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Resumo: Este trabalho objetiva estudar os possíveis limites éticos e jurídicos do uso do CRISPR-Cas9 como
tecnologia viável na construção de projetos parentais. Por essa razão, a delimitação da problemática concentra-se,
sobretudo, na discussão sobre a edição genética em células germinativas humanas, mas não descartando
comentários sobre o uso em células somáticas. Além disso, observou-se que o uso da tecnologia tenciona riscos à
defesa do patrimônio genético humano, sendo imprescindível o debate na atualidade. Nesse sentido, o trabalho
está dividido em: a) discussões sobre os problemas emergentes que a tecnologia de design genético suscita nas
sociedades neoliberais; e, b) possíveis limites na construção dos projetos parentais a partir da experiência brasileira
no tocante ao planejamento familiar. Para tanto, a metodologia empregada foi a analítico-dedutiva, por meio de
revisão bibliográfica nacional e internacional. Não obstante, utilizou-se, também, da metodologia do Direito Civil-
Constitucional como forma de interpretar a proteção da pessoa humana no âmbito do planejamento parental.
1 INTRODUÇÃO
1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das
Relações Privadas (CONREP/UFPE/CNPq) e do Grupo de Pesquisa em Direito, Bioética e Medicina
(JusBioMed/UNEB/CNPq). Associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogado. E-
mail: carloshenriquefd@hotmail.com.
2
Mestrando em Direito pela Universidade Católica do Salvador, UCSAL, Salvador-BA (Brasil). Pós-Graduado
em Filosofia e Autoconhecimento: uso profissional e pessoal pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, PUC-RS, Porto Alegre-RS (Brasil). Pesquisador do grupo JusBioMed. E-mail: rafaelverdival@gmail.com.
partir do ano de 2012. Isso porque essa ferramenta, concebida por Emmanuelle Charpentier e
Jennifer Doudna, em parceria com o departamento de Berkeley na Califórnia (EUA), permite a
intervenção no genoma de seres vivos – como animais e plantas – de maneira mais eficiente,
precisa e barata do que as predecessoras disponíveis, ampliando, assim, o leque de
possibilidades relacionadas ao uso da edição genética em humanos.
Nesse contexto, é possível se valer do CRISPR-Cas9 para editar: a) células somáticas –
células constitutivas dos tecidos que compõem o corpo humano; e, b) células germinativas –
responsáveis pela transferência hereditária de material genético, presentes em gametas e em
embriões em estágios iniciais de desenvolvimento humano. Por isso, o uso da técnica pode
ocorrer com finalidade terapêutica, voltada ao tratamento de patologias, como também com
finalidade de melhoramento genético. Cada um desses elementos traz consigo consequências
bioéticas distintas, razão pela qual se faz necessária a adequada delimitação temática ao analisar
o assunto.
Diante disso, o presente trabalho propõe-se a pensar as implicações da edição genética
quando realizada em células germinativas e no contexto dos projetos parentais assistidos. A
possibilidade de intervenção no genoma humano, proporcionada pelo CRISPR-Cas9, tem o
condão de viabilizar a escolha de características da prole, levando em consideração as
preferências e ambições do(s) autor(es) do projeto parental. Sendo assim, para enfrentar essa
questão, este estudo parte do seguinte questionamento: quais os possíveis limites éticos e
jurídicos do uso da tecnologia do CRISPR-Cas9, no contexto brasileiro, na edição genética de
células germinativas humanas em projetos parentais assistidos?
Para alcançar o resultado proposto pela pergunta-problema, em linhas gerais, objetiva-
se ponderar sobre quais seriam os possíveis limites bioéticos e jurídicos da utilização do
CRISPR-Cas9 no contexto dos projetos parentais assistidos. Além disso, de forma específica,
busca-se: a) contextualizar a aplicação do CRISPR-cas9 quanto à finalidade terapêutica e
reprodutiva; b) analisar as implicações do uso da técnica em células somáticas e germinativas;
e, c) compreender, no contexto brasileiro, os possíveis limites éticos e jurídicos emergentes do
uso dessa nova tecnologia de design genético em projetos parentais assistidos, que deriva do
uso do CRISPR-Cas9, quando utilizada em células germinativas.
À vista disso, pautado em pesquisa qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, este
estudo utiliza o método de raciocínio analítico-dedutivo a partir de revisão bibliográfica
nacional e internacional sobre a temática, de modo a corroborar um levantamento de dados
específico sobre o possível uso da técnica do CRISPR-Cas9 em projetos parentais assistidos.
Ainda nesse sentido, fez-se uso de pesquisa documental ao considerar, sobretudo, a
Constituição Federal de 1988, a Lei do Planejamento Familiar e a Lei de Biossegurança. Vale
registrar, também, que foi utilizada a metodologia do Direito Civil-Constitucional como forma
de interpretar as relações entre particularesà luz da Constituição.
Desde a década de 1990, variadas técnicas são utilizadas para editar genes de seres
vivos. Por intermédio dessas técnicas, os cientistas conseguem identificar a molécula de ácido
desoxirribonucleico – DNA – a ser trabalhada, realizar a divisão dessa molécula – em um
processo denominado clivagem – e implementar as modificações almejadas durante a fase de
regeneração (FURTADO, 2019, p. 224). Esse procedimento é denominado edição genética.
As etapas da edição genética ocorrem por meio da utilização de enzimas previamente
modificadas, aptas a reconhecer os trechos do DNA a serem editados e, em seguida, seccioná-
los. Até o início da década de 2010, as técnicas disponíveis, além de demasiadamente custosas,
eram de difícil utilização e alto grau de complexidade, o que contribuía para a diminuição da
eficiência da edição. Porém, essa realidade foi transformada com a ascensão do CRISPR-Cas9
(MARFANY, 2019, p. 19).
Essa revolução na ciência genética surge a partir do trabalho de Emmanuelle
Charpentier e Jennifer Doudna, que, em 2012, juntamente com sua equipe do departamento de
Berkeley na Califórnia (EUA)–, associam o sistema bacteriano CRISPR à proteína Cas9,
criando uma espécie de tesoura genética de alta eficiência (JINEK, et al, 2012). Essa ferramenta
de edição genética, por sua vez, é capaz de agir sobre qualquer molécula de DNA em seres
vivos – animais e plantas –, realizando cortes predeterminados que viabilizam a edição da
informação genética ali contida, bem como ampliando os horizontes dos estudos em biologia,
medicina e biotecnologia reprodutiva (DOUDNA, CHARPENTIER, 2014).
Por intermédio do sistema CRISPR-Cas9, tornou-se possível a edição de genes com
elevado grau de precisão e baixas despesas. O seu custo-benefício vem fazendo com que essa
tecnologia ganhe aplicabilidade em laboratórios ao redor do mundo, afinal, sua utilização
permite obter bons resultados com menos recursos financeiros (MARFANY, 2019, p. 19).
O tempo de trabalho utilizando o CRISPR-Cas9 é consideravelmente menor em
comparação às outras técnicas. Enquanto a aplicação de enzimas – como meganucleases,
TALEN ou zinc-finger – demandam meses de labor e milhares de euros em recursos, o trabalho
com o CRISPR-Cas9 pode ser concluído em um par de semanas, com menos de 50 euros em
despesas (LACADENA, 2017, p. 3). Ainda nesse sentido, a facilidade de reprodução do
experimento do CRISPR-Cas9 enfatiza ainda mais a preocupação quanto aos riscos que
emergem do uso da tecnologia no âmbito doméstico, tornando necessária uma regulamentação
precisa pelos Estados nacionais.
Com o advento dessa nova ferramenta, a prática da edição genética torna-se mais
democratizada, o que amplia o arcabouço de possibilidades científicas quanto às suas aplicações
em animais e plantas. O baixo custo da técnica resolve o problema da captação de recursos. A
maior velocidade na obtenção de resultados permite potencializar o fluxo de trabalho. E, por
fim, o elevado grau de precisão do sistema aumenta a taxa de sucesso da edição.
Com um instrumento tão promissor disponível, faz-se ainda mais necessário pensar nas
justificativas e consequências bioético-jurídicas no que tange à intervenção genômica por meio
de edição. Nesse sentido, um dos primeiros objetivos a ser perseguido é a terapia gênica.
De acordo com Herman Nys, a terapia gênica ocorre quando há “a transferência
deliberada de material genético para as células de um paciente com a intenção de curar ou
prevenir uma enfermidade” (NYS, 2002, p. 66). Nessa seara, as técnicas de edição são utilizadas
como instrumentos para a erradicação ou o tratamento de enfermidades de origem genética.
Esse tipo de aplicação, inclusive, vem apresentando resultados positivos importantes.
Em 2016, por exemplo, um grupo de pesquisadores publicou um trabalho no qual demonstram
o sucesso obtido na utilização do CRISPR-Cas9 no que tange à correção do gene responsável
pela anemia falciforme (DEWITT; MAGIS; BRAY; et al., 2016). Além disso, avanços nessa
área indicam a possibilidade de tratamento tanto de doenças de natureza hereditária – como
hemofilia, Doença de Duchenne e fibrose cística –, quanto de patologias oriundas de mutações
somáticas dos genes, como o câncer. A aplicação da edição genética terapêutica poderia ser
realizada a fim de reparar material genético originário ou corrigir as mutações celulares – o que
fosse necessário à erradicação da doença tratada (MARFANY, 2019, p. 22).
Não obstante, bioeticistas asseveram que o potencial terapêutico não deve justificar a
aplicação irrestrita da edição gênica. Nesse sentido, Juan Rámon Lacadena defende que a edição
genética terapêutica deve observar alguns critérios bioéticos antes de ser realizada. O autor
afirma que terapias gênicas baseadas em edição devem se restringir a patologias genéticas
específicas e que careçam de tratamentos alternativos – ou, havendo, que estes sejam de alto
risco (LACADENA, 2017, p. 9).
Um ponto fundamental para compreender esse receio bioético acerca da edição genética
refere-se ao tipo de célula editada. O corpo humano é constituído por dois tipos de células:
somáticas e germinativas. A principal diferença entre esses dois tipos celulares está na
possibilidade de transmissão hereditária de suas expressões genéticas.
Células somáticas são meramente constitutivas, ou seja, fazem parte da composição dos
tecidos celulares que formam o corpo humano. Sendo assim, modificações nessas células não
são transferidas à eventual descendência. Já as células germinativas – presentes nos gametas ou
nos estágios iniciais do embrião humano –, caracterizam-se pela hereditariedade. Logo,
qualquer tipo de modificação em células germinativas, mesmo com intuito terapêutico,
acarretará a perpetuação dessas mudanças à prole (FURTADO, 2019, p. 224).
A possibilidade de se perpetuar uma modificação gênica a um indivíduo ainda não
nascido é o cerne da preocupação acerca da edição genética em células germinativas, mesmo
na esfera terapêutica. O desconhecimento acerca das consequências desse tipo de aplicação e a
intenção de amenizar os riscos envolvidos levaram à criação de um acordo tácito entre os
cientistas. Para grande parte da comunidade científica, não se deve utilizar terapias gênicas
germinativas enquanto não se identificarem elementos que permitam um “controle do capital
genético humano” (CALLIZO, 2002, p. 84).
Já a edição genética realizada em células somáticas, no que lhe concerne, tende a ser
mais eticamente aceita pela comunidade científica. Isso porque, de acordo com Josep Santaló,
nas modificações genéticas de natureza somática é possível consultar o indivíduo acerca de suas
intervenções, fazendo valer a autonomia da vontade (SANTALÓ, 2019, p. 36).
Santaló destaca que o consenso sobre o assunto tende, inclusive, a incentivar o
desenvolvimento da edição genética em células somáticas, mesmo para finalidades não
necessariamente terapêuticas. A justificativa dessa maior acessibilidade está na verificação de
dois requisitos: a ausência de transmissibilidade das modificações à descendência e a ausência
de risco à autonomia dos indivíduos modificados (SANTALÓ, 2017, p. 160).
Juan Ramón Lacadena, em sentido semelhante, assevera que, além do respeito à
autonomia, a eticidade da edição gênica somática também se sustenta nos princípios da
beneficência e da justiça. Ainda de acordo com Lacadena, a terapia genética somática não traz
problemas éticos distintos daqueles já observados em outras formas terapêuticas experimentais,
como novos medicamentos ou técnicas cirúrgicas hodiernas (LACADENA, 2017, p. 9). Esse
posicionamento é compartilhado por José Ramón Callizo, que compara a edição genética
somática a métodos de tratamento convencionais (CALLIZO, 2002, p. 84).
Apesar dos avanços terapêuticos anunciados pelas técnicas de edição genética, essa não
é a única finalidade da prática. Isso porque, da mesma forma que se podem editar genes para
impedir ou fazer regredir a manifestação de doenças, também é possível intervir no genoma a
fim de proporcionar supostas melhorias genéticas.
Quando se pensa em melhoramentos genéticos, adentra-se o campo da subjetividade.
Aquilo que é considerado “melhor” ou “pior” por um indivíduo depende do que este, na
manifestação de suas construções íntimas, sociais, culturais e existenciais, considera como mais
desejável. Dessa maneira, passa a haver uma lógica pautada no atendimento das “preferências
e preterições” do indivíduo (ARAÚJO, 2017, p. 5).
Em uma perspectiva biomédica, conforme Gemma Marfany, o aperfeiçoamento
genético decorre de modificações nos genes com o objetivo de se alcançar determinada
característica fenotípica – seja de natureza física, intelectual ou comportamental (MARFANY,
2019, p. 22). Esse atributo desejado, por sua vez, não pode ser atingido naturalmente, fazendo-
se necessário algum tipo de intervenção genômica.
Ocorre que a diferenciação entre o que é utilização terapêutica e o que é aperfeiçoamento
genético ainda é nebulosa. A complexidade da discussão está tanto na identificação das
justificativas daquele que aplica a edição genética quanto na adequada definição do que seria
uma conduta terapêutica (ARAÚJO, 2017, p. 5). Para Habermas, a ausência de limites bem
definidos entre intervenções genéticas terapêuticas e aperfeiçoamento gênico viabiliza a
incidência de uma lógica de mercado, pautada na ideia de um liberalismo social, na qual as
preferências individuais ditam a escolha das características perseguidas (HABERMAS, 2004,
p. 27).
Isso, por sua vez, carrega a noção de que as preferências individuais devem prevalecer
sobre o consenso social e estatal, na medida em que supostamente haveria uma prevalência da
autonomia da vontade sobre a autonomia privada, quando, na verdade, na transição do Estado
Liberal para o Social, o Direito Civil moderno elencou a autonomia privada como regra nas
modernas relações civis, implicando uma liberdade negativa na construção dos projetos de
parentalidade (Consultar OLIVEIRA, 2016; SILVA NETTO, DANTAS, FERRAZ, 2018).
Dentre as consequências envolvidas no debate acerca da intervenção no genoma
humano, propõe-se a continuidade da reflexão a partir da perspectiva da edição genética em
células germinativas. Conforme explicado, as células germinativas são responsáveis pela
hereditariedade de características. Isso significa que, caso os genes dessas células sejam
editados, as modificações realizadas serão transmitidas à prole daquele indivíduo modificado.
É possível, então, que um sujeito, ao nascer, precise arcar com as consequências das decisões
de terceiros sobre o seu próprio genoma, antes mesmo da sua autonomia individual haver se
estruturado. Seria possível violar a autonomia de um indivíduo, que talvez não tenha sido sequer
concebido, simplesmente conforme escolhas individuais egoísticas?
Esse tipo de questionamento demonstra a complexidade do assunto, sobretudo tendo em
vista a emergente discussão acerca do melhor interesse da pessoa não concebida, em nome da
presunção de que haveria um suposto melhor interesse em modificar o genoma de uma pessoa
hipotética conforme ideias que podem repousar em fundamentos eugênicos (Consultar
SAVULESCU, 2001; COHEN, 2011).
Além da questão da autonomia, a edição genética germinativa também traz à tona
questões acerca da preservação da naturalidade e do patrimônio genético humano, além dos
cuidados com a segurança e a saúde da descendência (ARAÚJO; SANTOS, 2020, p. 179). Por
outro lado, é preciso levar em consideração que a implementação das biotecnologias genéticas,
no que tange à edição, pode trazer benefícios à humanidade – especialmente na área de saúde.
O tratamento e a erradicação de patologias graves consistem em pontos positivos e, ao mesmo
tempo, controversos diante da imprecisão de limitações bem definidas quanto a sua
aplicabilidade.
Independentemente das diferentes formas e intenções presentes no contexto das
manipulações genéticas, é preciso sustentar um olhar crítico às questões emergentes. Nesse
sentido, deve-se atentar para o fato de que a intervenção no genoma traz consigo um potencial
elemento de manipulação da própria natureza humana (SANDEL, 2018, p. 19) ou da
autocompreensão da espécie (HABERMAS, 2004). Manifestações fenotípicas, antes
compreendidas como expressões da natureza, podem ser ressignificadas a partir de um viés
mercadológico, pautado no liberalismo moderno.
Segundo Foucault (2008, p. 299-300), o fenômeno, atualmente, pode ser lido como
neoliberalismo, de forma a constituir o princípio legitimador e fundador do Estado. Nesse
contexto, observa-se a transformação da racionalidade interna social de acordo com a
programação estratégica da atividade dos indivíduos, em que a pessoa humana não figurará
mais como um simples parceiro de trocas, tornando-se empresário de si mesmo e o próprio
capital social.
Conforme alerta Habermas, em sua obra “O Futuro da Natureza Humana: A caminho
de uma eugenia liberal?”, a realização de aperfeiçoamentos genéticos poderá tornar vaga a
diferenciação entre pessoas e produtos (HABERMAS, 2004). Essa nova concepção sobre
características naturais é capaz de modificar as formas como os seres humanos se
autocompreendem – seja biológica, psicológica ou espiritualmente (ARAÚJO, 2017, p. 3).
Havendo a possibilidade de se modificar o genoma humano, rompe-se um paradigma
de autorreconhecimento da espécie, que pode passar a questionar suas características a partir de
critérios subjetivamente mais ou menos desejáveis. Considerando essa hipótese, seria razoável
pensar que pessoas, durante a elaboração de projeto parental, poderiam se valer de técnicas de
edição genética germinativa a fim de atribuir – com base em suas próprias convicções íntimas
– características que julgam ser mais desejáveis. Da mesma forma, atributos não acolhidos
poderiam ser descartados. O fruto daquele projeto parental, portanto, seria, mais do que nunca,
um reflexo das vontades subjetivas dos seus idealizadores.
Nesse sentido, Habermas alerta que o indivíduo nascido desse projeto parental eugênico,
ao tomar consciência do seu próprio corpo como uma fabricação, passa a colidir “com a
perspectiva reificante dos produtores ou artesãos”. De acordo com o filósofo, o projeto parental
reflete intenções que, com o nascimento do filho, transformam-se em expectativas. Há uma
espécie de coisificação da prole – e disso decorre o aspecto mercadológico mencionado
anteriormente –, reverberando preferências unilaterais definidas na concepção do projeto
(HABERMAS, 2004, p. 71).
A partir dessa preocupação habermasiana, passa-se, a seguir, à análise de quais são os
limites que devem circundar a prática de edição genética germinativa, no âmbito dos projetos
parentais assistidos. Para além das possibilidades terapêuticas ou de aperfeiçoamento
individual, seria possível se valer da modificação do próprio genoma a fim de,
propositadamente, transferir essas mudanças à prole. É preciso refletir se intervenções dessa
grandeza podem ser concebidas apenas no âmbito do livre planejamento familiar ou se devem
considerar, além disso, elementos mais sensíveis e complexos, caros à genética.
REFERÊNCIAS
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