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BRASIL: ANO ZERO

Luiz Carlos Checchia

para a

CIA TEATRO DOS VENTOS


APRESENTAÇÃO

A questão do fascismo ainda é um sério debate em aberto. O cientista político italiano Gianni
Fresu, em seu recentemente publicado livro Nas Trincheiras do Ocidente, Lições Sobre
Fascismo e Antifascismo, demarca, corretamente em nossa visão, que os estudos sobre
fascismo podem ser agrupados em três grandes campos, o primeiro vê as experiências
fascistas como únicas, datadas, e que emergiram como uma “doença moral da Europa”, uma
espécie de “ressaca” após a barbárie da primeira guerra mundial. O segundo campo, vê o
fascismo como uma espécie de estratégia de desenvolvimento capitalista acelerado
promovida por nações europeias que ficaram para trás nesse processo histórico. Por fim, há
o campo que entende o fascismo como contradições do sistema capitalista. Evidentemente,
não será uma peça teatral que poderá dar conta de encerrar esse debate, mas certamente
pode ser um dos instrumentos de estímulo desse debate, bem como veículo de ideias e
reflexões a respeito. Foi nesse sentido que escrevi a peça BRASIL: ANO ZERO.
Comecei a me preocupar com mais atenção à emergência do fascismo no país por
volta de 2013. Naquela época chamou-me a atenção da significativa presença de
organizações nazi-fascistas nos amplos atos ocorridos naquele ano. Comecei a estudar a
respeito, ainda de forma diletante. Pouco tempo depois, uma série de eventos, ainda
desconectados entre si, começaram a me chamar a atenção, dentre eles, a disputa pelo
controle do deposição de Dilma, a paralisia da esquerda diante diversas adversidades, uma
onda conservadora no pensamento médio popular, a ascensão de políticos reacionários,
dentre outros, tudo isso no intervalo de dois anos e pouco. Sobretudo, o surgimento da figura
de Bolsonaro, não porque seja ele um gênio político, o que definitivamente não é, mas pela
grande capacidade de aglutinar em torno de si os promotores desses eventos, conectando-os,
formando um bloco histórico. E isso, de fato, ocorreu.
Essas são as reflexões que me levaram ao doutorado para pesquisar a ascensão do
fascismo no Brasil na atualidade. E também, na atividade artística junto à Cia Teatro dos
Ventos, a desenvolver uma série de trabalhos que se debruçam no tema, como a peça para
audiovisual Caso 122, a direção do texto A Nova Ordem Mundial, de Harold Pinter, e agora, a
escrita de BRASIL: ANO ZERO, que me parece o trabalho mais completo que fiz a respeito, até
agora. Trata-se de uma peça de estrutura convencional, diferente dos textos que
normalmente desenvolvo. Mas, na mesma medida, é o mais complexo, com diversos
personagens, todos com percursos próprios dentro da trama.
A versão que chega em suas mãos é para primeira leitura, destinada a poucos
amigos e conhecidos, dividios entre gente de teatro e/ou pesquisadores que se debruçam
sobre a questão do fascismo, do terrorismo de Estado e ditaduras.

Assim sendo, desde já agradeço sua leitura e aguardo ansioso por seus comentários,
pitacos e opiniões.

Abraços fraternos,

Luiz C. Checchia

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Peça teatral de Luiz C. Checchia - contatos: 11.9.8695.5591 / luiz.checchia@usp.br.
versão para primeira leitura - NÃO REVISADA.
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SINOPSE

A peça apresenta a história de ADÃO e EVA, casal simples, gente trabalhadora, por volta dos
30 anos de idade. Vivem a angústia das crises política e econômica que se formaram no país
por volta de 2014. ADÃO iniciou, há pouco tempo, uma relação homossexual com REMO, um
garoto de programa, sem que sua esposa saiba. Para ele essa relação é difícil por não
conseguir superar sua formação machista e seus valores tradicionais.
EVA, por sua vez, recém converteu-se a uma igreja neopentecostal graças à influência de
ROSÁRIO, fervorosa obreira religiosa que se torna uma espécie de mentora e conselheira,
sempre lhe prestando conselhos carregados de preceitos religiosos e ultraconservadores.
Deve-se destacar que ROSÁRIO é mãe de REMO, mas nada sabe de sua vida como garoto de
programa, ao contrário disso, acredita ser ele um jovem estudante e empregado em uma
lanchonete tipo “fast food”.

No mesmo período, dois ricos empresários, GOUVEIA e ALBUQUERQUE, lidam com a


dificuldade que seu candidato à presidência da república tem em decolar nas pesquisas de
intenção de voto. Assim sendo, passam a apoiar um outro candidato considerado “azarão”,
que se torna cada vez mais notório por seus agressivos discursos de extrema-direita.
GOUVEIA e ALBUQUERQUE integram o grupo de empresários, políticos e lideranças
religiosas que se aproveitam da crise para aumentar seus lucros e poder. Por lucrarem com
a crise, eles são responsáveis por intensificá-la e aprofundá-la. Deve-se destacar que para
GOUVEIA a corrida por lucro e poder se mistura a uma corrida pela vida, pois é
diagnosticado com câncer de fígado e tem menos de um ano de vida.

ADÃO e EVA vivem suas vidas alheios ao desenvolvimento das ações de GOUVEIA e
ALBUQUERQUE mas são completamente submetidos às suas consequências econômicas e
políticas. E na medida em que essas crises se agudizam, ADÃO e EVA passam a vivenciar
suas situações pessoais com dificuldades e angústias crescentes. ADÃO se refugia cada vez
mais na relação com REMO, mas cresce também sua dificuldade em lidar com sua
homossexualidade. EVA se torna mais fervorosa em sua fé, fanatizado-se lentamente, até o
ponto de ter alucinações religiosas. Quando o novo candidato apoiado por GOUVEIA e
ALBUQUERQUE começa a se tornar mais popular, ADÃO e EVA, na condição em que se
encontram, acabam sendo seduzidos pelo seu discurso agressivo e passam a apoiá-lo
cegamente.

Nesse ponto há um corte temporal na narrativa da peça. ADÃO e EVA estão comemorando a
vitória eleitoral do candidato apoiado por GOUVEIA e ALBUQUERQUE. De repente, ADÃO
desfalece, cai no chão. EVA se senta ao seu lado, acomoda a cabeça dele em suas pernas,
formam uma pietá. Ela começa a falar, de forma um tanto incoerente - como se estivesse
alucinada - de como o país ficará melhor, de como tudo vai mudar, de como tudo vai dar
certo. A luz vai baixando, ouvem-se notícias de rádio anunciando a chegada de um novo
vírus no país.

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PERSONAGENS

GOUVEIA Empresário, muito rico e que gosta de viver de maneira


sofisticada e luxuosa. Envolve-se com a política aproveitando-se
de toda sorte de oportunistas, por isso, financia candidatos para
cobrar-lhes os favores se eleitos: “joga o jogo com o regulamento
debaixo do braço”, como costuma dizer. Por conta de um câncer
em estágio avançado no fígado tem poucos meses de vida, mas
trata a própria vida como um negócio. Tem cerca de 58 anos, é
branco, claro, apesar da doença ainda mantém a vitalidade e uma
certa dose de humor que se expressa de forma irônica.

ALBUQUERQUE Empresário como GOUVEIA, com os mesmos gostos e interesses,


mas sem seu senso de humor. Apresenta-se mais pragmático e
objetivo. Tem cerca de 10 anos a menos que GOUVEIA, por isso,
ora o vê como alguém mais experiente que possa ser uma
referência, ora como alguém ultrapassado. Mas a relação entre
ambos é sempre de cumplicidade de interesses.

ADÃO Homem simples, trabalhador, por volta dos 30 anos. Seu


pensamento é do tipo médio, tem muitas preocupações com as
dificuldades da vida. Casado com EVA faz mais de 10 anos. Há
pouco tempo começou a ter uma relação amorosa com REMO,
depois de conhecê-lo em um programa. ADÃO tem histórico de
sair com michês, mas é a primeira vez que mantém uma relação
com outro homem. Por sua formação machista, essa situação é
muito conflituosa para si. Assim, essa relação ocorre entre
momentos ternos e momentos agressivos entre eles.

EVA Mulher simples, por volta dos 30 anos. Casada com ADÃO. Assim
como ele tem uma visão mediana, popular do mundo. Também
preocupada com as dificuldades econômicas crescentes vividas
pelo casal. Há pouco tempo passou a frequentar uma igreja
neopentecostal.

OBREIRA ROSÁRIO Obreira da igreja frequentada por EVA e mãe de REMO. Mulher de
cerca de 50 anos, convicta em sua fé, vivenciando-a de forma
dogmática, fanática, o que parece aumentar sua disposição e força
física. Vive para a igreja, em primeiro lugar, e para o filho,
acreditando que ele é um “bom moço da igreja.” Por questões
financeiras, mora na própria igreja que frequenta, servindo-a
também como caseira. Sofre de forte dores nas costas, cujo
tratamento é caro e não coberto pelo

PASTOR OMAR Pastor da igreja frequentada por OBREIRA ROSÁRIO e EVA.


Oportunista, se aproveita da fé alheia para enriquecer. Está em
processo de construção de aproximação com a elite econômica e

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política do país.

REMO Filho da OBREIRA ROSÁRIO, é um jovem com cerca de 19 anos.


Bonito e esperto, apesar de sofrer com excesso de confiança típico
de sua juventude. Faz programas sexuais com homens mais
velhos, situação em que conhece ADÃO.

FRANCISCO Mordomo da casa de GOUVEIA. Com cerca de 60 anos. Vaidoso e


aristocrático, acredita que servir na casa de GOUVEIA é de
alguma forma um valor, uma distinção social.

6 RICOS Pessoas ricas que aparecem apenas como imagens em


videoconferências.

GABRIEL LOUQUINHO Apresentador de programa de TV do tipo Luciano Huck, ou


Faustão, ou Silvio Santos, ou qualquer outro dessa natureza.

2 FASCISTAS

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CENÁRIOS

casa de ADÃO e EVA Casa simples, formada por um sofá de 3 lugares, que fica no
fundo do palco, à lateral direita, à frente do sofá, quase na
boca de cena, fica a TV, de costas para o público. No fundo,
à esquerda, uma pequena mesa de tampo redondo com três
cadeiras. Há um vaso com flores de plástico sobre a mesa.

Sala de jantar de GOUVEIA Uma mesa de jantar, pequena e sofisticada, uma cadeira
bonita.

Casa estar de GOUVEIA Uma poltrona luxuosa, ao lado uma mesinha com bule de
chá e um porta retrato com foto de família. Um puff de
apoio para as pernas.

Quartinho de FRANCISCO Uma cama pobre com um colchão antigo. Lençol e coberta
bem pobres e coloridos. Uma cadeira de madeira ao lado da
cama.

Sala de Videoconferência Um ambiente futurista, com 07 monitores em diferentes


alturas formando um semicírculo. Ao centro duas
confortáveis cadeiras de escritório.

Salão da igreja Um púlpito sobre um praticável e algumas cadeiras

Praça Banco de praça no centro do palco, ao lado direito um poste


de luz.

Hospital Maca, uma cadeira ao lado, equipamentos eletrônicos com


eletrodos, soro.

Ponto de Ônibus da Praça Ponto de ônibus ao lado da praça. No palco desloca-se a


praça para o lado direito para que o ponto fique em
evidência.

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BRASIL: ANO ZERO

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CENA 1 - jantar imperialista
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Sala de jantar de GOUVEIA. Entra em cena FRANCISCO, empurrando um carrinho com


bandejas, pratos e talheres. De forma sistemática e afetada vai preparando a mesa para
uma refeição para uma pessoa. Entra GOUVEIA vestindo apenas cueca modelo “samba
canção” de seda azul, camisa branca, gravata preta com o nó ainda frouxo, meias pretas
presas por ligas à sua perna Seu cabelo está engomado, penteado para trás. FRANCISCO
passa a servi-lo. GOUVEIA Come, FRANCISCO permanentemente a postos, em posição de
serviço. Durante o almoço e até o momento em que GOUVEIA convida FRANCISCO a
sentar-se à mesa, há momentos em que FRANCISCO dá pitadas de sal em um prato, corta
um pedaço de carne e outras ações deixando claro que sabe cada gosto, cada movimento,
cada momento de GOUVEIA.

FRANCISCO (apresentando o rótulo do vinho) Está ao seu gosto, senhor?

(Serve o vinho ao GOUVEIA após esse acenar-lhe


positivamente com ar entre autoritário e
condescendente. GOUVEIA degusta o vinho)

FRANCISCO (levantando a tampa de uma bandeja para mostrar-lhe o prato) Ao


seu gosto, senhor?

(Serve o prato ao GOUVEIA após esse acenar-lhe


positivamente com ar entre autoritário e
condescendente. GOUVEIA come.)

FRANCISCO (após GOUVEIA terminar a refeição, oferece-lhe café) Posso?

(Serve-lhe o café após GOUVEIA acenar-lhe


positivamente com ar entre autoritário e
condescendente. GOUVEIA toma alguns goles de
café.)

FRANCISCO (oferece ao GOUVEIA charutos em uma caixa de madeira) Aceita?

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(Prepara e lhe entrega um charuto após esse
acenar-lhe positivamente com ar entre autoritário
e condescendente. FRANCISCO o acende e sorri,
após o GOUVEIA dar algumas baforadas de
aprovação. Após isso, ele oferece um jornal.)

FRANCISCO O jornal, senhor?

(GOUVEIA toma do jornal abrindo-o de forma a


ficar por trás dele. Balbucia as notícias que lê,
entredentes, incompreensivelmente)

GOUVEIA (por trás do jornal, depois de ler ligeiramente algumas notícias


numa e noutra página) Poxa vida, parece que nosso candidato não
decola. Não consegue sequer alçar um voo de galinha…
completamente preso ao chão. Já fomos melhores nisso.

FRANCISCO Como senhor?

GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Eu disse que ele não consegue sequer alçar um voo
de galinha. (voltando a ficar atrás do jornal) E olha que estamos
investindo o possível. Mas parece que não decola….

(GOUVEIA vira a página do jornal, continua


balbuciando entredentes as notícias que lê.
Passam-se alguns instantes assim)

FRANCISCO Senhor, perdoe-me...

GOUVEIA Sim.

FRANCISCO (com ar constrangido) É que, bem, o senhor deve imaginar... nós que
trabalhamos na casa acabamos ouvindo algumas coisas. Não muito,
claro... Mas é que ficamos sabendo do seu estado de saúde e... bem...
gostaria de dizer que lamentamos muito e que estamos rezando
pelo senhor.

GOUVEIA (ainda por trás do jornal) Está falando sobre meu câncer, não é
isso?

FRANCISCO Perdoe-me pela indiscrição, senhor, mas sim.

GOUVEIA (abaixando o jornal) Sem problemas, sem problemas, está tudo


certo. Como pode ver, estou bem. É apenas um carcinoma
hepatocelular, agravado por uma cirrose e em metástase. Mas como
disse, está tudo bem.

FRANCISCO Então não é sério? Graças a deus...

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GOUVEIA (voltando a ficar atrás do jornal) Talvez eu viva ainda mais oito ou
nove meses.

FRANCISCO Como senhor?

GOUVEIA Mais oito ou nove meses de vida.

FRANCISCO Meu Deus senhor! Lamento demais.

GOUVEIA Não se preocupe com isso. O que, afinal, esse câncer pode me tirar?

FRANCISCO (perplexo) Mas só oito meses, senhor?

GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Só os miseráveis contam o que têm (ri). A vida é só
mais um ativo, Francisco, (voltando a ficar atrás do jornal) só mais
um ativo pelo qual vou disputar.

FRANCISCO Mas senhor, se o senhor...er...

GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Me faça um favor, sim?

FRANCISCO O que o senhor pedir...

GOUVEIA (abaixa de vez o jornal, dobra-o e o põe sobre a mesa) Sente-se,


por favor, tome um café comigo.

FRANCISCO Senhor, não seria adequado.

GOUVEIA Deixe disso, deixe disso. (um tanto mais autoritário) Sente-se logo.

FRANCISCO Como o senhor quiser.

GOUVEIA Muito bom. Muito bom. Diga, há quanto tempo trabalha para mim?

FRANCISCO Há 25 anos, senhor. 25 anos, 7 meses, 2 semanas e 2 dias, para ser


mais exato.

GOUVEIA Faz tempo, não? Como faz. E quantas vezes já desejou estar sentado
aqui, onde me sento?

FRANCISCO Eu...? Não entendo o que o senhor quer dizer...

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GOUVEIA Sabe sim, claro que sabe. Quem de vocês todos aqui da casa, que
limpam, cozinham, servem, vigiam, cuidam, quem de vocês já não
desejou sentar-se aqui na minha mesa? Talvez até aproveitem
quando estamos fora para se sentarem, comerem algumas sobras
do desjejum, talvez até aproveitem os charutos que deixo pela
metade.

FRANCISCO Eu... eu...

GOUVEIA Diga logo, sem receios.

FRANCISCO Senhor, é claro que a vida que sirvo ao senhor parece ser bem...
bem gostosa de ser vivida.

GOUVEIA Uma vida cheia de prazeres, não é?

FRANCISCO Sim, senhor, é uma vida cheia, cheia de prazeres. Eu trabalho muito,
muito para um dia poder ter um pouco dessas horas de prazeres
que o senhor tem. As vezes faço até uma fezinha pra ver se ajuda...

(GOUVEIA toma sua taça de vinho, sorve um gole


lento com os olhos postos sobre FRANCISCO que
abaixa os olhos, ligeiramente constrangido)

GOUVEIA Enquanto pensar assim nunca deixará de me servir. Não, nunca


deixará. Olha, vou te explicar algumas coisas. Preste atenção. Isso
(aponta o vinho, as sobras de carne, o charuto) não são prazeres, de
forma alguma são, nem isso é (faz gesto que sugere um coito, de
forma bem vulgar). Não, não são prazeres. São ativos. Ativos. Tudo
o que tenho, meu caro, tudo o que tenho é um conjunto de ativos
que amealhei ao longo da vida. Cada hora de prazer, cada baforada
de charuto, cada xícara de café, cada orgasmo de minha esposa é
um ativo que serve apenas para me dar condições de amealhar
outros ativos. A vida é uma empresa, não passa de uma empresa,
como qualquer outra. Recebi um patrimônio de meus pais, ativos, e
o multiplico incansavelmente por quantas vezes puder. A vida é
isso, um constante multiplicar os ativos.

FRANCISCO Mas a vida não pode ser apenas um negócio...

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GOUVEIA Por você pensar assim é que eu me sento aqui todos os dias, e
você, você só por hoje... (pausa) A vida, ao fim, é só mais um dos
ativos. Encaremos de frente a situação, é preciso que a encaremos
sempre de frente. Morrer é como a falência de uma empresa. Talvez
a última falência. (oferece-lhe um charuto) Aceita? (FRANCISCO
aceita um dos charutos, GOUVEIA oferece-lhe o isqueiro aceso,
FRANCISCO acende seu charuto e dá algumas baforadas) Bom,
não?

FRANCISCO Sim, muito. Obrigado.

GOUVEIA Há quem diga que o trabalho dignifica o homem...

FRANCISCO Ah, sim, com certeza. eu acordo cedo, pelas três e meia da manhã
para chegar aqui para servir ao senh...

GOUVEIA Mas isso é uma bobagem, bobagem. É a quantidade que dignifica.


Não o trabalho mesquinho do dia-a-dia. Veja você aí, sempre tão
empolado ao me servir, acreditando que o seu trabalho, sendo bem
feito, o torna uma pessoa mais digna. Mas no fundo, o que sempre
quis é estar aí onde está, sentado em minha mesa, comendo a
minha comida e fumando os meus charutos. Mas quando o
convido, fica encolhido como um rato sob uma tempestade. E está
assim porque embora esteja achando tudo saboroso, sabe que não
terá mais do que o que experimenta hoje. O que dignifica é a
quantidade. Por isso a vida é uma empresa, porque ela é a busca
incessante pela multiplicação de ativos.

FRANCISCO Não entendo...

GOUVEIA Explicarei de outra forma, olhe bem, quanto mais coisas eu


conquisto na vida, muitas mais coisas conseguirei juntar. Dinheiro,
automóveis, propriedades, pessoas, governos... quanto mais possuo,
mais possuirei aqui, (estende a mão por sobre a mesa), bem aqui na
minha mão, a vida de muita gente que depende de mim, muita
gente aqui na minha mão (Fecha a mão rapidamente e com força e
a limpa a seguir, batendo uma contra a outra). Muita gente, meu
amigo, para que possa baforar esse charuto. Cada baforada é
alguém que chora, ou que ri (fala isso sorrindo).

FRANCISCO Mas, senhor. Comparando pessoas e charutos... não seria errado?

GOUVEIA (empurrando o prato em que comeu com sobras ainda) o que


temos aqui no prato?

FRANCISCO Carne, senhor...

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GOUVEIA Com um saboroso molho.

FRANCISCO Como o senhor gosta.

GOUVEIA A carne que é produzida no sul do nosso país, temperada com as


especiarias prediletas de minha esposa, vindas da Índia. E está
servida nessa bela porcelana chinesa, original. Estamos bebendo
esse delicioso vinho italiano, servido na belíssima taça de cristal
francês. É um mundo bem integrado, não é?

FRANCISCO Então estamos falando das coisas que vem dali pra aqui, e de lá pra
cá?

GOUVEIA quase isso, meu amigo. Quase isso. Essas coisas são fabricadas por
pessoas, geram riquezas que são transferidas de uma empresa para
outra, de um banco pro outro.

FRANCISCO Hum...

GOUVEIA E sabe por onde tudo isso passa?

FRANCISCO Não.

GOUVEIA Por aqui, na minha mão. Entendeu agora? Tudo passa pela minha
mão.

GOUVEIA E eu, senhor? Eu também estou aí, em sua mão?

(GOUVEIA expressa ligeira surpresa com a


pergunta, mas logo sorri soberbo e faz a ele um
gesto para que saia. FRANCISCO levanta-se
imediatamente e sai. GOUVEIA dá mais uma
baforada no charuto, toma um gole de café, outro
de vinho, recosta-se na cadeira, cruza as pernas,
abre o jornal e o lê tranquilamente. Ele está voltado
para o público, portanto, o que o público vê é
apenas o jornal, e suas pernas cruzadas. Ele estende
o braço por sobre a mesa e diz, por trás do jornal )

GOUVEIA Está tudo aqui, aqui nas minhas mãos.

(FRANCISCO retorna)

FRANCISCO Senhor, perdoe-me, mas o senhor Albuquerque chegou.

GOUVEIA Oras, havia me esquecido completamente dele. Bem, não posso


recebê-lo assim, não é? Pegue uma calça para mim e peça para
que entre.

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(FRANCISCO sai)

GOUVEIA O pilantra do Albuquerque vir aqui em casa, a essa hora e sem


avisar… notícia boa certamente não é. Na última vez em que isso
aconteceu tivemos que derrubar um presidente. E olha que era um
dos nossos, heim...

(FRANCISCO retorna com uma calça e um terno,


ajuda-o a se vestir enquanto GOUVEIA fala)

GOUVEIA Não perca tempo levando-o ao escritório, traga-o para cá mesmo.


E já diga ao motorista que se prepare porque certamente teremos
que sair. O pilantra do Albuquerque vir aqui em casa, a essa hora e
sem avisar… notícia boa certamente não é. Não é mesmo.

(FRANCISCO sai e retorna com ALBUQUERQUE)

GOUVEIA Meu querido Albuquerque, que bom vê-lo.

ALBUQUERQUE Gouveia, Gouveia, queria dizer que se trata apenas de uma visitinha
amigável. Mas trago más notícias...

GOUVEIA (em tom irônico não percebido pelo ALBUQUERQUE) Não brinca?
Sério?

ALBUQUERQUE Sério.

GOUVEIA Então diga logo. O que houve? Vamos derrubar algum presidente?

ALBUQUERQUE Não, não. Mas também acho que não vamos eleger um presidente.

GOUVEIA Ah, eu sei, eu sei…

ALBUQUERQUE Parece que não decola, não é? Nem voo de galinha...

GOUVEIA (para FRANCISCO) Eu disse. (para ALBUQUERQUE) Pois é, pois é.


Estamos investindo o que é possível, mas é isso, parece que não
decola.

ALBUQUERQUE Preso ao chão...

GOUVEIA Mas o que está acontecendo? Já foi eleito antes, tem experiência,
tem carisma...

ALBUQUERQUE Carisma, não, né Gouveia. Aí é demais. O cara é tão carismático


quanto uma placa de trânsito.

GOUVEIA Mas para o povo é carismático sim, tem cara de médico de família,
de vó bonzinho. Cara de corno feliz… É aquela cara de parente que
quando morre todo mundo diz: “mas foi tão cedo…”

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ALBUQUERQUE Sim, sim, talvez esteja certo. Mas de qualquer forma, parece que o
povo cansou desse modelito (pausa) Temos que fazer alguma coisa.
Depois de tanto trabalho não dá pra voltar pro mesmo lugar.
(pausa) Temos compromissos, temos que cumpri-los. Tenho muito
dinheiro nisso, não quero perdê-lo.

GOUVEIA Antigamente dávamos golpes, mas dizíamos que era para o bem da
pátria....

ALBUQUERQUE Antigamente era tudo diferente.

GOUVEIA Nada mudou.

ALBUQUERQUE Não, nada mudou de verdade.

GOUVEIA Mas está tudo de outro jeito.

ALBUQUERQUE Sim, como sempre foi.

GOUVEIA Como sempre foi.

ALBUQUERQUE Está pronto? Precisamos ir.

GOUVEIA Sim, estou.

ALBUQUERQUE Ah, que indelicado da minha parte. E o câncer? Como tem passado?

GOUVEIA Do mesmo jeito.

(olham-se nos olhos por alguns segundo, em


silêncio. Não há necessariamente um
constrangimento, apenas a ciência de que não há
nada a dizer nem a se lamentar, para eles, são só
negócios)

ALBUQUERQUE Então é melhor não nos demorarmos.

GOUVEIA De forma alguma.

(saem GOUVEIA e ALBUQUERQUE por um lado.


FRANCISCO os vê sair, depois de alguns segundos
olhando por onde saíram, ele passa a lentamente
recolher tudo o que estava sobre a mesa: pratos,
talheres, taça, xícara, sobras etc, o jornal. Depois
caminha no sentido contrário de por onde saíram.
Vai um tanto alquebrado, mas antes de sair de cena,
se apruma e volta a ostentar a postura empolada
do começo da cena, e segue assim, até sair.)

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CENA 2 - Meu celular, meus segredos
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Casa de ADÃO e EVA. Entram em cena ADÃO e EVA. ele puxa um carrinho de feira, ela
uma sacola. Chegam da feira livre, ela entra comendo um pastel.

ADÃO (com o braço estendido, mostrando a mão) Estava aqui, na minha


mão, nosso dinheirinho aqui. (fecha a mão rispidamente) Mas se foi
todo, e sequer compramos tudo o que pensamos.

EVA (enquanto come o pastel) Nem metade...

ADÃO Assim não vai dar não… é dar duro o mês inteiro e o dinheiro não
dura nem três semanas… (vai até EVA e pega o pastel de sua mão, e
passa a comê-lo). Logo logo não sei o que vamos fazer… É deixar
um rim pra comprar um brócolis.

EVA (pegando de volta o pastel) É deixar um olho por um pastel. (morde


o pastel)

ADÃO (pegando novamente o pastel) E que pastelzinho ruim… É só casca e


vento (morde o pastel).

EVA (tomando o pastel e comendo o último pedaço) ‘Cabou...

ADÃO (olhando a carteira) O dinheiro também.

(sentam-se ao mesmo tempo nas cadeiras em torno


da mesa. Ele coloca o celular sobre a mesa)

EVA E olha que tem gente pior que a gente.

ADÃO Pois é, nem fala. Te contei que o Serjão e a Márcia foram


despejados?

EVA Não, não tinha dito. Coitado. E ela não tava doente?

ADÃO ‘Tava não. Ta ainda. E bem mal. Ela sentou na calçada enquanto os
homens jogavam as coisas deles num caminhão que o dono da
casa mandou...

EVA Tadinha...

ADÃO Saíram de lá direto pro hospital… Ela ficou internada.

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EVA Tadinha...

ADÃO Ao menos garantiu alguma comida por três dias...

EVA Sem sal.

ADÃO Melhor que nada, né?

(se olham, silenciosamente, como que com


compaixão dos amigos)

ADÃO Ao menos ainda estou empregado lá na obra.

EVA Melhor que nada, né?

(o celular dele recebe uma mensagem. EVA o pega


despretensiosamente)

Chegou mensagem no seu celular.

(ele toma o celular rapidamente da mão dela,


tentando disfarçar sua pressa em pegá-lo o quanto
antes.)

ADÃO Ah, obrigado, deixa ver... (começa uma troca de mensagens


enquanto caminha até o sofá, onde se deita )

EVA E você teve alguma outra notícia deles?

ADÃO De quem?

EVA do Serjão e da mulher dele, ué.

ADÃO (mais preocupado com a troca de mensagens no celular do que


com EVA)... Ah… é… acho que estão na casa da irmã dela...

EVA E as coisas deles?

ADÃO (pouco levantando os olhos do celular) … que coisas…?

EVA Você disse que tinha um caminhão com as coisas deles.

ADÃO Ah… é… não sei o que fizeram, não....

EVA Mas não cabe na casa da irmã dela.

ADÃO Hum...

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EVA A irmã dela mora numa casa tão pequena, mal cabe às próprias
coisas, como colocar as da Márcia?

(ADÃO fica em silêncio, sem perceber o que ela


disse)

O que você tanto conversa aí nesse celular?

ADÃO Heim....

EVA Com quem você tanto fala, homem? (jocosamente) Tem outra é?
Tem idade pra isso não…

ADÃO Deixa de ser besta, mulher. Não é nada demais, não...

EVA (indo até ele) Então deixa eu ver.

ADÃO (se afastando dela) Ver por que? Está desconfiando de mim, é? Ora…
agora era só o que faltava...

EVA (indo até ele novamente) Então deixa eu ver (sua mão indo em
direção ao celular dele)

ADÃO (pondo o celular atrás das costas) Agora é que não deixo. Não
tenho que provar nada não… (ri, disfarçando, como se fosse apenas
uma graça)

EVA Então deixa eu ver...

ADÃO Não.

EVA Deixa...

ADÃO Não.

EVA Deixa...

ADÃO Não...

EVA Deixa...

(Som de notificação de chegada de mensagem, só


que agora é do celular de EVA. Ela o tira do bolso,
vê a mensagem e se afasta um pouco, para
responder)

ADÃO Ah, parece que o jogo virou… Quem é que te escreve?

EVA Não importa, ué!

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ADÃO Quero saber… você queria tanto saber quem mandou mensagem
pra mim. Também quero saber quem te escreveu...

EVA Deixa disso...

ADÃO Me deixa ver...

EVA Não.

(ele toma o celular da mão dela e lê a mensagem


em voz alta)

ADÃO Obreira Rosário. Da igreja? Tá falando com gente de igreja agora é?

EVA É uma amiga, ué? Qual o problema?

ADÃO Nunca tinha ouvido falar dessa tal obreira Rosário...

EVA É uma amiga nova… conheci faz pouco tempo...

ADÃO E conheceu ela onde?

(EVA faz que vai falar algo, mas se segura, como


se tenta esconder algo, sem sucesso.)

Você tá indo pra igreja agora é? Virou crente? (ri)

EVA Ué, qual o problema? Mal não faz…

ADÃO Desde quando?

EVA Faz algumas semanas só… não dá um mês.

ADÃO Era só o que faltava… (rindo. lhe devolve o celular dela)

EVA Não devia rir. Um pouco de fé não faz mal pra ninguém… Sua mãe
me disse que você ia pra igreja todo domingo.

ADÃO Eu não ia, ela é quem me levava… E eu era criança, tinha escolha
não. Era um tapa na orelha e uma ida à igreja.

EVA Chato.

ADÃO Desculpa. não queria ser chato com você. Eu só acho que ir pra
igreja não ajuda em nada. E muito menos ficar dando dinheiro pra
eles. Você não tem dado dinheiro pra igreja, né?

EVA Não, não dei, só tenho me sentido bem com a igreja...

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ADÃO Só falta dizer que encontrou Jesus.

EVA Sim, encontrei. E daí? Você também deveria encontrar. Acho que
falta é um pouco de religião nessa casa. Quem sabe as coisas
melhorassem?

ADÃO Bom, preciso sair.

EVA Tudo bem. Tchau

ADÃO Tchau (Estala uma bitoca ligeira nos lábios dela. sai)

EVA Ufa, já não era sem tempo. (começa a trocar mensagens de áudio
com OBREIRA ROSÁRIO). Desculpa, Obreira, era meu marido, aquele
chato. Bom, eu acho que a senhora está certa, sim.

OBREIRA ROSÁRIO (voz em mensagem de áudio) É que o diabo usa os homens da


gente, viu? É assim mesmo. Mas é preciso firmar os joelhos no
chão, baixar os olhos e levantar as mãos em oração que a espada
de deus é poderosa.

EVA (enviando mensagem de áudio) Mas obreira, meu marido é um


homem tão bom. As durezas da vida deixaram ele sem muito jeito,
mas é um homem abençoado.

OBREIRA ROSÁRIO (voz em mensagem de áudio) Irmã, você é nova na igreja, tá


aprendendo agora. O diabo é tinhoso, é arteiro. Ele engana nós
facinho, viu? Não se deixe enganar, não.

EVA (enviando mensagem de áudio) Será?

OBREIRA ROSÁRIO (voz em mensagem de áudio) Será não. É. Meu coração me diz, e
quem fala pelo meu coração é Deus, não é mais ninguém não.

EVA (enviando mensagem de áudio) Tá amarrado. E o que devo fazer,


Obreira? Pode falar que na senhora eu confio. Sangue de Jesus tem…
o que o sangue de Jesus tem mesmo, obreira? Sou nova na igreja e
não decorei tudo ainda…

OBREIRA ROSÁRIO (voz em mensagem de áudio) Aí mulher, não acredito que


esqueceu. E poder, mulher, poder. Poder!

EVA (enviando mensagem de áudio) Sim, sim… poder, poder. Sangue de


Jesus tem… poder. Mas me diz, então, Obreira, o que é melhor fazer?

(Sai EVA. Entra ADÃO pelo lado oposto, olhando


pelo cômodo querendo saber se EVA ainda está
no ambiente. Ao perceber que está só, ele pega o
telefone e continua uma ligação que se iniciou
fora de cena)

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ADÃO Já tinha pedido pra não me ligar. Não, não é que não gosto de você.
Quer dizer, é claro que não gosto de você. já tinha pedido pra me
deixar em paz. (cobre o fone com a mão e ralha consigo mesmo)
Pra que eu fui te passar meu número de telefone. Como sou besta.
(voltando ao telefone). Não, eu não quero mais falar com você. Eu
nunca havia traído minha mulher antes. Eu amo a minha mulher.
Eu amo…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está
falando). Claro que eu quero te ver outra vez. Mas eu não posso,
foi um erro da minha parte… (escuta o que a pessoa do outro lado
da linha está falando) .foi um erro…. não posso…. (escuta o que a
pessoa do outro lado da linha está falando).. Claro que eu quero,
mas…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está falando)....
Me deixa falar…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está
falando. Fala já convencido, entregue).... Claro que quero te ver mais
uma vez. você, sabe. (sorri. Escuta o que a pessoa do outro lado da
linha está falando).. Um beijo. também não vejo a hora. (escuta o
que a pessoa do outro lado da linha está falando, bem rápido). sim,
bem molhado, bem (estranha o que vai falar) lambido…. Até lá.
Outro. (Desliga o telefone. Senta-se.) Meu deus do céu. O que foi
que eu inventei pra minha cabeça…? Se a Eva sabe disso ela me
mata, Não, ela me capa e depois me mata. não ela me capa, me faz
engolir minha própria rola e aí, aí ela me mata. (fazendo cara de
nojo) Morro com a minha própria rola na boca. Eu amo a Eva, por
que fui inventar essa aventura? Era pra ser uma vezinha só… Só
uma…. (pausa) Mas é tão beijar aquela boca….

(entra EVA)

EVA Eita, tá falando sozinho, homi? Desde quando? Cabeça das nuvens…
Sangue de Jesus tem poder.

ADÃO Que falando sozinho, mulher? De onde tirou isso? eu estava era
falando com você.

EVA E tava falando o que comigo?

ADÃO Ué, você não ouviu?

EVA Eu não. Pode repetir?

ADÃO Repetir? Não, não vou repetir. eu lá só muleque de ficar repetindo


as coisas?

EVA Ai, Adão, você anda muito chato.

ADÃO Eu, chato? Que chato que nada.

EVA Mas eu te amo mesmo assim.

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ADÃO Eu também te amo.

EVA Ama mesmo?

ADÃO Claro que eu amo. Amo demais. Faço tudo por você. Sempre fiz.

EVA Faz mesmo?

ADÃO Claro que faço.

EVA Então… Então me diz com quem tava falando no celular.

ADÃO Ah, Eva, vai pro inferno. Você é muito chata.

(Em um movimento rápido ela pega o celular da


mão dele)

EVA Ahá!

ADÃO Me dá meu celular, Eva!

EVA O jogo mudou, não foi?

ADÃO Me dá meu celular, agora!

EVA Uhum…. Vamos ver agora com quem você tanto conversa.

ADÃO (Indo até ela para pegar o celular de volta) Me dá meu celular, Eva!

EVA (correndo dele) Não, não.

(ADÃO corre atrás de EVA e ela foge dele..)

ADÃO Me dá.

EVA Não.

ADÃO Me dá o celular!

EVA Não.

(ADÃO a pega por um dos braços. Caem no chão,


EVA escapa dele e consegue ficar em pé
novamente. ADÃO permanece caído.)

ADÃO Meu celular, Eva.

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EVA (Arruma o cabelo, suspira pegando o ar, começando a operar o
celular) Agora vamos ver com quem tanto fala.

(O celular na mão de EVA toca)

EVA Ah, não creio. Jesus. Toma, é um tal de Remo.

ADÃO (Levantando-se e tentando pegar o celular da mão de EVA) É o


rapaz novo do trabalho..

EVA (Afastando o celular do alcance dele) Não, não. Tenho certeza que
se eu atender a sirigaita vai desligar o telefone. (atendendo o
celular com feição zombeteira) Alô. (seu rosto perde a feição
zombeteira) Sim, é o celular dele, eu sou esposa dele. Ah, ele fala
muito de mim, é…? Tá… vou passar pra ele. (estendendo o braço para
que ele pegue o celular em sua mão) toma, é o Remo.

ADÃO (Pegando o celular com ar triunfante e atendendo animadamente)


Eaí, moleque, como vai? (ADÃO olha irônico para EVA, com uma
piscadela) Que bom que ligou agora. (escuta o que a pessoa do
outro lado da linha está falando) Futebolzinho? Não, não vou
esquecer nosso futebolzinho… (sai)

EVA O danado me escapou dessa vez.. (suspira) Sangue de Jesus tem


poder.

(EVA sai pelo lado contrário)

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CENA 3 - desistindo do candidato bonzinho
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Sala de videoconferência. Seis monitores estão ligados e em cada um deles há a imagem


de uma pessoa que participa da reunião, são empresários, banqueiros e afins que passam a
ser identificados como RICOs. Estão GOUVEIA e ALBUQUERQUE, ambos usam óculos de
realidade alterada. A cena tem um aspecto relativamente artificial..

RICO 1 ... enfim, as coisas não são mais como antes.

GOUVEIA Sei não, sei não. Tudo mudou mas me parece que está do mesmo
jeito que antes;

RICO 2 Também tenho essa impressão.

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ALBUQUERQUE Mas o fato é que é que deixar as coisas como sempre foram dá um
trabalho…’

RICO 3 Dá trabalho e custa cada vez mais caro.

RICO 1 ô se custa.

RICO 4 Meu filho um dia desses me disse que pra ser rico tem que se
trabalhar como se fosse pobre.

(Todos riem)

RICO 4 Aí respondi a ele que nunca vi um pobre trabalhando na empresa


do pai.

(Todos riem com mais ânimo. É acionado o único


monitor que estava desligado, nele a imagem de
outro RICO 5.)

ALBUQUERQUE Ah, finalmente. Bem vindo. Agora podemos começar.

RICO 5 Desculpe-me pelo atraso. O dia está uma loucura hoje.

GOUVEIA Tudo bem, tudo bem.

RICO 6 Estávamos aqui jogando conversa fora.

RICO 1 Mas não percamos mais tempo. Vamos ao que interessa.

ALBUQUERQUE Sim, concordo. Temos coisas muito importante pra resolver e em


pouco tempo.

(todos concordam simultaneamente dizem coisas


como “sim”, “vamos logo”, “precisamos resolver
isso” etcétera)

GOUVEIA Olha, gente, todos nós acompanhamos os jornais e sabemos o que


tá acontecendo. Nosso candidato não decola.

RICO 2 Escolhemos mal, né? eu disse que ele não tem carisma algum.

RICO 3 Mas já foi eleito antes.

RICO 4 Outras eleições.

RICO 5 Outros tempos.

RICO 6 Tudo mudou.

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ALBUQUERQUE e E continua tudo como antes.
GOUVEIA

RICO 1 Antigamente a gente promovia um golpe, mudava o presidente na


marra.

GOUVEIA Acho que agora não vai dar, não.

ALBUQUERQUE Temos que pensar em algo pra dar um destaque pro coitado.

RICO 5 Acho que não temos muito mais o que fazer.

ALBUQUERQUE Não acho. Podemos sugerir outro gerente de marketing. Nova


estratégia.

RICO 3 Mais agressividade.

RICO 2 Gosto disso.

RICO 5 Não sei. Acho que já gastamos muito dinheiro nessa aposta.

GOUVEIA Olha, eu gosto muito de um poquerzinho. Vocês jogam? não. Então


eu gosto muito de um poquerzinho. Sabem qual é o truque do
póquer? Eu falo: tem que arriscar ao máximo com as cartas que
tem na mão. Tem que ser ousado, com uma mão boa, tem que
subir a aposta, lentamente, pra que não desconfiem. Mas se tem
uma mão ruim, tem que blefar. Chuta o pau, larga ficha na mesa..
Joga a aposta lá em cima. Assusta os adversários. Mas isso ainda
não é a maior sabedoria do pôquer... Sabem qual é a maior
sabedoria do póquer?

RICO 4 Não.

RICO 2 Qual é?

RICO 1 Diga.

GOUVEIA (entre triunfante e professoral) É saber quando correr da aposta.


Perder um tanto pra não perder tudo. Sabe por que? Porque
enquanto houver gente em torno da mesa, tem jogo, e enquanto
houver jogo, se pode ganhar tudo. Ganhar absolutamente tudo.

ALBUQUERQUE Não entendi...

GOUVEIA (inconformado com ALBUQUERQUE) Ô, Albuquerque, me ajuda né?


Estou falando que é hora de jogar de lado nosso candidato e buscar
outro.

RICO 3 Mas não estamos falando de um carteado de póquer.

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GOUVEIA E quem disse que não? é só um jogo. Sempre é só um jogo.
Apostamos. Jogamos fichas na mesa, ora ganhamos, ora perdemos,
mas enquanto estivermos jogando as fichas estão na mesa. Passam
de mão em mão, mas estão sempre na mesa. E não é disso que
estamos falando, em manter as fichas circulando na mesa?

(todos concordam simultaneamente dizem coisas


como “é verdade”, “errado não está”, “é, visto dessa
forma, é mesmo um jogo” etcétera)

RICO 5 Mas a questão é: quem?

ALBUQUERQUE É, quem?

GOUVEIA Ora, qualquer um. Mas alguém que possa ganhar e que não tenha
ideias próprias, né?

RICO 1 Bom, se for assim, vamos escolher alguém que possa mudar as
coisas.

RICO 2 Mudar tudo o que está aí.

GOUVEIA Estamos sempre querendo mudar as coisas...

ALBUQUERQUE Pra deixar tudo como sempre foi...

RICO 1 só que melhor.

GOUVEIA Melhor é sempre melhor

(todos concordam simultaneamente dizem coisas


como “melhor é sempre melhor”, “sempre melhor”,
“então é mudar” , “vamos deixar tudo como
sempre foi” etcétera)

RICO 1 Mas quais são nossas opções?

ALBUQUERQUE Ah, esse ano tem de tudo...

GOUVEIA Tem cristão radical e sério, tem cristão engraçado, tem cristão
ecológico, tem cristão socialista… E banqueiro…. cristão.

RICO 4 Mas só tem cristão nessa joça?

GOUVEIA Não, tem ateus também. Mas que vão pra igreja.

RICO 5 Era só o que nos faltava: ateu que acredita em deus...

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GOUVEIA Que nada, é ateu que acredita no voto. O Estado é laico, mas o voto
come hóstia, faz vigília e expulsa o demônio.

(todos riem)

ALBUQUERQUE Então é isso, gente? Todos concordam?

RICO 2 Vamos mudar o nosso candidato? Eu concordo com isso.

RICO 4 Eu também.

RICO 3 Concordo.

RICO 6 Não tem alternativa.

RICO 5 Não temos mesmo, então que seja.

RICO 2 E qual escolhemos?

RICO 1 Acho que podemos ir acompanhando o processo por alguns dias e


aí fazermos nossa escolha.

GOUVEIA Me parece uma boa ideia. Não me oponho.

(todos concordam simultaneamente dizem coisas


como “também não me oponho”, "é uma boa ideia'',
“vamos aguardar” etcétera.)

RICO 1 É isso, então.

GOUVEIA (tirando os óculos de realidade expandida) bom, então está


resolvido. Senhores e senhoras, as fichas ainda estão na mesa.

RICO 1 Só uma coisa, Gouveia. E se escolhermos errado.

GOUVEIA Aí a gente tira ele de lá. (pausa. com sorriso irônico) Não seria a
primeira vez.

(todos concordam simultaneamente dizem coisas


como “sim”, “tiramos ele”, “já fizemos antes” et
cetera.)

ALBUQUERQUE Então é isso. Temos uma decisão.

(Os monitores começam a serem desligados, menos


um deles, o do RICO 1)

RICO 1 Gouveia, posso falar com você um minuto a mais?

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GOUVEIA Claro.

ALBUQUERQUE (para GOUVEIA) Te espero lá fora. (sai)

GOUVEIA Já sei, já sei. É sobre aquele investimento, não?

RICO 1 Sim, sim. Estou preocupado, parece que azedou.

GOUVEIA Azedou mesmo.

RICO 1 Pode criar um problema para nós. Sei que não é muito, mas talvez
tenha visibilidade, tenha custos. E se acontecer, vai ser bem ruim.

GOUVEIA Ah, seria bem desagradável mesmo. Até peço desculpas por ter
colocado você nessa.

RICO 1 É, somos amigos, faz tanto tempo... confio em você.

GOUVEIA Eu nunca deixaria um amigo tão antigo em uma roubada Por isso,
não se preocupe, vou dar um jeito, já falei com meu advogado e
tivemos a ideia de mudar o contrato societário do investimento e
vamos passar tudo para um laranja..

RICO 1 Tem certeza?

GOUVEIA Claro. Já está tudo acertado.

RICO 1 Posso perguntar para o nome de quem?

GOUVEIA Claro. Vai tudo pro nome do Francisco.

RICO 1 E quem é o Francisco.

GOUVEIA É um dos criados lá de casa.

RICO 1 Aquele que trabalha lá desde a época de seu pai?’

GOUVEIA Sim, esse mesmo. Boa memória. Ele é praticamente da família.

RICO 1 E já falou com ele?

GOUVEIA Não, não falei. Mas falarei ainda hoje. Não é a primeira vez que ele
assina papéis para mim.

RICO 1 Mas imagino que nunca assinou bombas como essa.

GOUVEIA É, realmente. Dessa vez é algo bem mais quente, se estourar...ai ai.
Mas com um pouco de sorte, nada de ruim acontece.

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RICO 1 Mas e se acontecer?

GOUVEIA É um risco, não? Sempre é. O importante é manter as fichas na


mesa.

RICO 1 É verdade. Somos jogadores. (pausa curta) Seja como for, é um


tanto triste ver um homem como ele acabar sendo prejudicado.

GOUVEIA Sim, é triste. Coitado. Não desejo isso pra ninguém. Praticamente da
família. Vamos torcer.

RICO 1 Vamos torcer. Mas se acontecer.

GOUVEIA É do jogo.

RICO 1 É do jogo.

(desliga-se o monitor de RICO 1)

GOUVEIA (para si mesmo) Foi uma decisão importante. Confesso que já


estava enjoado do nosso antigo candidato. Nunca gostei daquela
cara de vô bonzinho. Nunca gostei. (caminha para a saída mas de
repente sente forte dor na altura do estômago, colocando a mão na
região, com força, cai soltando um grito alto)

ALBUQUERQUE (entrando rápido) Jesus Cristo. (corre até GOUVEIA abaixa-se para
socorrê-lo)

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CENA 4 - Assunto indigesto
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Ponto da praça. ADÃO e EVA. EVA está abraçada ao braço direito de ADÃO e traz
pendurado no outro braço um guarda-chuva. ADÃO está nervoso.

ADÃO Porra, Eva, tantos lugares pra gente tomar ônibus vamos nessa
praça cheio de viado.

EVA Mas meu Deus do céu, você reclama de tudo homem. Pela amor de
Deus. Qual o problema? Deixa as pessoas viverem suas vidas em
paz.

ADÃO Olha lá aqueles dois marmanjos lá. dois barbudos se beijando. Acho
até que o grandão vai engolir o outro. (rindo) parece o joguinho de
come-come….

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EVA é, mas aquelas duas ali se alisando tenho certeza que não te
incomoda.

ADÃO Aí é diferente, né?

EVA Diferente por quê?

ADÃO Porque duas mulheres aguça a vontade do homem, lembra aquela


música do Raul Seixas… “subi no muro do quintal…” (ri)

EVA Homem é tudo igual, meu deus do céu.

ADÃO Quer saber? Se você quer ficar aqui nessa praça de perdição, pode
ficar. Eu vou pro outro ponto.

EVA Mas Adão, o outro ponto é três quarteirões pra lá, e eu tô com
meus pés me matando.

ADÃO Não tem problema, a gente se encontra no ônibus depois. Se você


não liga pra essa pouca vergonha, eu ligo.

EVA Então vai….

(ADÃO dá poucos passos. estrondo de trovão e


chuva. EVA abre o guarda-chuva que carrega)

ADÃO (voltando para o lado de EVA e se protegendo debaixo do


guarda-chuva dela) Merda.

EVA (sarcástica) Eu disse que ia chover.

ADÃO Pelo menos o povo saiu da praça.

(pausa)

EVA Adão.

ADÃO Que foi?

EVA Deixa eu te fazer uma pergunta?

ADÃO Se não for muito chata.

EVA Você tem outra, não?

ADÃO Essa é chata. Chata e repetida.

EVA Chato é você. Me fala vai. Por favor.

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ADÃO Mas que cacete. Já te falei que não.

EVA Você tem outra mulher que eu sei.

ADÃO Não tenho outra mulher, Eva, deixa de ser louca.

EVA Então por que tá sempre saindo, resolveu jogar bola toda semana,
recebe mensagens misteriosas de celular que não posso ver….

ADÃO Caraca, Eva, você é muito louca. Acha que se eu quisesse outra
mulher ainda estaria contigo?

EVA Sei lá… vai que tá querendo manter duas mulheres… pode ser até
que está pensando em transar com nós duas juntas….

ADÃO Ah, aí seria até bom, né?

EVA Deixa de ser besta, homem. Claro que não. Sou mulher direita, não
ia querer te dividir com ninguém.

ADÃO Ah… agora deu pra ser egoísta. (ri)

EVA Poxa, Adão, só queria saber o que tá acontecendo. Nem transar


direito mais a gente transa.

ADÃO Eva, já te falei, tô trabalhando feito louco na obra. Trabalho pesado.


Despediram um monte de ajudante, tô fazendo o trabalho de três. É
o dia todo carregando, misturando, levantando, quebrando…. Olha
aqui minhas mãos cheias de calo pra mostrar que não tô mentindo.

EVA Eu sei que está trabalhando, na obra, esqueceu que te levei


marmita semana passada quando você esqueceu ela em casa?

ADÃO Então. Qual o problema?

EVA Mas você sai pra jogar bola.

ADÃO Mas preciso descontrair um pouco. Ver meus amigos. Poxa, Eva,
que saco, não posso nem jogar um futebolzinho que vira esse
inferno?

EVA E as mensagens?

ADÃO Mas caramba, Eva, você tá maluca, não tá não? Que insegurança é
essa?

EVA Me fala das mensagens.

ADÃO Você também deu pra não sair mais do celular.

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EVA Mas é que eu estou na igreja, falo com a dona Rosário.

ADÃO Que Rosário?

EVA Já te disse, é obreira da igreja.

ADÃO Verdade, você me falou dela. Nem lembrava mais. ela tá bem?

EVA Quem?

ADÃO A Rosário, ué? Você não disse que ela tem um problema de coluna?

EVA Bem não tá né? Te falei já que hospital público tem uma fila
gigante de espera pra fazer a operação da coluna que ela precisa.

ADÃO Verdade, você falou mesmo. Tá piorando e nada de atendimento,


né?

EVA Pois é, tadinha… (pausa) Adão, seu filha da puta, você tá mudando
de assunto.

ADÃO Que assunto?

EVA Do que eu te perguntei, seu safado. Se você estiver me traindo….


(começa a chorar de forma contida) Você foi meu primeiro
namorado, Meu único homem….

ADÃO Único não, né, Eva….

EVA Não conta. Sabe que não conta. Por que lembrar disso?

ADÃO Desculpa. Não queria te deixar triste. Sabe que eu te amo.

EVA Melhor a gente mudar de assunto.

ADÃO Bem na hora. Olha lá, é o nosso que tá chegando.

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CENA 5 - No hospital a armadilha
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Quarto de hospital. GOUVEIA em uma cama, há soro conectado em seu braço e eletrodos
em seu peito. Ao seu lado está ALBUQUERQUE sentado em uma cadeira. Conversam.

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GOUVEIA ….Pois é isso, Albuquerque. Temos que analisar esses candidatos que
estão aí. Vou te falar, se bater no liquidificador não dá um copo,
viu?

ALBUQUERQUE Tá difícil mesmo, Gouveia. Mas não seria melhor você descansar?
Depois pensamos nisso….

GOUVEIA Não homem, que é isso. Estou bem. A dor passou. Esse remedinho é
maravilhoso (ri) Além disso, não morro antes da eleição.

ALBUQUERQUE O médico te disse isso?

GOUVEIA Não, mas minhas fichas ainda estão na mesa...(sorri) Estou


apostando….(feição triunfante) Mas enfim. Do que estávamos falando
mesmo? Ah, sim, os candidatos….

ALBUQUERQUE Tem aquele que é meio louco.

GOUVEIA O fascistinha?

ALBUQUERQUE Não diga assim….

GOUVEIA Mas ele é um fascistinha de merda, mesmo.

ALBURQUERQUE Que seja, mas temos que considerá-lo entre as escolhas.

GOUVEIA Não, esse aí não passa dos 8%. Igual ele já teve um monte nas
eleições anteriores, um mais caricato que outro. Toda eleição
aparecem esses nacionalistas, conservadores, machões.… Um bando
de fascistas que na hora H não passam dos 8, 5, 3, 1%... Não, desse
mato mais sai coelho nem lebre. Nem preá. (pausa) E eu também
não quero ter meu nome associado a um fascista seja ele quem
for. Pô, Albuquerque, tenhamos dignidade.

ALBURQUERQUE Eu ainda não sei...

GOUVEIA Nõ seja idiota, Albquerque. não coloque seu dinheiro numa


bobagem dessa. Nesse país brotam esses tipinhos fascistinhas de
tempos em tempos, e não chegam nunca a lugar nenhum. No
fundo não nos servem pra nada.

ALBUQUERQUE Eu só acho que...

(entra FRANCISCO apressadamente)

FRANCISCO Com licença.

ALBUQUERQUE Ô, Francisco, finalmente.

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FRANCISCO (para ALBUQUERQUE) Desculpa a demora, senhor (para GOUVEIA)
como vai, senhor Gouveia? (para ALBUQUERQUE). Senhor, como
está?

GOUVEIA Francisco, que bom que você veio.

FRANCISCO Estou aqui agora, senhor. Não se preocupe. Já avisei em casa que
ficarei à disposição do senhor enquanto for necessário.

GOUVEIA Francisco, Francisco, não sei como agradecer. Sempre cuidando de


mim e de minha família. Não sei como agradecer-lhe.

FRANCISCO Não pense nisso agora, senhor, é importante descansar.

ALBUQUERQUE (trazendo FRANCISCO para o canto do quarto e falando de forma


reservada) É o câncer. Está se espalhando. De qualquer forma o
médico disse que ele não vai sentir mais tanta dor depois da
medicação e por ora, ele fica aqui até amanhã para observação.
Também passou essa receita (entregando a receita para
FRANCISCO) Os remédios devem ser tomados no horário.

FRANCISCO Não se preocupe, senhor Albuquerque, vou cuidar disso com


atenção.

ALBUQUERQUE Não estou preocupado. (pausa) Ele tem sorte em poder contar
contigo.

FRANCISCO Estou há muito tempo trabalhando na casa.

GOUVEIA (bem humorado) Ei, que conversa de canto é essa? Ainda estou
vivo meus amigos (ri)

FRANCISCO (aproximando-se da cabeceira da cama e ficando ao lado de


GOUVEIA.) Perdão, senhor, não é nada demais.

GOUVEIA (bem humorado) Pois sabiam que ainda tenho muita lenha pra
queimar. Dou uma fornalha insasiável!

(GOUVEIA e FRANCISCO riem, ALBUQUERQUE ri


de maneira forçada)

ALBUQUERQUE Bem, preciso ir. (para GOUVEIA) Gouveia, estou indo. Falamos em
dois dias, está bem?

GOUVEIA Sim, sim. Dois dias. Até logo, Albuquerque. Obrigado.

(ALBUQUERQUE sai)

GOUVEIA Obrigado por ter vindo, Francisco.

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FRANCISCO não há o que agradecer, senhor. Não faço mais que a minha
obrigação.

GOUVEIA Faz sim, Francisco. Faz bem mais do que sua obrigação.. Não se
preocupe, vou recompensá-lo com justiça.

FRANCISCO (ajustando o travesseiro de GOUVEIA) Não fale nisso, senhor, por


favor. Me sinto até ofendido. Trabalho para o senhor faz 25 anos...

GOUVEIA Sim, eu sei 25 anos….

FRANCISCO 25 anos, 7 meses, 2 semanas e 2 dias, para ser mais exato.

(ambos riem)

(oferecendo-lhe um copo de água) Água, senhor?

GOUVEIA Sim, por favor

(FRANCISCO ajuda-o a beber a água)

GOUVEIA Obrigado (contrai o rosto, sentindo uma pequena dor) Acho que
quero descansar agora, Francisco.

FRANCISCO (encaminhando-se para a porta) Sim, senhor isso é ótimo. Ficarei


no corredor, há poltronas confortáveis lá. (para na porta) Senhor,
precisa de mais alguma coisa?

GOUVEIA Ah sim, preciso. Que bom que perguntou, que cabeça a minha, ia
me esquecendo do mais importante. Poderia pegar minha valise,
por favor?

(FRANCISCO vai até a mesinha onde está a valise)

GOUVEIA Preciso que assine um documento para mim, com uma certa
urgência.

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CENA 6 - Encontros enviesados
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Praça. É noite. ADÃO está bem vestido, cabelos exageradamente bem penteados com gel e
veste uma bela jaqueta. Está entre bem apessoado e cafona. Está sentado no encosto do
banco com os pés no assento. Ao lado de seus pés está uma bolsa esportiva. Ele fala ao
celular

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ADÃO …. Estou no futebol com o pessoal do trabalho, Eva. Você sabia.
(ouve o que ela diz) Como assim com que roupa estou vestido?
Estou de calção e a gloriosa camisa do Timão…. aquela que tá meio
encardida. Por que?

.(enquanto ADÃO ouve o que ela diz REMO entra


em cena, por trás dele sem que ele perceba)

ADÃO Que jaqueta? (ouve o que ela diz) Que sair de jaqueta pra ir jogar
bola? Tá maluca? Nem sei quando foi a última vez que usei aquela
jaqueta. Olha, os meninos tão me chamando pra jogar .... (ouve o
que ela diz) Não, Eva, não dá pra falar mais. Não sei dessa jaqueta.
Me deixa, vai?! Beijo, beijo…. .

.(ADÃO desliga e ato contínuo REMO o abraço por


trás beijando-o no pescoço,, surpreendendo-o)

ADÃO (desvencilhando-se e ficando em pé sobre o banco) Ei, que é isso?


Tá louco?

REMO Ah, meu gato, deixa disso (ri) Você, gosta, não gosta?

ADÃO (contrariado) Não, não gosto.

REMO (sentando-se no banco, ao lado das pernas de ADÃO) Nem um


pouco?

ADÃO (sentando-se novamente no encosto do banco) Tá eu gosto. Você


sabe que eu gosto. Mas aqui na praça? Nem sei por que marcou
aqui na praça? E se passa algum amigo meu aqui e me vê com
você?

REMO Mas, gato, deixa disso (rindo e apoiando-se nas coxas de ADÃO)
Nessa praça só tem viado (ri) Se tiver algum amigo seu aqui é
porque é biba também (ri) Se um amigo seu te vê aqui ele vai é
fingir que não te viu pra você fingir também que não viu ele (ri
bastante)

ADÃO (olhando para os lados, desconfiado) Ah, não importa. eu preferia


que a gente se encontrasse com mais discrição.

REMO Bobagem, meu gato. Você é o que é. Tem é que se assumir.

ADÃO (sentando-se ao lado de REMO) Assumir? Como assumir? Eu não


sou viado, já te disse. Eu sou casado, Remo. Bem casado. Minha
mulher agora tá indo até pra igreja.’

REMO (deitando-se e apoiando a cabeça na perna de ADÃO. divertindo-se


com a apreensão de ADÃO) Você fica lindo quando está nervoso..
Eu sei que você é casado. Não sei o que dizer. É difícil mesmo
quando a gente se descobre…

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ADÃO Que se descobre o quê? Se descobre o quê? Tem nada pra
descobrir, não! Eu sou homem, macho… Minha esposa tá indo até
pra igreja… (pausa) Poxa, nunca nunca tinha traído minha esposa
antes. E quando faço, faço com um cabra. (pausa) Se eu estivesse
traindo ela com uma mulher ela me mataria, mas com outro
homem… nem sei. Acho que ela me mata, me ressuscita e depois me
mata outra vez.

REMO (rindo) Sangue de Jesus tem poder….

ADÃO Você ri, né? Mas é verdade. Acho que ela me mata, ressuscita e
mata de novo umas três vezes seguidas...

REMO (rindo) Exagerado

ADÃO (rindo) É que não é com você (pausa) Eu sou casado. Bem casado.
(pausa. suspirando) E minha esposa tá até indo pra igreja...

REMO É, meu gato. Eu sei. Não queria que sua esposa passasse por isso.
Ela parece ser uma boa pessoa. (pausa. senta-se) Não quero te
forçar a nada. Precisa tomar suas decisões. (pausa. sorrindo) Mas se
veio até aqui, pro nosso… (fingindo dissimulação) futebolzinho…. é
porque já tá decidindo.

ADÃO (levantando-se e caminhando nervoso poucos passos à frente) Não


estou decidindo nada. (pausa. levemente irritado) Não tem nada pra
decidir.(pausa. voltando-se para REMO) Olha, quero te mostrar uma
coisa (vai até a bolsa, abre-a e dela tira um revólver)

REMO Que é isso, homem? virou cowboy, é?

ADÃO (segurando a arma na altura de seu rosto, com o cano apontado


para cima. Olhando para ela com ar de triunfante) Que cowboy o
quê? Isso aqui é força. (apontando para a frente, como se fizesse
mira em um alvo qualquer) Lá no trabalho já tem uns três que
compraram também.

REMO (indo até ele, abraçando-o por trás) Você fica bem sexy com essa
pistola na mão.

ADÃO Você acha é?

REMO Acho, não. Tenho certeza.

.(ADÃO e REMO ficam de frente um para outro.


REMO coloca a mão sobre a mão armada de
ADÃO e a abaixa enquanto se aproxima,
encostando o corpo no dele.)

REMO Não gosto de armas, mas gosto de você.

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ADÃO Nunca usou uma arma?

REMO Já, já usei. Quando você quer desafiar o mundo precisa se defender.
Mas não gosto de armas. E você, já usou uma arma?

ADÃO (um tanto incomodado com a pergunta, vira o rosto de lado) Não.

REMO (puxando delicadamente o rosto de ADÃO, para que fiquem de


frente novamente) Não se acanhe, gato. (sorri) Ninguém precisa ser
um Robocop. (pegando em sua mão e afastando-se um pouco)
Vem. Guarda isso aí e vamos. Tem um hotelzinho aqui perto bem
baratinho. (insistindo) Vem, é um hotel só de viadinho, não vai
encontrar nenhum amigo seu lá (ri)

ADÃO Já disse que não sou viado.

.(ADÃO vai até a bolsa, guarda a arma, coloca a


bolsa no ombro e dá a mão a REMO, pondo-se à
frente dele)

ADÃO Vamos.

.(saem. pelo lado contrário entra FRANCISCO


cabisbaixo. senta-se no banco. começa a chorar.
entra ROSÁRIO)

ROSÁRIO (indo até FRANCISCO) Senhor, tudo bem? Posso ajudá-lo?

.(FRANCISCO olha para ela, mas não consegue


falar, voltando a chorar copiosamente, afunda a
cabeça entre as mãos. ROSÁRIO senta-se ao seu
lado)

ROSÁRIO (abraçando-o) Está tudo bem. Está tudo bem. Pode chorar.

FRANCISCO (entre soluços) Não acredito, não acredito. São mais de 25 anos… 25
anos….

ROSÁRIO O que houve? É sua esposa?

FRANCISCO (sacudindo negativamente a cabeça) Não, não é… É meu patrão, meu


ex-patrão.

ROSÁRIO Como?

FRANCISCO (empertigando-se) Eu trabalhava a 25 anos pra mesma família. 25


anos…..

ROSÁRIO Mas o que houve.

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FRANCISCO Eu fui cuidar dele há poucos dias no hospital; ele tem câncer….

ROSÁRIO Morreu?

FRANCISCO (ligeiramente irritando-se) claro que não.

ROSÁRIO Então por que está chorando tanto homem?

FRANCISCO Porque eu confiava nele. Eram 25 anos de dedicação….

ROSÁRIO Vocês tinham um caso?

FRANCISCO (ficando em pé) Claro que não!

ROSÁRIO É que vindo até essa praça….

FRANCISCO (virando o rosto para ela) E que tem essa praça?

ROSÁRIO O senhor não viu o tipo de gente que frequenta essa praça?

FRANCISCO (olhando ao redor e a seguir, caindo sentado) Misericórdia…. (pausa.


voltando o rosto para ela) E a senhora, o que faz aqui?

ROSÁRIO Eu sou obreira de minha igreja. Vim aqui distribuir panfletos. Tentar
recuperar alguns desses jovens. (estende a mão) Prazer, meu nome
é Rosário.

FRANCISCO (cumprimentando-a) Sou Francisco. (pausa. levanta-se, dá alguns


passos à frente) Eu era criado na casa do senhor Gouveia. 25 anos
de trabalho. Nunca falei. Nunca atrasei. Sempre valorizei meu
trabalho. Ele se adoentou,. Câncer. Me preocupei. Me preocupei
demais. É meu emprego. É tudo o que tenho. Sou um homem
direito, responsável. Se ele se doenta, eu tenho o dever de cuidar.
Não é só por ele, é por mim. Queria me destacar. Era uma
oportunidade de me destacar mesmo. Nenhum outro criado da casa
era tão dedicado, tão atento. Ninguém ganha nada se não for pelo
próprio esforço, pelo próprio mérito. E eu fazia por onde merecer.
Ele me pedia às vezes para assinar documentos. Eu assinava. Por
que não assinaria? Ele é um homem rico, fez por merecer. Por que
eu não confiaria? Mas agora... (pausa)

ROSÁRIO Agora?

FRANCISCO (virando o rosto para ela) Agora…. (não consegue falar, fica com a
voz embargada. volta ao banco, senta-se ao lado dela) Que
vergonha, que vergonha;

ROSÁRIO O que houve, homem?

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FRANCISCO Eu assinei um documento. No hospital mesmo. No dia seguinte
doutor Gouveia teve alta, o acompanhei até sua casa e cuidei de
tudo. no dia seguinte,, um outro criado ligou em casa bem cedo, eu
já estava saindo de para o trabalho.. Falou que doutor Gouveia
mandou disse que eu não precisava ir trabalhar. Achei que era
uma espécie de retribuição pelo que fiz. Falei que poderia ir, que
não precisava descansar. Ele falou secamente: “não venha” e
desligou o telefone. Estranhei, mas logo tranquilizei. Meio-dia
bateram na porta com força. Fui atender, era a polícia. Me
colocaram algemas e me empurraram pela rua até uma viatura.
Toda a vizinhança assistindo, uns estavam assustados, outros riam,
falavam: “mas não é o senhor certinho?”. Odeio aquele bairro.
Odeio. Gente pobre, desqualificada.

ROSÁRIO Mas por que? O que o senhor fez?

FRANCISCO O que eu fiz? (levanta-se. caminhando à frente) O que eu fiz?


Nada, não fiz nada. (para) Sim, eu fiz. Eu assinei o documento

ROSÁRIO Que documento?

FRANCISCO (olhando para frente, fixamente) Não sei. Doutor Gouveia, estava no
hospital. Com câncer. Pediu para que eu assinasse. Assinei. Depois
mandou dizer que eu não precisava mais ir trabalhar e a polícia
chegou. Passei uma noite na cadeia. Me soltaram. Sei lá porque.. Fui
até a cada do doutor Gouveia. Toquei a campainha. Veio um
empregado e disse: “Doutor Gouveia mandou dizer que não precisa
mais de seus préstimos e que desejava boa sorte. 25 anos...25 anos.

.(ROSÁRIO vai até ele. o abraça fraternalmente)

ROSÁRIO Então deve ir para casa, descansar.

FRANCISCO Não, não tenho coragem. Tenho muita vergonha; O que vão dizer?
(olhando para o banco) Acho que vou dormir ali mesmo.

ROSÁRIO O Sangue de Jesus tem poder. Claro que não. Um homem direito
como o senhor não pode ficar aqui.

FRANCISCO não tenho para onde ir.

ROSÁRIO Tem sim. Claro que tem. A Igreja sempre tem um lugar para um
homem de bem como o senhor. Lá na igreja tem um quartinho,
falamos com pastor Omar e o senhor passa a noite lá; Amanhã
vejamos o que pode ser feito pra acertar as coisas.

FRANCISCO Pastor Omar?

ROSÁRIO Sim, um homem de deus. Tenho certeza que ele vai ajudar o
senhor.

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.(FRANCISCO olha para ela, resignado)

FRANCISCO Obrigado.

ROSÁRIO É a ele a quem devemos agradecer (apontando o dedo para cima)

.(saem)

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CENA 7 - Novos Parceiros, Velhos Acordos
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Sala de videoconferência. Estão PASTOR OMAR, GOUVEIA e ALBUQUERQUE, todos usam


óculos de realidade aumentada. A cena tem um aspecto relativamente artificial um tanto
mais que a cena 3. Todos estão rindo.

PASTOR OMAR (de costas para o público, luz a pino, gritando triunfantemente)
Sangue de Jesus tem poder. O Sangue de Jesus tem o poder.

(entram GOUVEIA e ALBUQUERQUE, tbm usando


óculos de realidade ampliada. Enquanto entram as
luzes se acendem e vemos que é a sala dos
monitore)

GOUVEIA Então, pastor Omar, e então, o que está achando?

PASTOR OMAR É realmente fantástico, meu irmão. Absolutamente fantástico.


(virando-se de frente para o público) Um verdadeiro milagre. Não
sabia que era possível ver tudo isso.

GOUVEIA Pois é, a realidade nunca é o que parece ser.

PASTOR OMAR Então a realidade é isso que estou vendo agora?

GOUVEIA O que senhor acha?

(PASTOR OMAR hesita e não consegue responder.


GOUVEIA e ALBUQUERQUE estouram em
gargalhada. ambos tiram os óculos)

GOUVEIA Mas o que é que importa o que é a realidade, pastor Omar? O que é
que importa?

ALBUQUERQUE Pastor Omar, o que se vê é só o que se vê.

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GOUVEIA E no final das coisas, é o que se vê o que importa. O que está vendo
aí, pastor?

PASTOR OMAR Dinheiro.

(GOUVEIA e ALBUQUERQUE estouram em


gargalhada, ambos vão até PASTOR OMAR e
tiram-lhe os óculos enquanto falam)

GOUVEIA Então é isso, pastor. Então é isso!

ALBUQUERQUE Nunca esqueçamos de ver o que é que se deve ver.

GOUVEIA Muita gente não vê.

ALBUQUERQUE Quase ninguém vê

GOUVEIA Seja muito bem vindo, pastor Omar. Seja mesmo muito bem vindo.

PASTOR OMAR (olhando para o relógio) Parece que vai atrasar, não é, meu irmão?
Será que demora muito?

(GOUVEIA e ALBUQUERQUE entreolham-se de


forma cúmplice)

ALBUQUERQUE Pastor, pastor, talvez sejam apenas alguns minutos. Mas seria bom
aproveitarmos para conversar um pouco antes. Que acha?

PASTOR OMAR Sim, sim. Não vejo problemas. Se vamos trilhar o mesmo caminho, é
bom que acertemos os ponteiros e sigamos no mesmo ritmo, não
é?.

(GOUVEIA e ALBUQUERQUE mudam o tom da


conversa, que passa a ser totalmente séria)

GOUVEIA O mundo está mudando, pastor. Mudando rápido até.

PASTOR OMAR Tudo muda. Pela vontade de Deus, tudo muda.

ALBUQUERQUE Até entre nós.

GOUVEIA Até entre vocês, religiosos.

PASTOR OMAR Eu vim de baixo, irmão. Mas pela graça de Deus...

GOUVEIA Sim, sabemos, não é Albuquerque? Sabemos… Que trajetória.

ALBUQUERQUE Meteórica.

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GOUVEIA Sucesso meteórico.

PASTOR OMAR Sim, Deus tem sido muito generoso conosco. Temos unidades de
negócios espalhadas por diversos cantos. Só nos “Esteites” estamos
em treze estados. E na África, então….

ALBUQUERQUE E aqui, pastor? E aqui? Não tem um empregado em casa que não
vá aos cultos, que não veja programa na tevê, que não diga um
amém para qualquer coisa.

GOUVEIA Lá em casa eles falam baixinho, sabia? Acham que eu não vou
gostar e falam assim (imitando alguém falando baixo) “amém,
amém, amém” (ri) Um brinde a isso.

(Brindam e riem. Dizem “titim” e depois “amém”)

E esse sucesso trouxe o senhor até aqui, pastor.

ALBUQUERQUE E queremos lhe dizer, bem vindo, bem vindo.

GOUVEIA Muito bem vindo.

PASTOR OMAR Obrigado. Agradeço. Mas lembrando, o mérito é de Deus, somos só


operadores de sua vontade. Mas pelo visto não me convidaram
apenas para me dar parabéns.

GOUVEIA Muito sagaz, gosto disso. Gosto disso. Não gostamos, albuquerque?

ALBUQUERQUE Gostamos.

GOUVEIA Pastor Omar, é o seguinte. O senhor tem acompanhado as pesquisas


eleitorais, não?

PASTOR OMAR Sim.

GOUVEIA E as notícias todas, imagino. Pois bem, pastor. Desde de que as


coisas são as coisas nós sempre conseguimos garantir um
candidato nosso. Seja ele quem for.

ALBUQUERQUE As pessoas acham que temos um candidato nosso e lutamos contra


os demais. Não é verdade. De alguma forma, todos são nossos
candidatos.

GOUVEIA Menos os comunistas

ALBUQUERQUE Menos eles. Mas os demais... os demais são nossos candidatos. Cada
um à sua maneira, com seus discursos, suas promessas. Sabe,
somos como alguém que passeia com muitos cães ao mesmo
tempo, tem cães grandes e outros pequenos, uns se dispersam com
facilidade, mas tem os que são concentrados. algumas guias mais

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longas e aí os bichos ficam mais distantes, outras mais curtas
alguns bichos ficam mais pertinho, mas todos estão seguindo o
mesmo caminho, entende?

PASTOR OMAR Sim, entendo, irmão, entendo muito bem.

GOUVEIA Mas é claro, sempre gostamos dos cães que caminham mais
pertinho (brinca como se estivesse caminhando com um cão bem
ao seu lado) aqui bichinho, bem pertinho, vem, isso, certinho, bom
menino, bom menino. (parando de brincar). Mas no fundo,
gostamos dos cães que têm a cara do dono.

ALBUQUERQUE Os vira-latas às vezes são imprevisíveis.

GOUVEIA E os tempos não estão fáceis.

ALBUQUERQUE Pois é, não estão.

GOUVEIA Antigamente tudo era muito mais fácil, branco no branco, preto no
preto. Agora tudo está misturado. Essa juventude, viu?
(artificialmente desconsolado) Vou te falar, é brincadeira...

ALBUQUERQUE A questão é, tudo mudou. E agora temos alguns receios. As coisas


estão muito bagunçadas, e o candidato que nós queremos não vai
bem nas pesquisas.

GOUVEIA Não decola. Não levanta nem voo de galinha. Não sai do chão.
Parece que amarraram uma pedra nos caniços do sujeito.

PASTOR OMAR E onde eu entro nessa?

GOUVEIA Pastor Omar, o senhor sabe. Os senhores têm conquistado tanto


espaço. É vereador, deputado estadual, deputado federal.

ALBUQUERQUE Senador.

GOUVEIA Senador. Olha quanto senador.

PASTOR OMAR É, pela graça a gente tem feito bem isso.

ALBUQUERQUE Reconhecemos isso. Respeitamos muito. Dissemos, é um “case” de


sucesso.

GOUVEIA Mas ainda não passaram disso, não é, pastor?

PASTOR OMAR Como?

GOUVEIA Ainda não chegaram tão perto do poder como gostariam, não é?
Ainda não fizeram um ministro, um vice, um presidente….

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PASTOR OMAR Mas chegaremos lá, (apontando para cima) é a vontade do Senhor.
A vontade do Senhor. É só uma questão de tempo.

GOUVEIA Pastor, o tempo quem faz somos nós. Esse é o tempo.

PASTOR OMAR Vejam, meus irmãos, eu não nasci em berço de ouro. Eu venho de
uma família humilde. Minha mãe, que repousa em Cristo...

GOUVEIA Pastor, conhecemos a história do senhor. É uma história de


superação. Sabemos que os pastores têm histórias semelhantes.
Gente humilde que veio de baixo mesmo. Olha, respeitamos muito
isso. De verdade, é inspirador. (pausa) Nós aqui temos uma
formação cristã. Católica, bem tradicional. Alguns, claro, são
protestantes, mas também tradicionais.

ALBUQUERQUE Bem tradicionais.

GOUVEIA Mas agora tudo mudou.

ALBUQUERQUE Sim, tudo mudou.

PASTOR OMAR Tudo muda.

GOUVEIA Graças a deus.

PASTOR OMAR Amém.

ALBUQUERQUE Até o senhor tem que mudar, pastor.

GOUVEIA (mostrando o óculos de realidade virtual em sua mão e falando


com sorriso de canto de boca) Já mudou, não é, pastor? Claro que
mudou. Veja de onde o senhor saiu e como começou tudo. E veja
onde chegou. Olha essa gravata, esse anel (pausa) Pastor, a questão
é: podemos muito, mas não podemos tudo a toda hora.

ALBUQUERQUE Somos um país democrático.

GOUVEIA Pois é.

PASTOR OMAR Mas vocês disseram que todos os cães são levados pelo mesmo
caminho...

GOUVEIA Mas um cão ao lado é mais fácil de levar.

ALBUQUERQUE E os tempos andam difíceis.

GOUVEIA Tudo mudando.

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ALBUQUERQUE Tudo mudando.

GOUVEIA E queremos que fique tudo como sempre foi,. Mesmo se mudar
tudo.

PASTOR OMAR Entendo, senhores, entendo. E precisam do poder da fé.

ALBUQUERQUE Precisamos.

PASTOR OMAR “Vocês não me escolheram, mas eu os escolhi para irem e


darem fruto, fruto que permaneça, a fim de que o Pai conceda a
vocês o que pedirem em meu nome”, João 15:16.

GOUVEIA E o que isso quer dizer, Pastor?

PASTOR OMAR Que a partir de hoje podem contar com a bondade de nosso
Senhor. Estamos juntos, meus irmãos.

GOUVEIA (exultante) Amém. Sabia que poderíamos contar com o senhor. Um


homem com essa gravata não decepcionaria.

PASTOR OMAR Mas temos uma condição.

GOUVEIA Uma condição?

ALBUQUERQUE Qual?

PASTOR OMAR Temos um candidato de nossa preferência.

(Os monitores começam a ligar. RICOs começam a


cumprimentarem-se)

GOUVEIA (olhando no relógio e colocando os óculos de realidade aumentada)


Ah, bem na hora. Falemos disso na reunião. (para RICOs) Bem
vindo gente, como estão?

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CENA 8- Encontro de Família
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Casa de ADÃO e EVA. EVA está arrumando a casa para receber visitas. ADÃO fica andando
atrás dela enquanto ela segue em suas tarefas.

ADÃO Poxa vida, Eva, não acredito que você inventou essa, caramba...

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45
EVA Ai, Adão, não reclama, vai? Uma vez na vida poderia me deixar
feliz sem reclamar.

ADÃO Meu amorzinho, eu sempre faço tudo pra te deixar feliz…. Mas eu
queria ficar em casa de boa, descansando, ver um futebolzinho na
TV e você me vem com essa de receber visita...

EVA Nunca temos visita, quase não tenho amiga nenhuma….

ADÃO Você tem a mim, amorzinho. Não basta?

EVA Não é disso que estou falando, seu besta. Só quero ter uma
amizade na vida, não posso?

ADÃO A obreira da igreja?

EVA Rosário, o nome dela é Rosário. Ela tem nome.

ADÃO Tá bem, Rosário.

EVA E o filho dela, ele vem também.

ADÃO Puta vida, tem um pirralho também. Era só o que me faltava.

EVA Não é uma criança. É um moço jovem. Um moço bom, viu?


Trabalha numa lanchonete. Podia fazer amizade com ele, levar ele
pro seu futebol. Quem sabe ele te arranja um emprego na
lanchonete.

ADÃO Ele é o dono da lanchonete? O gerente?

EVA É atendente, né? Já te falei que ela é bem pobre, mora na igreja, é
caseira lá. Se não fosse o pastor dar essa oportunidade pra ela
deus sabe onde estaria morando….

ADÃO Então essa lanchonete deve pagar pouco pacas... . Amorezinho, não
quero ser chato, mas a gente não tem nada pra oferecer pra eles
comerem

EVA Não se preocupa, ela vai trazer um frango assado pra nós.

ADÃO Bem, pelo menos dinheiro pro frangão da padoca ela tem...

(EVA faz uma expressão contida)

Que foi, Eva?

EVA É que ela não tinha dinheiro pra trazer o frango.

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ADÃO E como ela vai comprar? Vai roubar o frango? (pausa) Eva… você
não….

EVA Sim, eu dei o dinheiro pra ela trazer o frango.

ADÃO Era só o que me faltava.... Agora vou bancar frango pras velhas
carolas da igreja.

EVA Adão, que é isso? E agora não adianta mais reclamar, a essa hora
ela já comprou o frango e logo tá aí.

ADÃO Espero que ao menos ela traga uma farofa também.

(toca campainha)

EVA São eles. Vai por uma camiseta, pela amor de deus. E coloca uma
bermuda decente.

ADÃO Puta que me pariu (sai)

(entram ROSÁRIO e REMO)

EVA Ê, que bom que chegou.

OBREIRA ROSÁRIO Olá, como vai?

EVA E cadê seu filho?

OBREIRA ROSÁRIO Ele já está pra chegar, tá vindo direto do trabalho.

EVA Ah tá, achei que não viria. Entre, vem.

OBREIRA ROSÁRIO Meu menino não chegou ainda, mas o frango eu trouxe. (ri)

EVA (rindo) Que bom, né? Ao menos isso, venha comigo, vamos na
cozinha acertar esse frango numa travessa (saem)

(entra ADÃO)

ADÃO Eva….

EVA (de fora) Tô aqui na cozinha, com a Rosário.

ADÃO Onde está a minha camisa do Corinthians?

EVA (de fora) Tá brincando que vai pôr camisa de futebol, né?

ADÃO Ah, meu deu.

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(toca campainha)

EVA Atende aí….

ADÃO Ah, meu Deus.

(atende, entra REMO)

ADÃO e REMO Você?

ADÃO (sussurrando nervoso) Que você tá fazendo aqui?

OBREIRA ROSÁRIO (entrando) Oi Filho.

EVA Adão, quero te apresentar a Rosário e o filho dela…’

ADÃO Remo...

OBREIRA ROSÁRIO já se conhecem?

REMO Não, mãe, eu me apresentei quando ele atendeu, não foi seu….seu...

EVA Adão.

REMO Ah, é, seu Adão. (estende a mão em cumprimento)

ADÃO Prazer.

REMO (quase maliciosamente) O prazer é todo meu, seu Adão.

EVA Não é seu não, é meu (ri) Não precisa de chamar nem de “seu”
nem de “senhor”, Remo.

REMO Ah, perdão, mas é o costume.

OBREIRA ROSÁRIO Ele sempre foi um menino muito educado, muito respeitoso.

EVA Percebe-se, mas nos chamar de você não é falta de educação, não
se preocupe. Gente, vamos terminar de arrumar a mesa, que estou
faminta. Remo, me ajuda com as coisas aqui.

REMO Claro, dona Ev… digo, Eva.

EVA (sorrindo) Assim é melhor

(EVA faz gesto para ADÃO pôr a camisa)

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ADÃO O que?

EVA A camisa, Adão.

ADÃO (vestindo-se) Ah é. Desculpa.

EVA Parece maluco. (para REMO) Venha, Remo.

(EVA e REMO saem em direção à cozinha)

OBREIRA ROSÁRIO Se importa se eu sentar? (mostra-lhe a bengala)

ADÃO Ah, não, claro. Desculpa. Senta-se por favor.

(ambos se sentam)

OBREIRA ROSÁRIO A Eva fala muito bem do senhor.

ADÃO Ela fala muito da senhora também. E não precisa me chamar de


senhor.

OBREIRA ROSÁRIO É por respeito.

ADÃO A senhora é muito respeitosa. Como o seu filho.

OBREIRA ROSÁRIO Sim, isso mesmo. Ele aprendeu comigo. Tudo o que ele sabe
aprendeu comigo.

ADÃO Espero que não.

OBREIRA ROSÁRIO Como é?

ADÃO Nada não. Nada não. A senhora é da igreja, né?

OBREIRA ROSÁRIO Sou sim. Eu e o meu menino. Há anos colocamos nossos joelhos no
chão e curvamos a coluna em oração.

ADÃO Imagino o quanto ele se curva...

OBREIRA ROSÁRIO Como?

ADÃO Nada não.

(OBREIRA ROSÁRIO põe a mão no joelho, sentido


dor)

A senhora está bem?

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OBREIRA ROSÁRIO Ah, é um problema antigo. Tenho muitas dores. Muitas.

ADÃO Ah, não sabia.

(entram EVA e REMO, trazendo travessas de


comida)

REMO Tudo bem, mãe?

OBREIRA ROSÁRIO Ah, a dor de sempre, meu filho.

EVA Ô, tadinha. Posso fazer algo pra ajudar?

OBREIRA ROSÁRIO Só se tivesse um bom dinheiro pra pagar uma cirurgia.

REMO É, Eva, tem que ser dinheiro, que a cirurgia é cara.

OBREIRA ROSÁRIO Mas Deus vai prover.

ADÃO Mas pelo visto tá demorando demais, não é não, dona Rosário?

EVA (severa) Adão.

OBREIRA ROSÁRIO Não brinque com o que do senhor. Ele sabe o que faz. Tudo ao seu
tempo. Ele tem dado forças ao meu filho pra que ele dê duro no
trabalho.

ADÃO Imagino que dê bastante duro mesmo.

REMO (um tanto irritado) É, dou duro. Duro mesmo. Toda noite.

ADÃO Toda noite?

REMO Toda noite.

OBREIRA ROSÁRIO Deus ajuda a quem faz por onde, seu Adão.

EVA Esse moço é mesmo de ouro, Rosário. Você deve se sentir bem
orgulhosa.

OBREIRA ROSÁRIO E como não ser? Esse menino é de outro. Um anjo que Deus pôs
em minha vida.

ADÃO Deus põe cada pessoa inesperada em nosso caminho, não, dona
Rosário?

OBREIRA ROSÁRIO Sim, é verdade.

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EVA Pois eu concordo.

REMO E você e o seu Adão, Eva, onde se encontraram?

EVA Nem te conto….

OBREIRA ROSÁRIO Conta….

EVA A gente estudava na mesma escola. Eu nunca matava aula, mas ele
faltava quantas podia pra jogar, não desgrudava dos meninos, não é
amor?

REMO (sutilmente malicioso) Ah, era grudados nos meninos?

(ADÃO o olha de maneira nervosa)

EVA Mas um dia acabamos nos conhecendo na fila da cantina, e


estamos juntos até hoje….

OBREIRA ROSÁRIO Tá vendo como deus provê? pôs o varão no seu caminho.

REMO (sutilmente malicioso) Um bom varão.

EVA Ah, esse é mesmo.

REMO Tenho certeza que é.

EVA Remo, você gosta de futebol? Um dia o Adão pode levá-lo pra
bater uma bola.

REMO Adoraria bater uma bolinha com o seu Adão.

EVA Já disse que não precisa chamar de “seu”.... já são amigos. Bem,
vamos comer essa comida antes que esfrie?

ADÃO Hum… Por favor, vamos sim.

(ADÃO vai fazer seu prato, mas EVA, OBREIRA


ROSÁRIO e REMO olham de forma reprovadora
para ele. EVA, OBREIRA ROSÁRIO e REMO dão-se
as mãos, REMO que está ao lado de ADÃO
estende-lhe a mão. ADÃO pega em sua mão
contrariado. EVA e OBREIRA ROSÁRIO fecham os
olhos e baixam as cabeças, REMO aproveita para
olhar maliciosamente para ADÃO, que o olha
contrariado.

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REMO (olhando para ADÃO) Pai nosso, abençoa esse almoço gostoso,
gostoso demais, e que nunca falte, nessa casa. Que nunca falte esse
almoço, gostoso.

OBREIRA ROSÁRIO Amém.

(todo repetem: amém)

EVA Gente, vocês se importam de assistirmos ao programa Seu Sonho


Vale Um Milhão? Adoro ver o povo tentando a sorte.

OBREIRA ROSÁRIO Ai, que ótimo. Eu também adoro assistir ao Seu Sonho Vale Um
Milhão, com Gabriel Louquinho. Não perco um. Tava até triste,
achando que ia perder hoje.

EVA Ah, não. Eu assisto todo domingo. Adoro o Gabriel Louquinho..


Vocês se importam, rapazes?

REMO Pode ficar a vontade, dona Eva, digo, Eva

ADÃO Só que na hora do futebol vou mudar de canal, heim?

EVA (para ADÃO) pschiuu

REMO (para ADÃO) O senhor adora bater um futebolzinho, né, seu Adão?

EVA Olha lá, gente, vai começar.

(Lentamente as luzes se apagam e, no mesmo


ritmo, acende-se uma luz a pino sobre OBREIRA
ROSÁRIO. Quando essa transição chega ao fim,
rapidamente se abre uma luz a pino sobre o ator
que interpreta ADÃO que no trecho seguinte da
cena atuará como GABRIEL LOUQUINHO.)

GABRIEL Alô você, bem vindo, bem vinda ao meu, ao seu, ao nosso
LOUQUINHO programa

CORO (de fora da cena) Seu Sonho Vale Um Milhão.’

GABRIEL Exatamente, aqui seu sonho vale um milhão porque, você já sabe,
LOUQUINHO um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas
um sonho que se sonha junto…. é um ótimo negócio. E hoje temos
uma participante mais que especial. hoje temos, direto do Brasil
profundo, da pequena cidade de piracema de pirarucu a obreira
Rosário!

(luz sobre ROSÁRIO)

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Olá, Rosário, muito bem vinda ao nosso humilde programa.

OBREIRA ROSÁRIO Ah, muito obrigada.

GABRIEL Não precisa agradecer, querida. Mas vamos lá, porque aqui, você já
LOUQUINHO sabe: um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só,
mas um sonho que se sonha junto…. é um ótimo negócio., é o nosso
negócio é por um milhão de reais em seu bolso, Rosário.

OBREIRA ROSÁRIO Tomara, Deus.

GABRIEL E Você veio sozinha ou com torcida


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Com torcida.

GABRIEL E cadê sua torcida?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Está ali, ó. (apontando para EVA e REMO)

(EVA e REMO estão juntos, a um canto. Sorriem e


acenam, um tanto deslumbrados por estarem em
um programa de TV)

GABRIEL E quem são eles?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO É a Eva, minha amiga da igreja...

GABRIEL Ah, vocês são da igreja?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Somos sim. Todos nós. Sangue de Jesus tem poder.

GABRIEL E o garotão, também é da igreja? quem é ele?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO É meu filho. o Remo

GABRIEL Ah, seu filho. Da igreja também.


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Também. Meu filho é um anjo do senhor.

GABRIEL Então vamos falar com eles. (Para REMO) Então você o Remo. Veio
LOUQUINHO torcer para a mamãe, é?

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REMO Sim.

GABRIEL E ela vai ganhar o prêmio máximo?


LOUQUINHO

REMO Ah, vai sim, claro que vai.

GABRIEL Ela tá preparada?


LOUQUINHO

REMO Tá sim, se Deus quiser.

GABRIEL (para Eva) E você é quem?’


LOUQUINHO

EVA Sou a Eva?

GABRIEL (para ROSÁRIO) Essa é a sua amiga da igreja, né?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Ela mesmo.

GABRIEL Então você é da igreja?


LOUQUINHO

EVA Sou sim.

GABRIEL E qual seu nome?


LOUQUINHO

EVA Eva

GABRIEL E faz tempo que você é crente?


LOUQUINHO

EVA Não. Sou nova na igreja. Recém acolhida pelo senhor Jesus.

GABRIEL Ah. é crente fresca! (ri de forma escrachada. olhando de forma


LOUQUINHO maliciosa) Tá fresquinha mesmo heim? (ri).

EVA (entre acanhada e envaidecida) Ah que é isso. Sangue de Jesus tem


poder.

GABRIEL E que poder (ri) E a Rosário, vai ganhar o prêmio máximo hoje?
LOUQUINHO

EVA Ah vai sim. Se vai.

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GABRIEL Afinal… Sonho que se sonha só é só um sonho, mas
LOUQUINHO

EVA e REMO Sonho que se sonha junto é um ótimo negócio.

GABRIEL Então vamos sonhar. Vai, sonha Brasil. (para ROSÁRIO) Então você
LOUQUINHO é a Rosário, né? Conta sua história para o Brasil.

ROSÁRIO (acanhada) Ah, eu sou Rosário, vim do interior do Paraná para São
Paulo com meu marido.

GABRIEL Veio grávida, não é isso?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Sim, vim grávida. Tinha acabado de casar, era bem novinha.

GABRIEL E quando chegou aqui aconteceu algo ruim, não foi? Conta pro
LOUQUINHO Brasil.

ROSÁRIO Sim. Quando chegamos aqui fomos morar num barraquinho. Era
pequenino, pobre, mas era o começo, né? Mas aí meu marido
(pausa. com voz embargada)... meu marido mudou né?

GABRIEL Mudou como?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Ele mudou. começou a beber, ir pras boates. Sair com outras
mulheres….

GABRIEL (com certo histrionismo triunfante) Caiu na vida.


LOUQUINHO

ROSÁRIO É, caiu na vida. E aí um dia não voltou mais. Foi embora com outra.

GABRIEL (com certo histrionismo triunfante) Escafedeu-se.


LOUQUINHO

ROSÁRIO Escafedeu-se., é, é isso.

GABRIEL E aí você ficou sozinha com seu menino.


LOUQUINHO

ROSÁRIO Ele ainda não tinha nascido. Eu tava com um barrigão.

GABRIEL Dureza, né? Você sozinha, grávida, sem família, sem ninguém.
LOUQUINHO

ROSÁRIO Pois é.

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GABRIEL E aí você entrou para a igreja. Encontrou Jesus.
LOUQUINHO

ROSÁRIO Sim, comecei a ir pra igreja. Todo dia. Viraram minha família. Me
ajudaram muito, viu? Recebi cesta básica, roupa de doação. Quando
meu filho nasceu me deram enxoval. Ajudaram com o leite. E aí
continuei minha vida, morando lá no barraquinho, comecei a
trabalhar de fazer faxina, e a vida seguiu….

GABRIEL Mas ainda não foi o fim das más notícias, não é?
LOUQUINHO

ROSÁRIO Não, não foi.

GABRIEL O que aconteceu?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Eu sofri um acidente fazendo uma faxina, cai de uma escada e


machuquei a coluna.

GABRIEL Por isso a bengala, né?


LOUQUINHO

ROSÁRIO É, por isso. Preciso fazer uma cirurgia, mas é caro. Só no particular
que faz.

GABRIEL E dói muito?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Dói demais.

GABRIEL Aí você parou com as faxinas,?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Foi sim, doía muito, Não conseguia mais faxinar.

GABRIEL E o que aconteceu?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Não podia mais pagar o aluguel.

GABRIEL E foi despejada….


LOUQUINHO

ROSÁRIO (constrangida) Sim, fui despejada.

GABRIEL E hoje mora de favor.


LOUQUINHO

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ROSÁRIO Ah, não é bem assim. Eu fui morar lá na igreja. O pastor Omar

GABRIEL Pastor Omar?


LOUQUINHO

ROSÁRIO Sim, pastor Omar, nosso líder lá na igreja. Ele disse que eu poderia
morar lá. Eu fico de caseira, faço a faxina, cuido das coisas pra não
faltar nada, faço um café. Eu faço por onde, né?

GABRIEL É de favor, né?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO (contrariada) Não, é que….

GABRIEL Mas não tem problema, Rosário. Essa é a sua chance de ganhar, um
LOUQUINHO milhão de reais. Sonha Brasil.

OBREIRA ROSÁRIO, Sonha Brasil.


EVA e REMO

GABRIEL Então, Rosário, vai ser assim, Vou explicar para você como é nosso
LOUQUINHO programa: você fará duas provas, se conseguir concluir a primeira,
ganha mil reais. Mil reais te ajuda, Rosário?

OBREIRA ROSÁRIO Sempre ajuda, né?

GABRIEL Ajuda sim. Ajuda. E se concluir a prova, não ganha só os mil reais.
LOUQUINHO Se conseguir concluir a primeira prova, ganha também a chance de
fazer a segunda prova. E se concluir a segunda prova, leva pra
casa dez mil reais.

OBREIRA ROSÁRIO (alegre) Êh

GABRIEL Dá para sonhar?’


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Dá sim.

GABRIEL Então, sonha Brasil.


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO, Sonha Brasil.


EVA e REMO

GABRIEL Mas olha só, se não conseguir concluir a segunda prova, não leva
LOUQUINHO nada para casa. Perde tudo. Entendido?

OBREIRA ROSÁRIO Sim, entendi.

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GABRIEL Mas se concluir, além dos dez mil reais, ganha também a chance de
LOUQUINHO fazer a terceira prova. E essa prova é a prova de um milhão de
reais.

OBREIRA ROSÁRIO, (alegre) Êh


EVA e REMO

GABRIEL Mas se não conseguir concluir a terceira prova, perde tudo.


LOUQUINHO Estamos entendidos?

OBREIRA ROSÁRIO Estamos sim.

GABRIEL Então vamos lá, que sonho que se sonha só é só sonho, mas sonho
LOUQUINHO que se sonha junto é um ótimo negócio. Então….

OBREIRA ROSÁRIO, Sonha Brasil.


EVA e REMO

GABRIEL Bem, para nossa primeira prova pesquisamos um pouco os gostos


LOUQUINHO da juventude de sua época, Rosário.. Nossa produção quis deixar
você à vontade e te ajudar a ganhar seus primeiros mil reais. Gosta
disso?

OBREIRA ROSÁRIO Sim, claro.

GABRIEL Então trouxemos uma brincadeira de sua época de infância. Coisa


LOUQUINHO fácil. Tá pronta?

OBREIRA ROSÁRIO Sim.

GABRIEL Então a nossa primeira prova é… é… é…. jogo de amarelinha.’


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO (negativamente surpresa) Amarelinha? Não posso. Minha coluna.

GABRIEL Vem para cá, Rosário, vem ganhar seus mil reais.
LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Não, não posso.

GABRIEL Venha logo, Rosário, não temos o dia todo. Quer dinheiro? vem
LOUQUINHO participar da prova. Sonha Brasil.

(olhando para EVA e REMO,, que estão perplexos,


exitante e assustada ela vai até onde está
GABRIEL LOUQUINHO,)

Então aqui está a amarelinha, você tem que ir até uma ponta e
voltar, e ganha seu primeiro mil reais. Sonha, sonha Brasil.

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(com muito custo e sofrimento, expressando dores
e cansaço ela cumpre a prova ante os olhares
perplexos de EVA e REMO)

Parabéns, Rosário, aqui está seu dinheiro

(ele lhe entrega o dinheiro mas assim que ela o


pega ele o toma novamente)

E agora, você continua a sonhar e segue para segunda prova, ou


vai para casa só com esses mil reais? Segue no sonho, ou cai da
cama? (ri) É corajosa ou covarde? (ri)

OBREIRA ROSÁRIO Foi tão difícil, tá doendo tanto….

GABRIEL É covarde.’
LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Não, não, é que doeu. Mas eu sigo. Eu sigo’

GABRIEL É isso, isso mesmo. Afinal, sonho que se sonha só é só sonho. Mas
LOUQUINHO sonho que se sonha junto, é um ótimo negócio. Então sonha Brasil.
Bem ,a segunda prova é bem fácil. Diz para mim, Rosário, você
estudou só até a quinta série, não é?

OBREIRA, ROSÁRIO É sim. desde menina eu tive que ajudar o pai na roça, então tive
que deixar a….

GABRIEL Então vamos fazer uma prova para incentivar as crianças a não
LOUQUINHO saírem da escola, porque quem sai da escola, passa vergonha (ri)
Não podemos ser preguiçosos, crianças.

OBREIRA ROSÁRIO Mas não foi preguiça…. Eu tive que….

GABRIEL A nossa próxima prova é uma prova educativa… Afinal, o


LOUQUINHO entretenimento também deve ter responsabilidade social. Então a
senhora vai passar pela prova do “soletrar para aprender”.

OBREIRA ROSÁRIO Tudo bem, tudo bem. Eu estudei pouco, mas graças a Deus leio
bastante a Bíblia.

GABRIEL Ficamos sabendo, Rosário, que você é um tanto tímida, não é isso?
LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Sim, sou tímida sim. Na igreja às vezes eu até falo em público, mas
fico muito acanhada.

GABRIEL E a senhora tem vergonha por que?


LOUQUINHO

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OBREIRA ROSÁRIO Ah, tenho medo de falar algo errado, de tropeçar nas palavras.

GABRIEL A senhora então, deixa ver se entendi, a senhora tem vergonha


LOUQUINHO porque teme falar errado, errar a pronúncia de palavras difíceis. É
isso?

OBREIRA ROSÁRIO Sim, é isso mesmo,.

GABRIEL A senhora sabia que esse receio que a senhora sente tem nome?
LOUQUINHO.

OBREIRA ROSÁRIO Ah é? não sabia, não.

GABRIEL Pois é, tem sim. E a senhora ganhará seus dez mil reais se soletrar
LOUQUINHO o nome desse receio.

OBREIRA ROSÁRIO Só dessa palavra?

GABRIEL Sim, só dessa.


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO E qual é a palavra?

GABRIEL A senhora está pronta?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Sim, acho que estou.

GABRIEL E a torcida, acha que ela está preparada?


LOUQUINHO

EVA e REMO Sim, sim,

GABRIEL Então sonha Brasil. A palavra que a senhora terá que soletrar e que
LOUQUINHO representa o medo que as pessoas têm de falar em público é:
hipopotomonstrosesquipedaliofobia

REMO Meu deus do céu.

EVA Sangue de Jesus tem poder.

GABRIEL Então Rosário? Vai ou não vai? Desiste e perde tudo ou arrisca?
LOUQUINHO

OBREIRO ROSÁRIO Não, não. Preciso do dinheiro, pra minha cirurgia. Vou tentar.

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(com muito custo ROSÁRIO soletra a palavra.
durante a atividade, REMO e EVA torcem muito,
apreensivos e GABRIEL LOUQUINHO faz caretas)

GABRIEL Incrivelmente está… certo. Parabéns, Rosário. Acaba de levar dez mil
LOUQUINHO reais. Está satisfeita?

OBREIRA ROSÁRIO Sim, sim.

GABRIEL Vai continuar para a prova de um milhão?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Se eu errar eu perco tudo?

GABRIEL Sim, perde tudo.


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Ah, então eu paro.

GABRIEL Mas dez mil já pagam sua cirurgia?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Não, ainda não. É que tem um tratamento que vem depois. Mas já é
uma boa parte. O que falta a gente consegue com o trabalho.

GABRIEL Mas não é justo.


LOUQUINHO

REMO Como assim?

GABRIEL Oras, temos uma audiência. Ela assiste ao programa todos os


LOUQUINHO domingos. Gosta de ver as pessoas aqui no palco passando por
tudo para chegar a um milhão de reais.

EVA Mas quase ninguém ganha. A maioria perde.

GABRIEL Mas é por isso que a audiência gosta. Todos querem ver alguém
LOUQUINHO perdendo. Porque assim todos se identificam. Todos são perdedores.

REMO Isso não está certo.

GABRIEL O que não está certo é essa mulher tirar a chance de alguém
LOUQUINHO dispostar a arriscar e depois não ir até o fim.

EVA Não acredito….

OBREIRA ROSÁRIO Eu vou. Vou arriscar.

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GABRIEL Ah, essa é a ideia. Muito bom Rosário, muito bom. Sonho que se
LOUQUINHO sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é um
ótimo negócio. Então….

TODOS (GABRIEL LOUQUINHO animado, EVA, REMO e OBREIRA ROSÁRIO


desanimados) Sonha Brasil.

GABRIEL Agora é uma prova de sorte. A senhora é da igreja, não?


LOUQUINHO

OBREIRA ROSÁRIO Sim.

GABRIEL Então é hora de rezar, porque esse é o jogo do “a sorte está num
LOUQUINHO giro”. Temos aqui uma roleta com cinco alternativas, quatro dizem
“tchau querida” e uma diz “um milhão”. Agora, Rosário, é só girar.

REMO Mas quatro contra um? Não é justo.

GABRIEL Aqui é entretenimento, meu jovem, não é justiça. Vamos lá, Rosário,
LOUQUINHO roda a roda da sua sorte,.

(ela gira a roleta, e acaba sendo sorteado o


expressão “tchau querida”. ROSÁRIO começa a
chorar de forma contida)

A,h, Rosário. Que triste. Perdeu tudo…. já tinha ganhado dez mil reais,
mas acabou perdendo tudo. Puxa, é triste mesmo, quase que
conseguiu pagar sua cirurgia. Mas sonhamos juntos, Rosário, foi um
ótimo negócio, a audiência está lá nas alturas. Lá nas Alturas. Mas
você pôde sonhar, Rosário, pôde sonhar aqui com nosso programa.
O sonho acabou. Agora é seguir a vida concreta. Mas você pode
sonhar.

(a cena do programa se conclui rapidamente a


mesa do jantar é montada, todos estão nos seus
lugares)

OBREIRA ROSÁRIO Meu sonho é um dia ser selecionada para participar do programa e
quem sabe ganhar o dinheiro pra fazer minha cirurgia….

EVA Quem sabe um dia consegue….’’

REMO sei não, mãe, parece mais um lance de ficar expondo as pessoas ao
ridículo.

ADÃO Ah, eu gosto de ver as pessoas ficando com cara de tacho quando
perdem o que ganharam...

EVA Que coisa feia, Adão.

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ADÃO Deixa de besteira. Agora vou pôr no futebol.

EVA Fica a vontade. Rosário e eu vamos pra cozinha passar um café e


fazer uns bolinhos de chuva. Você pode ficar aí vendo o
futebolzinho com o Remo. Você se importa de ver o jogo, Remo?

REMO Não, Eva,. De forma alguma. Vou adorar o futebolzinho com o seu
Adão.

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CENA 9 - Quem paga a banda escolhe a música
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Sala de videoconferência. Os monitores estão desligados. Estão ALBUQUERQUE e GOUVEIA.


Sala dos monitores. Seguram nas mãos os óculos de realidade ampliada..

ALBUQUERQUE (irritado) Puta que o pariu, Gouveia. Puta que o pariu. Quem aquele
porra pensa que é?

GOUVEIA Calma, Albuquerque. Calma. Olha sua saúde.

ALBUQUERQUE Que merda de saúde, Gouveia? Tá brincando comigo? O doente aqui


é você. quem aquele pastor pensa que é?

GOUVEIA Ele é ele, ué? Ele tem influência sobre os outros pastores, sobre o
povo deles… Aquele monte de gente indo pras missas...

ALBUQUERQUE Culto.

GOUVEIA O que?

ALBUQUERQUE Culto. Crente faz culto. missa é coisa de católico.

GOUVEIA É isso, é isso… tanto faz. Ele tem influência sobre os outros pastores,
sobre o povo deles… Aquele monte de gente indo pros cultos.

ALBUQUERQUE Que povo? Quem quer saber de povo? Nem sei porque que esse
povo ainda está solto por aí...

GOUVEIA Calma, Albuquerque. O cara tá com a faca e o queijo na mão pra


negociar. Sabe que é isso, é só negócio.

ALBUQUERQUE é, você está certo. Me excedi. Peço desculpas. São só negócios


(pausa. novamente nervoso) Mas que porra de negócio, heim?
Onde já se viu?

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GOUVEIA Você está é nervoso porque temos sócios novos, não? Esses
pastores são danados. Chegaram mesmo para ficar. (pausa curta)
Não esqueça, às vezes é preciso que as coisas mudem para
permanecerem como sempre foram.

ALBUQUERQUE É.

GOUVEIA E quem diria heim? O candidato da preferência deles é o pior de


todos. (ri ironicamente)

ALBUQUERQUE .Nem sei, não.

GOUVEIA Eu falei, tem candidato ecológico, tem candidato professor, tem até
candidato banqueiro. Mas qual eles escolhem…? (faz “arminha com
as mãos”) o mais maluco deles! (ri) Bom, tudo tem que mudar, não
é?, se quisermos deixar as coisas como sempre foram.

ALBUQUERQUE Mas o candidato deles é o fascistinha que você não queria. Já


mudou de opinião?

GOUVEIA querer eu não quero. Mas os caras querem. E eles têm votos pra
chuchu.

ALBUQUERQUE Já mudou de lado, né?

GOUVEIA Que lado, ô Albuquerque? Tá achando que isso é torcida de futebol?


Tem um lado só nessa história toda. O meu.

ALBUQUERQUE E o meu.

GOUVEIA Estamos do mesmo lado, Albuquerque.

ALBUQUERQUE Nem sei nada desse candidato.

GOUVEIA Eu também não. Mas o que importa? nunca tinha ouvido falar dos
outros também. O que importa é que pagamos a banda. E você
sabe, (começa a dançar uma valsa consigo mesmo) quem paga a
banda escolhe a música. Não importa quem é que toca. O que
importa é tocarem a nossa música.

ALBUQUERQUE De qualquer forma acho que vou pesquisar um pouco para saber
mais a respeito.

GOUVEIA (parando de valsar) Começou a se interessar por política agora,


Albuquerque? Era só o que me faltava (ri)

ALBUQUERQUE Só para saber um pouco mais onde vou colocar meu dinheiro.

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GOUVEIA (fazendo “arminha com as mãos” e rindo ironicamente) E o que é
que tem para saber? O importante é deixar tudo como está! E
nunca esquecer, quem paga a banda, escolhe a música.

ALBUQUERQUE Tenho um pé atrás com esse pastor. Não me parece confiável.

GOUVEIA E quem é que é confiável, ô Albuquerque? (fazendo “arminha com


as mãos”) O importante é deixar tudo como está!

(começam o gesto de colocar os óculos de


realidade ampliada, mas GOUVEIA interrompe sua
ação)

Só não leve a política a sério demais. Estamos aqui pelos negócios,


E nada mais.

(coloca o óculos de realidade ampliada. sentam-se


nas cadeiras)

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CENA 10 - Tem coisas que é melhor não se falar
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No salão da igreja. OBREIRA ROSÁRIO e EVA. OBREIRA ROSÁRIO está organizando a igreja.

OBREIRA ROSÁRIO Muito gentil da sua parte ficar pra me ajudar, Eva.

EVA A senhora sabe que pode contar comigo.

OBREIRA ROSÁRIO Você é nova aqui, mas já ajuda como gente antiga da igreja. Ou até
mais, porque boa parte do povo recebe sua graça e vai aproveitar
dela longe daqui (ri)

EVA (rindo) Pois é…. Mas foi a senhora quem disse...Eu não falo nada.

OBREIRA ROSÁRIO Mas vê, tenho certeza que vê.

EVA (rindo) Né?

(pausa. EVA para o que está fazendo, começa a


chorar e se senta)

OBREIRA ROSÁRIO O que foi minha filha? O que aconteceu? Prendeu o dedo em
algum lugar?

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EVA (em soluços) Não...

OBREIRA ROSÁRIO (sentando-se ao lado dela) Então o que foi?

EVA Nada, dona Rosário. Não quero perturbar a senhora. (levantando-se


e pondo-se a caminhar) Preciso ir, tenho que preparar a janta….

OBREIRA ROSÁRIO Não filha, espera. Me conta o que está acontecendo.

EVA Não quero incomodar….

OBREIRA ROSÁRIO Mas não incomoda nada. Além disso. Ficou pra me ajudar. Deixa eu
ajudar você.

EVA É meu marido, dona Rosário.

OBREIRA ROSÁRIO Ele não parou de sair, não é? É um safado mesmo. Mas Deus sabe o
que faz, minha filha. Logo Deus põe a mão na cabeça dele. Você é
uma moça tão boa, tão bonita. Agora que você tá vindo pra igreja,
logo o diabo não tem mais força pra atazanar a casa de vocês.

EVA Mas não é só isso, dona Rosário.

OBREIRA ROSÁRIO E o que é então? Fala.

EVA É tudo. É essa vida dura. Essa sensação de que nada vai mudar. De
que vamos envelhecer e tudo continuará como sempre foi. Minha
mãe foi uma mulher triste, que viveu pro meu pai. Depois que ele
morreu, continuou vivendo sua vidinha até ela acabar. E acho que é
a mesma coisa comigo. Nem sei mais se Adão tá errado em ter um
caso. ao menos ele tá tentando ser feliz.

OBREIRA ROSÁRIO Não diga isso, filha. Que bobagem. Ele não tá fazendo nada de bom,
não. É o diabo que tá tentando ele. Deus tem gosto do casamento de
vocês. você me disse que ele é o único homem que teve, não?

EVA Disse. (pausa) Mas é mentira, dona Rosário.

OBREIRA ROSÁRIO (levantando-se) Como assim?

EVA Quando eu era nova, tinha uns quatorze anos, tava numa festa da
escola. Quando deu de madrugada eu resolvi voltar pra casa. O
caminho era escuro, era um atalho, por dentro de um terreno
baldio. (pausa) Eu era metida a não ter medo de nada, sabe? Então
eu resolvi seguir aquele caminho. (pausa) Mas tinha uns meninos
que tavam na festa também. Eles tinham mexido comigo e eu
mandei eles se catarem. (pausa) Eles me seguiram (chora
copiosamente) Ninguém mais queria falar comigo, depois. Foi
horrível. (recupera-se, para de chorar) Só o Adão continuou meu

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amigo. Ele me visitava sempre, me ajudava com os deveres da
escola, fiquei meses sem assistir aula. (pausa) A gente foi se
aproximando. Ficando mais íntimo. Acho que os pais dele queriam
que a gente ficasse junto. Os meus também. Um dia nos beijamos.
Começamos a namorar. Não deu seis meses a gente se casou.
(pausa) Aí viemos morar aqui. Não queríamos mais morar em
nossa cidade. Lá é muito pequeno. O povo fica falando de tudo, a
toda hora. Falavam de mim. Falavam do Adão.

OBREIRA ROSÁRIO Falavam o que dele?

EVA Falavam que ele… que ele… Meu Deus… Será que ele?

OBREIRA ROSÁRIO ele o quê, minha filha. Diga logo, que aflição.

(pausa longa enquanto EVA se levanta, caminha a


esmo pelo salão da igreja)

EVA Dona Rosário, acho que tem coisas que é melhor não se falar.

(pausa longa enquanto arrumam a igreja)

OBREIRA ROSÁRIO Sabe, minha filha, os homens são estranhos. Muito estranhos.

(pausa curta)

EVA Mas Deus não se fez homem em Jesus Cristo?

(pausa curta)

OBREIRA ROSÁRIO acho que tem coisas que é melhor não se falar. (pausa) Vamos
terminar de arrumar a igreja?

EVA Vamos sim.

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CENA 11 -Burguesia fascista
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Sala de estar de GOUVEIA e ALBUQUERQUE em cenário não especificado.. Falam ao


telefone. GOUVEIA está bem debilitado.

ALBUQUERQUE Fala, Gouveia? Como está?

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GOUVEIA Eu estou bem. quer dizer, não tá mais tão fácil sair de casa. Mas é
para isso que a casa é grande, né? Mas me diz, cadê você,
Albuquerque? Tinha ficado de passar por aqui.

ALBUQUERQUE Não deu, Gouveia. Desculpa. Estou um tanto ocupado aqui.

GOUVEIA Ocupado com o quê, Albuquerque?

ALBUQUERQUE Estou em reunião.

GOUVEIA Reunião? Que reunião? Reunião com quem?

(pausa)

Que porra de reunião é essa, ô Albuquerque?

ALBUQUERQUE (exitante) Com os pastores.

GOUVEIA Com quem?

ALBUQUERQUE Com os pastores, Gouveia. Os pastores.

GOUVEIA Do candidato?

ALBUQUERQUE Esses mesmos.

GOUVEIA Mas que caralho está fazendo aí?

ALBUQUERQUE Estamos falando da campanha.

GOUVEIA Mas desde quando a gente fala de campanha, porra?

ALBUQUERQUE Agora é diferente, Gouveia. Agora temos que falar. É a chance de


mudar esse país de vez.

GOUVEIA Mas que bobagem é essa, Albuquerque? Que mudar o país o quê?
Isso não muda nada, não muda nunca. Não temos que nos misturar
com essa gente. ‘

ALBUQUERQUE Está na hora de participarmos e dominarmos a política.

GOUVEIA Que política, Albuquerque? Não se trata de política. Esses pastores


ganharam você, e? São só negócios. Não leve isso tão a sério. Deixe
isso aí.

ALBUQUERQUE (irritado) Qual é o seu problema, Gouveia? Tá com medo de quê? É


a nossa chance de ganharmos.

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GOUVEIA Nós já ganhamos, Albuquerque. Ganhamos sempre. (pausa curta)
Não tenho medo de perder nada.

ALBUQUERQUE Então, qual o problema? De perder a vida? Você nem vai durar
muito mesmo…. (pausa) Porra, Gouveia, os tempos são outros.
(triunfante) São outros.

GOUVEIA Olha, Albuquerque, presta atenção. Eu não ligo para o que acontece
em quem está no meu caminho. Ninguém faz fortuna só com
trabalho e sorrisos. Sabemos disso. O jogo é grande, é só quem joga
e adultos.

ALBUQUERQUE O que quer dizer com isso?

GOUVEIA Eu não ligo se para isso precisamos pôr no governo um bibelô ou


um monstro, desde que estejam do nosso lado. E todos até agora
estiveram do nosso lado. E esse aí também estará.

ALBUQUERQUE Então qual o problema?

GOUVEIA O problema, Albuquerque, o problema é começarmos a acreditar


nas ilusões que nós mesmos criamos. (pausa) Bem, as coisas
mudam sempre, não é? Novos tempos, novos hábitos. O importante...

ALBUQUERQUE É que tudo continue como sempre foi.

GOUVEIA Exatamente. E vai continuar. (sentindo um desconforto) Bem,


preciso ir, Albuquerque. Hora de meus remédios. (desliga o telefone)
Que idiota. Que idiota.

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CENA 12 - ROSÁRIO em dúvida
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Salão da igreja. REMO e ROSÁRIO. Acabaram de chegar da rua. ROSÁRIO está muito
cansada e com dor.

REMO A gente vai conseguir esse dinheiro, mãe. A gente tenta em outro
banco

OBREIRA ROSÁRIO (sentando-se em um dos bancos da igreja) Já tentamos em tantos


bancos, filho, tantos bancos. Não adianta mais, não adianta mais.

REMO (abaixando-se ao seu lado)Não desanima, por favor. A gente dá


outro jeito.

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OBREIRA ROSÁRIO Não sei, não sei...

REMO Nem me parece aquela mulher forte, sempre tão confiante, com
tanta fé.

OBREIRA ROSÁRIO É, né… É que a dor é imensa… as vezes cansa. Nem sei se é a dar,
que essa a gente acostuma. Mas a dor atrapalha tanto a vida. Tenho
que cuidar dessa igreja, limpar tudo, deixar pronto. Dá tanto
trabalho… leva tanto tempo… Sobra tão pouco tempo pra fazer
minhas coisinhas.

REMO Mãe, mãe… eu vou tentar trabalhar menos na lanchonete. Vou te


ajudar mais.

OBREIRA ROSÁRIO Não, meu filho, não precisa. Você trabalha tanto e já me ajuda
demais aqui. Você é um menino esforçado demais.

REMO (levantando-se e indo até o púlpito) Poxa, mãe, o que seria dessa
igreja sem você. tem seu suor em cada uma dessas cadeiras, nos
vidros da janela, no piso… aqui (olha e bate no tampo do púlpito),
bem aqui.

OBREIRA ROSÁRIO O que tem nisso tudo é Deus.

REMO É a senhora, mãe. E o pastor Omar deveria reconhecer isso...

OBREIRA ROSÁRIO Ele reconhece….

REMO Deveria reconhecer pagando um salário pra senhora.

OBREIRA ROSÁRIO Mas ele já me dá onde morar. Deixa a gente morar num dos
quartinhos da igreja....

REMO Mãe, ele não dá nada não. Nada disso aqui sai do bolso dele. São os
fiéis que pagam isso tudo. Até a senhora… (sorrindo suavemente)
pensa que não sei que a senhora põe parte do que te dou na
sacolinha da igreja?

(OBREIRA ROSÁRIO sorri)

Mas tudo bem, sei que é importante para a senhora.

OBREIRA ROSÁRIO Queria que fosse pra você também.

REMO Cada um tem sua fé, né mãe...

OBREIRA ROSÁRIO Mas você não tem fé em nada. (geme baixo, põe a mão nas costas)
aí, essa caminhada toda foi pesada hoje.

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REMO Tem que ir descansar um pouco.

OBREIRA ROSÁRIO Mas tenho tanta coisa pra fazer. (pausa) Será que Deus me
abandonou, filho? Será que não faço o suficiente pra merecer a
atenção dele?

REMO ô, minha mãe, mas o que mais ele pode querer? Se aqui é a casa
dele mesmo ele não poderia querer uma mas bem cuidada.

OBREIRA ROSÁRIO Até Jesus se sentiu abandonado na derradeira hora. Que eu teria
melhor que ele?

REMO Acho que não é bem Deus quem te abandonou.

(entra FRANCISCO)

FRANCISCO Desculpe-me, por favor, eu não quis incomodar. Com licença.

(FRANCISCO volta-se, como que saindo


novamente)

OBREIRA ROSÁRIO Não, seu Francisco, por favor. Fique a vontade, não está
incomodando nada, não.

REMO Estamos só descansando um pouco. Acabamos de chegar da rua.

OBREIRA ROSÁRIO Fomos até o banco, para ver o empréstimo.

FRANCISCO (aproximando-se) A senhora havia me contado. E como foi? Espero


que tenha dado tudo certo para a senhora.

OBREIRA ROSÁRIO Ah, seu Francisco, não deu, não. Me negaram o meu pedido.

FRANCISCO Lamento muito dona Rosário, lamento demais. Que crueldade. Creio
que a senhora explicou para que precisa do dinheiro.

OBREIRA ROSÁRIO Sim, expliquei, levei os laudos dos médicos, as chapas, os exames
todos. Mas mesmo assim, negaram.

REMO Alegaram que não haviam garantias suficientes.

OBREIRA ROSÁRIO Pois é...

FRANCISCO não sei o que dizer. Fico desconsolado.

REMO Obrigado, seu Francisco.

OBREIRA ROSÁRIO Obrigada. Mas acho que não tem o que dizer.

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REMO (sorrindo) Mas a situação tá tão dura que até minha mãe começou
a duvidar da vontade de Deus.

FRANCISCO Como assim?

OBREIRA ROSÁRIO Não é nada disso. Só falei que me sinto um pouco abandonada. Mas
passa logo. Deus coloca essas pedras no caminho da gente que é
pra testar nossa fé.

REMO Olha, mãe, acho que quem tá testando a nossa fé é o governo, viu?
E os donos de hospitais privados que cobram os olhos da cara.

FRANCISCO E os bancos, não é?

REMO (rindo) É isso, seu Francisco, e os bancos.

OBREIRA ROSÁRIO E o senhor, seu Francisco. Disse que tentaria falar com seu antigo
patrão. Conseguiu?

FRANCISCO (sentando-se em uma das cadeiras) Gostaria de ter melhores


notícias, mas não, dona Rosário, não consegui. Não conseguirei falar
com ele. Me dei conta da impossibilidade. Depois de tantos anos de
dedicação, não sou nada além de um ex-funcionário.

REMO Poxa vida, que pena, seu Francisco. Fico bem triste pelo senhor.

FRANCISCO Obrigado, menino, obrigado. Muito gentil da sua parte. Mas a


situação é essa.

REMO E o que o senhor pretende fazer agora?

FRANCISCO Fazer? não sei, não pensei nisso ainda. Acho que não tenho mais o
que fazer.

REMO O senhor pode procurar outro trabalho. O senhor é tão educado,


fala tão bem.

FRANCISCO Não se trata só do trabalho. Eu me dediquei tanto ao seu Gouveia e


à sua família, à sua casa. Me dediquei demais àquela casa. Me
sentia como se eu fizesse parte dela, e ela de mim. A conheço
melhor que o próprio Senhor Gouveia. (olhando para ROSÁRIO)
talvez Deus tenha nos abandonado a ambos. Será que Deus nos
abandonou, dona Rosário, será?

OBREIRA ROSÁRIO Será?

(pausa. entra PASTOR OMAR)

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PASTOR OMAR Olá, boa tarde, meus irmãos. Como estão? (para FRANCISCO) E o
senhor, seu Francisco? Está bem acomodado? O quartinho não é
muita coisa...

FRANCISCO Está ótimo, pastor, está ótimo. Não se preocupe. O pouco com Deus
é muito.

PASTOR OMAR Exatamente isso. Esse é o espírito. E você, Rosário? Que semblante
triste é esse, irmã?

REMO Tivemos nosso pedido de empréstimo negado pelo banco.

PASTOR OMAR De novo? Que tristeza, minha irmã. Mas não se esqueça “tomai
modelo no sofrimento e na paciência os profetas, os quais falaram
em nome do Senhor” Tiago, capítulo 5 versículo 10. Então, não
duvide dos propósitos do Senhor.

OBREIRA ROSÁRIO O senhor está certo, pastor.

PASTOR OMAR Quem está certo, é Deus, Rosário, é Deus. Nós só estamos aqui para
seguir e pregar sua vontade.

OBREIRA ROSÁRIO Amém.

PASTOR OMAR Sei que a senhora sofre, sofre muito. Mas não perca sua fé, não
perca sua confiança em Deus.

OBREIRA ROSÁRIO não senhor.

PASTOR OMAR Bem, a prosa está ótima, meus irmãos, mas é preciso trabalhar, não?
Temos culto hoje e é preciso arrumar tudo.

OBREIRA ROSÁRIO Pode deixar, pastor, vai estar tudo arrumado.

REMO Mas mãe….

(ela o olha severamente)

Tá certo,. Eu ajudo a senhora.

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CENA 13 - FRANCISCO desiste I
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Casa de GOUVEIA. GOUVEIA e FRANCISCO. A cena começa de forma realista, mas evolui
para um clima onírico.

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GOUVEIA Francisco? O que você está fazendo aqui? Como você entrou na
casa?

FRANCISCO Senhor Gouveia.

GOUVEIA Como entrou na casa? Como passou pela segurança?

FRANCISCO Senhor Gouveia, não quero lhe fazer mal. Mal algum. Preciso
apenas conversar com o senhor.

GOUVEIA Fazer-me mal, ô Francisco? que mal você pode me fazer?

FRANCISCO Eu...

GOUVEIA Nem esse câncer pode me fazer mal. Pode até me matar. E vai
matar. Mas me fazer mal… Nem ele, e nem você.

FRANCISCO Senhor, eu vim apenas dizer que creio que houve um mal
entendido. Sei que o senhor não tinha intenção de me despedir,
afinal, foram 25 anos, 7 meses, 2 semanas e 2 dias, para ser mais
exato..

GOUVEIA (imitando FRANCISCO jocosamente) 25 anos, 7 meses, 2 semanas e


2 dias, para ser mais exato. Eu sei, Francisco, eu sei.

FRANCISCO Então, senhor….

GOUVEIA Então o quê, Francisco? Então o quê?

FRANCISCO Achei que o senhor gostava do meu serviço.

GOUVEIA Sim, eu gostava, claro. Você sempre foi muito atencioso, discreto,
técnico até...

FRANCISCO (sorrindo discretamente) Obrigado, senhor.

GOUVEIA Me parece até que tinha gosto no seu serviço.

FRANCISCO E eu tenho, senhor, sempre tive.

GOUVEIA Como?

FRANCISCO Sim, pode acreditar. Sempre servi ao senhor com muito gosto. Sei
da importância de manter essa casa funcionando bem para o sen...

GOUVEIA Mas quem, pelo amor de deus, gostaria de ser mordomo por gosto?

FRANCISCO Senhor?

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GOUVEIA Francisco, Francisco, meu bom Francisco. Quem gosta de servir?
Que vida miserável deve levar você para se sentir feliz em servir
alguém.

FRANCISCO Mas me sinto importante no trabalho...

GOUVEIA Esse é o problema, sabia? Esse é o problema. Vocês aceitam


qualquer trabalho e acham que eles são importantes. Não são, meu
bom Francisco, meu tolo Francisco. É só algo que você faz por
alguns trocados; Trocados suficientes para se manterem vivos. Isso
não é importante, e nem te faz importante. Se você fosse um
cirurgião, um professor universitário, ou mesmo um artista de
novela você seria alguém importante. Mas é só alguém que serve.
Quando não estava trabalhando, o que estava fazendo?

FRANCISCO Ficava em casa. Descansava para o dia seguinte.

GOUVEIA Vê, meu Francisco? Você não vê além além da sua bandeja.

FRANCISCO Senhor, eu sempre fui honrado, sempre fui trabalhador. Eu nunca


fui de pedir emprestado nada a ninguém, nunca me atrasei, nunca
faltei.

GOUVEIA Eu sei, o trabalho é sagrado.

FRANCISCO (animando-se) Sim, é isso. O senhor entende, eu sei. Também


trabalha demais.

GOUVEIA (apontando um copo de água sobre uma mesinha) e ajude aqui,


sim?

FRANCISCO (apressadamente servindo-lhe um copo de água) Claro, senhor.


Será um prazer.

(GOUVEIA toma um pouco de água)

GOUVEIA como nos velhos tempos, não, Francisco?

FRANCISCO Sim, senhor, como nos velhos tempos.

GOUVEIA Francisco, lembra-se de quando lhe falei sobre minha mão? Sobre
todos estarem em minhas mãos?

FRANCISCO Sim, me lembro, senhor.

GOUVEIA Mas deve se lembrar que eu falei sobre mãos maiores ainda, e que
eu estou em algumas delas.

FRANCISCO Sim, senhor, me lembro. O senhor disse que algumas delas nem
falam português.

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GOUVEIA (sorrindo) Realmente você se lembra, heim? Pois é. Você tinha dito
que não conseguia entender...

FRANCISCO É verdade, senhor, ainda é muito difícil entender.

GOUVEIA É por isso que você é o mordomo. E eu o patrão. Olha, Francisco.


Você está respondendo por um crime. Você chegou a ser preso. Eu
não posso ter entre meus criados alguém nessa situação.

FRANCISCO Mas senhor, eu não fiz nada de errado, apenas assinei um


documento como o senhor pediu.

GOUVEIA Francisco, Francisco. Você receberá um bom dinheiro. Eu assegurei


que seus direitos fossem cumpridos, e você ainda recebeu uma boa
compensação. Mas não me peça para manter entre meus criados
alguém que precisa prestar depoimentos numa delegacia.

FRANCISCO Mas senhor, veja, não se trata apenas de dinheiro. Pense em minha
dignidade.

GOUVEIA Não seja bobo. Onde já se viu, um homem do seu tamanho, na sua
idade. Quem está falando de dignidade? Tem o seu dinheiro. Agora,
nunca mais fale nada sobre ter assinado qualquer documento para
mim. Você tem um bom dinheiro para ficar quieto.

FRANCISCO Mas não quero seu dinheiro. (começa um choro contido) Quero seu
respeito, senhor.

GOUVEIA Meu respeito? Oras, deixe disso.

(FRANCISCO deita-se no chão, chorando)

GOUVEIA Olha a sua situação. Por favor, pare com isso.

FRANCISCO Eu só queria o respeito do senhor. Que o senhor me respeitasse


pelo meu trabalho. Minha dignidade...

GOUVEIA Deixe disso, homem. Deixe disso. E me diga, como conseguiu entrar
na casa. Gostaria de saber, como conseguiu entrar na casa...

(apagão, ficando apenas uma luz a pino sobre


FRANCISCO, que chora no não, cada vez mais
forte, até que grita. GOUVEIA sai)

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CENA 14- FRANCISCO desiste II
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Quartinho na igreja. Francisco deitado acorda assustado.

FRANCISCO (gritando) Não.

ROSÁRIO (entrando) Seu Francisco, seu Francisco. O que houve? O senhor tá


bem?

REMO (entrando) Mãe, tudo bem aí? Seu Francisco, o que houve?

FRANCISCO (acordando. para REMO, um tanto desorientado) Ai, meu deus. Seu
Gouveia, seu Gouveia...

REMO (terno) Não, seu Francisco. Não sou o Gouveia, sou o Remo,
lembra-se? O filho da dona Rosário.

FRANCISCO (recobrando a razão, um tanto desconcertado) Ah, sim, sim. Me


desculpa, por favor. Eu...eu acho que tive um sonho… só isso...

REMO Tudo bem, tudo bem. Fique em paz, seu Francisco.

FRANCISCO (para ROSÁRIO) Ele é bom menino….

ROSÁRIO Sim, ele é mesmo. Um anjo em minha vida. Tenho muito orgulho
dele. Deus me abençoou com um bom menino.

REMO

REMO Ô, Mãezinha. Sou eu quem tenho muito orgulho da senhora, viu?


Se tá tudo bem aqui, o bom menino vai voltar pra cama agora.
Quero ver se durmo mais um pouquinho antes de ter que ir pro
batente.

ROSÁRIO Sim, melhor irmos mesmo pro seu Francisco poder descansar.

FRANCISCO Dona Rosário, a senhora, por favor, poderia ficar mais uns
minutinho? Por favor.

(ROSÁRIO e REMO trocam olhares, ele faz que sim


com a cabeça como quem diz que está tudo bem)

ROSÁRIO Claro, seu Francisco, posso sim ficar mais um pouquinho.

REMO E eu vou nessa. Bom noite, mãe, vê se não demora muito, heim?
Seu Francisco precisa descansar. (seu celular recebe uma
notificação de mensagem) Eita, que foi agora? (Ele a lê)

ROSÁRIO Que foi filho?

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Alegria de pobre dura pouco, né, mãe? Tenho que ir mais cedo pro
trabalho hoje. Vou me arrumar e sair

ROSÁRIO Mas já, filho?

REMO Pois é…. a lanchonete tá recebendo uns produtos que são entregues
só de madrugada, mas um dos meninos faltou, aí o chefe tá me
chamando...

ROSÁRIO Mas isso não tá certo….

REMO Mas o que é que tá certo no mundo, mãe? (sorri).

FRANCISCO Ele está certo.

REMO A benção, mãe.

ROSÁRIO Deus te abençoe, meu filho. Vai com deus.

REMO Amém. Tchau, seu seu Francisco. Vê se dorme, heim? Amanhã vai
estar novinho em folha. (sai)

FRANCISCO Boa noite, menino. (espera um instante antes de começar a fala).


Dona Rosário, a senhora tem sido uma mulher muito boa para
mim. Muito boa mesmo.

ROSÁRIO Não precisa dizer isso. Não fiz nada diferente do que se espera de
uma serva de deus.

FRANCISCO Sim, sim. Eu sei. Mesmo assim, a senhora fez mais do que muita
gente já fez. E eu quero lhe mostrar algo.

(FRANCISCO pega sua carteira e tira um envelope)

Olha, a senhora sabe que eu fui acusado de...

ROSÁRIO Seu Francisco, não precisa tocar nesse assunto, sei que é muito
angustiante para o senhor….

FRANCISCO Só quero que a senhora acredite que eu sou inocente.

ROSÁRIO Mesmo que não fosse, eu não o julgaria, não posso fazer isso.

FRANCISCO Mas eu sou inocente.

ROSÁRIO Eu acredito, seu Francisco. Eu acredito.

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FRANCISCO Veja, olha isso. (estende a mão com o envelope para ela) é o meu
extrato de banco.

(ROSÁRIO pega o envelope e tira de dentro dele o


documento, desdobra-o e quando lê o seu
conteúdo toma um susto)

ROSÁRIO Meu deus, é muito dinheiro.

FRANCISCO Sim, é sim.

ROSÁRIO É todo seu?

FRANCISCO Sim, ele é. Seu Gouveia o depositou em minha conta… Disse que é
uma compensação….(pausa) Mas acho que é pra eu ficar calado e
aceitar tudo o que tá acontecendo.

ROSÁRIO Que pilantra. Mas, bem… É muito dinheiro. O senhor vai devolver?

FRANCISCO Devolver como? E isso nem é nada para ele...

ROSÁRIO Vai denunciá-lo para a polícia?

FRANCISCO Pensei nisso. Mas isso não traria minha dignidade de volta.

ROSÁRIO Como não? Todo mundo vai saber que o senhor é inocente...

FRANCISCO Dona Rosário, a senhora não está entendendo. Eu dediquei toda a


minha vida a trabalhar naquela casa. Eu conheço cada canto dela,
cada empregado que já passou por lá. Os fornecedores de comida,
as preferências do doutor Gouveia e da sua esposa. Eu sei cada
comprimido que ele toma, em qual horário. Eu cuidava de tudo.
Tudo...tudo. Agora….

ROSÁRIO Agora?

FRANCISCO Agora, é só nada. Minha dignidade está naquela casa, naquele


trabalho,. Nada vai trazer isso de volta. Eu já me preparava para
servir ao Doutor Gouveia até o último minuto de sua vida. Já tinha
imaginado falar dele para as pessoas, contar como ele era. Eu tinha
certeza que a família me manteria lá. Eu sempre trabalhei muito
próximo a ele, acho que era a pessoa que ele tinha mais próximo…
claro, depois da esposa… mas nem ela ouvia as coisas que ele falava
em reuniões ao telefone como eu ouvia. (pausa) Mas agora…. agora
é só nada. (pausa) Não dona Rosário, não vou denunciar nada.
Nada vai mudar. (pega o envelope da mão dela e começa a anotar
algo nele.) Esse é número da senha de minha conta. (pega o cartão
de banco na carteira. Entregando ambos a ela) Fica com eles.

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ROSÁRIO Não, seu Francisco, eu não posso. Por favor.

FRANCISCO Dona Rosário. Eu quem lhe peço por favor. Fica com eles. Por favor,
fica com eles. (se deitando e se preparando para dormir) Fica com
eles. Depois conversamos. Por favor.

ROSÁRIO Ai, seu Francisco. Tá bem, tá bem. Amanhã eu devolvo pro senhor.
Agora descansa, heim. Vê se dorme.

FRANCISCO Obrigado, dona Rosário.

ROSÁRIO Até amanhã, seu Francisco. Fica com deus.

Francisco Até amanhã, dona Rosário. Até amanhã.

(ROSÁRIO sai. FRANCISCO levanta-se, pega um


pedaço de papel, uma caneta e começa a escrever)

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CENA 15 - Escolhas e caminhos
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Praça. REMO está sentado no encosto no banco, assobia uma música animada. Está
sorrindo.

REMO (entrando e caminhando em direção a ADÃO, abrindo os braços


para abraçá-lo) Olá, meu lindo, tudo bem? Aconteceu algo?

ADÃO (empurrando-o com força) Que porra que foi aquilo lá em casa,
seu puto?

REMO Fico louco?

ADÃO Que porra foi aquela lá em casa?

REMO Você tá bêbado?

ADÃO Que merda você foi fazer em casa?

REMO Caralho, Adão. Não sabia que minha mãe conhecia sua esposa. Faz
dias que estou tentando falar contigo pra falarmos a respeito, mas
você não atende.

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ADÃO Puta merda. Puta merda. Que merda você foi fazer em casa?
(sentando-se no encosto do banco). Cara, é minha casa, é minha
família.

REMO Eu não sabia que minha mãe e sua mulher se conheciam. Eu não
sabia que era sua casa…. (com disfarçado desdém) sua família.
Minha mãe disse que ia visitar uma nova amiga da igreja, pediu
pra eu ir junto, não tinha nada pra fazer, queria deixar minha mãe
feliz. Ela reclama que passo pouco tempo com ela. Ela é muito
sozinha, só tem a igreja e eu. Me convidou a ir, eu.. sei lá… aceitei
pra deixar ela feliz… Não sabia que era a sua casa...

ADÃO Puta merda...

REMO (Indo até ele, para abraçá-lo) Ah, gato deixa disso…..

ADÃO Que gato o caralho…. sai de perto de mim. Eu não sou viado, eu sou
viado., porra.

REMO Ah, não é viado? É o que então, porra? Vc come meu cu, caralho.
Pede pra eu comer o seu… É o que então?

ADÃO Cala a porra da boca.

REMO Tá com medo do que? De que sua mulherzinha descubra que você
tem um caso? Ou só não quer saber que ela saiba que tem um
caso com outro cara?

(ADÃO parte pra cima de REMO. O esmurra.


REMO cai ao chão. ADÃO o chuta duas vezes.
REMO consegue se levantar e empurra ADÃO
quando ele investe para atacá-lo novamente.
ADÃO cai sentado no banco e começa a chorar)

ADÃO (Chorando, com o rosto entre as mãos) Eu não sou viado… não sou….

REMO (Sentando-se ao lado de ADÃO, colocando a mão em seu ombro,


fraternalmente) Calma, vai. Fica calmo.

(ADÃO agarra REMO e o beija na boca, logo o


beijo se torna agressivo. REMO, com esforço, se
desvencilha, ficando em pé)

Tá louco, cara? Tá achando que vai me comer à força?

(ADÃO se lança contra REMO novamente tentando


beijá-lo à força outra vez enquanto o empurra
para o banco, pondo de costas para ele, enquanto
tenta abrir o zíper da própria calça, mais uma vez
REMO consegue desvencilhar-se e afastar-se)

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Você, pirou, pirou geral. Sai daqui, maluco. Sai daqui. Não quero te
ver nunca mais.

ADÃO (sacando de sua arma e encostando a boca do cano na testa de


REMO) Seu puto!

REMO Vai, atira, seu filha da puta. Atira. Seja homem uma vez na vida.
Assume uma vez sua bronca, vai. Atira, caralho, (gritando) atira.

(Lentamente ADÃO abaixa a arma, caminha até o


banco e começa a chorar)

Achei que você seria homem uma vez na vida. Mas se não foi nem
pra assumir quem é, não seria pra puxar seu próprio gatinho. Você
é um bosta de um filha da puta.

ADÃO Te odeio, cara. Olha o que fez comigo. Olha no que me transformou.
Quase destruiu minha família.

REMO Você está louco, cara. Muito louco.

ADÃO Eu sei o que é você. Você é um bosta de um comunista. É isso o


que é. Você é um comunista. (gritando) Comunista.

REMO Não, não sou comunista, não. Nem sei o que é isso. Mas quer saber
de uma coisa. Eu vou é descobrir o que é um comunista. Vou sim.
Certamente é alguém bem melhor do que você. (sai)

ADÃO Remo, Remo…. volta aqui, porra. Volta aqui seu puto. volta.
Comunista, comunista. Vai embora seu, comunista. (volta a chorar,
senta-se, coloca o rosto entre as mãos)

(entram dois fascistas)

FASCISTA 1 Olha só, não falei que nessa praça só tem viado?

FASCISTA 2 Eita viadinho chorando.

ADÃO (pondo-se em pé rapidamente) Quem falou em viado? Sou viado


não, caralho..

FASCISTA 2 Viu isso? A bichinha é brava….

ADÃO (puxa a arma, apontando a ar ora para um, ora


para o outro,)

FASCISTA 1 Viado adora segurar um cano.

FASCISTA 2 Mas será que sabe usar essa porra? Atira, viado, Vai. Atira se é
macho.

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(ADÃO segura aponta a arma para o rosto de
FASCISTA 1, mas sua mão treme. não consegue
atirar. FASCISTA 2 acerta suas costas com um
taco,. ADÃO cai no chão. FASCISTA 1 e FASCISTA
2 começam a espancá-lo.)

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CENA 16 - EVA encontra Jesus
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Igreja. OBREIRA ROSÁRIO aflita, anda de um lado para o outro.

EVA (entrando) Rosário, vim assim que consegui. Também estou


desesperada. Acredita que o Adão não passou a noite em casa?
Saiu pro futebol e não voltou, de madrugada mandou mensagem
dizendo que estava num bar com os amigos do futebol. Deve estar
é com uma quenga... perdão, com umazinha por por aí…. ai ai
sangue de Jesus tem poder...

ROSÁRIO Eva, por favor….

EVA Mas vou te falar, viu? Se quando ele chegar em casa não tiver
uma boa desculpa eu vou….

ROSÁRIO Eva...

EVA (sentando-se em uma cadeira) Ele não perde por esperar….

ROSÁRIO (gritando) Eva.

EVA (levantando-se em sobressalto) Ai, Não grita. O que foi? Que


aconteceu que me chamou tão cedo?

ROSÁRIO (apontando para a lateral do palco) Vá lá, é o quarto do seu


Francisco.

EVA Aquele senhor que você abrigou?

ROSÁRIO É ele mesmo. Vá lá.

(EVA começa a caminhar em direção à lateral do


palco, mas exitante, até parar antes de chegar lá)

(Insistentemente) Vai logo, Eva.

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(EVA sai de cena, como indo ao quarto de
FRANCISCO. EVA, ainda fora de cena, grita)

EVA (Voltando ao palco) Meu deus do céu. Sangue de Jesus tem poder.
Ele tá… ele tá….

ROSÁRIO Ele tá morto.

EVA (Sentando-se na cadeira) Meu deus do céu…. o que aconteceu? Foi


o coração?

ROSÁRIO Não. Ele se matou, Eva. Deixou isso aqui. (estende a ela a mão que
segura o bilhete)

(EVA pega o bilhete e o lê)

EVA Ele te deixou um dinheiro. Que dinheiro?

(Estende a ela a mão que segura o extrato


bancário. EVA o pega o abre e toma um susto)

Rosário do céu, é muito dinheiro. Sua operação. Ele deixou o


dinheiro pra sua operação. De onde veio esse dinheiro? Ele era
traficante?

ROSÁRIO Não, não era. O patrão dele deixou pra ele. É uma história enrolada,
mas não é dinheiro sujo, não. Era dele, ele merecia.

EVA E agora é seu. Merecidamente seu. (Levanta-se e abraça EVA) Que


bom, minha amiga. Que alegria.

ROSÁRIO Obrigada.

EVA Mas agora precisamos saber o que fazer. Você chamou a polícia?
Precisamos avisar as autoridades.

ROSÁRIO Não, ainda não. Chamei você, e chamei o pastor, ele pode nos
aconselhar melhor.

EVA Entendi. Tadinho do seu Francisco.

ROSÁRIO Morreu de tristeza, coitado.

EVA Tadinho.

ROSÁRIO E seu marido? Você disse que ele sumiu….

EVA É… Não é bem sumiu… mas saiu pra jogar bola e não voltou. Só de
madrugada que deu sinal de vida….

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ROSÁRIO Ah, esses homens. Meu marido ele tinha a mania de….

(Entra o PASTOR OMAR)

PASTOR OMAR Ô de casa.

ROSÁRIO Ai pastor, que bom que o senhor. Finalmente

EVA Olá, Pastor.

PASTOR OMAR Olá dona Eva, como vai a senhora?

EVA Vou bem, obrigada.

PASTOR OMAR E, o que houve, Rosário? Em nome de Deus o que aconteceu que
me chamou a essa hora?

ROSÁRIO Ai, Pastor, olha lá no quartinho.

PASTOR OMAR Onde está o seu amigo?

(ROSÁRIO assente com a cabeça. PASTOR OMAR


vai até lá e volta)

Meu Deus do céu. O que aconteceu com ele?

(ROSÁRIO começa a estender a mão para entregar


o bilhete deixado por FRANCISCO para PASTOR
OMAR, mas EVA impede que isso acontece
chamando a atenção do PASTOR OMAR)

EVA Ele se matou, Pastor. Estava muito triste. Se matou. Acho que
precisamos chamar a polícia, não?

PASTOR OMAR Sim, sim, precisamos. Vamos chamar (pausa curta) daqui há pouco.
E ele não deixou nada escrito?

(ROSÁRIO e EVA se entreolham)

ROSÁRIO Deixou sim, pastor.

(entrega-lhe o bilhete. PASTOR OMAR o lê)

PASTOR OMAR Dinheiro? Ele te deixou dinheiro, Rosário? Que dinheiro, em nome
de Deus? Quanto?

EVA Coisa pouco, Pastor, quase nada.

PASTOR OMAR E quanto é “coisa pouca quase nada”?

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(ROSÁRIO lhe entrega o extrato bancário)

EVA Não é bom, Pastor? Rosário agora poderá fazer sua cirurgia. Depois
de tantos anos vai acabar de uma vez por todas com tanta dor que
sofre.

PASTOR OMAR Sim, claro. É dinheiro suficiente pra fazer sua cirurgia e até arranjar
uma casinha pra ela. Não precisará mais dormir aqui na igreja.

EVA (aliviada) Pois é….

PASTOR OMAR Se, é claro, ela parou de crer em Deus, nosso senhor e em seu filho,
Jesus Cristo.

EVA Como assim?

PASTOR OMAR Dona Eva, Deus tem um propósito a cada um de nós, um plano pra
cada um. Ele provê tudo o que precisamos. Mas provê o que é
necessário, não o luxo. O luxo quem oferece é o inimigo. Mas Deus,
Deus dá sem cobrar, o satanás cobra, e cobra caro. Ou a senhora
esqueceu como é?

EVA Mas Deus está provendo pra Rosário. Deus pôs esse anjo, o seu
Francisco, no caminho dela.

PASTOR OMAR Dona Eva, que empáfia a da senhora. “Pois todo aquele que a si
mesmo se exaltar será humilhado, (para OBREIRA ROSÁRIO) e
todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado” (para
EVA) Isso é Mateus, Mateus 23, 12. A senhora se esqueceu de
Mateus, irmã? Estou aqui para lembrá-la.

ROSÁRIO Amém.

PASTOR OMAR (para OBREIRA ROSÁRIO) Amém. (para EVA) Essa sua postura é
um pecado, a irmã sabia? Quem a senhora pensa que é pra me dar
aula? Aula sobre os desígnios de Deus. Não, não, não, não. Não de
forma alguma. (pausa. didático) Francisco parecia um bom homem.
Muito solícito, muito humilde. (pausa) Mas é um suicida.

OBREIRA ROSÁRIO Amém.

PASTOR OMAR Amém, amém, irmã. Francisco era um covarde que pensou que
podia fugir da vontade de Deus. “O Senhor prova o justo”, irmã
Eva, “O Senhor prova o justo. Mas sua alma odeia o ímpio.” Se ele
tinha problemas, é porque Deus o quis provar. Mas ele deixou pelo
caminho a prova do Senhor. Optou por ser o ímpio, e não o justo.

EVA Pastor….

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PASTOR OMAR (levantando a voz) Dona Eva, por acaso Jó tentou se aproveitar do
acaso ou dos suicídios alheios para fugir das provações impostas
por deus? Ele por acaso o questionou?

EVA Não é disso que estou falando, Pastor, desculpa. É que eu pensei
que….

PASTOR OMAR E onde está escrito, dona Eva, onde está escrito na Bíblia que o
papel da senhora ou de qualquer outro fiel é pensar sobre as
decisões divinas? Quem é a senhora, afinal? O que quer? É um
“espírito livre”? Acha que pode fazer como quer? E a unidade, dona
Eva? E o espírito de corpo da igreja? Saiba a senhora (em um tom
de voz mais alto e impositivo) que o sangue e a dor nos iguala em
Cristo.

EVA Pastor, é que eu….

ROSÁRIO (de forma austera) Eva, pára.

EVA Rosário, eu só….

ROSÁRIO Eu disse para parar, Eva. O Pastor está certo. (para PASTOR OMAR)
Peço desculpas pela Eva, pastor, ela é nova na igreja. Ainda está
aprendendo. A culpa é minha se ela ainda está aprendendo muito
devagar.

PASTOR OMAR Não se culpe, irmã. Não se preocupe.

ROSÁRIO E pastor, eu...

PASTOR OMAR Diga, Rosário.

PASTOR OMAR Eu acho que o dinheiro do seu Francisco deveria ficar aqui para a
igreja.

EVA Rosário, e sua cirurgia?

ROSÁRIO Que cirurgia, Eva? A cirurgia quem opera é Deus.

EVA Rosário….

ROSÁRIO Não quero mais falar disso, Eva. Aprenda agora, ou pode ir embora,
se quiser. Pode ir embora aqui da igreja.

EVA Eu...

ROSÁRIO Não quero me perder na danação.

EVA Rosár...

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ROSÁRIO Eva, você é uma amiga que fiz na igreja, e fora da igreja, não tem
nada pra mim. Se quer continuar a ser minha amiga, é aqui na
igreja, ou em lugar nenhum. Você consegue entender?

EVA Sim.

ROSÁRIO Ou você crê em deus misericordioso, ou não crê….

EVA E sua dor?

ROSÁRIO O sangue e a dor nos iguala em Cristo. (pausa) Todo mundo tem
dor. Cada um tem a sua, e foi Deus quem deu. Aceitar Deus é
aceitar a dor que ele deu. Eu aceito a minha. Você vai aceitar a
sua?

EVA Eu...

ROSÁRIO Aceita a sua?

EVA É que eu….

PASTOR OMAR “Busquem o Senhor enquanto é possível achá-lo; clamem por ele
enquanto está perto." Eva, “clame por ele enquanto está perto”.... O
cavalo não vai passar duas vezes na sua frente, minha filha, ou é
agora ou você vai pra danação… Aceita Cristo como seu salvador?
Aceita? Diz, aceita?

EVA (em êxtase) Aceito, aceito, aceito. (cai de joelhos. começa a chorar)
Meu Deus, eu aceito. Não aguento mais sofrer, não aguento mais
viver.

(PASTOR OMAR começa a andar de um lado para


outro por trás de EVA, um tanto recurvado,
falando rápido)

PASTOR OMAR Aceita Jesus? Aceita Jesus?

EVA Aceito.

PASTOR OMAR Aceita Jesus como seu único salvador?

EVA Aceito.

PASTOR OMAR Aceita a igreja de Jesus como sua única e segura casa?

EVA Aceito. Aceito. Aceito.

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(PASTOR OMAR se aproxima de EVA coloca uma
de suas mãos em sua cabeça, e a outra aponta
para cima, iniciando uma oração)

PASTOR OMAR Deus, pai misericordioso, tenha piedade dessa sua serva, nossa irmã
Eva, que como todos nós é mesquinha e cheia de desejos espúrios,
mas que com os sacrifícios aprendemos a controlar. Deus, aceita
essa sua serva, pecadora, mas sua filha. Amém.

EVA e ROSÁRIO Amém.

PASTOR OMAR Levanta, irmã (EVA se põe em pé) Deus te aceita. Me dá cá um


abraço. (Ele abraça EVA) É isso. Agora preciso ir, vou falar com a
polícia. Tenho um amigo,, delegado, vou falar com ele. Ele vai ajudar
a lidar com a situação sem chamar muita atenção. A igreja tem
muitos inimigos e não queremos que eles tenham o que comentar,
não é mesmo? Passar bem irmãs.

EVA Passar bem, Pastor.

ROSÁRIO Amém, Pastor.

PASTOR OMAR Amém.

(PASTOR OMAR começa a caminhar em direção à


saída, mas então e se volta para ROSÁRIO)

Irmã, Rosário, estava me esquecendo, me dê o cartão do banco do


Francisco e o número da conta, por favor.

(ROSÁRIO os entrega)

Bem, não contem a ninguém sobre o que aconteceu aqui nem o


que conversamos. Passar bem. (sai)

(ROSÁRIO fica em pé, vai para a boca da cena,


levanta os braços)

ROSÁRIO Venha, Eva, venha. Vamos orar.

(EVA vai até ela, e levanta os braços. Ambas


abaixam a cabeça)

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CENA 17 - GOUVEIA transfere dividendo
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Sala de estar de GOUVEIA. ele está na poltrona, veste pijama e tem uma coberta sobre as
pernas,. Ele recebe o soro que está pendurado em um suporte, ao seu lado. Também recebe
oxigênio. Está bem debilitado.

GOUVEIA Alô, Albuquerque. Como vai? Eu, eu estou na mesma: sempre


piorando. (ouve) É um câncer terminal, né, só piora… O médico disse
que é uma questão de dias agora. Não, não tenho dor, estou mais
que medicado. Tem mais remédio para contenção de dor em
minhas veias do que sangue, o problema é que quando mijo sai um
troço preto, gosmento. Horrível. (ouve) É, é uma questão de dias.
Não, não, está tudo bem. Sabe o que penso: a vida é só mais um
investimento. Vivi tudo o que o dinheiro pode pagar, e como tenho
muito dinheiro, valeu a pena. Olha, uma vez, num programa de TV,
eu vi um comunista perguntando, de zombaria mesmo, onde os
ricos morrem. E ele mesmo respondeu: em suas mansões. Afinal,
rico não precisa ir ao hospital, ele monta um hospital em sua casa.
E não é que ele acertou? (ri) Comunista maldito, acertou mesmo.
Uma ala inteira aqui da casa transformada em hospital. Mas é isso,
Albuquerque, não estarei mais aqui quando as eleições ocorrerem,
mas ainda me preocupo. (ouve) Sim sim, eu sei que vai dar tudo
certo, sempre deu, não é mesmo? No fundo, sabemos que cada
eleição é só pra escolher o síndico, o prédio, o prédio é sempre
nosso. Mas ainda me preocupo com esse candidato, ele é meio
maluco. E o povinho dele, vou te falar, não fica atrás, não. (ouve) É
você, está certo, quando cansarmos dele, a gente coloca outro. E
não é o que sempre fizemos? (ouve) Não, não quero que o Pastor
faça oração nenhuma para mim. Se deus existir deve ser dos
nossos, vai me receber bem… (ouve) Ué, já viu líder religioso
vivendo na pobreza? (ri) O papa é pop, Albuquerque, o papa é pop
(ri. ouve) Não, não, não pense nisso. Ricos não morrem apenas
transferem os dividendo. Albuquerque, ouça bem: eu sinto que esse
candidato vai fazer besteiras, é um pressentimento. Olha, se ele
começar a enfiar os pés pelas mãos, devem todos se afastar dele,
heim? Não, Albuquerque, que nação, que pátria? É o lucro,
Albuquerque, é o lucro, nossa pátria é o lucro. Tenho muito dinheiro
investido nisso, não quero perder dinheiro. (ouve) Eu sei que estarei
morto, mas o dinheiro não morre, e continua sendo investimento
meu. Tenho herdeiros, porra, já não disse que rico não morre, só
transfere dividendos? Então, estou transferindo os meus. Atenção,
não deixe esse maluco melar nossos lucros, qualquer bobagem,
troca pelo que tiver. No fundo, esses políticos só querem as

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mesmas coisas. (ouve) Querem ser como nós, que mais poderia
ser? Quem ia querer outra coisa? (pousa a mãos com o telefone
sobre o peito. pausa volta com o telefone ao ouvido) Albuquerque,
acho que preciso desligar. (ouve) Não, não nos falamos depois.
(ouve) Ué, porque eu vu morrer, porra. Não vai haver depois para
mim, mas vida que segue. Transfiro meus dividendos. Boa noite,
Albuquerque. Adeus. (desliga o telefone) É um idiota. Sempre foi.
(Desfalece)

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CENA 18 - EVA encontra um ANJO
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Casa de ADÃO e EVA. EVA entra em casa. Percebe-se que ela está em choque. EVA liga a
TV e se senta para ouvir um culto transmitido. Ele assiste ao programa e lentamente
adormece. A luz vai baixando na medida em que ela pisca mais lentamente até adormecer,
ficando então apenas uma luz a pino sobre ela, não muito forte. Ocorre um barulho e ela
acorda assustada.

EVA (assustada) Quem está aí? É você, Adão? (mais assustada) Quem
está aí? Socorro, ladrão! Ladrão!

(o cenário se ilumina, ANJO está sentado à mesa)

ANJO Não, não sou ladrão nenhum, Eva.

EVA Socorro! Socorro!

ANJO Não precisa gritar, Eva. não vou te fazer mal algum. Também nem
vai adiantar. Ninguém pode ouvir você.

EVA Como assim? Quem é você? Que está fazendo aqui? Como entrou?

ANJO Você me chamou, Eva. Por isso estou aqui.

EVA Eu chamei? Como assim?

ANJO (levantando-se e indo até ela) Sim, você me chamou. E agora estou
aqui.

EVA (afastando-se dele, com receio, em direção à mesa) Como assim?


Além de ladrão é louco.

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(ANJO abre suas asas)

Meu deus do céu...

ANJO Você me chamou.

EVA (ajoelhando-se) Você é Deus!

ANJO Não. Aí é demais. Não sou Deus. Sou um anjo. Só um anjo. Mas um
anjo de verdade. E por favor, levante-se, isso é deprimente.

(EVA levanta-se e vai até ele)

EVA (EVA extasiada, andando ao redor dele, tocando nas asas de ANJO)
Você é um anjo de deus. Um anjo de verdade.

ANJO Seja lá o que você chama de verdade...

EVA Heim…?

ANJO Nada, não. Deixa prá lá. Sim, sou um anjo.

EVA Meu deus do céu…..

ANJO Você queria falar comigo….

EVA Um anjo…. um anjo de verdade. Nem sei o que dizer….

ANJO Não sabe o que dizer? Mas estava até agora pouco se lamuriando
toda.

EVA Você poderia… é…. mexer suas asas novamente?

(ANJO abana suas asas)

EVA Um anjo de verdade. Quem diria? Se eu contar ninguém acredita….

ANJO É….

EVA Minha mãe ficaria emocionada… Tão emocionada.

ANJO As mães tendem a ser muito emotivas, mesmo. Às vezes


excessivamente…. Freud explica bem isso. A minha era uma
manteiga derretida.

EVA Anjos têm mães?

ANJO Por que não teríamos?

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EVA Eu achei que…. bem…. Sei lá, imaginava tantas coisas quando era
criança.

ANJO Ah é….?

EVA É… mas agora eu… (entre excitada e acanhada) Eu não sei se deveria
perguntar. Sei lá… a cabeça de criança é danada, pensa muitas
bobagem.

ANJO E tem gente que é criança pra sempre, né….

EVA Como?

ANJO Não param nunca de pensar bobagem. Nunca.

(riem com complicidade)

EVA Sonhei tanto com uma chance dessas… Falar com um anjo. Um anjo
de verdade.

ANJO Aqui estou eu….

EVA Aí está você…. e Nem sei o que dizer….

ANJO Tudo bem, essa é minha última visita hoje... Tenho tempo.

EVA Você visita muita gente?

ANJO É um serviço movimentado. Muita gente pedindo isso, pedindo


aquilo, clamam, suplicam, imploram…. você aparece, elas ficam sem
ter o que dizer. Depois, quando vou embora, começam novamente:
clamam, suplicam, imploram….

EVA Do jeito que fala parece até que é um trabalho chato….

ANJO É um pouco, né? Trabalho é trabalho...

EVA (evasiva) Puxa...

ANJO Mas diga lá, por que me chamou?

EVA (sentando-se entristecida) Ai, meu Deus, sangue de Jesus tem o


poder… Por que você foi lembrar...

ANJO Bom, então se prefere esquecer eu vou-me embora. Até….

EVA Não, espera, por favor. Preciso de ajuda. Preciso entender… Quer
dizer, se é assim mesmo que as coisas acontecerem..

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ANJO Que coisas?

EVA Você é um anjo. Não tá sabendo?

ANJO É… Não. Não sou Deus.

EVA É que… bem… eu estava com a Rosário….

ANJO Quem é Rosário?

EVA É uma amiga, é obreira da igreja….

ANJO Ah… sei.

EVA Estávamos na casa dela. O seu Francisco tinha morrido...

ANJO Você disse “morrido”?

EVA É ele se matou

ANJO (pegando um caderninho de notas e checando as páginas) E quer


saber se ele foi para o céu ou algo assim? Tem o nome dele
inteiro?

EVA Não, não é isso…. Você ainda usa caderninhos pra anotar coisas?
Por que não anota no celular?

ANJO Celular? nem pensando. Celulares são coisas do diabo. Prefiro isso
aqui (mostra o caderninho e o lápis) Melhores invenções, só
perdem pra roda. (guardando a caderneta) Mas então, qual é o
problema?

EVA É que a Rosário tem um problema da coluna, que dói muito. E ela
precisa de dinheiro para uma cirurgia...

ANJO (pegando um caderninho de notas e um lápis para fazer anotações)


E você quer um milagre? Sei não, isso não é mais tão comum….

EVA Não, não precisa, quer dizer, o milagre aconteceu.

ANJO (guardando a caderneta) Então não estou entendendo nada. Qual é


o problema afinal?

EVA Francisco

ANJO O que morreu?

EVA Sim, esse mesmo. Bem, ele deixou uma herança para a Rosário.

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ANJO Que generoso.

EVA Um milagre, não?’

ANJO Se você está dizendo… Posso ir agora?

EVA Calma, ainda não cheguei lá.

ANJO (sentando-se) Ai, Jesus…. Acho que isso vai demorar. Tudo bem,
continue.

EVA Bom, o Francisco deixou um dinheiro, um bom dinheiro, pra falar a


verdade. Mas aí… Mas aí chegou o pastor Omar. Você deve conhecer
ele.

ANJO (pegando a caderneta e checando suas páginas) Pastor Omar você


disse?

EVA Isso.

ANJO Hum… Não, não conheço, não. Não, nenhum pastor Omar….

EVA Estranho…. É Omar, não Osmar

ANJO Eu olhei, certinho, olha só, Omar. Sem “s”

EVA Nossa… Estranho...

ANJO Mas continue, por favor.

EVA Bem, ele chegou, ela disse o tinha acontecido, ele foi olhar o seu
Francisco….

ANJO O morto...

EVA Sim, o morto. Bem, aí ele voltou e fez algumas perguntas, disse
algumas coisas e, bem, perguntou o que ele tinha deixado. E ela
disse que o seu Francisco deixou o dinheirinho pra ela. Mas ele...

ANJO Ele...

EVA Ele a convenceu de que Deus gostaria que o dinheiro ficasse para a
igreja.

ANJO É isso que queria me dizer? Bem, (pegando um caderninho de


notas e um lápis para fazer anotações) posso anotar aqui….

EVA Não, não é isso.

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(ANJO guarda a caderneta)

ANJO Sou todos ouvidos.

EVA Achei isso errado. Ela precisa do dinheiro. A coluna dela… tentei
dizer isso a ela, mas…. Mas ela parecia enfeitiçada pelo que o pastor
disse. Ela queria ficar com o dinheiro, mas não disse nada, ela
entregou o dinheiro e... (pausa) Me pareceu errado. Mas ela ralhou
comigo. Disse que era a vontade de Deus. Ele citou tantos versículos
da Bíblia, fiquei até confusa...

ANJO Os pastores gostam muito da Bíblia, acho estranho, mas são assim.

EVA Achei que todos vocês lessem sempre a Bíblia.

ANJO De forma alguma. Particularmente prefiro ler Nelson Rodrigues.


Bom, ele ralhou contigo e você, o que fez?

EVA Eu… eu orei com ela, e pedi perdão pelo que tinha dito. (pausa
longa) Você não conhece mesmo o pastor Omar?

ANJO (pega a caderneta e checa algumas páginas) Não, nenhum pastor


Omar. Mas enfim, era só isso que queria dizer? (anota algo na
caderneta) Pronto, anotado.

EVA Não, não é isso.

(ANJO arranca a página da caderneta e a amassa)

ANJO (suspirando resignadamente) Continue.

EVA Olha, ela precisa demais do dinheiro. Para que ela tinha que dar o
dinheiro para a igreja?

ANJO O pastor não disse?

EVA Disse.

ANJO Então é isso.

EVA Então é isso?

ANJO Foi o que você disse.

EVA Foi o que o pastor disse.

ANJO Então é isso.

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EVA Mas é isso mesmo?

ANJO Mas não foi isso que o pastor disse?

EVA Mas ele está certo?

ANJO Ele está? O que você acha?

EVA (levemente impaciente) Eu não sei. Por isso chamei você,

ANJO Mas como vou saber? Eu não estava lá. Nem conheço esse tal de
pastor Osmar.

EVA Omar.

ANJO Isso, pastor Omar.

EVA Mas você é um anjo.

ANJO Ah, minha filha, mas você está levando isso muito a sério

EVA Como assim?

ANJO Mas como poderia saber se a igreja desse precisa ou não desse
dinheiro.

EVA (alheia, consigo mesma) Bom, isso tudo deve estar nos propósitos
de Deus... (voltando-se a ANJO) E quem seria eu para questionar os
propósitos de Deus, não é?

ANJO Se você acha...

EVA Deus certamente tem um propósito para mim. Tenho certeza.


Acredito nisso. (pausa) Que bobagem a minha ter duvidado do
pastor Omar. (pausa curta. alheia, consigo mesma) Um homem de
Deus. (pausa) Isso tudo é uma mensagem para mim. Um
ensinamento. (para ANJO) Deus te enviou, com essa mensagem.
Não foi? Me diz, por favor, me diz logo, qual a mensagem?

ANJO .Não, não tenho mensagem nenhuma pra você

EVA Não tem? Como assim? O que ele te disse? Por que ele te mandou
aqui?

ANJO Ele não me mandou aqui.

EVA Como assim? O que ele falou com você?

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ANJO Ele não me falou nada. Pra te falar a verdade eu nunca vi deus.
Aliás, nenhum outro anjo que eu conheço viu deus. Ninguém
nunca o viu.

EVA Como assim?

ANJO Mas isso importa realmente?

EVA Achei que ele tivesse mandando você...

(ANJO move a cabeça negativamente, com ar


solidário. EVA se senta e começa a chorar de
forma contida)

ANJO (aproximando-se e sentando-se ao lado dela) Não chore, não é


preciso chorar.

EVA Eu só queria uma palavra dele. Uma palavra… Deus é pai, não é?
Por que fica tão silencioso comigo?

ANJO Muitos pais são silenciosos.

ANJO Não, não o que quer. O que pode. As escolhas que cada pessoa faz
criam consequências, as consequências por, sua vez, se amontoam,
foram possibilidades, para uns, entraves para outros. Assim, as vidas
se entrelaçam. Se tornam história. Geração após geração a história
humana vai se construindo pelo livre arbítrio. Mas como disse, é
uma liberdade que se faz na história que se herda.

EVA Não consigo entender muito bem.

ANJO Acho que entende sim. Mas é uma verdade dolorosa, porque
aprendemos que não é Deus quem traça seu caminho. E você que
tem lidar com ele.

EVA E onde está Deus em tudo isso então?

ANJO O que importa isso? Para que quer saber onde está Deus?

EVA Deus não é onipresente?

ANJO O que é a onipresença de deus num mundo onde as redes sociais


colocam

diante da onipresença do Instagram, do Facebook, do Twitter?


Algoritmos são mais responsáveis pelos seus passos que deus.

EVA (irritando-se) Onde está Deus em minha vida?

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ANJO Olhe à sua volta. Olhe para dentro dessa sala. Agora, olhe para o
quarteira. Veja agora o bairro. Agora, olhemos o estado. O país
agora. Veja o mundo, Eva. Veja o mundo. Você vê Deus em tudo o
que existe?

EVA (gritando) Deus me abandonou. Deus me abandonou.

ANJO Não. Deus não abandonou você. Nenhum de vocês foi abandonado
por deus.

EVA Ele nos deixou sozinhos. Nos abandonou.

ANJO Acho que você leva muito a sério essa coisa de anjos, de Deus, de
propósitos… Muito a sério.

EVA Como assim? Tudo tem um propósito.

ANJO Não, não tem.

EVA Tem que ter.

ANJO Por que?

EVA Porque eu preciso que tanta dor tenha um motivo. (começa a


chorar copiosamente) Tanta pobreza, tanta coisa ruim…. Meu deus
do céu… por que? Por que?

ANJO Não sei porquê. Talvez seja apenas azar.

EVA Azar?

ANJO É. Ou não, não sei. Tem que ver...

EVA Como?

ANJO Olha, Eva, você está querendo que eu diga se sua vida valeu a
pena. Se tudo o que você passou até aqui tem um significado. Pois
bem, não tem, não sei se tem….

EVA Mas, e Deus? E a Rosário?

ANJO Não tem nada que Deus possa fazer por Rosário que você mesmo
não possa fazer por ela.

EVA Pra você é fácil dizer, você tem asas.

ANJO Você está levando a sério demais novamente. Só tenho asas porque
não fico me prendendo tanto quanto você às coisas.,

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EVA (pensativa) Não pode ser assim tão simples.

ANJO Nada é simples. As pessoas nascem, umas sofrem, outras viajam o


mundo, umas adoecem, outras vivem até os cem anos, umas
merecem tudo o que recebem, outras não. E nada disso faz sentido.
Ou melhor, o sentido tá nas próprias pessoas, no que fazem, porque
fazem, nas escolhas que fazem diante do que está na sua frente. E
acho que nada disso tem a ver com deuses, com anjos, com
fantasias que se fazem.

EVA Meu Deus...

ANJO Acho que Deus não tem nada a ver com isso. Mas se quiser
acreditar nisso, vá em frente...

EVA Não, não pode ser. (fanatizada, de forma triunfante) Deus tem seus
desígnios. Deus nos coloca no deserto, não para perecer, mas para
nos elevarmos.

ANJO Foi o tal pastor Osmar quem te disse isso?

EVA Omar

ANJO Foi ele quem te disse isso de deserto?

EVA (fanatizada, de forma triunfante) Sim, foi ele.

ANJO Não o leve tão a sério. Ele não sabe do que está falando. Está
mentindo para você.

EVA Como é que pode dizer tudo isso?

ANJO Eu tenho asas...

EVA Você tem asas… Somos diferentes. Precisamos ser iguais. Somos
todos filhos de Deus.

ANJO Basta você criar suas próprias asas.

EVA Precisamos ser iguais. Somos todos filhos de Deus.

(EVA se lança sobre ANJO, o derruba de bruços e


se senta sobre seu tronco e começa a arrancar as
penas de suas asas. ele grita de dor)

ANJO (gritando) Pare, pare. Não. (grita)

EVA (arrancando as penas das asas do ANJO) A dor e o sangue nos


iguala. A dor e o sangue nos iguala. A Dor e sangue nos iguala.

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(fumaça. música evangélica. luz se fecha
lentamente em foco sobre EVA até o breu total. a
música se interrompe subitamente. luz e som
campainha. EVA está deitada no sofá, dormindo.
acorda assustada. vai até a porta e a abre, ADÃO
entra, muito machucado, caminha até o sofá e se
senta)

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CENA 19 - Revelações silenciadas
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Casa de ADÃO e EVA. Eva está dormindo no sofá. Tocam a campainha desesperadamente
até que ela acorda e a vai atender.

EVA (assustando-se) Meu Deus, homem, o que aconteceu com você?

ADÃO (entrando. está machucado, um tanto ensanguentado e com parte


da roupa rasgada.) Estou tocando a campainha faz maior tempo.
Onde você estava que não atendia?

EVA Desculpa, eu estava dormindo. Tive um sonho muito lindo. Estranho.


Mas muito lindo.

ADÃO Tudo bem. Deixa prá lá. O importante é que eu consegui chegar em
casa.

EVA Mas me diz, o que aconteceu com você? olha seu estado.

ADÃO Foi uma briga….

EVA Briga?

ADÃO Quer dizer, foi um assalto….

EVA Assalto?

ADÃO (pausa) Amor, precisamos conversar...

EVA Precisamos?

ADÃO Precisamos sim.

EVA Tudo bem, tá tudo bem.

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101
ADÃO Sabe, esse tempo todo… as ligações de celular, minhas ausências,
minhas saídas….

EVA Tá tudo bem, meu marido. Tá tudo bem.

ADÃO Eu preciso explicar...

EVA Não, não precisa. Você é meu marido, não tem nada que dizer.

ADÃO Eva...

EVA (pondo o dedo em seus lábios, num sinal de “não fale”) Não há
nada a dizer. Está tudo bem.

ADÃO (levantando-se com raiva) Não, não está bem. Nada está bem, Eva.
Eu tinha um caso. Um caso com outro homem. Um homem, Eva,
você está ouvindo. Eu sou uma bicha, uma bosta de uma bicha.

(ADÃO começa a andar de lado a lado,


extremamente nervoso)

EVA Está tudo bem, meu marido. Eu te aceito como você é….

ADÃO (indo até o sofá, sentando-se ao lado dela e a pegando pelos


ombros) Uma bicha. Eu disse que sou uma bicha (ele e pega com
força levanta sua saia e a violenta, em um ato rápido) Desculpa.
Desculpa. Desculpa. (começa a chorar copiosamente)

EVA (arrumando-se e abraçando-o) Não tem problema. Está tudo bem,


meu marido. A dor e o sangue nos iguala.

(ADÃO se deita, coloca a cabeça no colo de EVA


que o acaricia maternalmente.. Entram PASTOR
OMAR e ALBUQUERQUE, cada qual vindo de um
lado, acenam para pessoas, como se estivessem
em uma grande festa, eles têm taças de vinho
branco nas mãos)

ALBUQUERQUE Meus parabéns, pastor Omar, parabéns. Foi realmente uma


belíssima vitória.

PASTOR OMAR Foi, não foi? Deus sabe o que faz, meu irmão. Deus sabe o que faz.
Ele sempre recompensa os justos..

(ADÃO e EVA saem discretamente enquanto


PASTOR OMAR e ALBUQUERQUE conversam)

ALBUQUERQUE Um novo país nasceu hoje.

PASTOR OMAR Um país abençoado.

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102
ALBUQUERQUE Um país rico.

PASTOR OMAR Rico e abençoado.

ALBUQUERQUE E nós fizemos isso.

PASTOR OMAR Nós fizemos isso, meu filho, pela graça de Deus que nunca deixou
de prover.

ALBUQUERQUE Agora vocês estão conosco. Imagino que isso vá mudar muita coisa.

PASTOR OMAR Não estamos aqui para mudar nada, meu amigo. Ou quase nada.

ALBURQUERQUE Mas investiram tanto. Agora que chegaram lá...

PASTOR OMAR Chegamos? Não, ainda não chegamos lá. Falta muito ainda. O Brasil
é grande. Um presidente só não dá conta de nos levar a todo o país.
Um presidente dura quatro, oito anos apenas. É pouco, irmão, é
pouco. Mas é um bom começo. Deus tem planos para o Brasil.

ALBUQUERQUE Ambiciosos… Planos ambiciosos.

PASTOR OMAR Um brinde.

ALBUQUERQUE Um brinde.

PASTOR OMAR A um novo país.

ALBUQUERQUE A um novo país.

(bebem)

Sobre esses planos de Deus. Precisamos conversar a respeito, não?

PASTOR OMAR Sim, sim. Precisamos. Precisamos….

(saem)

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CENA 20 - Ano zero
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103
Casa de ADÃO e EVA. EVA está passando um pano na mesa. ADÃO entra carregando
sacolas de mercado nas mãos e as coloca na mesa. ADÃO., está vestido de forma sóbria e
tem seus cabelos penteados para trás.

ADÃO Oi, amor.

EVA Ah, que bom que chegou com as compras. Já não tava sem tempo.
conseguiu trazer tudo?

ADÃO E mais um pouco. E trouxe o seu pastel também. O meu eu já comi,


tava com muita fome. (tosse)

EVA Não tem problema. Eu não estou com fome agora.

ADÃO E o culto, já começou?

EVA Não, ainda não. Vou ligar a TV. Logo começa.

ADÃO Ah, que bom. Achei que tava atrasado.. (tosse)

EVA E essa tosse, amor? Ainda não passou?

ADÃO É só um resfriado, logo passa.(tosse forte)

EVA Precisa descansar, tem trabalhado muito.

ADÃO Não tem como descansar, né?

EVA Ué, mas que adianta ser seu próprio patrão se não pode descansar
um pouco?

ADÃO Não é assim, Eva. A gente é dono do nosso nariz, mas tem que
ralar...

EVA Você tem dirigido quase 14 horas por dia, de segunda a sábado.

ADÃO Mas os domingos eu guardo com minha esposinha linda.

EVA Ai ai…

(de repente ADÃO tem uma crise de tosse, muito


forte. cai no chão, desfalecido.)

(assustada) Adão.

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104
(ela corre até ele, senta-se a seu lado. formam
uma Pietà)

Meu marido, o que tá acontecendo? Como você está? Vou te pegar


um remédio. Vou te pegar um remédio.

(ADÃO tosse muito, muito forte. a segura pelo


braço)

ADÃO Eu não consigo respirar. (tosse) Eu não consigo respirar. Fica


comigo.

EVA Eu estou aqui. Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo
bem.

LOCUTOR DA TV Já circula em nosso país o novo vírus que tem dizimado muitas
vidas ao redor do mundo. As autoridades dizem que só se deve
buscar hospitais caso já se sinta muito mal. Em contrário, basta se
isolar em casa. O presidente da república defende o tratamento
precoce.

(luz apaga lentamente. cai o pano)

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