os candidatos à Assembleia Nacional e realizar estudos
O fascismo italiano foi um movimento ideológico saído das trin- e congressos em família, e o seu papel não era em nada comparável
cheiras e do protesto pela «vitória traída». Privilegiou a ação direta ao do PNF fascista.
e, perante a abstenção dos corpos de segurança, protagonizou a luta Qualificar como fascista o salazarismo é o mesmo que chamar
de rua e a resistência às ocupações de terras e fábricas lançadas pela «comunas» aos dirigentes e militantes do PS, como faziam alguns
esquerda socialista revolucionária no «Biennio Rosso» de 1919-1920. velhos reacionários a seguir ao 25 de Abril.

VISÃO H I S T Ó R I A 59
FASCISMOS // PORTUGAL

Os camisas azuis
O conflito entre Salazar e Rolão Preto, líder do Nacional-
-Sindicalismo português, é típico da interação entre
regimes conservadores e movimentos fascistas
Por Carlos Manuel Martins*

A
pesar de Salazar ser o nome que que, através de sindicatos e corporações que
mais facilmente vem à mente unissem os elementos da produção, pusesse
quando se fala de ideologias an- termo às tensões sociais e criasse uma comu-
tidemocráticas em Portugal, a nidade nacional harmoniosa. A este projeto
figura que, no nosso país, mais corporativo juntava-se uma propensão para
se assemelhou a líderes como Hi- a dinamização da atividade política que já
tler e Mussolini foi Francisco Rolão Preto. aproximava Preto do fascismo. De facto, ele
O movimento que este liderou nos anos 30 do terá avaliado de forma positiva o movimento
século XX, o Nacional-Sindicalismo (NS), foi de Mussolini no início dos anos 1920, ainda
o que mais se assemelhou às manifestações que estivesse então convicto de que não havia
de fascismo que, no entreguerras, surgiram condições para uma organização desse tipo
um pouco por toda a Europa e, por um breve se desenvolver em Portugal.
período de tempo, representou uma ameaça Assim, foi só depois da implantação da dita-

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à liderança de Salazar e ao regime que este dura militar de 1926 que surgiu a oportunidade
tentava consolidar. Conhecer Rolão Preto e para que um movimento genuinamente fascis-
o NS é, assim, fundamental para se ter uma ta crescesse em território português e para que
ideia mais clara do impacto do fascismo na Preto se tornasse o seu líder. O Nacional-Sin- NS realizou por todo o País uma onda de co-
sociedade portuguesa. dicalismo foi, pois, fundado no verão de 1932 mícios, banquetes e outros eventos marcados
Nascido na Beira Baixa na última década em torno do jornal nacionalista A Revolução, por uma coreografia fascista e pela glorifica-
do século XIX, Francisco Rolão Preto tornou- que fora criado por um grupo de estudantes de ção do chefe. O movimento criou também as
-se, ainda bastante jovem, num defensor da Lisboa e cujo primeiro número vira a luz do dia «Brigadas de Choque», um organismo para-
causa monárquica. Depois da implantação a 15 de fevereiro desse ano. Estes jovens, entre militar destinado ao combate e a atividades
da República em 1910 e da sua participação os quais se encontravam Dutra Faria e António de defesa, e previa a criação de organizações
nas revoltas de Paiva Couceiro, Preto estabe- Pedro, inseriam-se nos setores mais radicais para a juventude e para as mulheres. No es-
leceu-se na Bélgica, contactando com figuras de apoio à ditadura, à semelhança de organi- paço de um ano, a organização de Preto, que
importantes da direita europeia. Regressado zações como a «fascizante» Liga Nacional 28 teve um número de aderentes especialmente
a Portugal, conquistou notoriedade como de Maio. Insatisfeitos com a possibilidade de relevante no norte do País, conseguiu obter
membro do Integralismo Lusitano, um movi- o regime caminhar numa direção demasiado uma boa implantação regional em quase todos
mento nacionalista, monárquico, antiliberal, conservadora, os membros do grupo do Revo- os distritos, sendo a maioria dos integrantes
elitista, e defensor do municipalismo e do lução procuravam influenciá-lo num sentido oriunda da Liga 28 de Maio e do Integralismo.
corporativismo, que foi o principal repre- mais «revolucionário» e convidaram Rolão Ideologicamente, o Nacional-Sindicalismo
sentante da direita radical reacionária em Preto para se lhes juntar. apresentava semelhanças com o Fascismo
Portugal. Uma leitura dos textos de Preto italiano e com a Falange espanhola, ainda que
do início dos anos 20 permite concluir que Camisas azuis e Cruz de Cristo militantes como António Lepierre Tinoco se
um dos principais objetivos que então o gui- Foi sob a liderança carismática deste último, dissessem próximos do Nacional-Socialismo
avam era o de reintegrar a classe operária na que o NS se constituiu como a mais amadu- alemão. Nos textos que Preto escreveu em
causa nacionalista e afastá-la do comunismo. recida manifestação de fascismo português. 1932 reencontramos os temas do corporati-
Por essa razão, advogava uma «monarquia Vestindo camisas azuis, fazendo a saudação vismo e do sindicalismo orgânico, aos quais
social» que tivesse por base um «sindica- romana de braço estendido e usando como se adiciona o culto da juventude típico do
lismo orgânico», isto é, um mecanismo de símbolo a Cruz da Ordem de Cristo, os na- fascismo, bem como uma defesa explícita da
representação que fosse capaz de ultrapassar cional-sindicalistas procuraram dar ao seu ação direta. Ademais, Preto parecia ter aban-
o individualismo do capitalismo liberal e a movimento uma dinâmica mobilizadora de donado a causa monárquica do Integralismo
luta de classes promovida pelo marxismo e massas. No seu primeiro ano de existência, o e, agora que a «questão do regime» estava

60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Saudação romana
Rolão Preto é saudado
por seguidores, à entrada
de um comício,
em 25 de março de 1933

litantes como José Cabral e Manuel Múrias,


que se voltaram contra a liderança de Preto.
O líder do NS, contudo, contou com o apoio
de militantes fiéis, como o secretário-geral
Alberto Monsaraz.
Por fim, Salazar proibiu oficialmente o NS
através de uma nota oficiosa de 29 de julho
de 1934. Pouco tempo antes, Preto dirigira-se
ao Presidente da República, Óscar Carmona,
numa missiva em que era notório o desejo de
que os militares atuassem para substituir o
ditador, o que levara à sua prisão e posterior
exílio em Espanha. Depois da ilegalização do
movimento, dedicar-se-ia a conspirar contra
Salazar, participando inclusivamente no pla-
neamento de um golpe que deveria ter lugar
em setembro de 1935, mas que se revelou um
completo fracasso.
Permanecendo no campo do fascismo até
ao final da II Guerra Mundial, o ex-líder do
NS haveria, contudo, de se aproximar da opo-
aparentemente ultrapassada, substituíra a Preto criticava aquilo que via como o frio sição democrática ao Estado Novo depois do
figura do rei pela do chefe carismático. No conservadorismo de Salazar e, em ocasiões conflito, sem nunca deixar de ver em Salazar
essencial, o NS representou uma tentativa como a do banquete do Parque Eduardo VII o seu principal rival. Assim, Francisco Rolão
de dinamizar e dar um cunho «revolucioná- de 18 de fevereiro de 1933, desafiava-o a se- Preto, que teve um dos percursos mais in-
rio» ao conteúdo ideológico do Integralismo guir um rumo mais radical. O conflito entre teressantes de todo o século XX português,
Lusitano, que a maioria dos fascistas por- o conservadorismo de Salazar e o fascismo haveria de viver o suficiente para ver a queda
tugueses via como demasiado reacionário. de Preto intensificar-se-ia ao fim de poucos da mais longa ditadura europeia a 25 de Abril
O percurso de Rolão Preto (próximo do de meses e não tardou que o ditador tomasse me- de 1974 e celebrar o derrube do regime. Já o
figuras como Georges Valois) foi, portanto, didas para neutralizar a ameaça do NS numa movimento que liderou, ainda que eféme-
o de uma fascização que o levou a passar da altura em que a retórica antissalazarista do ro, permanecerá como o principal exemplo
direita radical para o NS e que teve as suas movimento se radicalizava. Com a Censura do português de um fenómeno político que, na
raízes no desejo de apelar às massas ainda seu lado, Salazar proibiu o jornal Revolução sua época, procurou ir além dos limites da
durante a sua fase integralista. De resto, o e interditou diversos eventos nacional-sindi- direita conservadora para mobilizar as mas-
NS tentou também concretizar o objetivo de calistas. Ademais, procurou criar uma cisão sas e colocá-las sob a liderança de um chefe
chamar a classe operária para o nacionalismo, dentro do movimento, apelando aos setores carismático. Ademais, os conflitos entre o
adotando uma retórica populista e apresenta- mais «moderados» para que estes aceitassem NS e o Estado Novo são exemplo de um tipo
do medidas que melhorariam o nível de vida integrar-se no regime, o que foi aceite por mi- de interação entre regimes conservadores e
dos trabalhadores. movimentos fascistas, que se verificou em
muitos outros países, e que amiúde terminou
O contra-ataque de Salazar com a derrota do fascismo (mesmo que, em
Entretanto, o crescimento deste movimento Ideologicamente, muitos casos, como o português, o regime
de massas, com muitos simpatizantes entre o nacional-sindicalismo conservador acabasse por integrar elementos
os militares radicais, não poderia deixar de apresentava fascistas).
inquietar as elites conservadoras do regime,
bem como o novo presidente do conselho,
semelhanças com * Carlos Manuel Martins é investigador do Ins-
António de Oliveira Salazar, que então pro- o Fascismo italiano e tituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa e autor do livro From Hitler to Codreanu
curava reconfigurar a ditadura. Por seu lado, com a Falange espanhola – The Ideology of Fascist Leaders

VISÃO H I S T Ó R I A 61
FASCISMOS // PORTUGAL

O modelo salazarista
na era do fascismo
O Estado Novo foi um dos principais protagonistas
da difusão de uma terceira via na era do fascismo
e estava sobretudo associado ao corporativismo
como alternativa à democracia liberal

E
m novembro de 1940, cipais características institucionais
poucos meses depois da a liderança personalizada, a repre-
invasão da Dinamarca pela sentação política corporativa como
Alemanha nazi, um círculo alternativa ao parlamentarismo de-
conservador liderado por mocrático liberal, e o partido único
Por
um empresário propôs ao António Costa
construído a partir de cima, olharam
rei que se estabelecesse um regime Pinto para a Alemanha nazi quando elabo-
autoritário de moldes corporativos, Investigador
raram as suas instituições políticas. da esquerda comunista, bem como da direi-
que remeteria para o ditador por- coordenador Mesmo depois de a Alemanha nazi ta fascista». É neste contexto que algumas
tuguês, António de Oliveira Salazar no Instituto de se ter tornado a potência dominante ditaduras, tais como a de Miguel Primo de
e o seu Estado Novo. Em 1941, um Ciências Sociais na Europa ocupada no início da dé- Rivera em Espanha, Dollfuss na Áustria e o
da Universidade de
jornalista do New York Times visi- Lisboa e professor cada de 1940, a criação institucional Estado Novo de Salazar em Portugal, são fre-
tou dez países latino-americanos e catedrático das ditaduras pelas suas elites auto- quentemente associadas a uma terceira via
escreveu um artigo a expressar as convidado na ritárias era frequentemente olhada autoritária, na qual elas desempenharam um
suas preocupações a respeito das Universidade com a relativa indiferença vigilante, e papel proeminente, e que apelava aos intelec-
Lusófona. Publicou
simpatias católicas para com o cor- recentemente por vezes com a hostilidade declara- tuais-políticos de direita radical, bem como às
porativismo, as ditaduras e mesmo O Estado Novo da, do ocupante. O mesmo não pode elites políticas conservadoras do entreguerras.
o fascismo, por todo o continente. de Salazar. ser dito do Fascismo italiano, que Estes regimes eram frequentemente referidos
Uma terceira via
Ele conclui que «repetidamente, era um poderoso modelo de difusão, nos debates acerca da criação de instituições
autoritária na era
ouvia-se de padres e leigos de toda do fascismo particularmente no que respeita à políticas durante a era do fascismo, e quan-
a América Latina a opinião de que Carta del Lavoro corporativa, que do não serviam diretamente como modelos
a ditadura de Salazar em Portugal era um es- foi provavelmente o mais influente e o mais de difusão, eram-no indiretamente. Através
tado quase ideal, e tal parecia ser aceite como copiado dos documentos que regiam as rela- de projetos de constituições autoritárias e de
um ponto de vista católico bastante genera- ções laborais nas ditaduras da década de 1930. instituições políticas, apresentados por inte-
lizado». Uma investigação mais minuciosa Não obstante, existiram muitas variações nos lectuais-políticos, comissões parlamentares
poderia ter acrescentado mais referências, processos de emulação, aprendizagem política ou mesmo ditadores e candidatos à liderança
tanto da Europa como da América Latina, e mesmo promoção de regime (em várias dire- de grupos políticos e grupos de interesse, estes
e não necessariamente de países em que a ções) durante o autêntico laboratório político regimes ofereceram alternativas autoritárias à
cultura política católica era a dominante, mas autoritário que foi a era do fascismo. democracia liberal. Particularmente presentes
a importância do salazarismo e de algumas durante a década de 1930, estes modelos foram
das suas instituições políticas como referência Terceira via autoritária discutidos e por vezes adotados por muitos dos
para os líderes autoritários foi bem captada Quando olhamos para o processo de mudança regimes colaboracionistas instalados nas zonas
por este jornalista norte-americano. de regime político nos anos 30, não é difí- da Europa ocupadas pelo Eixo. O salazarismo
Quando examinamos os modelos das novas cil ver como alguns regimes representavam foi um dos principais protagonistas da difusão
instituições políticas autoritárias da «era do uma terceira via autoritária. Como obser- desta terceira via durante a era do fascismo, en-
fascismo», os mais mencionados nos finais vam alguns estudiosos, especialmente Kurt carnando um modelo corporativo autoritário.
da década de 1930 são o Fascismo italiano e o Weyland, «grande parte da vaga autoritária O modelo salazarista esteve principalmente
Nacional-Socialismo alemão. Contudo, poucas dos anos 1920 e 1930 emanou de um duplo associado à difusão do corporativismo enquan-
destas ditaduras, que tinham como três prin- efeito de dissuasão, impulsionado pelo medo to alternativa à democracia liberal em termos

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
de representação política e social e foi neste também como uma alternativa ao Nacional Ditadores Salazar em Portugal (ao centro),
Primo de Rivera em Espanha (à esquerda),
processo que ele emergiu como referência. Socialismo e ao Fascismo italiano.
e Dollfuss na Áustria (à direita) inspiraram
Enquanto «centro de gravidade» autoritá- As principais características e instituições alternativas autoritárias na Europa e na
rio no período entreguerras, o Estado Novo do Estado Novo, particularmente as que eram América Latina
Português não foi produto da propaganda frequentemente destacadas como modelo, são
ativa ou de um poder efetivo. A sua força de fáceis de descrever. Começando pelo líder: a
atração derivava, essencialmente, dos meios imagem de Salazar era a de um «ditador ca- da gestão das contas do Estado. Sendo um
de difusão internacional de que dispunha tólico» que era simultaneamente conservador ditador «forte», raramente delegava decisões.
(segmentos importantes de organizações e e tecnocrata, reservado e puritano. Mas, apesar de o ditador gozar de notoriedade,
intelectuais-políticos da Igreja Católica) e, Salazar foi um ditador «académico». Era eram as suas instituições políticas que atraíam
sobretudo, do facto de ter liderado um modelo ideológica e culturalmente tradicionalista, an- maior atenção.
de sistema político corporativo e autoritário. tiliberal e também um católico num contexto A Constituição de 1933 estabeleceu as
Como e por que razão o Estado Novo de de secularização e de modernização acelerada. instituições políticas do Estado Novo e foi o
Salazar em Portugal inspirou algumas das Ele defendia firmemente a sua rejeição da produto de um compromisso inicial com re-
novas instituições políticas propostas pelas democracia, favorecendo uma visão «orgâni- publicanos conservadores. Os seus princípios
elites de direita radical ou criadas por muitos ca» da sociedade baseada nos fundamentos liberais eram fracos e os elementos corpo-
destes regimes? católicos tradicionais. A natureza sistemática e rativos e autoritários fortes. Os direitos e as
cartesiana dos seus discursos fornece uma boa liberdades eram formalmente preservados,
A imagem externa do Estado Novo indicação do seu pensamento político. Falava mas foram eliminados por regulamentação
Em 1937, no contexto das diversas publicações sempre para a elite, raramente sucumbindo governamental. A liberdade de associação
produzidas pelo Secretariado de Propaganda aos apelos populistas às massas. Era um pro- existia de jure, mas os partidos foram elimi-
Nacional, liderado por António Ferro, o ditador fessor de Finanças e tinha ideias claras acerca nados através de regulamentação específica.
português resumiu os princípios do seu regime Formalmente, a União Nacional (UN)
em Une Révolution dans la Paix e Comment nunca se tornou um partido único, apesar
on Relève un État (Uma Revolução Pacífica e
A imagem de Salazar de funcionar dessa forma depois de 1934.
Como Construir um Estado). O salazarismo, era a de um A UN era, na verdade, uma variante dos
consolidado durante a década de 1930, era per- «ditador católico» partidos únicos autoritários, geralmente re-
cecionado pelas elites conservadoras da forma simultaneamente presentando uma «coalescência, a partir do
que Salazar pretendia e era definido nestas topo, de vários elementos para criar uma nova
publicações como uma alternativa autoritá-
conservador e identidade política», forçando outras forças
ria, católica e corporativa à democracia liberal tecnocrata, reservado a integrar-se ou a serem excluídas. O fator
e, apesar de partilhar o seu anticomunismo, e puritano determinante é o de que estes partidos foram

VISÃO H I S T Ó R I A 63
FASCISMOS // PORTUGAL

criados numa situação autoritária, na qual o essencialmente católicas. Ambos os grupos de interesse totalmente extraordinário», mas
pluralismo político já se encontrava ausente ou eram mais modestos em escala e mais depen- de todos eles, de Dollfuss a Bruning e Gil
severamente limitado. O impulso para a sua dentes do aparelho do Estado do que os seus Robles, apenas Salazar emergiu como líder
formação partia do Governo, com uma ajuda correspondentes noutros regimes fascistas e de um regime autoritário de sucesso, «que
decisiva do aparelho do Estado, e envolvia autoritários europeus. inspirou a tentativa de fundar uma sociedade
vários graus de compromisso por parte de A principal peça legal da estrutura cor- corporativa em Portugal».
outros partidos ou grupos de pressão que par- porativa foi o Estatuto do Trabalho Nacio- Nas suas memórias, Mihael Manoilescu,
ticipavam na coligação autoritária vencedora. nal (ETN), de 1933, juntamente com a lei um dos mais importantes promotores do
Enquanto presidente da UN, António Sa- do «condicionamento industrial». Embora corporativismo autoritário no mundo do en-
lazar nomeava os deputados do partido para moderado pelas fortes inclinações católicas treguerras, criticou o projeto das instituições
o parlamento. A Constituição mantinha a do ditador, o ETN devia muito à Carta del corporativas da ditadura monárquica do Rei
clássica separação de poderes, mas a câmara Lavoro do fascismo italiano. O Estatuto, que Carol na Roménia (1938-1940), que ele con-
dos deputados tinha poucos poderes; era do- foi aprovado em setembro de 1933, procurava siderava como uma oportunidade perdida,
minada pelo partido único e eleita por sufrágio estabelecer uma síntese do modelo italiano defendendo que, se a Roménia «tivesse im-
direto. O Governo estava, assim, livre de ser com o do catolicismo social. O corporativismo plementado reformas corporativas sinceras e
dominado pelo parlamento. Teoricamente, estava inscrito na Constituição e recebeu um sérias, elaboradas por pessoas que soubessem
os membros da Câmara Corporativa eram papel central na determinação das estruturas o que era o corporativismo, ter-nos-íamos
designados pelas corporações; contudo, na institucionais, na ideologia, nas relações com tornado num Estado corporativo autêntico
verdade, Salazar nomeou até à década de 1940 os «interesses organizados» e na política eco- e sincero, como o português». A carreira po-
a maior parte deles. A Constituição mantinha a nómica do Estado. Esta estreita ligação entre lítica de Manoilescu na Roménia foi muito
mais complexa do que o sucesso internacional
dos seus trabalhos sobre o corporativismo e
o partido único. Ainda assim, ele é talvez o
mais notável exemplo de um intelectual-po-
lítico promotor de instituições políticas da
terceira via autoritária da era fascista, e foi
precisamente por causa disso que ele sugeriu
o modelo de Salazar para a Roménia.
Roma, 1927 Se na América Latina, por exemplo, foi o
A aprovação catolicismo conservador que citou mais o
da Carta del Lavoro modelo salazarista (ver António Costa Pin-
ficou registada to, A América Latina na Era do Fascismo,
nesta imagem,
onde é visível Edições 70, 2019), o que também acontece
a assinatura na Europa, como na Holanda ou na Eslo-
de Benito Mussolini váquia de Tiso, a difusão do salazarismo foi
mais global e fora da subcultura católica.
Na Dinamarca ou na Grécia de Metaxas, o
modelo de Salazar foi também o preferido
Presidência da República, com um Presidente a Igreja Católica e o Estado representava das elites conservadoras ou de direita radical.
eleito por sufrágio direto, e Salazar respondia mais do que uma convergência de interesses; O Estado Novo foi, assim, um dos principais
apenas perante este. O Presidente da Repú- exprimia um núcleo ideológico e político protagonistas da difusão desta terceira via
blica foi sempre um militar, devido ao legado comum que era corporativo, antiliberal e durante a era do fascismo e estava sobretudo
da Ditadura Militar de 1926. Em suma, para anticomunista. associado com a difusão do corporativismo
usar uma frase daquela época, o regime era como alternativa à democracia liberal em
uma «ditadura constitucionalizada». Modelo para católicos termos de representação política e social. Foi
Em 1936, tendo concluído a consolidação conservadores neste processo que ele surgiu como modelo.
do sistema, Salazar autorizou a formação de Com estes traços, é natural que o regime As ditaduras que desempenharam um papel
uma milícia, a Legião Portuguesa, e também português tenha sido apresentado como um proeminente nesta terceira via autoritária, e
estabeleceu a Mocidade Portuguesa (MP) e modelo para vastos segmentos do mundo que tinham uma capacidade de dissemina-
organizações de mulheres. Em resposta às católico conservador durante a década de ção mais importante, foram inquestionavel-
críticas da hierarquia católica, a MP foi rapi- 1930. Como escreveu um padre jesuíta em mente a de Primo de Rivera em Espanha, a
damente «cristianizada» e encorajada a inte- 1937, «os anos do pós-guerra produziram na ditadura de Dollfuss e, a nível mais global,
ragir com outras organizações de juventude, Europa uma sucessão de estadistas católicos o salazarismo português.

64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FUNDAÇÃO AMÉLIA DE MELLO
Protecionismo O Presidente Óscar Carmona e a mulher, presenças assíduas em cerimónias empresariais, assistem, com o ministro Duarte
Pacheco e Alfredo da Silva, patrão da CUF, ao lançamento à água de um navio construído em 1938 nos estaleiros do grupo

Corporativismo, do Governo, tendo alguns deles sido objeto


de inspeções e, num ou noutro caso, de mu-
danças nos corpos sociais.

alternativa económica
As conclusões do inquérito foram apre-
sentadas na Assembleia Nacional (AN) cerca
de um ano depois. Centradas nos «desvios
e vícios de funcionamento» das organiza-
O sistema adotado como doutrina económica do Estado ções corporativas, nem todos imputáveis
Novo funcionou como alternativa entre o socialismo aos efeitos da guerra, o seu tom crítico não
estatizante e o capitalismo sem regras deixou de causar uma certa surpresa num
regime ditatorial. Entre outros aspetos, foram

A
por Clara Teixeira
identificadas «tendências evidentes para o
II Guerra Mundial terminara óleos, da carne ao peixe, das batatas ao feijão. monopólio», «falta de consideração» pelos
com a vitória dos Aliados, Sala- No início de 1946, o deputado Mário de Fi- associados, «falhas de coordenação», «in-
zar mantinha-se no poder ape- gueiredo propôs à Assembleia Nacional um competência», «desonestidade», «falta de
sar dos ventos que sopravam a inquérito «aos possíveis erros, deficiências preparação» dos responsáveis e, ainda, uma
favor da democracia na Europa ou irregularidades» das organizações cor- certa «largueza de disponibilidades» visível
e o corporativismo continuava porativas e dos seus dirigentes. Organismos nas luxuosas instalações físicas de alguns
a ser a ideologia política e económica do Es- como a Comissão Reguladora do Comércio de organismos.
tado Novo. Mas a escassez de alimentos e a Metais, a Federação Nacional dos Industriais Apesar das «imperfeições», o corporativis-
crise nos abastecimentos agravava-se de dia de Lanifícios, a Junta Nacional do Azeite ou mo continuará a ser o modelo económico do
para dia, criando dúvidas sobre a eficácia do o Grémio dos Armazenistas de Mercearias Estado Novo. Os efeitos da Grande Depressão
sistema. Faltava quase tudo, do azeite aos geravam desconfiança nos círculos próximos de 1929 em Portugal, ainda que ténues, cria-

VISÃO H I S T Ó R I A 65
FASCISMOS // PORTUGAL

ram uma oportunidade que Oliveira Salazar


aproveitou para reforçar a intervenção do Es-
tado na economia. A Constituição de 1933, no
artigo 5º, proclamava a «República unitária
e corporativa» e descrevia minuciosamente,
no artigo 34º, os direitos e os deveres do
Estado no «desenvolvimento da economia
nacional corporativa, visando a que os seus
elementos não tendam a estabelecer entre
si concorrência desregrada e contrária aos
justos objetivos da sociedade e deles próprios,
mas a colaborar mutuamente como membros
da mesma coletividade.»
FUNDAÇÃO AMÉLIA DE MELLO

Disciplinar o trabalho
Pouco depois de a Constituição ter sido pro-
mulgada, foi adotado um pacote de leis, da
autoria de Pedro Teotónio Pereira, um dos
principais arquitetos do corporativismo,
composto pelo Estatuto do Trabalho Na-
cional (ETN) e por mais cinco diplomas que Visita Salazar fotografado durante uma deslocação a indústrias conserveiras no Algarve,
regulamentavam os organismos corporativos. na década de 1930. O chefe do Governo só muito raramente aceitava convites desta natureza
O ETN, inspirado na Carta del Lavoro de
1927, um dos pilares da doutrina fascista pliná-la. O mercado estava espartilhado por coordenação, o Instituto Nacional do Pão, a
italiana, definia as condições de prestação leis e regulamentos. Fixação de preços na Comissão Reguladora das Moagens e Ramas
do trabalho, as regras dos contratos coletivos produção e na comercialização, regulamen- e a Comissão Reguladora do Trigo.
e as tabelas salariais e limitava as formas de tação das importações e exportações, contro-
associativismo e sindicalismo nas empresas. lo das taxas de juro e das taxas de câmbio, Produzir sob licença
Em teoria, as corporações tinham a fun- isenções alfandegárias, incentivos fiscais e O condicionamento industrial viria a ser
ção de tentar harmonizar os interesses dos acesso ao crédito bonificado eram matéria do um dos principais instrumentos de política
diferentes grupos num mercado regulado foro das corporações, comissões, institutos, económica do Estado Novo durante as dé-
por um Estado dirigista e centralizador. juntas, grémios patronais, sindicatos, casas cadas de 1930 e 1940. Consistia na criação
O próprio Salazar escreveu, nos anos 1930, do povo rurais e casas dos pescadores (estas de barreiras à entrada de novas empresas
que a suposta «associação voluntária entre últimas também com funções de previdên- no mercado e ao aumento da capacidade
o mundo do trabalho e o mundo do capital cia e assistência social). Desde os anos 1930 de produção instalada, abrangendo setores
desvanece tensões e conflitos entre grupos que as atividades agrícolas e industriais se dependentes da importação de matérias-pri-
e classes sociais e procura afastar o espetro encontravam organizadas em corporações. mas e de produtos intermédios ou ativida-
de que a organização social possa ser o re- Para o trigo, por exemplo, existia a Federação des estratégicas para a economia nacional,
sultado da luta de classes». Mas obviamente Nacional dos Produtores de Trigo (agricul- como as indústrias exportadoras. Na banca,
que os interesses dos trabalhadores nunca se tura), a Federação Nacional dos Industriais a abertura de balcões de rua só era possível
sobrepunham aos dos patrões e proprietários de Moagem e os Grémios dos Industriais da com autorização governamental.
das empresas. Panificação e, ao nível dos organismos de Até à adesão à EFTA, em 1959, o Governo
Para o historiador Fernando Rosas, o obje- adotou um protecionismo rígido e restringiu
tivo do corporativismo foi, afinal, «a repres- fortemente o investimento estrangeiro. De tal
são do movimento operário». Reduziu os maneira que, nos pedidos de criação de novas
custos do trabalho baixando salários, tirando Mesmo sem empresas, a qualidade técnica das propostas
regalias e aumentando os horários, proibiu as nacionalizar ou pouco importava, face à necessidade de pro-
greves, reprimiu as lutas operárias e inviabili- participar no capital teger da concorrência os interesses instala-
zou a capacidade reivindicativa dos operários dos. CUF, Champalimaud ou Banco Espírito
criando os sindicatos nacionais corporativos,
das empresas, Santo foram exemplos de grupos económicos
controlados pelo Estado e pelos patrões. o Estado ganhou que prosperaram à sombra do regime. Por
Embora dando espaço à iniciativa privada, um peso crucial mais que se queixassem, beneficiaram de
o Estado corporativo tentou também disci- na economia condições muito favoráveis ao crescimento,

66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
corporações tão diversas como as da Agri-
cultura, Transportes e Turismo, Comércio,
Indústria, Imprensa e Artes Gráficas, Espe-
táculos, Educação Física e Desportos, e até
na reorientação da FNAT, que se ocupava dos
tempos livres dos trabalhadores. A nova lei
veio apoiar a criação de empresas industriais
em setores como os da celulose, petróleo, side-
rurgia, química e adubos, e dotou o Estado de
uma orientação estratégica para a economia,
executada através dos três Planos de Fomento
aplicados até 1974.
Nesta «segunda vida», o modelo corporati-
vo já não se identificava tanto com o fascismo

FUNDAÇÃO AMÉLIA DE MELLO


italiano, assentando mais nas orientações do
catolicismo social. Mas, apesar dos esforços,
o corporativismo não passou de um discurso
doutrinário, construído em redor do interes-
se nacional, nunca conseguindo afirmar-se
como teoria económica. O próprio Marcelo
Fábrica têxtil A Lei de Fomento apoiou a criação de novas empresas, Caetano, um entusiasta do corporativismo
apesar de continuar em vigor o condicionamento industrial nos anos 1930, veio mais tarde a reconhecer
a existência de «um Estado de base sindical
através de parcerias, proteção alfandegária, corporativa, ou de tendência corporativa, mas
isenções fiscais e créditos bonificados.
Câmara Corporativa não um Estado Corporativo».
Através destes instrumentos, o Estado ga- sem poderes O economista Álvaro Garrido, um dos
nhou um peso crucial na economia. Mesmo Ainda que as corporações só autores e coordenador de Corporativismo,
sem nacionalizar ou participar no capital das tenham surgido posteriormente, Fascismos e Estado Novo (ed. Almedina),
empresas, deixou «marcas indeléveis na for- Salazar criou em 1935 uma sintetizou, por seu turno: «Se nem todo o
mação de uma cultura económica empresarial Câmara Corporativa ao lado da corporativismo foi fascista, todos os fascis-
que se habituou a ambientes de concorrência Assembleia Nacional de partido mos foram corporativistas na medida em que,
protegida e a privilégios especiais», como único, com a função de apreciar em maior ou menor grau, instituíram uma
os projetos de lei do hemiciclo
escreveu José Luís Cardoso, autor de obras organização corporativa da economia e dela
e os diplomas do Governo e
sobre história do pensamento económico. sobre eles emitir pareceres não se serviram para banir a liberdade sindical,
Deste modo, o modelo corporativo procu- vinculativos. Funcionava assim impor a colaboração entre capital e trabalho
rou impor-se como uma terceira via entre o como uma espécie de segunda e ampliar a intervenção do Estado sobre a
capitalismo liberal individualista e o coleti- câmara meramente consultiva, vida económica e social.»
vismo socialista contrário à iniciativa priva- não eleita, de reconhecimento A partir de 1949, o corporativismo coabi-
da. A retórica de Salazar contra «os excessos dos setores-chave da sociedade, tou em Portugal com o keynesianismo, cujas
com os lugares atribuídos por
individualistas e capitalistas», por um lado, ideias começavam a ser estudadas no ISCEF
inerência ou por indicação dos
e o «bolchevismo destruidor da propriedade organismos corporativos. A partir (atual ISEG). Depois da reforma curricular de
e da vontade pessoal», por outro, procurava de 1959, passou a participar Pinto Barbosa (pai), o ISCEF desempenhou
demonstrar que «só um modelo económico na eleição do candidato (único) o papel de «oposição» ao corporativismo,
alternativo poderia corresponder às necessi- para a Presidência da República. criticando o rígido «apelo ideológico» da
dades de criação de riqueza articuladas com Na fase final da ditadura doutrina. Nas suas memórias, o economista
o desígnio de concretização dos superiores funcionava por secções de e ex-ministro Jacinto Nunes, licenciado e,
interesses corporativos, num
interesses da nação.» mais tarde, docente naquela escola, destaca
total de 38 secções económicas
(representativas das atividades um episódio ocorrido no intervalo de uma
Nova vaga corporativa agrícolas, industriais e serviços) reunião do Governo, em que o ex-ministro
Na década de 1950, assiste-se a uma nova e de oito correspondentes a das Finanças e da Economia Ulisses Cor-
vaga do corporativismo, alavancado na Lei áreas governamentais como a tez proclamou ser «keynesiano» e Salazar se
de Fomento e Reorganização Industrial, na defesa, a justiça ou as finanças. aproximou dele para lhe dizer «isso passa-lhe,
criação do Ministério das Corporações e de isso passa-lhe».

VISÃO H I S T Ó R I A 67
FASCISMOS // PORTUGAL

Rua Garrett, Lisboa,


1943 A montra
do Turismo Alemão
foi ocupada com uma
exposição sobre
os dez anos da
chegada de Hitler
ao poder

ESTÚDIOS NOVAIS/BAFCG
rumores que excitam os ânimos desconfiados

As relações entre (…) Houve boatos a propósito do Pacto dos


Quatro e mais recentemente a propósito das
negociações de Ribentropp em Londres: ali

o Estado Novo teria sido a Itália e aqui a Alemanha a pôr


o problema das colónias portuguesas. O sr.
Mussolini declarou terminantemente não

e o III Reich
Salazar preferia Mussolini a Hitler e Marcelo Caetano
ter qualquer pretensão colonial contra os
interesses e direitos portugueses.»
Uma das desconfianças do Presidente do
Conselho dizia respeito à questão colonial. Na
segunda metade da década de 1930, à medida
demarcava o regime português do nazismo, mas o modelo que a política externa nazi se radicalizou, co-
funcionou em pleno quando se tratou de «fascistizar» o País meçaram a surgir boatos acerca da eventual
por Cláudia Ninhos partilha ou venda das colónias portuguesas,
que Salazar prontamente desmentiu. Por um

A
lado, temia-se que o imperialismo nazi se
imprensa portuguesa acom- novo no horizonte», escreveu o jornalista. estendesse a África. Por outro lado, receava-se
panhou de perto a chegada de Apesar da Censura, o República não se coibiu que as potências europeias voltassem uma vez
Hitler a chanceler da Alema- de criticar o novo chanceler, a quem chamou mais a negociar esses territórios como forma
nha, noticiando amplamente «o vagabundo», alertando para a «treslou- de aplacar o ímpeto expansionista alemão,
este acontecimento. A cober- cada teoria da raça» e para a perseguição como acontecera no final do século XIX e
tura dada à formação do novo movida contra os judeus. na véspera da I Guerra Mundial. A tensão
gabinete, no entanto, diferiu consoante o era de tal forma grave que o chefe
posicionamento ideológico de cada periódico. Salazar desconfiava de Hitler da diplomacia nazi em Portugal,
Um editorial de José Ribeiro de Carvalho, A desconfiança em relação a Hitler era igual-
publicado na primeira página do Repúbli- mente partilhada por António de Oliveira Barão
ca de 9 de fevereiro de 1933 e intitulado Salazar, que claramente preferia Musso- Hoyningen-Huene
«Guerra», alertava para o facto de a paz estar lini, de quem tinha uma fotografia O chefe da diplomacia
novamente em perigo, por Hitler represen- sobre a sua secretária. Em entre- nazi em Portugal
dizia que o seu
tar o «espírito de desforra e de revanche». vista a António Ferro, afirmou: governo tinha muitos
«A Guerra, esse espetro sinistro, surge de «De quando em quando há admiradores cá

68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FOTOS: ESTÚDIOS NOVAIS/BAFCG

Mocidade Portuguesa A organização de que Marcelo Caetano (na foto da esquerda, em 1937) foi comissário foi inspirada na Juventude Hitleriana

o barão Hoyningen-Huene, afirmou que as seu país tinha muitos amigos e admirado- MP e FNAT com figurino alemão
colónias eram a «única nuvem negra que res no seio do Governo português. Entre os A Alemanha, à semelhança de Itália, trans-
paira sobre as relações luso-alemãs». amigos, os nacional-sindicalistas estavam formou-se num centro que procurava irra-
Num parecer que redigiu sobre a proposta especialmente entusiasmados. Tal como os diar a sua hegemonia por toda a Europa,
de Acordo Cultural apresentada pela Ale- portugueses, os alemães empenhavam-se em influenciando política e ideologicamente os
manha, Marcelo Caetano defendeu que não demonstrar a existência de um «parentesco outros países. A Mocidade Portuguesa ou a
interessava a Portugal fomentar o ensino da de espírito e de sentimentos». O intercâmbio FNAT, criadas no período de «fascistização»
nossa língua naquele país, uma vez que isso entre organizações nazis e do Estado Novo do regime português, segundo Fernando Ro-
facultaria aos alemães os meios para penetrar foi especialmente relevante. sas, relacionaram-se de forma intensa com
nas colónias portuguesas. Em sua opinião, a Juventude Hitleriana e com a Força pela
não existia qualquer motivo de comunhão Alegria. O próprio regime pediu à Legação
entre os dois povos, nem a nível histórico Alemã informações sobre as organizações
nem racial. E, apesar do «momentâneo ali- nazis. Essa influência começou logo com a
nhamento num mesmo combate anticomu- Acção Escolar Vanguarda (AEV), organiza-
nista», não poderiam esquecer que o regime ção de enquadramento da juventude, cujos
nacional-socialista era «violentamente nacio- símbolos e rituais foram influenciados pelo
nalista e pagão», enquanto o Estado Novo fascismo e pelo nacional-socialismo. O jornal
seria «integralista e cristão», o que levava As visitas de da AEV publicou diversos textos sobre o III
Caetano a concluir, em 1937, que existia «uma Reich, alguns da autoria de Wilhelm Berner,
diferença essencial de valores morais».
intercâmbio entre as então secretário do Grémio Luso-Alemão.
Isto não impediu que as relações luso-ale- organizações dos dois As visitas de intercâmbio entre as organiza-
mãs se intensificassem ao longo da década de regimes foram muito ções dos dois regimes eram igualmente muito
1930, nas esferas cultural, política e económi- fomentadas. Em 1935, fomentadas. Em 1935, António Almodôvar
ca. Embora a atração face ao nacional-socia- visitou o Reich para estudar a forma como o
lismo não tenha sido consensual, uma parte
o presidente da Acção governo coordenou a juventude com a ideolo-
da elite portuguesa recebeu com entusiasmo Escolar Vanguarda gia do regime. O convite feito pelo Ministério
a subida de Hitler ao poder. Estes indivíduos foi convidado da Propaganda de Goebbels foi bem recebido
esforçaram-se, por isso, por demonstrar a pelo Ministério pela diplomacia germânica em Lisboa, que
comunhão de ideias e de ideologias existente considerava que a Alemanha não deveria deixar
entre os dois países e alguns deles estabele-
da Propaganda Portugal livre à atuação da propaganda italiana.
ceram contactos imediatos com a Alemanha de Goebbels Depois da viagem de Almodôvar, e perante o
nazi. De acordo com Hoyningen-Huene, o a ir à Alemanha declínio da AEV, o regime decidiu criar uma

VISÃO H I S T Ó R I A 69
FASCISMOS // PORTUGAL

Desfile da Legião
Portuguesa
Nomeado para
dirigir a organização,
Lumbrales pediu
à Legação Alemã
informações sobre
a SS, para seguir
o modelo

nova organização de enquadramento da juven- «magnético» que procurou atrair para a sua
tude em Portugal. O diploma legal que aprovou órbita os países vizinhos e periféricos. Através
o regulamento da Mocidade Portuguesa frisava de contactos pessoais, de visitas ao Reich ou de
que esta teria «por fim estimular o desenvol- eventos organizados pelas instituições nazis,
vimento integral da sua capacidade física, a a Alemanha esforçou-se por estabelecer um
formação do caráter e a devoção à Pátria, no relacionamento estreito com o Estado Novo.
sentimento da ordem, no gosto da disciplina Vendeu armamento, recebeu missões militares
e no culto do dever militar». Logo em agosto portuguesas, enviou professores e cientistas a
de 1936, pouco depois da sua instituição, cerca Portugal e recebeu bolseiros portugueses nas
de três dezenas de filiados visitaram a Alema- suas universidades, onde os formou e moldou.
nha. Estas viagens, repetidas ao longo dos anos
seguintes, eram ocasiões únicas para trocar Legião Portuguesa, SA e SS
ideias e reforçar afinidades. O relacionamento Esta forte influência alemã não se restringiu
intensificou-se, apesar das críticas do cardeal- à MP, abrangendo também a Legião Por-
-patriarca e de outros católicos, que temiam a tuguesa, a FNAT ou o Instituto para a Alta
preponderância que uma organização de tipo Cultura. Na imprensa alemã chegou a ser
pagão pudesse vir a exercer sobre os jovens noticiado que «numerosos portugueses visita-
portugueses. Mesmo com o início da II Guerra ram a Nova Alemanha: rapazes e raparigas da
Mundial e a substituição de Nobre Guedes por ‘Mocidade Portuguesa’, membros da ‘Legião
Marcelo Caetano como mo comissário nacional da Portuguesa’, colaboradores
Portuguesa, colabora importantes do
MP, o intercâmbio manteve-se, ainda que de chefe do Governo, parapa estudar as instala-
forma menos visível. ções da educação nacnacional alemã». No final
O III Reich transformou-se
sformou-se num campo de outubro de 1936, Huene
H informou o Mi-

GETTY IMAGES
nistério dos Negócios Estrangeiros alemão
que João Pinto da Costa
Co Leite (Lumbrales),
Governo para dirigir a Legião
nomeado pelo Govern
No que diz respeito
espeito Portuguesa, pedira à Legação Alemã infor- difusão ideológica e de propaganda para o na-
onómicas,
às trocas económicas, mações sobre a SA e a SS, de modo a que a cional-socialismo, mas também para conven-
está bem documentada
cumentada LP seguisse esse modelo.
mod Para o diplomata cer o mundo do suposto pacifismo do regime
a receptaçãoo de ouro alemão, era importan
importante que Portugal tivesse germânico. Além disso, a KdF serviu também
como paradigma estas organizações, para que de modelo para a criação da FNAT (Funda-
nda
nazi ou a venda o nacional-s
nacional-socialismo pudesse ser ção Nacional para a Alegria no Trabalho), em
de volfrâmiooà melhor compreendido.
com junho de 1935, três meses depois da primeira
Alemanha, a cujo Também a Força pela Alegria visita de um navio da KdF a Portugal. Este
xigido
embargo, exigido dur Freude, KdF) deu
(Kraft durch intercâmbio era publicitado pelas imprensas
um enorme contributo para uma portuguesa e alemã. O Deutsche Allgemeine
pelos Aliados,
os, maior aproximação
aprox política e cultu- Zeitung escreveu que «as excursões da Força
stiu
Salazar resistiu ral entre Por
Portugal e a Alemanha. As pela Alegria conduziram milhares de operários
tenazmente viagens fora
foram um instrumento de alemães a Lisboa, onde foram cordialmente

70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ESTÚDIOS NOVAIS/BAFCG

GETTY IMAGES
‘Kraft durch Freude’
A instituição alemã que mães, com recurso à mais moderna tecnolo-
serviu de modelo gia. Alguns não se coibiram de demonstrar
à Fundação Nacional publicamente a sua simpatia face a um dos
para a Alegria no lados em contenda, publicando artigos na
Trabalho
(ao lado, fotos imprensa ou crónicas militares comentando
de demonstrações as operações, o que levou o Ministério da
de ginástica das Guerra a atuar, por considerar que isso poria
duas organizações,
em causa a neutralidade do País. O ministé-
a alemã e a
portuguesa) rio teve de proibir os militares de tornarem
organizava excursões públicas as suas posições em relação a qual-
a Lisboa (em cima): quer um dos intervenientes no conflito, bem
«Milhares de
como de fazer circular e afixar, nos quartéis
operários alemães
foram recebidos e em todos os estabelecimentos militares,
como amigos pelos panfletos, postais, gravuras, informações e
habitantes de um documentos relativos às operações militares
país que está ligado
ao nosso pelo
em que o objetivo fosse fazer propaganda de
parentesco de espírito ideias e factos contra ou a favor dos belige-
e de sentimentos», rantes. Foram ainda proibidos de aceitar,
escreveu um jornal sem autorização superior, convites para par-
alemão
ticipar em festas, refeições promovidas pelos
adidos militares estrangeiros, diplomatas e
outros agentes estrangeiros; de assistir, sem
autorização superior, a espetáculos e sessões
de arte e cinema organizados pelos países
beligerantes e de escrever artigos de imprensa
AML

sobre a guerra. Foram assinados contratos de


recebidos como amigos pelos habitantes de um fornecimentos de material, que conduziram
país que está ligado ao nosso pelo parentesco a um incremento das trocas comerciais entre
de espírito e de sentimentos». os dois países, e chegaram a ser enviadas mis-
Uma das sões militares à Frente Leste, com o objetivo
Ligações com a Gestapo de visitar o teatro de operações e conhecer os
e a Abwehr
desconfianças mais recentes métodos de guerra. António de
A própria PVDE, ou mesmo a PSP, estabele- de Salazar em relação Spínola, na altura tenente, participou numa
ceram contactos com a Alemanha, mantendo a Hitler prendia-se «viagem de estudo à Alemanha». No que
relações com a polícia política Gestapo e com com a questão colonial. diz respeito às trocas económicas, está bem
os serviços de inteligência militar Abwehr. documentada a receptação de ouro nazi ou a
Durante a II Guerra Mundial, os militares
Temia-se que o venda de volfrâmio à Alemanha, a cujo em-
portugueses acompanharam a forma como imperialismo nazi se bargo, exigido pelos Aliados, Salazar resistiu
a guerra foi conduzida pelos estrategas ale- estendesse a África tenazmente.

VISÃO H I S T Ó R I A 71
TEMA // CABEÇA

Parada da Vitória
No dia 19 de maio
de 1939 celebrou-se
em Madrid o triunfo
das forças franquistas
na guerra civil terminada
cerca de um mês e meio
antes. O «Dia da Vitória»
seria comemorado
anualmente até 1976

72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ESPANHA FRANQUISTA

GUERRA, FASCISMO,
ADAPTAÇÃO
Mais tardio do que os outros, o fascismo espanhol,
nascido num banho de sangue, impôs-se a si próprio
e ao seu antagonismo como valores universais

VISÃO H I S T Ó R I A 73
FACISMOS // ESPANHA

Por
Manuel Loff
Investigador
do Departamento
de História,
Política e Relações
Internacionais
da Universidade
do Porto e do IHC
da Universidade
Nova de Lisboa

É
verdade que, como acontece com Três vezes Franco Crianças de uma Millán-Astray, 1936), minorias religiosas e
todos os regimes políticos das direitas escola fazem a saudação romana de orientação sexual.
perante retratos do Caudillo e
gerados do período de entre guerras Ao contrário do que sucedera com a vio-
de José Antonio Primo de Rivera
mundiais, o franquismo espanhol só (fundador da Falange) e o crucifixo lência que, nos primeiros meses da guerra,
é inteligível no contexto histórico da milícias camponesas e operárias lançaram
chamada «Era do Fascismo», na qual contra terratenentes, eclesiásticos e dirigentes
todos os fenómenos autoritários reacionários centrais dos regimes fascistas: Franco passa a das direitas comprometidos com o Alzamien-
foram magneticamente atraídos pelo fascismo ser designado como Caudillo todo-poderoso to, a violência franquista foi desde o início
italiano e pelo nazismo alemão. A diferença do Estado espanhol, isto é, de uma entidade organizada e legitimada pelas autoridades
é que foi na própria Espanha que o fascismo política que, exatamente como a Alemanha do Nuevo Estado. Não fora simplesmente a
e o antifascismo ganharam valor universal. nazi ou a França de Vichy, não se assume guerra que a propiciara: o Estado dar-lhe-ia
O massacre de Badajoz (agosto de 1936) ou o nem como Monarquia nem como República. continuidade nos anos seguintes, ao longo da
bombardeamento de Guernica (abril de 1937) Regime tardio na cronologia do fascismo II Guerra Mundial, e fá-la-ia acompanhar de
tornaram-se símbolos do fascismo muito antes europeu, o franquismo nasceu num banho uma rede de campos de concentração e bata-
de Auschwitz o ser. As chefias do Exército, de sangue de uma «guerra de extermínio» lhões de trabalhos forçados (500 mil detidos
aliadas a diversos setores sociais (a Igreja, os (Paul Preston) perpetrada de forma siste- em 1939) que permaneceria operacional até
terratenentes, a maioria da burguesia indus- mática, aldeia por aldeia, cidade por cidade, aos anos 1960, mantendo ativa uma versão
trial) e políticos (falangistas, monárquicos, pelos militares e pelos milicianos falangistas, profundamente punitiva da memória da vi-
católicos conservadores) desencadearam em contra dirigentes das esquerdas, sindicalistas tória, omnipresente no espaço público espa-
julho de 1936 um golpe contra a República operários e agrícolas, ativistas dos direitos das nhol (cerimónias, festividades, toponímia),
democrática que, enfrentando uma decisiva mulheres, professores, intelectuais («¡Muera operando como uma pesada laje de silêncio
oposição popular, degenerou numa guerra que la inteligencia! ¡Viva la muerte!», general humilhante imposto à Espanha dos vencidos.
mobilizou como nenhuma outra as opiniões
públicas de praticamente todo o mundo.
É logo ao fim de dois meses que Francis-
co Franco se assume como o Generalíssimo
Com quase meio
dos exércitos e, simultaneamente, chefe do milhão de exilados,
Estado. O processo de marcada fascização a diáspora
por que passa a coligação das direitas que, republicana sofreu
gerindo a Espanha «nacional» (seria essa
a autodesignação que se daria) durante a
durante décadas
guerra, até 1939, começa logo aí, na adoção todos os reveses
do Führerprinzip, uma das características da esperança

74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
regime, que se prolonga já no pós-guerra, em
1947, com uma aparência de constituição (o
Foro dos Espanhóis) e uma Lei de Sucessão
na Chefia do Estado, de que resultou uma,
também ela, aparente restauração da Mo-
narquia (a Espanha constituía-se em Reino)
mas sem monarca dinástico designado. Dez
anos depois, já conseguido o reconhecimen-
to internacional das potências ocidentais
que seguiram a política norte-americana de
legitimar Franco, fazendo cessar o boicote
internacional decretado contra ele na ONU
em 1946, o setor falangista entreter-se-ia em
nova batalha constitucional de que sairia de
novo derrotado com a aprovação da Lei de
Princípios do Movimento Nacional (1958).
A derrota falangista repetir-se-ia, por último,
em 1966 com a aprovação da Lei Orgânica
Com Fuhrer na secretária A mesa de trabalho de Franco do Estado, com a qual se confirmaria a opção
monárquica (e se escolheria Juan Carlos de
O mais emblemático e sinistro dos seus Institucionalização do regime Borbón para suceder ao Caudillo na morte
símbolos é o próprio Vale dos Caídos (dos No interior, o regime assumiu-se abertamen- deste) e se abria, por fim, a possibilidade de
«caídos por Dios y por España»), inaugurado te até 1945 como um Estado totalitário (o separação entre a chefia do Estado e a Pre-
para a glória do Caudillo em 1959, e cuja «Estado nacional, [um] instrumento totalitá- sidência do Governo (como ocorrerá a partir
gestão e natureza de monumento público rio», Foro do Trabalho, 1938), apoiado sobre de 1973 com a nomeação de Carrero Blanco).
permanecem ainda questões irresolvidas da um aparelho, militar, policial e repressivo
Espanha contemporânea. enormemente hipertrofiado, com instru- Nacionalismo unitarista
Com quase meio milhão de exilados que, mentos clássicos como um partido único (a Ideologicamente, o franquismo fez o que fi-
numa primeira fase, encheram campos e Falange Española Tradicionalista y de las zeram todos os fascismos na sua versão regi-
campos de prisioneiros no sul de França e JONS), resultante, em 1937, da fusão dos me, e, de facto, o que fazem todos os regimes
que aproveitaram todas as oportunidades de setores falangistas, monárquicos e católicos, a políticos quando demonstram capacidade
acolhimento na União Soviética e na América articulação de uma religião cívica de natureza para assegurar continuidade histórica: uma
Latina, a diáspora republicana espanhola política em torno do Caudillo, sacralizado e fusão entre uma agenda própria que pretendia
constituiu uma geração que, como poucas, abençoado pela Igreja Católica, ponto de en- impor à sociedade e um conjunto de valores
sofreu todos os reveses da esperança nas qua- contro das várias famílias políticas (Glicerio tidos como tradicionais, que, bem antes do
tro décadas seguintes: os exilados em França Sánchez Recio) que continuarão, ao longo dos Alzamiento de 1936 e da chegada ao poder
e na União Soviética sofrerão como poucos o 40 anos do regime, a disputar entre si o poder. de Franco, reuniam apoio significativo entre
impacto da II Guerra Mundial, da ocupação Franco esperará por 1942 (criação das os setores sociais que o regime representava.
nazi e da resistência contra ela, e, uma vez Cortes franquistas), ainda em plena fase de Antes de mais, o franquismo cristalizou um
derrotado o nazi-fascismo, aguentarão mais sintonia com as potências do Eixo, para abrir nacionalismo unitarista, de tipo nacional-ca-
30 anos à espera da morte de Franco e da aquela que será uma permanente e delibera- tólico e castelhanista, que pretendia fechar um
possibilidade de regressar a Espanha. damente incompleta institucionalização do processo que permanecera sempre incompleto
de construção nacional da Espanha, que pas-
sava a ter nas identidades étnico-culturais
Com Salazar, Mussolini
e Hitler O Caudillo com periféricas (especialmente a catalã, a basca
o presidente do Conselho e a galega, mas não só) e nos consequentes
português em 14 de nacionalismos separatistas alguns dos seus
fevereiro de 1942 (página
do lado), com o Duce
inimigos principais, o que podia, contudo,
durante a sua visita a manter alguma «[compatibilidade] com um
Itália em fevereiro de certo orgulho local e regional, como epítome
1941 e com o Führer das melhores virtudes da pátria» (X.M. Núñez
aquando do encontro de
ambos em Hendaye, em Seixas), um tipo ambiguidade presente em
23 de outubro de 1940 qualquer outro fascismo.

VISÃO H I S T Ó R I A 75
FACISMOS // ESPANHA

O outono do ditador
Franco com o seu sucessor
designado, o futuro rei Juan
Carlos I, em 1969. Ao lado:
O faraónico monumento do
Vale dos Caídos, mandado
construir por Franco para
comemorar a sua vitória
na guerra civil e construído
sobretudo com mão-de-
-obra de presos políticos
republicanos

Por outro lado, e como ocorria com as di- de inscrição obrigatória, organizações de
reitas mais reacionárias desde finais do século mulheres, milícia, sindicatos verticais com
XIX, o franquismo era antiliberal, antidemo- funções corporativas e de supervisão e con-
crático, acima de tudo anticomunista. A sua trolo do lazer operário), criou e/ou controlou
rejeição da modernidade tinha uma dimensão departamentos de propaganda e os meios de
ideológica, estética e política: negava as liber- comunicação de massas (a imprensa e a rádio
dades, os Direitos Humanos, quer os indivi- do Movimento).
duais porque dissolventes da vontade nacional Tendo sobrevivido, como o salazarismo, à
quer os coletivos, porque tidos como puro derrota fascista de 1945, foi inevitavelmente
produto do marxismo. Como todas as ideolo- sob o franquismo que a televisão se transfor-
gias reacionárias, a cultura oficial franquista mou em Espanha num poderoso instrumento
mostrava-se crítica da civilização urbana, ma- de consumo e conformação de massas. Regi-
nifestava horror perante a cultura moderna de me profundamente reacionário e de domi-
massas, distanciava-se do progresso científico nação de classe, o franquismo percebeu bem
e impôs a reconfessionalização católica do Es- a utilidade da adoção de uma retórica revo-
tado, negando legal e socialmente a liberdade lucionária de tipo fascista (a da «Revolução a algumas das regras da integração ocidental,
religiosa e a laicidade. nacional-sindicalista» de que os falangistas o que seria consagrado no Plano de Estabi-
Até pelo menos ao final dos anos 1940, o falarão sempre), aplicando-a especialmente lização (1959) proposto e gerido pelos novos
franquismo foi antiamericano, quer no cam- às políticas sociais, presente desde o período tecnocratas do Opus Dei que passariam a
po do seu posicionamento externo enquanto fundacional do regime, que foi o da guerra, dominar a política económica. Tratava-se de
durou a II Guerra Mundial quer sobretudo no até ao fim da sua duração (Carme Molinero). procurar impor um processo de modernização
da leitura imperial que na narrativa histórica autoritária do sistema produtivo, sob o con-
franquista se fazia das Américas. Como qual- Adaptações do pós-II Guerra trolo de uma aliança entre o Estado franquista
quer outra ditadura nacionalista, alimentou A derrota do nazi-fascismo, em 1945, abre e os setores mais organizados da burguesia,
uma série de mistificações historicistas e ma- uma fase de resistência do franquismo às a qual, de resto, se manterá ativa ao longo
nipulou deliberadamente o passado histórico novas condicionantes do pós-guerra, forçan- de todo a transição democrática (1976-82).
da Espanha em favor de uma imagem mani- do-o a encenar um processo de adaptação em Exatamente como sucederia no caso portu-
pulada do regime, impedindo a investigação e que se incluem o Foro dos Espanhóis (1947)
o debate histórico livre e independente. e a viragem pró-americana (acordo com os
Como ocorreu com todas as outras variantes EUA para estabelecimento de bases militares,
nacionais do fascismo, o franquismo adotou, 1953), que, desdizendo toda a retórica e pro-
contudo, uma outra ambiguidade ideológica paganda anterior da «Hispanidade», procu-
relativamente eficaz e que o distingue do resto rava desesperadamente assegurar a aceitação
das direitas tradicionais: se foi reacionário internacional do regime e, não sendo possível
em tudo isto, ele soube adaptar-se a vários assegurar a entrada na NATO (pela oposição
dos aspetos da modernidade política, recor- de vários aliados europeus) e nas Comunida-
rendo sem hesitar a instrumentos políticos des Europeias, pelo menos abrir o caminho à
modernos, tipologicamente fascistas: criou adesão à ONU (1955) e à OECE (1959).
organizações de mobilização política de mas- Chegava a altura, por fim, de abrir mão da
sas (partido único, organização de juventude política da autarcia económica e submeter-se

76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
o boom turístico e a redescoberta da Espanha
pelos europeus (sob o slogan oficial de Spain
is different), uma efervescência social e cul-
tural e uma repolitização da sociedade que
se torna crescentemente conflituosa (ações
armadas da ETA a partir de 1968, da FRAP a
partir de 1973), na qual o problema da identi-
dade nacional e da unidade do Estado voltam
a ocupar um lugar central no debate político.
A consolidação definitiva da mudança so-
cial tornaria insustentável manter a ditadura
por meios exclusivamente repressivos, apesar
de um último ciclo de reforço da violência ins-
titucional (1968-70 e, de novo, as execuções
de 1974-75) que leva a uma inevitável perda de
aceitação internacional. A degradação física
de Franco, o assassinato de Carrero Blanco
(1973), a agudização do problema basco e o
ressurgimento de todo o problema da diversi-
dade nacional, a pressão do exemplo da Revo-
lução portuguesa, e, sobretudo, a contestação
operária que avança imparável nos primeiros
anos 70, forçam o regime a manter em aberto
a possibilidade de uma abertura política.
Ao contrário do que é habitual julgar-se, a
morte de Franco (20 de novembro de 1975) e
a automática subida de Juan Carlos I ao trono
não produzem qualquer viragem democra-
guês, contudo, o novo ciclo industrial, inevi- operário remetê-lo-ia definitivamente àquele tizadora. «Em 1974 e 1975 todo o pessoal
tavelmente acompanhado de novas migrações que seria o seu papel ao longo dos últimos político franquista» [incluído naturalmente
internas e de um processo de urbanização que anos do regime: o de guarda pretoriana do o que preenchia os lugares do governo Arias
transformaria a face da sociedade espanhola, chamado bunker (o setor mais duro), onde se Navarro nomeado pelo rei] «perseguia a
criou as condições, logo a partir de 1956, para recrutavam alguns dos operacionais do terro- manutenção do regime» (C. Molinero e Pere
a contestação social e política (movimento rismo de Estado da fase final da ditadura e dos Ysàs). O regime está, contudo, em crise pro-
estudantil, Comisiones Obreras, renascimen- anos da transição (Mariano Sánchez Soler), funda, e uma parte substancial das elites
to nacional basco e catalão) que se tornaria e de onde sairiam os líderes dos partidos da políticas e sociais percebiam que alguma
cada vez mais forte ao longo dos anos 1960 ultradireita do período da transição. forma de mudança era inevitável: «a Espa-
e, sobretudo, da primeira metade da década Estes anos constituem, assim, um período nha mudou e ou fazemos nós a mudança ou
de 1970. A incapacidade evidente do mundo profundamente contraditório, durante o qual no-la fazem a nós» (Arias Navarro).
sindical falangista em controlar o movimento convivem um rápido crescimento económico, Se a morte de Franco não podia significar,
para o interior das fileiras franquistas, o fim
do regime, as expectativas de mudança que
cresceram exponencialmente na sociedade e
O boom económico nas fileiras das oposições democráticas im-
puseram um ambiente de perda de medo
do período final do que ajudou a multiplicar os atos de desafio à
regime foi também ditadura. A substituição de Arias por Adolfo
de explosão turística, Suárez (julho de 1976) e a abertura, final-
com a imagem do mente, de um processo de reforma política
acabaria, então sim, por anular qualquer so-
país vendida no lução de continuidade essencial do regime
exterior sob o lema que Franco encarnou a partir de 1936. Era a
Spain is different hora da democracia.

VISÃO H I S T Ó R I A 77
FASCISMOS // ESPANHA

Um conflito
europeu e global
A Guerra Civil Espanhola, longo episódio dramático
de que nasceu o franquismo, é passível de variadas
e por vezes complexas leituras
por Xosé M. Núñez Seixas*

A
GuerraCivilEspanholade1936-39 era uma ditadura fascista, mas sim uma
resultou de fatores internos, república «da ordem», que talvez seguis-
entre os quais a polarização se o exemplo de outros Estados europeus
sociopolítica entre esquerda que tinham experimentado uma involução
e direita e a instabilidade ins- presidencialista e autoritária. Ainda pesava
titucional que caracterizou a na memória espanhola o golpe do general
II República desde o seu nascimento, em Primo de Rivera, em 1923, e a sua ditadura
1931. Essa instabilidade também se mani- de sete anos. Mas vinham juntar-se agora
festou nas divisões que ocorreram no inte- vários exemplos europeus, para além da
rior de vários dos partidos que apoiavam o Itália de Mussolini ou da Alemanha nazi:
sistema político republicano, desde os repu- a evolução do Estado Novo português; o
blicanos radicais aos socialistas, bem como golpe de Antanas Smetona, com o apoio do
no surgimento de organizações desleais ao exército, na Lituânia (1926), que suspendeu
regime republicano: anarquismo, carlismo, todos os partidos políticos nove anos depois;
um fascismo minoritário e uma direita «fas- o golpe do conservador Karlis Ulmanis na
cistizada». Soma-se a isto a radicalização Letónia, com o apoio do exército, que esta-
dos conflitos sociais e a disputa territorial beleceu uma pseudoditadura paternalista
entre centro e periferia e, portanto, entre em 1934; a suspensão das garantias consti-
nacionalismos opostos (espanhol versus tucionais pelo czar Boris III da Bulgária, em
catalão, galego e basco) 1935, um passo semelhante ao que no ano
No entanto, desde janeiro de 1933, quan- anterior fora dado pelo chanceler Dollfuss
do em vários países europeus, de Portugal na Áustria... A estes somar-se-ia o golpe de
à Bulgária, se acentuaram as tendências Metaxas na Grécia (agosto de 1936) e o sub-
Guernica A cidade basca depois
autoritárias, a influência da polarização sequente do Rei Carol II na Roménia (1938). do bombardeamento por aviões
política entre comunismo e anticomunis- O golpe de Estado, porém, transformou-se alemães da Legião Condor
mo, que já vinha da fase anterior, e da nova numa sangrenta guerra civil devido a dois
polarização entre fascismo e antifascismo fatores. No início, o relativo equilíbrio de
exerceu também uma forte influência no
cenário político espanhol.
A guerra começou com um golpe de Es-
tado, cujos protagonistas (uma coligação
civil-militar) aspiravam a uma «limpeza»
política e social, bem como a reorientar a Re- A rápida intervenção
pública num sentido conservador e católico. estrangeira foi
Porém, os objetivos finais não eram claros: crucial em dois
ou um governo com forte presença militar,
ou uma junta militar com apoio civil, ou a
momentos: a
restauração da monarquia. passagem do estreito
O modelo dos militares rebeldes e da de Gibraltar e Brigadas Internacionais Um cartaz
maioria dos seus colaboradores civis não a defesa de Madrid e voluntários britânicos

78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Um ‘continuum’
de guerras civis europeias
O conflito espanhol inseria-se num conti-
nuum de guerras civis europeias iniciado
na Rússia (1918-22). No entanto, também
prefigurou várias das características do que
viria a ser a II Guerra Mundial (1939-45),
bem como as guerras civis que eclodiram
em 1944-45, da Albânia ao norte da Itália,
Ucrânia e Grécia.
Desde o início, a guerra de Espanha ad-
quiriu uma dimensão global, patente na sua
repercussão diplomática. Nela, defrontaram-
-se as estratégias italianas de expansão no
Mediterrâneo; o anseio hegemónico do III
Reich; as crispações francesas e britânicas
para evitar uma nova guerra mundial; o limi-
tado interesse soviético em conter o fascismo,
mas sem perturbar as potências ocidentais;
e o medo de uma possível expansão soviética
no sul da Europa, patente nas reticências
britânicas em apoiar uma república vista
como instável.
No entanto, o caráter transnacional do
conflito espanhol ressalta também em vários
aspetos.
Em primeiro lugar, a participação de de-
zenas de milhares de combatentes estran-
geiros, a maioria voluntários, bem como de
mercenários (principalmente marroquinos) e
soldados enviados para Espanha como tropas
regulares. A Espanha foi para os brigadistas
internacionais um novo cenário de comba-
te no âmbito da luta contra o fascismo nos
seus países: muitos eram italianos, alemães
e austríacos. E uma parte dos brigadistas
forças: o exército espanhol dividiu-se e parte continuaria a luta na década seguinte, como
das forças de ordem pública permaneceram partisans ou membros da Resistência em
leais à República. Além disso, organizações França, Itália e outros lugares. Em muito
de esquerda tiveram acesso a armas desde menor número, os voluntários do lado insur-
a primeira hora. A rápida intervenção es- reto também acreditavam estar a lutar por
trangeira foi crucial em dois momentos: uma causa global, a cristandade, indo estes
a passagem do estreito de Gibraltar pelo desde os fascistas irlandeses (Blue Shirts)
exército da África, no final de julho de 1936, aos legitimistas franceses e belgas, além dos
graças às aviações alemã e italiana; e a che- quase 200 russos brancos que combateram
gada das Brigadas Internacionais a Madrid nas fileiras do exército franquista.
em novembro de 1936. Já não foi possível Outro aspeto é a mobilização da opinião
aos rebeldes tomarem a capital espanhola. pública mundial, desde a Islândia até ao Chile
Portanto, o exército insurreto teve de se ou à Argentina, onde a luta entre franquis-
preparar para um conflito prolongado e tas e republicanos se sobrepôs às querelas
em várias frentes. O golpe transformou-se políticas no seio da comunidade imigrante
assim numa guerra convencional, que du- espanhola. «Antifascismo», «cristandade
raria ainda dois anos e meio. combatente» e outras palavras de ordem

VISÃO H I S T Ó R I A 79
FACISMOS // ESPANHA

Os dois lados da barricada Franco levado em ombros pelos seus


soldados, em 1937, e (em cima) mulheres combatentes republicanas

tornaram-se globais, e novas técnicas de rebelde as milícias partidárias perderam prota- ao desmembramento territorial, teve uma res-
propaganda (cinema, fotografia de guerra...) gonismo. A reorganização política da retaguar- posta do lado republicano, cuja propaganda,
foram colocadas ao serviço de uns e de outros. da franquista seguiu, no entanto, um modelo mesmo a dos comunistas, postulava que em
Há ainda a considerar a evolução e a natu- mais semelhante ao salazarista: a constituição Espanha se travava uma «segunda guerra de
reza do confronto ideológico e simbólico entre de um partido único domesticado, a FET das independência», na linha da de 1808-12, ou
as fações em conflito. Havia várias peculia- JONS, em abril de 1937. Em Espanha, optou-se então uma «guerra nacional-revolucionária
ridades espanholas: a presença com grande por uma ditadura militar mais semelhante pela independência». Para os rebeldes, era
protagonismo de forças como os anarquistas, aos exemplos da Europa oriental, com fortes a Espanha católica e eterna que se rebelava
os comunistas antiestalinistas do POUM e os elementos fascistas mas sem mimetizar os contra russos e «arrussados» (comunistas);
nacionalistas católicos bascos do lado republi- padrões italiano e alemão. para os republicanos, era o povo espanhol,
cano; ou a forte presença dos legitimistas ou Do lado franquista, desenvolveu-se uma verdadeiro representante da nação, que reagia
carlistas do lado insurreto, além de um partido competição pelo poder entre o exército, os contra agressores estrangeiros («mouros»,
fascista, a Falange, de início minoritário mas católicos e os falangistas, com Franco como italianos...). Porém, na propaganda insurreta
depois cada vez mais influente. árbitro. Isso levaria a uma fascistização inicial subsistia uma dúvida: qual era a prioridade,
No entanto, o populismo frentista do lado do «novo Estado» franquista, mas mais tarde Deus ou a nação? Mas também do lado repu-
republicano tinha paralelismos internacio- favoreceria a sua reacomodação internacional, blicano a nação disputava o seu lugar à revo-
nais; e a ascensão do Partido Comunista, mi- quando, depois de 1945, os católicos remove- lução: primeiro era preciso ganhar a guerra
noritário até julho de 1936, foi favorecida pelo ram os falangistas das posições mais influentes. pela independência, e depois viria a revolução.
apoio e prestígio da URSS, ao mesmo tempo Mas importa definir o «fascismo espanhol» a A dinâmica identitária era mais comple-
que se verificava a progressiva diminuição da partir da guerra civil, e não a partir de 1931, e xa no caso dos movimentos nacionalistas
influência dos anarquistas e a repressão aos como uma expressão particular do fascismo subestatais. Muitos catalanistas católicos,
poumistas. Na Catalunha, experimentou-se católico. O certo é que o modelo para Franco bem como alguns nacionalistas bascos e ga-
também aquilo que posteriormente (após eram outros ditadores militares da contrarrevo- leguistas conservadores, outorgaram priori-
1945) seria prática corrente no leste europeu: lução, e ele ia improvisando ao sabor do avanço dade a Deus e à ordem social sobre a pátria
a criação de partidos socialistas unificados nas do conflito. Mas primeiro baseou-se no modelo (catalã, basca, galega) e apoiaram ativa ou
chamadas «democracias populares». fascista para assentar as bases do seu poder. passivamente a rebelião. Os nacionalistas
As dinâmicas territoriais em confronto fo- republicanos pragmáticos da Catalunha, do
Conflito essencialmente militar ram uma particularidade relativa do conflito País Basco e da Galiza compartilhavam com
Ao contrário do que aconteceu na guerra civil espanhol. O nacionalismo espanhol de ca- os republicanos espanhóis uma ideia cívica
russa, em Espanha o lado «branco» conseguiu rimbo autoritário e católico-tradicionalista de República, mas esperavam que da guerra
uma rápida unificação. Decisivo foi o peso dos encorajou os militares golpistas e muitos dos surgisse um novo pacto entre as nacionalida-
militares e a adoção de um comando único logo seus seguidores. A isto se juntaria, em poucas des ibéricas: uma República federal e mul-
em outubro de 1936: o generalíssimo Franco. semanas, a defesa da religião católica. A ideia tinacional. Finalmente, para alguns setores
A direção da guerra foi militar, e no exército de uma Espanha restaurada, como alternativa radicais desses movimentos, o conflito foi

80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mortos Uma mãe chora o filho vitimado por um bombardeamento, em Lérida, e (à direita) discurso de Hitler em Berlim, em junho de 1939,
perante membros da Juventude Hitleriana com escudos com os nomes de alemães mortos na Guerra de Espanha

uma guerra entre «espanhóis» e da Espanha coloniais e a aspiração de gerar, através da tiram campos de trabalho para prisioneiros
contra as periferias rebeldes. violência em massa, uma nova sociedade. Isso de guerra e opositores políticos.
pressupunha apontar duas questões debatidas No caso da repressão republicana, cujas
Diferentes fases na historiografia atual. dimensões quantitativas foram inferiores,
Verificou-se uma acelerada desumanização Primeiro, a transferência dos hábitos da não houve mimetismo quanto às deporta-
da guerra. O conflito espanhol começou como guerra colonial em Marrocos (1907-25) para ções e aos massacres perpetrados pela polícia
uma guerra de contra-insurgência: tropas su- o território metropolitano pelos militares política de Estaline (NKVD). A repressão na
blevadas apoiadas por milícias civis levavam franquistas. Com efeito, a brutal limpeza da zona republicana não foi, certamente, um
a cabo ações de «limpeza» contra grupos ir- retaguarda, incluindo a violência de género, fenómeno episódico atribuível a «descontro-
regulares e milícias. A partir de novembro de fazia lembrar algumas táticas coloniais. No lados». Houve planificação, mas esta não foi
1936, a guerra de colunas deu lugar a novas entanto, o conflito civil obedeceu a outra lógica ordenada a partir de cima, desde o Governo,
modalidades: guerra de movimento, apoio político-ideológica: a limpeza radical, sem con- mas antes gerada nas esferas territoriais in-
de artilharia, uso estratégico da aviação, com cessões, dos fundamentos sociais e culturais da termediárias de um poder republicano que
bombardeamentos maciços, como se viu em «anti-Espanha», que não podia ser pactuada. tinha problemas para impor a sua autoridade
Guernica ou em Durango (1937). Além dis- Em segundo lugar importa apontar a re- a todos os níveis. A repressão franquista, se
so, irromperam dinâmicas da guerra total: pressão franquista como genocídio e a repres- excetuarmos o «terror quente» dos primeiros
subordinação de todas as energias e recursos são republicana como emulação da repressão meses, foi sempre dirigida a partir de cima.
produtivos de uma sociedade, desde a reta- estalinista na URSS. Contudo, em relação ao A Guerra Civil Espanhola também foi um
guarda à frente, ao objetivo final supremo de primeiro aspeto precisamos de perguntar: o epílogo sangrento do ciclo bélico aberto após
vencer a guerra. que se entende por genocídio? A definição 1914-18. Mas a sua radicalização e extensão
De realçar foram os dilemas entre um original do jurista polaco Raphael Lemkin, converteu-a numa premonição das atroci-
novo tipo de guerra ideológica, os hábitos de posteriormente adotada pela ONU? Ou as di- dades da II Guerra Mundial, que se carac-
«repressão cirúrgica» herdados das guerras versas propostas de historiadores e sociólogos terizaria pela muito maior mortalidade de
posteriores? Além dos aspetos jurídicos, o uso civis do que de militares e as deportações e
do termo «genocídio» apresenta problemas limpezas étnicas, políticas e raciais na reta-
interpretativos no caso espanhol: a ausência guarda. Guernica prenunciava o que viria a
Importa apontar a de radicalização cumulativa da repressão ocorrer em Coventry ou Dresden, e as bata-
repressão franquista franquista; o caráter irregular da sua aplica- lhas de Teruel e Belchite avançavam algumas
como genocídio ção, muito dependente de dinâmicas locais das táticas de combate urbano da II Guerra
e conjunturais; e a tensão subjacente entre Mundial.
e a republicana
a ideia de «limpeza radical», o extermínio * Xosé M. Núñez Seixas é professor na Universi-
como emulação do adversário sociopolítico e a ideia católica dade de Santiago de Compostela. É autor dos livros
da repressão da purga e conversão do inimigo após uma The Spanish Blue Division on the Eastern Front
e Imperios y danzas. Nacionalismo y Pluralidad
estalinista na URSS dura penitência, finalidade para a qual exis- Territorial em el Fascismo Español (1930-1975).

VISÃO H I S T Ó R I A 81
FASCISMOS // ÚLTIMA

Carmona e os filhos
de Mussolini
Em 1929, o Presidente português posou com os dois
filhos do Duce, que recebeu na Cidadela de Cascais

E
m setembro de 1929, visitou Lisboa,
a bordo do paquete Cesare Battisti,
um grupo de 1200 rapazes italianos,
selecionados entre os que obtive-
ram melhores notas no ano letivo
anterior, e pertencentes à Opera
Nazionale Balilla (Obra Nacional Balilla), a
organização da juventude fascista que haveria
de inspirar sete anos mais tarde (juntamente
com a Hitlerjugend, a Juventude Hitleriana)
a criação da Mocidade Portuguesa. O nome
Balilla foi escolhido como forma de home-
nagear o jovem Giambattista Perasso, alcu-
nhado daquela forma, que, segundo se con-
ta, em meados do século XVIII, com apenas
11 anos, deu o sinal para o início da revolta
da população de Géneva contra os ocupan-
tes austro-sardos, no âmbito da Guerra da
Sucessão da Áustria.
Na manhã da chegada, 11 de setembro, os
jovens italianos foram, com grande aparato e
em postura marcial, depor uma coroa de flo-
res na estátua de Camões, ao Chiado, após o
que assistiram a um ato religioso na igreja do
GETTY IMAGES

Loreto. De seguida voltaram ao navio, onde


almoçaram, e da parte da tarde visitaram o
Jardim Zoológico e alguns monumentos da
capital portuguesa.
Em 1929, Portugal era já uma ditadura
e Salazar sobraçava a pasta das Finanças,
embora não chefiasse ainda o Governo (isso
apenas aconteceria em 1932) nem tivesse ain-
da criado o Estado Novo, baseado na Cons-
tituição de 1933. A boa vontade da jovem
ditadura portuguesa para com o fascismo
italiano fica, porém, bem patente nesta foto
do Presidente da República, Óscar Carmona,
com os dois filhos de Mussolini – Vittorio,
de 13 anos, e Bruno, de 10 – integrantes da
delegação dos Balilla ao nosso país e alvos da
No Palácio da Cidadela, Cascais
O Chefe de Estado português com Vittorio e Bruno Mussolini, de 13 e 10 anos respetivamente,
natural curiosidade dos jornalistas durante
a 12 de setembro de 1929, segundo dia da estada dos jovens italianos em Portugal a sua estada em Lisboa.

82 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Torre de Moncorvo

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