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para a
A questão do fascismo ainda é um sério debate em aberto. O cientista político italiano Gianni
Fresu, em seu recentemente publicado livro Nas Trincheiras do Ocidente, Lições Sobre
Fascismo e Antifascismo, demarca, corretamente em nossa visão, que os estudos sobre
fascismo podem ser agrupados em três grandes campos, o primeiro vê as experiências
fascistas como únicas, datadas, e que emergiram como uma “doença moral da Europa”, uma
espécie de “ressaca” após a barbárie da primeira guerra mundial. O segundo campo, vê o
fascismo como uma espécie de estratégia de desenvolvimento capitalista acelerado
promovida por nações europeias que ficaram para trás nesse processo histórico. Por fim, há
o campo que entende o fascismo como contradições do sistema capitalista. Evidentemente,
não será uma peça teatral que poderá dar conta de encerrar esse debate, mas certamente
pode ser um dos instrumentos de estímulo desse debate, bem como veículo de ideias e
reflexões a respeito. Foi nesse sentido que escrevi a peça BRASIL: ANO ZERO.
Comecei a me preocupar com mais atenção à emergência do fascismo no país por
volta de 2013. Naquela época chamou-me a atenção da significativa presença de
organizações nazi-fascistas nos amplos atos ocorridos naquele ano. Comecei a estudar a
respeito, ainda de forma diletante. Pouco tempo depois, uma série de eventos, ainda
desconectados entre si, começaram a me chamar a atenção, dentre eles, a disputa pelo
controle do deposição de Dilma, a paralisia da esquerda diante diversas adversidades, uma
onda conservadora no pensamento médio popular, a ascensão de políticos reacionários,
dentre outros, tudo isso no intervalo de dois anos e pouco. Sobretudo, o surgimento da figura
de Bolsonaro, não porque seja ele um gênio político, o que definitivamente não é, mas pela
grande capacidade de aglutinar em torno de si os promotores desses eventos, conectando-os,
formando um bloco histórico. E isso, de fato, ocorreu.
Essas são as reflexões que me levaram ao doutorado para pesquisar a ascensão do
fascismo no Brasil na atualidade. E também, na atividade artística junto à Cia Teatro dos
Ventos, a desenvolver uma série de trabalhos que se debruçam no tema, como a peça para
audiovisual Caso 122, a direção do texto A Nova Ordem Mundial, de Harold Pinter, e agora, a
escrita de BRASIL: ANO ZERO, que me parece o trabalho mais completo que fiz a respeito, até
agora. Trata-se de uma peça de estrutura convencional, diferente dos textos que
normalmente desenvolvo. Mas, na mesma medida, é o mais complexo, com diversos
personagens, todos com percursos próprios dentro da trama.
A versão que chega em suas mãos é para primeira leitura, destinada a poucos
amigos e conhecidos, dividios entre gente de teatro e/ou pesquisadores que se debruçam
sobre a questão do fascismo, do terrorismo de Estado e ditaduras.
Assim sendo, desde já agradeço sua leitura e aguardo ansioso por seus comentários,
pitacos e opiniões.
Abraços fraternos,
Luiz C. Checchia
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Peça teatral de Luiz C. Checchia - contatos: 11.9.8695.5591 / luiz.checchia@usp.br.
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SINOPSE
A peça apresenta a história de ADÃO e EVA, casal simples, gente trabalhadora, por volta dos
30 anos de idade. Vivem a angústia das crises política e econômica que se formaram no país
por volta de 2014. ADÃO iniciou, há pouco tempo, uma relação homossexual com REMO, um
garoto de programa, sem que sua esposa saiba. Para ele essa relação é difícil por não
conseguir superar sua formação machista e seus valores tradicionais.
EVA, por sua vez, recém converteu-se a uma igreja neopentecostal graças à influência de
ROSÁRIO, fervorosa obreira religiosa que se torna uma espécie de mentora e conselheira,
sempre lhe prestando conselhos carregados de preceitos religiosos e ultraconservadores.
Deve-se destacar que ROSÁRIO é mãe de REMO, mas nada sabe de sua vida como garoto de
programa, ao contrário disso, acredita ser ele um jovem estudante e empregado em uma
lanchonete tipo “fast food”.
ADÃO e EVA vivem suas vidas alheios ao desenvolvimento das ações de GOUVEIA e
ALBUQUERQUE mas são completamente submetidos às suas consequências econômicas e
políticas. E na medida em que essas crises se agudizam, ADÃO e EVA passam a vivenciar
suas situações pessoais com dificuldades e angústias crescentes. ADÃO se refugia cada vez
mais na relação com REMO, mas cresce também sua dificuldade em lidar com sua
homossexualidade. EVA se torna mais fervorosa em sua fé, fanatizado-se lentamente, até o
ponto de ter alucinações religiosas. Quando o novo candidato apoiado por GOUVEIA e
ALBUQUERQUE começa a se tornar mais popular, ADÃO e EVA, na condição em que se
encontram, acabam sendo seduzidos pelo seu discurso agressivo e passam a apoiá-lo
cegamente.
Nesse ponto há um corte temporal na narrativa da peça. ADÃO e EVA estão comemorando a
vitória eleitoral do candidato apoiado por GOUVEIA e ALBUQUERQUE. De repente, ADÃO
desfalece, cai no chão. EVA se senta ao seu lado, acomoda a cabeça dele em suas pernas,
formam uma pietá. Ela começa a falar, de forma um tanto incoerente - como se estivesse
alucinada - de como o país ficará melhor, de como tudo vai mudar, de como tudo vai dar
certo. A luz vai baixando, ouvem-se notícias de rádio anunciando a chegada de um novo
vírus no país.
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PERSONAGENS
EVA Mulher simples, por volta dos 30 anos. Casada com ADÃO. Assim
como ele tem uma visão mediana, popular do mundo. Também
preocupada com as dificuldades econômicas crescentes vividas
pelo casal. Há pouco tempo passou a frequentar uma igreja
neopentecostal.
OBREIRA ROSÁRIO Obreira da igreja frequentada por EVA e mãe de REMO. Mulher de
cerca de 50 anos, convicta em sua fé, vivenciando-a de forma
dogmática, fanática, o que parece aumentar sua disposição e força
física. Vive para a igreja, em primeiro lugar, e para o filho,
acreditando que ele é um “bom moço da igreja.” Por questões
financeiras, mora na própria igreja que frequenta, servindo-a
também como caseira. Sofre de forte dores nas costas, cujo
tratamento é caro e não coberto pelo
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política do país.
2 FASCISTAS
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CENÁRIOS
casa de ADÃO e EVA Casa simples, formada por um sofá de 3 lugares, que fica no
fundo do palco, à lateral direita, à frente do sofá, quase na
boca de cena, fica a TV, de costas para o público. No fundo,
à esquerda, uma pequena mesa de tampo redondo com três
cadeiras. Há um vaso com flores de plástico sobre a mesa.
Sala de jantar de GOUVEIA Uma mesa de jantar, pequena e sofisticada, uma cadeira
bonita.
Casa estar de GOUVEIA Uma poltrona luxuosa, ao lado uma mesinha com bule de
chá e um porta retrato com foto de família. Um puff de
apoio para as pernas.
Quartinho de FRANCISCO Uma cama pobre com um colchão antigo. Lençol e coberta
bem pobres e coloridos. Uma cadeira de madeira ao lado da
cama.
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BRASIL: ANO ZERO
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CENA 1 - jantar imperialista
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(Prepara e lhe entrega um charuto após esse
acenar-lhe positivamente com ar entre autoritário
e condescendente. FRANCISCO o acende e sorri,
após o GOUVEIA dar algumas baforadas de
aprovação. Após isso, ele oferece um jornal.)
GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Eu disse que ele não consegue sequer alçar um voo
de galinha. (voltando a ficar atrás do jornal) E olha que estamos
investindo o possível. Mas parece que não decola….
GOUVEIA Sim.
FRANCISCO (com ar constrangido) É que, bem, o senhor deve imaginar... nós que
trabalhamos na casa acabamos ouvindo algumas coisas. Não muito,
claro... Mas é que ficamos sabendo do seu estado de saúde e... bem...
gostaria de dizer que lamentamos muito e que estamos rezando
pelo senhor.
GOUVEIA (ainda por trás do jornal) Está falando sobre meu câncer, não é
isso?
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GOUVEIA (voltando a ficar atrás do jornal) Talvez eu viva ainda mais oito ou
nove meses.
GOUVEIA Não se preocupe com isso. O que, afinal, esse câncer pode me tirar?
GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Só os miseráveis contam o que têm (ri). A vida é só
mais um ativo, Francisco, (voltando a ficar atrás do jornal) só mais
um ativo pelo qual vou disputar.
GOUVEIA (põe o jornal um tanto de lado, aparece seu rosto, olha para
FRANCISCO) Me faça um favor, sim?
GOUVEIA Deixe disso, deixe disso. (um tanto mais autoritário) Sente-se logo.
GOUVEIA Muito bom. Muito bom. Diga, há quanto tempo trabalha para mim?
GOUVEIA Faz tempo, não? Como faz. E quantas vezes já desejou estar sentado
aqui, onde me sento?
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GOUVEIA Sabe sim, claro que sabe. Quem de vocês todos aqui da casa, que
limpam, cozinham, servem, vigiam, cuidam, quem de vocês já não
desejou sentar-se aqui na minha mesa? Talvez até aproveitem
quando estamos fora para se sentarem, comerem algumas sobras
do desjejum, talvez até aproveitem os charutos que deixo pela
metade.
FRANCISCO Senhor, é claro que a vida que sirvo ao senhor parece ser bem...
bem gostosa de ser vivida.
FRANCISCO Sim, senhor, é uma vida cheia, cheia de prazeres. Eu trabalho muito,
muito para um dia poder ter um pouco dessas horas de prazeres
que o senhor tem. As vezes faço até uma fezinha pra ver se ajuda...
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GOUVEIA Por você pensar assim é que eu me sento aqui todos os dias, e
você, você só por hoje... (pausa) A vida, ao fim, é só mais um dos
ativos. Encaremos de frente a situação, é preciso que a encaremos
sempre de frente. Morrer é como a falência de uma empresa. Talvez
a última falência. (oferece-lhe um charuto) Aceita? (FRANCISCO
aceita um dos charutos, GOUVEIA oferece-lhe o isqueiro aceso,
FRANCISCO acende seu charuto e dá algumas baforadas) Bom,
não?
FRANCISCO Ah, sim, com certeza. eu acordo cedo, pelas três e meia da manhã
para chegar aqui para servir ao senh...
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GOUVEIA Com um saboroso molho.
FRANCISCO Então estamos falando das coisas que vem dali pra aqui, e de lá pra
cá?
GOUVEIA quase isso, meu amigo. Quase isso. Essas coisas são fabricadas por
pessoas, geram riquezas que são transferidas de uma empresa para
outra, de um banco pro outro.
FRANCISCO Hum...
FRANCISCO Não.
GOUVEIA Por aqui, na minha mão. Entendeu agora? Tudo passa pela minha
mão.
(FRANCISCO retorna)
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(FRANCISCO sai)
ALBUQUERQUE Gouveia, Gouveia, queria dizer que se trata apenas de uma visitinha
amigável. Mas trago más notícias...
GOUVEIA (em tom irônico não percebido pelo ALBUQUERQUE) Não brinca?
Sério?
ALBUQUERQUE Sério.
GOUVEIA Então diga logo. O que houve? Vamos derrubar algum presidente?
ALBUQUERQUE Não, não. Mas também acho que não vamos eleger um presidente.
GOUVEIA Mas o que está acontecendo? Já foi eleito antes, tem experiência,
tem carisma...
GOUVEIA Mas para o povo é carismático sim, tem cara de médico de família,
de vó bonzinho. Cara de corno feliz… É aquela cara de parente que
quando morre todo mundo diz: “mas foi tão cedo…”
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ALBUQUERQUE Sim, sim, talvez esteja certo. Mas de qualquer forma, parece que o
povo cansou desse modelito (pausa) Temos que fazer alguma coisa.
Depois de tanto trabalho não dá pra voltar pro mesmo lugar.
(pausa) Temos compromissos, temos que cumpri-los. Tenho muito
dinheiro nisso, não quero perdê-lo.
GOUVEIA Antigamente dávamos golpes, mas dizíamos que era para o bem da
pátria....
ALBUQUERQUE Ah, que indelicado da minha parte. E o câncer? Como tem passado?
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CENA 2 - Meu celular, meus segredos
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Casa de ADÃO e EVA. Entram em cena ADÃO e EVA. ele puxa um carrinho de feira, ela
uma sacola. Chegam da feira livre, ela entra comendo um pastel.
ADÃO Assim não vai dar não… é dar duro o mês inteiro e o dinheiro não
dura nem três semanas… (vai até EVA e pega o pastel de sua mão, e
passa a comê-lo). Logo logo não sei o que vamos fazer… É deixar
um rim pra comprar um brócolis.
EVA Não, não tinha dito. Coitado. E ela não tava doente?
ADÃO ‘Tava não. Ta ainda. E bem mal. Ela sentou na calçada enquanto os
homens jogavam as coisas deles num caminhão que o dono da
casa mandou...
EVA Tadinha...
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EVA Tadinha...
ADÃO De quem?
ADÃO Hum...
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EVA A irmã dela mora numa casa tão pequena, mal cabe às próprias
coisas, como colocar as da Márcia?
ADÃO Heim....
EVA Com quem você tanto fala, homem? (jocosamente) Tem outra é?
Tem idade pra isso não…
ADÃO (se afastando dela) Ver por que? Está desconfiando de mim, é? Ora…
agora era só o que faltava...
EVA (indo até ele novamente) Então deixa eu ver (sua mão indo em
direção ao celular dele)
ADÃO (pondo o celular atrás das costas) Agora é que não deixo. Não
tenho que provar nada não… (ri, disfarçando, como se fosse apenas
uma graça)
ADÃO Não.
EVA Deixa...
ADÃO Não.
EVA Deixa...
ADÃO Não...
EVA Deixa...
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ADÃO Quero saber… você queria tanto saber quem mandou mensagem
pra mim. Também quero saber quem te escreveu...
EVA Não.
EVA Não devia rir. Um pouco de fé não faz mal pra ninguém… Sua mãe
me disse que você ia pra igreja todo domingo.
ADÃO Eu não ia, ela é quem me levava… E eu era criança, tinha escolha
não. Era um tapa na orelha e uma ida à igreja.
EVA Chato.
ADÃO Desculpa. não queria ser chato com você. Eu só acho que ir pra
igreja não ajuda em nada. E muito menos ficar dando dinheiro pra
eles. Você não tem dado dinheiro pra igreja, né?
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ADÃO Só falta dizer que encontrou Jesus.
EVA Sim, encontrei. E daí? Você também deveria encontrar. Acho que
falta é um pouco de religião nessa casa. Quem sabe as coisas
melhorassem?
ADÃO Tchau (Estala uma bitoca ligeira nos lábios dela. sai)
EVA Ufa, já não era sem tempo. (começa a trocar mensagens de áudio
com OBREIRA ROSÁRIO). Desculpa, Obreira, era meu marido, aquele
chato. Bom, eu acho que a senhora está certa, sim.
OBREIRA ROSÁRIO (voz em mensagem de áudio) Será não. É. Meu coração me diz, e
quem fala pelo meu coração é Deus, não é mais ninguém não.
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ADÃO Já tinha pedido pra não me ligar. Não, não é que não gosto de você.
Quer dizer, é claro que não gosto de você. já tinha pedido pra me
deixar em paz. (cobre o fone com a mão e ralha consigo mesmo)
Pra que eu fui te passar meu número de telefone. Como sou besta.
(voltando ao telefone). Não, eu não quero mais falar com você. Eu
nunca havia traído minha mulher antes. Eu amo a minha mulher.
Eu amo…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está
falando). Claro que eu quero te ver outra vez. Mas eu não posso,
foi um erro da minha parte… (escuta o que a pessoa do outro lado
da linha está falando) .foi um erro…. não posso…. (escuta o que a
pessoa do outro lado da linha está falando).. Claro que eu quero,
mas…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está falando)....
Me deixa falar…. (escuta o que a pessoa do outro lado da linha está
falando. Fala já convencido, entregue).... Claro que quero te ver mais
uma vez. você, sabe. (sorri. Escuta o que a pessoa do outro lado da
linha está falando).. Um beijo. também não vejo a hora. (escuta o
que a pessoa do outro lado da linha está falando, bem rápido). sim,
bem molhado, bem (estranha o que vai falar) lambido…. Até lá.
Outro. (Desliga o telefone. Senta-se.) Meu deus do céu. O que foi
que eu inventei pra minha cabeça…? Se a Eva sabe disso ela me
mata, Não, ela me capa e depois me mata. não ela me capa, me faz
engolir minha própria rola e aí, aí ela me mata. (fazendo cara de
nojo) Morro com a minha própria rola na boca. Eu amo a Eva, por
que fui inventar essa aventura? Era pra ser uma vezinha só… Só
uma…. (pausa) Mas é tão beijar aquela boca….
(entra EVA)
EVA Eita, tá falando sozinho, homi? Desde quando? Cabeça das nuvens…
Sangue de Jesus tem poder.
ADÃO Que falando sozinho, mulher? De onde tirou isso? eu estava era
falando com você.
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ADÃO Eu também te amo.
ADÃO Claro que eu amo. Amo demais. Faço tudo por você. Sempre fiz.
EVA Ahá!
EVA Uhum…. Vamos ver agora com quem você tanto conversa.
ADÃO (Indo até ela para pegar o celular de volta) Me dá meu celular, Eva!
ADÃO Me dá.
EVA Não.
ADÃO Me dá o celular!
EVA Não.
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EVA (Arruma o cabelo, suspira pegando o ar, começando a operar o
celular) Agora vamos ver com quem tanto fala.
EVA (Afastando o celular do alcance dele) Não, não. Tenho certeza que
se eu atender a sirigaita vai desligar o telefone. (atendendo o
celular com feição zombeteira) Alô. (seu rosto perde a feição
zombeteira) Sim, é o celular dele, eu sou esposa dele. Ah, ele fala
muito de mim, é…? Tá… vou passar pra ele. (estendendo o braço para
que ele pegue o celular em sua mão) toma, é o Remo.
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CENA 3 - desistindo do candidato bonzinho
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GOUVEIA Sei não, sei não. Tudo mudou mas me parece que está do mesmo
jeito que antes;
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ALBUQUERQUE Mas o fato é que é que deixar as coisas como sempre foram dá um
trabalho…’
RICO 1 ô se custa.
RICO 4 Meu filho um dia desses me disse que pra ser rico tem que se
trabalhar como se fosse pobre.
(Todos riem)
RICO 2 Escolhemos mal, né? eu disse que ele não tem carisma algum.
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ALBUQUERQUE e E continua tudo como antes.
GOUVEIA
ALBUQUERQUE Temos que pensar em algo pra dar um destaque pro coitado.
RICO 5 Não sei. Acho que já gastamos muito dinheiro nessa aposta.
RICO 4 Não.
RICO 2 Qual é?
RICO 1 Diga.
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GOUVEIA E quem disse que não? é só um jogo. Sempre é só um jogo.
Apostamos. Jogamos fichas na mesa, ora ganhamos, ora perdemos,
mas enquanto estivermos jogando as fichas estão na mesa. Passam
de mão em mão, mas estão sempre na mesa. E não é disso que
estamos falando, em manter as fichas circulando na mesa?
ALBUQUERQUE É, quem?
GOUVEIA Ora, qualquer um. Mas alguém que possa ganhar e que não tenha
ideias próprias, né?
RICO 1 Bom, se for assim, vamos escolher alguém que possa mudar as
coisas.
GOUVEIA Tem cristão radical e sério, tem cristão engraçado, tem cristão
ecológico, tem cristão socialista… E banqueiro…. cristão.
GOUVEIA Não, tem ateus também. Mas que vão pra igreja.
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GOUVEIA Que nada, é ateu que acredita no voto. O Estado é laico, mas o voto
come hóstia, faz vigília e expulsa o demônio.
(todos riem)
RICO 4 Eu também.
RICO 3 Concordo.
GOUVEIA Aí a gente tira ele de lá. (pausa. com sorriso irônico) Não seria a
primeira vez.
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GOUVEIA Claro.
RICO 1 Pode criar um problema para nós. Sei que não é muito, mas talvez
tenha visibilidade, tenha custos. E se acontecer, vai ser bem ruim.
GOUVEIA Ah, seria bem desagradável mesmo. Até peço desculpas por ter
colocado você nessa.
GOUVEIA Eu nunca deixaria um amigo tão antigo em uma roubada Por isso,
não se preocupe, vou dar um jeito, já falei com meu advogado e
tivemos a ideia de mudar o contrato societário do investimento e
vamos passar tudo para um laranja..
GOUVEIA Não, não falei. Mas falarei ainda hoje. Não é a primeira vez que ele
assina papéis para mim.
GOUVEIA É, realmente. Dessa vez é algo bem mais quente, se estourar...ai ai.
Mas com um pouco de sorte, nada de ruim acontece.
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RICO 1 Mas e se acontecer?
GOUVEIA Sim, é triste. Coitado. Não desejo isso pra ninguém. Praticamente da
família. Vamos torcer.
GOUVEIA É do jogo.
RICO 1 É do jogo.
ALBUQUERQUE (entrando rápido) Jesus Cristo. (corre até GOUVEIA abaixa-se para
socorrê-lo)
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CENA 4 - Assunto indigesto
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Ponto da praça. ADÃO e EVA. EVA está abraçada ao braço direito de ADÃO e traz
pendurado no outro braço um guarda-chuva. ADÃO está nervoso.
ADÃO Porra, Eva, tantos lugares pra gente tomar ônibus vamos nessa
praça cheio de viado.
EVA Mas meu Deus do céu, você reclama de tudo homem. Pela amor de
Deus. Qual o problema? Deixa as pessoas viverem suas vidas em
paz.
ADÃO Olha lá aqueles dois marmanjos lá. dois barbudos se beijando. Acho
até que o grandão vai engolir o outro. (rindo) parece o joguinho de
come-come….
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EVA é, mas aquelas duas ali se alisando tenho certeza que não te
incomoda.
ADÃO Quer saber? Se você quer ficar aqui nessa praça de perdição, pode
ficar. Eu vou pro outro ponto.
EVA Mas Adão, o outro ponto é três quarteirões pra lá, e eu tô com
meus pés me matando.
(pausa)
EVA Adão.
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ADÃO Mas que cacete. Já te falei que não.
EVA Então por que tá sempre saindo, resolveu jogar bola toda semana,
recebe mensagens misteriosas de celular que não posso ver….
ADÃO Caraca, Eva, você é muito louca. Acha que se eu quisesse outra
mulher ainda estaria contigo?
EVA Sei lá… vai que tá querendo manter duas mulheres… pode ser até
que está pensando em transar com nós duas juntas….
EVA Deixa de ser besta, homem. Claro que não. Sou mulher direita, não
ia querer te dividir com ninguém.
ADÃO Mas preciso descontrair um pouco. Ver meus amigos. Poxa, Eva,
que saco, não posso nem jogar um futebolzinho que vira esse
inferno?
EVA E as mensagens?
ADÃO Mas caramba, Eva, você tá maluca, não tá não? Que insegurança é
essa?
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30
EVA Mas é que eu estou na igreja, falo com a dona Rosário.
ADÃO Verdade, você me falou dela. Nem lembrava mais. ela tá bem?
EVA Quem?
ADÃO A Rosário, ué? Você não disse que ela tem um problema de coluna?
EVA Bem não tá né? Te falei já que hospital público tem uma fila
gigante de espera pra fazer a operação da coluna que ela precisa.
EVA Pois é, tadinha… (pausa) Adão, seu filha da puta, você tá mudando
de assunto.
EVA Não conta. Sabe que não conta. Por que lembrar disso?
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CENA 5 - No hospital a armadilha
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Quarto de hospital. GOUVEIA em uma cama, há soro conectado em seu braço e eletrodos
em seu peito. Ao seu lado está ALBUQUERQUE sentado em uma cadeira. Conversam.
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GOUVEIA ….Pois é isso, Albuquerque. Temos que analisar esses candidatos que
estão aí. Vou te falar, se bater no liquidificador não dá um copo,
viu?
ALBUQUERQUE Tá difícil mesmo, Gouveia. Mas não seria melhor você descansar?
Depois pensamos nisso….
GOUVEIA Não homem, que é isso. Estou bem. A dor passou. Esse remedinho é
maravilhoso (ri) Além disso, não morro antes da eleição.
GOUVEIA O fascistinha?
GOUVEIA Não, esse aí não passa dos 8%. Igual ele já teve um monte nas
eleições anteriores, um mais caricato que outro. Toda eleição
aparecem esses nacionalistas, conservadores, machões.… Um bando
de fascistas que na hora H não passam dos 8, 5, 3, 1%... Não, desse
mato mais sai coelho nem lebre. Nem preá. (pausa) E eu também
não quero ter meu nome associado a um fascista seja ele quem
for. Pô, Albuquerque, tenhamos dignidade.
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FRANCISCO (para ALBUQUERQUE) Desculpa a demora, senhor (para GOUVEIA)
como vai, senhor Gouveia? (para ALBUQUERQUE). Senhor, como
está?
FRANCISCO Estou aqui agora, senhor. Não se preocupe. Já avisei em casa que
ficarei à disposição do senhor enquanto for necessário.
ALBUQUERQUE Não estou preocupado. (pausa) Ele tem sorte em poder contar
contigo.
GOUVEIA (bem humorado) Ei, que conversa de canto é essa? Ainda estou
vivo meus amigos (ri)
GOUVEIA (bem humorado) Pois sabiam que ainda tenho muita lenha pra
queimar. Dou uma fornalha insasiável!
ALBUQUERQUE Bem, preciso ir. (para GOUVEIA) Gouveia, estou indo. Falamos em
dois dias, está bem?
(ALBUQUERQUE sai)
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FRANCISCO não há o que agradecer, senhor. Não faço mais que a minha
obrigação.
GOUVEIA Faz sim, Francisco. Faz bem mais do que sua obrigação.. Não se
preocupe, vou recompensá-lo com justiça.
(ambos riem)
GOUVEIA Obrigado (contrai o rosto, sentindo uma pequena dor) Acho que
quero descansar agora, Francisco.
GOUVEIA Ah sim, preciso. Que bom que perguntou, que cabeça a minha, ia
me esquecendo do mais importante. Poderia pegar minha valise,
por favor?
GOUVEIA Preciso que assine um documento para mim, com uma certa
urgência.
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CENA 6 - Encontros enviesados
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Praça. É noite. ADÃO está bem vestido, cabelos exageradamente bem penteados com gel e
veste uma bela jaqueta. Está entre bem apessoado e cafona. Está sentado no encosto do
banco com os pés no assento. Ao lado de seus pés está uma bolsa esportiva. Ele fala ao
celular
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ADÃO …. Estou no futebol com o pessoal do trabalho, Eva. Você sabia.
(ouve o que ela diz) Como assim com que roupa estou vestido?
Estou de calção e a gloriosa camisa do Timão…. aquela que tá meio
encardida. Por que?
ADÃO Que jaqueta? (ouve o que ela diz) Que sair de jaqueta pra ir jogar
bola? Tá maluca? Nem sei quando foi a última vez que usei aquela
jaqueta. Olha, os meninos tão me chamando pra jogar .... (ouve o
que ela diz) Não, Eva, não dá pra falar mais. Não sei dessa jaqueta.
Me deixa, vai?! Beijo, beijo…. .
REMO Ah, meu gato, deixa disso (ri) Você, gosta, não gosta?
REMO Mas, gato, deixa disso (rindo e apoiando-se nas coxas de ADÃO)
Nessa praça só tem viado (ri) Se tiver algum amigo seu aqui é
porque é biba também (ri) Se um amigo seu te vê aqui ele vai é
fingir que não te viu pra você fingir também que não viu ele (ri
bastante)
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ADÃO Que se descobre o quê? Se descobre o quê? Tem nada pra
descobrir, não! Eu sou homem, macho… Minha esposa tá indo até
pra igreja… (pausa) Poxa, nunca nunca tinha traído minha esposa
antes. E quando faço, faço com um cabra. (pausa) Se eu estivesse
traindo ela com uma mulher ela me mataria, mas com outro
homem… nem sei. Acho que ela me mata, me ressuscita e depois me
mata outra vez.
ADÃO Você ri, né? Mas é verdade. Acho que ela me mata, ressuscita e
mata de novo umas três vezes seguidas...
ADÃO (rindo) É que não é com você (pausa) Eu sou casado. Bem casado.
(pausa. suspirando) E minha esposa tá até indo pra igreja...
REMO É, meu gato. Eu sei. Não queria que sua esposa passasse por isso.
Ela parece ser uma boa pessoa. (pausa. senta-se) Não quero te
forçar a nada. Precisa tomar suas decisões. (pausa. sorrindo) Mas se
veio até aqui, pro nosso… (fingindo dissimulação) futebolzinho…. é
porque já tá decidindo.
REMO (indo até ele, abraçando-o por trás) Você fica bem sexy com essa
pistola na mão.
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ADÃO Nunca usou uma arma?
REMO Já, já usei. Quando você quer desafiar o mundo precisa se defender.
Mas não gosto de armas. E você, já usou uma arma?
ADÃO (um tanto incomodado com a pergunta, vira o rosto de lado) Não.
ADÃO Vamos.
ROSÁRIO (abraçando-o) Está tudo bem. Está tudo bem. Pode chorar.
FRANCISCO (entre soluços) Não acredito, não acredito. São mais de 25 anos… 25
anos….
ROSÁRIO Como?
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FRANCISCO Eu fui cuidar dele há poucos dias no hospital; ele tem câncer….
ROSÁRIO Morreu?
ROSÁRIO O senhor não viu o tipo de gente que frequenta essa praça?
ROSÁRIO Eu sou obreira de minha igreja. Vim aqui distribuir panfletos. Tentar
recuperar alguns desses jovens. (estende a mão) Prazer, meu nome
é Rosário.
ROSÁRIO Agora?
FRANCISCO (virando o rosto para ela) Agora…. (não consegue falar, fica com a
voz embargada. volta ao banco, senta-se ao lado dela) Que
vergonha, que vergonha;
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FRANCISCO Eu assinei um documento. No hospital mesmo. No dia seguinte
doutor Gouveia teve alta, o acompanhei até sua casa e cuidei de
tudo. no dia seguinte,, um outro criado ligou em casa bem cedo, eu
já estava saindo de para o trabalho.. Falou que doutor Gouveia
mandou disse que eu não precisava ir trabalhar. Achei que era
uma espécie de retribuição pelo que fiz. Falei que poderia ir, que
não precisava descansar. Ele falou secamente: “não venha” e
desligou o telefone. Estranhei, mas logo tranquilizei. Meio-dia
bateram na porta com força. Fui atender, era a polícia. Me
colocaram algemas e me empurraram pela rua até uma viatura.
Toda a vizinhança assistindo, uns estavam assustados, outros riam,
falavam: “mas não é o senhor certinho?”. Odeio aquele bairro.
Odeio. Gente pobre, desqualificada.
FRANCISCO (olhando para frente, fixamente) Não sei. Doutor Gouveia, estava no
hospital. Com câncer. Pediu para que eu assinasse. Assinei. Depois
mandou dizer que eu não precisava mais ir trabalhar e a polícia
chegou. Passei uma noite na cadeia. Me soltaram. Sei lá porque.. Fui
até a cada do doutor Gouveia. Toquei a campainha. Veio um
empregado e disse: “Doutor Gouveia mandou dizer que não precisa
mais de seus préstimos e que desejava boa sorte. 25 anos...25 anos.
FRANCISCO Não, não tenho coragem. Tenho muita vergonha; O que vão dizer?
(olhando para o banco) Acho que vou dormir ali mesmo.
ROSÁRIO O Sangue de Jesus tem poder. Claro que não. Um homem direito
como o senhor não pode ficar aqui.
ROSÁRIO Tem sim. Claro que tem. A Igreja sempre tem um lugar para um
homem de bem como o senhor. Lá na igreja tem um quartinho,
falamos com pastor Omar e o senhor passa a noite lá; Amanhã
vejamos o que pode ser feito pra acertar as coisas.
ROSÁRIO Sim, um homem de deus. Tenho certeza que ele vai ajudar o
senhor.
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.(FRANCISCO olha para ela, resignado)
FRANCISCO Obrigado.
.(saem)
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CENA 7 - Novos Parceiros, Velhos Acordos
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PASTOR OMAR (de costas para o público, luz a pino, gritando triunfantemente)
Sangue de Jesus tem poder. O Sangue de Jesus tem o poder.
GOUVEIA Mas o que é que importa o que é a realidade, pastor Omar? O que é
que importa?
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GOUVEIA E no final das coisas, é o que se vê o que importa. O que está vendo
aí, pastor?
GOUVEIA Seja muito bem vindo, pastor Omar. Seja mesmo muito bem vindo.
PASTOR OMAR (olhando para o relógio) Parece que vai atrasar, não é, meu irmão?
Será que demora muito?
ALBUQUERQUE Pastor, pastor, talvez sejam apenas alguns minutos. Mas seria bom
aproveitarmos para conversar um pouco antes. Que acha?
PASTOR OMAR Sim, sim. Não vejo problemas. Se vamos trilhar o mesmo caminho, é
bom que acertemos os ponteiros e sigamos no mesmo ritmo, não
é?.
ALBUQUERQUE Meteórica.
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GOUVEIA Sucesso meteórico.
PASTOR OMAR Sim, Deus tem sido muito generoso conosco. Temos unidades de
negócios espalhadas por diversos cantos. Só nos “Esteites” estamos
em treze estados. E na África, então….
ALBUQUERQUE E aqui, pastor? E aqui? Não tem um empregado em casa que não
vá aos cultos, que não veja programa na tevê, que não diga um
amém para qualquer coisa.
GOUVEIA Lá em casa eles falam baixinho, sabia? Acham que eu não vou
gostar e falam assim (imitando alguém falando baixo) “amém,
amém, amém” (ri) Um brinde a isso.
GOUVEIA Muito sagaz, gosto disso. Gosto disso. Não gostamos, albuquerque?
ALBUQUERQUE Gostamos.
ALBUQUERQUE Menos eles. Mas os demais... os demais são nossos candidatos. Cada
um à sua maneira, com seus discursos, suas promessas. Sabe,
somos como alguém que passeia com muitos cães ao mesmo
tempo, tem cães grandes e outros pequenos, uns se dispersam com
facilidade, mas tem os que são concentrados. algumas guias mais
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longas e aí os bichos ficam mais distantes, outras mais curtas
alguns bichos ficam mais pertinho, mas todos estão seguindo o
mesmo caminho, entende?
GOUVEIA Mas é claro, sempre gostamos dos cães que caminham mais
pertinho (brinca como se estivesse caminhando com um cão bem
ao seu lado) aqui bichinho, bem pertinho, vem, isso, certinho, bom
menino, bom menino. (parando de brincar). Mas no fundo,
gostamos dos cães que têm a cara do dono.
GOUVEIA Antigamente tudo era muito mais fácil, branco no branco, preto no
preto. Agora tudo está misturado. Essa juventude, viu?
(artificialmente desconsolado) Vou te falar, é brincadeira...
GOUVEIA Não decola. Não levanta nem voo de galinha. Não sai do chão.
Parece que amarraram uma pedra nos caniços do sujeito.
ALBUQUERQUE Senador.
GOUVEIA Ainda não chegaram tão perto do poder como gostariam, não é?
Ainda não fizeram um ministro, um vice, um presidente….
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PASTOR OMAR Mas chegaremos lá, (apontando para cima) é a vontade do Senhor.
A vontade do Senhor. É só uma questão de tempo.
PASTOR OMAR Vejam, meus irmãos, eu não nasci em berço de ouro. Eu venho de
uma família humilde. Minha mãe, que repousa em Cristo...
GOUVEIA Pois é.
PASTOR OMAR Mas vocês disseram que todos os cães são levados pelo mesmo
caminho...
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ALBUQUERQUE Tudo mudando.
GOUVEIA E queremos que fique tudo como sempre foi,. Mesmo se mudar
tudo.
ALBUQUERQUE Precisamos.
PASTOR OMAR Que a partir de hoje podem contar com a bondade de nosso
Senhor. Estamos juntos, meus irmãos.
ALBUQUERQUE Qual?
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CENA 8- Encontro de Família
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Casa de ADÃO e EVA. EVA está arrumando a casa para receber visitas. ADÃO fica andando
atrás dela enquanto ela segue em suas tarefas.
ADÃO Poxa vida, Eva, não acredito que você inventou essa, caramba...
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EVA Ai, Adão, não reclama, vai? Uma vez na vida poderia me deixar
feliz sem reclamar.
ADÃO Meu amorzinho, eu sempre faço tudo pra te deixar feliz…. Mas eu
queria ficar em casa de boa, descansando, ver um futebolzinho na
TV e você me vem com essa de receber visita...
EVA Não é disso que estou falando, seu besta. Só quero ter uma
amizade na vida, não posso?
EVA É atendente, né? Já te falei que ela é bem pobre, mora na igreja, é
caseira lá. Se não fosse o pastor dar essa oportunidade pra ela
deus sabe onde estaria morando….
ADÃO Então essa lanchonete deve pagar pouco pacas... . Amorezinho, não
quero ser chato, mas a gente não tem nada pra oferecer pra eles
comerem
EVA Não se preocupa, ela vai trazer um frango assado pra nós.
ADÃO Bem, pelo menos dinheiro pro frangão da padoca ela tem...
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ADÃO E como ela vai comprar? Vai roubar o frango? (pausa) Eva… você
não….
ADÃO Era só o que me faltava.... Agora vou bancar frango pras velhas
carolas da igreja.
EVA Adão, que é isso? E agora não adianta mais reclamar, a essa hora
ela já comprou o frango e logo tá aí.
(toca campainha)
EVA São eles. Vai por uma camiseta, pela amor de deus. E coloca uma
bermuda decente.
OBREIRA ROSÁRIO Meu menino não chegou ainda, mas o frango eu trouxe. (ri)
EVA (rindo) Que bom, né? Ao menos isso, venha comigo, vamos na
cozinha acertar esse frango numa travessa (saem)
(entra ADÃO)
ADÃO Eva….
EVA (de fora) Tá brincando que vai pôr camisa de futebol, né?
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(toca campainha)
ADÃO Remo...
REMO Não, mãe, eu me apresentei quando ele atendeu, não foi seu….seu...
EVA Adão.
ADÃO Prazer.
EVA Não é seu não, é meu (ri) Não precisa de chamar nem de “seu”
nem de “senhor”, Remo.
OBREIRA ROSÁRIO Ele sempre foi um menino muito educado, muito respeitoso.
EVA Percebe-se, mas nos chamar de você não é falta de educação, não
se preocupe. Gente, vamos terminar de arrumar a mesa, que estou
faminta. Remo, me ajuda com as coisas aqui.
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ADÃO O que?
(ambos se sentam)
OBREIRA ROSÁRIO Sim, isso mesmo. Ele aprendeu comigo. Tudo o que ele sabe
aprendeu comigo.
OBREIRA ROSÁRIO Sou sim. Eu e o meu menino. Há anos colocamos nossos joelhos no
chão e curvamos a coluna em oração.
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OBREIRA ROSÁRIO Ah, é um problema antigo. Tenho muitas dores. Muitas.
ADÃO Mas pelo visto tá demorando demais, não é não, dona Rosário?
OBREIRA ROSÁRIO Não brinque com o que do senhor. Ele sabe o que faz. Tudo ao seu
tempo. Ele tem dado forças ao meu filho pra que ele dê duro no
trabalho.
REMO (um tanto irritado) É, dou duro. Duro mesmo. Toda noite.
OBREIRA ROSÁRIO Deus ajuda a quem faz por onde, seu Adão.
EVA Esse moço é mesmo de ouro, Rosário. Você deve se sentir bem
orgulhosa.
OBREIRA ROSÁRIO E como não ser? Esse menino é de outro. Um anjo que Deus pôs
em minha vida.
ADÃO Deus põe cada pessoa inesperada em nosso caminho, não, dona
Rosário?
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EVA Pois eu concordo.
EVA A gente estudava na mesma escola. Eu nunca matava aula, mas ele
faltava quantas podia pra jogar, não desgrudava dos meninos, não é
amor?
OBREIRA ROSÁRIO Tá vendo como deus provê? pôs o varão no seu caminho.
EVA Remo, você gosta de futebol? Um dia o Adão pode levá-lo pra
bater uma bola.
EVA Já disse que não precisa chamar de “seu”.... já são amigos. Bem,
vamos comer essa comida antes que esfrie?
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REMO (olhando para ADÃO) Pai nosso, abençoa esse almoço gostoso,
gostoso demais, e que nunca falte, nessa casa. Que nunca falte esse
almoço, gostoso.
OBREIRA ROSÁRIO Ai, que ótimo. Eu também adoro assistir ao Seu Sonho Vale Um
Milhão, com Gabriel Louquinho. Não perco um. Tava até triste,
achando que ia perder hoje.
REMO (para ADÃO) O senhor adora bater um futebolzinho, né, seu Adão?
GABRIEL Alô você, bem vindo, bem vinda ao meu, ao seu, ao nosso
LOUQUINHO programa
GABRIEL Exatamente, aqui seu sonho vale um milhão porque, você já sabe,
LOUQUINHO um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas
um sonho que se sonha junto…. é um ótimo negócio. E hoje temos
uma participante mais que especial. hoje temos, direto do Brasil
profundo, da pequena cidade de piracema de pirarucu a obreira
Rosário!
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Olá, Rosário, muito bem vinda ao nosso humilde programa.
GABRIEL Não precisa agradecer, querida. Mas vamos lá, porque aqui, você já
LOUQUINHO sabe: um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só,
mas um sonho que se sonha junto…. é um ótimo negócio., é o nosso
negócio é por um milhão de reais em seu bolso, Rosário.
OBREIRA ROSÁRIO Somos sim. Todos nós. Sangue de Jesus tem poder.
GABRIEL Então vamos falar com eles. (Para REMO) Então você o Remo. Veio
LOUQUINHO torcer para a mamãe, é?
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REMO Sim.
EVA Eva
EVA Não. Sou nova na igreja. Recém acolhida pelo senhor Jesus.
GABRIEL E que poder (ri) E a Rosário, vai ganhar o prêmio máximo hoje?
LOUQUINHO
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GABRIEL Afinal… Sonho que se sonha só é só um sonho, mas
LOUQUINHO
GABRIEL Então vamos sonhar. Vai, sonha Brasil. (para ROSÁRIO) Então você
LOUQUINHO é a Rosário, né? Conta sua história para o Brasil.
ROSÁRIO (acanhada) Ah, eu sou Rosário, vim do interior do Paraná para São
Paulo com meu marido.
ROSÁRIO Sim, vim grávida. Tinha acabado de casar, era bem novinha.
GABRIEL E quando chegou aqui aconteceu algo ruim, não foi? Conta pro
LOUQUINHO Brasil.
ROSÁRIO Sim. Quando chegamos aqui fomos morar num barraquinho. Era
pequenino, pobre, mas era o começo, né? Mas aí meu marido
(pausa. com voz embargada)... meu marido mudou né?
ROSÁRIO Ele mudou. começou a beber, ir pras boates. Sair com outras
mulheres….
ROSÁRIO É, caiu na vida. E aí um dia não voltou mais. Foi embora com outra.
GABRIEL Dureza, né? Você sozinha, grávida, sem família, sem ninguém.
LOUQUINHO
ROSÁRIO Pois é.
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GABRIEL E aí você entrou para a igreja. Encontrou Jesus.
LOUQUINHO
ROSÁRIO Sim, comecei a ir pra igreja. Todo dia. Viraram minha família. Me
ajudaram muito, viu? Recebi cesta básica, roupa de doação. Quando
meu filho nasceu me deram enxoval. Ajudaram com o leite. E aí
continuei minha vida, morando lá no barraquinho, comecei a
trabalhar de fazer faxina, e a vida seguiu….
GABRIEL Mas ainda não foi o fim das más notícias, não é?
LOUQUINHO
ROSÁRIO É, por isso. Preciso fazer uma cirurgia, mas é caro. Só no particular
que faz.
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ROSÁRIO Ah, não é bem assim. Eu fui morar lá na igreja. O pastor Omar
ROSÁRIO Sim, pastor Omar, nosso líder lá na igreja. Ele disse que eu poderia
morar lá. Eu fico de caseira, faço a faxina, cuido das coisas pra não
faltar nada, faço um café. Eu faço por onde, né?
GABRIEL Mas não tem problema, Rosário. Essa é a sua chance de ganhar, um
LOUQUINHO milhão de reais. Sonha Brasil.
GABRIEL Então, Rosário, vai ser assim, Vou explicar para você como é nosso
LOUQUINHO programa: você fará duas provas, se conseguir concluir a primeira,
ganha mil reais. Mil reais te ajuda, Rosário?
GABRIEL Ajuda sim. Ajuda. E se concluir a prova, não ganha só os mil reais.
LOUQUINHO Se conseguir concluir a primeira prova, ganha também a chance de
fazer a segunda prova. E se concluir a segunda prova, leva pra
casa dez mil reais.
GABRIEL Mas olha só, se não conseguir concluir a segunda prova, não leva
LOUQUINHO nada para casa. Perde tudo. Entendido?
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GABRIEL Mas se concluir, além dos dez mil reais, ganha também a chance de
LOUQUINHO fazer a terceira prova. E essa prova é a prova de um milhão de
reais.
GABRIEL Então vamos lá, que sonho que se sonha só é só sonho, mas sonho
LOUQUINHO que se sonha junto é um ótimo negócio. Então….
GABRIEL Vem para cá, Rosário, vem ganhar seus mil reais.
LOUQUINHO
GABRIEL Venha logo, Rosário, não temos o dia todo. Quer dinheiro? vem
LOUQUINHO participar da prova. Sonha Brasil.
Então aqui está a amarelinha, você tem que ir até uma ponta e
voltar, e ganha seu primeiro mil reais. Sonha, sonha Brasil.
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(com muito custo e sofrimento, expressando dores
e cansaço ela cumpre a prova ante os olhares
perplexos de EVA e REMO)
GABRIEL É covarde.’
LOUQUINHO
GABRIEL É isso, isso mesmo. Afinal, sonho que se sonha só é só sonho. Mas
LOUQUINHO sonho que se sonha junto, é um ótimo negócio. Então sonha Brasil.
Bem ,a segunda prova é bem fácil. Diz para mim, Rosário, você
estudou só até a quinta série, não é?
OBREIRA, ROSÁRIO É sim. desde menina eu tive que ajudar o pai na roça, então tive
que deixar a….
GABRIEL Então vamos fazer uma prova para incentivar as crianças a não
LOUQUINHO saírem da escola, porque quem sai da escola, passa vergonha (ri)
Não podemos ser preguiçosos, crianças.
OBREIRA ROSÁRIO Tudo bem, tudo bem. Eu estudei pouco, mas graças a Deus leio
bastante a Bíblia.
GABRIEL Ficamos sabendo, Rosário, que você é um tanto tímida, não é isso?
LOUQUINHO
OBREIRA ROSÁRIO Sim, sou tímida sim. Na igreja às vezes eu até falo em público, mas
fico muito acanhada.
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OBREIRA ROSÁRIO Ah, tenho medo de falar algo errado, de tropeçar nas palavras.
GABRIEL A senhora sabia que esse receio que a senhora sente tem nome?
LOUQUINHO.
GABRIEL Pois é, tem sim. E a senhora ganhará seus dez mil reais se soletrar
LOUQUINHO o nome desse receio.
GABRIEL Então sonha Brasil. A palavra que a senhora terá que soletrar e que
LOUQUINHO representa o medo que as pessoas têm de falar em público é:
hipopotomonstrosesquipedaliofobia
GABRIEL Então Rosário? Vai ou não vai? Desiste e perde tudo ou arrisca?
LOUQUINHO
OBREIRO ROSÁRIO Não, não. Preciso do dinheiro, pra minha cirurgia. Vou tentar.
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(com muito custo ROSÁRIO soletra a palavra.
durante a atividade, REMO e EVA torcem muito,
apreensivos e GABRIEL LOUQUINHO faz caretas)
GABRIEL Incrivelmente está… certo. Parabéns, Rosário. Acaba de levar dez mil
LOUQUINHO reais. Está satisfeita?
OBREIRA ROSÁRIO Não, ainda não. É que tem um tratamento que vem depois. Mas já é
uma boa parte. O que falta a gente consegue com o trabalho.
GABRIEL Mas é por isso que a audiência gosta. Todos querem ver alguém
LOUQUINHO perdendo. Porque assim todos se identificam. Todos são perdedores.
GABRIEL O que não está certo é essa mulher tirar a chance de alguém
LOUQUINHO dispostar a arriscar e depois não ir até o fim.
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GABRIEL Ah, essa é a ideia. Muito bom Rosário, muito bom. Sonho que se
LOUQUINHO sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é um
ótimo negócio. Então….
GABRIEL Então é hora de rezar, porque esse é o jogo do “a sorte está num
LOUQUINHO giro”. Temos aqui uma roleta com cinco alternativas, quatro dizem
“tchau querida” e uma diz “um milhão”. Agora, Rosário, é só girar.
GABRIEL Aqui é entretenimento, meu jovem, não é justiça. Vamos lá, Rosário,
LOUQUINHO roda a roda da sua sorte,.
A,h, Rosário. Que triste. Perdeu tudo…. já tinha ganhado dez mil reais,
mas acabou perdendo tudo. Puxa, é triste mesmo, quase que
conseguiu pagar sua cirurgia. Mas sonhamos juntos, Rosário, foi um
ótimo negócio, a audiência está lá nas alturas. Lá nas Alturas. Mas
você pôde sonhar, Rosário, pôde sonhar aqui com nosso programa.
O sonho acabou. Agora é seguir a vida concreta. Mas você pode
sonhar.
OBREIRA ROSÁRIO Meu sonho é um dia ser selecionada para participar do programa e
quem sabe ganhar o dinheiro pra fazer minha cirurgia….
REMO sei não, mãe, parece mais um lance de ficar expondo as pessoas ao
ridículo.
ADÃO Ah, eu gosto de ver as pessoas ficando com cara de tacho quando
perdem o que ganharam...
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ADÃO Deixa de besteira. Agora vou pôr no futebol.
REMO Não, Eva,. De forma alguma. Vou adorar o futebolzinho com o seu
Adão.
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CENA 9 - Quem paga a banda escolhe a música
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ALBUQUERQUE (irritado) Puta que o pariu, Gouveia. Puta que o pariu. Quem aquele
porra pensa que é?
GOUVEIA Ele é ele, ué? Ele tem influência sobre os outros pastores, sobre o
povo deles… Aquele monte de gente indo pras missas...
ALBUQUERQUE Culto.
GOUVEIA O que?
GOUVEIA É isso, é isso… tanto faz. Ele tem influência sobre os outros pastores,
sobre o povo deles… Aquele monte de gente indo pros cultos.
ALBUQUERQUE Que povo? Quem quer saber de povo? Nem sei porque que esse
povo ainda está solto por aí...
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GOUVEIA Você está é nervoso porque temos sócios novos, não? Esses
pastores são danados. Chegaram mesmo para ficar. (pausa curta)
Não esqueça, às vezes é preciso que as coisas mudem para
permanecerem como sempre foram.
ALBUQUERQUE É.
GOUVEIA Eu falei, tem candidato ecológico, tem candidato professor, tem até
candidato banqueiro. Mas qual eles escolhem…? (faz “arminha com
as mãos”) o mais maluco deles! (ri) Bom, tudo tem que mudar, não
é?, se quisermos deixar as coisas como sempre foram.
GOUVEIA querer eu não quero. Mas os caras querem. E eles têm votos pra
chuchu.
ALBUQUERQUE E o meu.
GOUVEIA Eu também não. Mas o que importa? nunca tinha ouvido falar dos
outros também. O que importa é que pagamos a banda. E você
sabe, (começa a dançar uma valsa consigo mesmo) quem paga a
banda escolhe a música. Não importa quem é que toca. O que
importa é tocarem a nossa música.
ALBUQUERQUE De qualquer forma acho que vou pesquisar um pouco para saber
mais a respeito.
ALBUQUERQUE Só para saber um pouco mais onde vou colocar meu dinheiro.
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GOUVEIA (fazendo “arminha com as mãos” e rindo ironicamente) E o que é
que tem para saber? O importante é deixar tudo como está! E
nunca esquecer, quem paga a banda, escolhe a música.
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CENA 10 - Tem coisas que é melhor não se falar
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No salão da igreja. OBREIRA ROSÁRIO e EVA. OBREIRA ROSÁRIO está organizando a igreja.
OBREIRA ROSÁRIO Muito gentil da sua parte ficar pra me ajudar, Eva.
OBREIRA ROSÁRIO Você é nova aqui, mas já ajuda como gente antiga da igreja. Ou até
mais, porque boa parte do povo recebe sua graça e vai aproveitar
dela longe daqui (ri)
EVA (rindo) Pois é…. Mas foi a senhora quem disse...Eu não falo nada.
OBREIRA ROSÁRIO O que foi minha filha? O que aconteceu? Prendeu o dedo em
algum lugar?
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EVA (em soluços) Não...
OBREIRA ROSÁRIO Mas não incomoda nada. Além disso. Ficou pra me ajudar. Deixa eu
ajudar você.
OBREIRA ROSÁRIO Ele não parou de sair, não é? É um safado mesmo. Mas Deus sabe o
que faz, minha filha. Logo Deus põe a mão na cabeça dele. Você é
uma moça tão boa, tão bonita. Agora que você tá vindo pra igreja,
logo o diabo não tem mais força pra atazanar a casa de vocês.
EVA É tudo. É essa vida dura. Essa sensação de que nada vai mudar. De
que vamos envelhecer e tudo continuará como sempre foi. Minha
mãe foi uma mulher triste, que viveu pro meu pai. Depois que ele
morreu, continuou vivendo sua vidinha até ela acabar. E acho que é
a mesma coisa comigo. Nem sei mais se Adão tá errado em ter um
caso. ao menos ele tá tentando ser feliz.
OBREIRA ROSÁRIO Não diga isso, filha. Que bobagem. Ele não tá fazendo nada de bom,
não. É o diabo que tá tentando ele. Deus tem gosto do casamento de
vocês. você me disse que ele é o único homem que teve, não?
EVA Quando eu era nova, tinha uns quatorze anos, tava numa festa da
escola. Quando deu de madrugada eu resolvi voltar pra casa. O
caminho era escuro, era um atalho, por dentro de um terreno
baldio. (pausa) Eu era metida a não ter medo de nada, sabe? Então
eu resolvi seguir aquele caminho. (pausa) Mas tinha uns meninos
que tavam na festa também. Eles tinham mexido comigo e eu
mandei eles se catarem. (pausa) Eles me seguiram (chora
copiosamente) Ninguém mais queria falar comigo, depois. Foi
horrível. (recupera-se, para de chorar) Só o Adão continuou meu
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amigo. Ele me visitava sempre, me ajudava com os deveres da
escola, fiquei meses sem assistir aula. (pausa) A gente foi se
aproximando. Ficando mais íntimo. Acho que os pais dele queriam
que a gente ficasse junto. Os meus também. Um dia nos beijamos.
Começamos a namorar. Não deu seis meses a gente se casou.
(pausa) Aí viemos morar aqui. Não queríamos mais morar em
nossa cidade. Lá é muito pequeno. O povo fica falando de tudo, a
toda hora. Falavam de mim. Falavam do Adão.
EVA Falavam que ele… que ele… Meu Deus… Será que ele?
OBREIRA ROSÁRIO ele o quê, minha filha. Diga logo, que aflição.
EVA Dona Rosário, acho que tem coisas que é melhor não se falar.
OBREIRA ROSÁRIO Sabe, minha filha, os homens são estranhos. Muito estranhos.
(pausa curta)
(pausa curta)
OBREIRA ROSÁRIO acho que tem coisas que é melhor não se falar. (pausa) Vamos
terminar de arrumar a igreja?
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CENA 11 -Burguesia fascista
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GOUVEIA Eu estou bem. quer dizer, não tá mais tão fácil sair de casa. Mas é
para isso que a casa é grande, né? Mas me diz, cadê você,
Albuquerque? Tinha ficado de passar por aqui.
(pausa)
GOUVEIA Do candidato?
GOUVEIA Mas que bobagem é essa, Albuquerque? Que mudar o país o quê?
Isso não muda nada, não muda nunca. Não temos que nos misturar
com essa gente. ‘
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GOUVEIA Nós já ganhamos, Albuquerque. Ganhamos sempre. (pausa curta)
Não tenho medo de perder nada.
ALBUQUERQUE Então, qual o problema? De perder a vida? Você nem vai durar
muito mesmo…. (pausa) Porra, Gouveia, os tempos são outros.
(triunfante) São outros.
GOUVEIA Olha, Albuquerque, presta atenção. Eu não ligo para o que acontece
em quem está no meu caminho. Ninguém faz fortuna só com
trabalho e sorrisos. Sabemos disso. O jogo é grande, é só quem joga
e adultos.
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CENA 12 - ROSÁRIO em dúvida
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Salão da igreja. REMO e ROSÁRIO. Acabaram de chegar da rua. ROSÁRIO está muito
cansada e com dor.
REMO A gente vai conseguir esse dinheiro, mãe. A gente tenta em outro
banco
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OBREIRA ROSÁRIO Não sei, não sei...
REMO Nem me parece aquela mulher forte, sempre tão confiante, com
tanta fé.
OBREIRA ROSÁRIO É, né… É que a dor é imensa… as vezes cansa. Nem sei se é a dar,
que essa a gente acostuma. Mas a dor atrapalha tanto a vida. Tenho
que cuidar dessa igreja, limpar tudo, deixar pronto. Dá tanto
trabalho… leva tanto tempo… Sobra tão pouco tempo pra fazer
minhas coisinhas.
OBREIRA ROSÁRIO Não, meu filho, não precisa. Você trabalha tanto e já me ajuda
demais aqui. Você é um menino esforçado demais.
REMO (levantando-se e indo até o púlpito) Poxa, mãe, o que seria dessa
igreja sem você. tem seu suor em cada uma dessas cadeiras, nos
vidros da janela, no piso… aqui (olha e bate no tampo do púlpito),
bem aqui.
OBREIRA ROSÁRIO Mas ele já me dá onde morar. Deixa a gente morar num dos
quartinhos da igreja....
REMO Mãe, ele não dá nada não. Nada disso aqui sai do bolso dele. São os
fiéis que pagam isso tudo. Até a senhora… (sorrindo suavemente)
pensa que não sei que a senhora põe parte do que te dou na
sacolinha da igreja?
OBREIRA ROSÁRIO Mas você não tem fé em nada. (geme baixo, põe a mão nas costas)
aí, essa caminhada toda foi pesada hoje.
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REMO Tem que ir descansar um pouco.
OBREIRA ROSÁRIO Mas tenho tanta coisa pra fazer. (pausa) Será que Deus me
abandonou, filho? Será que não faço o suficiente pra merecer a
atenção dele?
REMO ô, minha mãe, mas o que mais ele pode querer? Se aqui é a casa
dele mesmo ele não poderia querer uma mas bem cuidada.
OBREIRA ROSÁRIO Até Jesus se sentiu abandonado na derradeira hora. Que eu teria
melhor que ele?
(entra FRANCISCO)
OBREIRA ROSÁRIO Não, seu Francisco, por favor. Fique a vontade, não está
incomodando nada, não.
OBREIRA ROSÁRIO Ah, seu Francisco, não deu, não. Me negaram o meu pedido.
FRANCISCO Lamento muito dona Rosário, lamento demais. Que crueldade. Creio
que a senhora explicou para que precisa do dinheiro.
OBREIRA ROSÁRIO Sim, expliquei, levei os laudos dos médicos, as chapas, os exames
todos. Mas mesmo assim, negaram.
OBREIRA ROSÁRIO Obrigada. Mas acho que não tem o que dizer.
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REMO (sorrindo) Mas a situação tá tão dura que até minha mãe começou
a duvidar da vontade de Deus.
OBREIRA ROSÁRIO Não é nada disso. Só falei que me sinto um pouco abandonada. Mas
passa logo. Deus coloca essas pedras no caminho da gente que é
pra testar nossa fé.
REMO Olha, mãe, acho que quem tá testando a nossa fé é o governo, viu?
E os donos de hospitais privados que cobram os olhos da cara.
OBREIRA ROSÁRIO E o senhor, seu Francisco. Disse que tentaria falar com seu antigo
patrão. Conseguiu?
REMO Poxa vida, que pena, seu Francisco. Fico bem triste pelo senhor.
FRANCISCO Fazer? não sei, não pensei nisso ainda. Acho que não tenho mais o
que fazer.
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PASTOR OMAR Olá, boa tarde, meus irmãos. Como estão? (para FRANCISCO) E o
senhor, seu Francisco? Está bem acomodado? O quartinho não é
muita coisa...
FRANCISCO Está ótimo, pastor, está ótimo. Não se preocupe. O pouco com Deus
é muito.
PASTOR OMAR Exatamente isso. Esse é o espírito. E você, Rosário? Que semblante
triste é esse, irmã?
PASTOR OMAR De novo? Que tristeza, minha irmã. Mas não se esqueça “tomai
modelo no sofrimento e na paciência os profetas, os quais falaram
em nome do Senhor” Tiago, capítulo 5 versículo 10. Então, não
duvide dos propósitos do Senhor.
PASTOR OMAR Quem está certo, é Deus, Rosário, é Deus. Nós só estamos aqui para
seguir e pregar sua vontade.
PASTOR OMAR Sei que a senhora sofre, sofre muito. Mas não perca sua fé, não
perca sua confiança em Deus.
PASTOR OMAR Bem, a prosa está ótima, meus irmãos, mas é preciso trabalhar, não?
Temos culto hoje e é preciso arrumar tudo.
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CENA 13 - FRANCISCO desiste I
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Casa de GOUVEIA. GOUVEIA e FRANCISCO. A cena começa de forma realista, mas evolui
para um clima onírico.
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GOUVEIA Francisco? O que você está fazendo aqui? Como você entrou na
casa?
FRANCISCO Senhor Gouveia, não quero lhe fazer mal. Mal algum. Preciso
apenas conversar com o senhor.
FRANCISCO Eu...
GOUVEIA Nem esse câncer pode me fazer mal. Pode até me matar. E vai
matar. Mas me fazer mal… Nem ele, e nem você.
FRANCISCO Senhor, eu vim apenas dizer que creio que houve um mal
entendido. Sei que o senhor não tinha intenção de me despedir,
afinal, foram 25 anos, 7 meses, 2 semanas e 2 dias, para ser mais
exato..
GOUVEIA Sim, eu gostava, claro. Você sempre foi muito atencioso, discreto,
técnico até...
GOUVEIA Como?
FRANCISCO Sim, pode acreditar. Sempre servi ao senhor com muito gosto. Sei
da importância de manter essa casa funcionando bem para o sen...
GOUVEIA Mas quem, pelo amor de deus, gostaria de ser mordomo por gosto?
FRANCISCO Senhor?
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GOUVEIA Francisco, Francisco, meu bom Francisco. Quem gosta de servir?
Que vida miserável deve levar você para se sentir feliz em servir
alguém.
GOUVEIA Vê, meu Francisco? Você não vê além além da sua bandeja.
GOUVEIA Francisco, lembra-se de quando lhe falei sobre minha mão? Sobre
todos estarem em minhas mãos?
GOUVEIA Mas deve se lembrar que eu falei sobre mãos maiores ainda, e que
eu estou em algumas delas.
FRANCISCO Sim, senhor, me lembro. O senhor disse que algumas delas nem
falam português.
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GOUVEIA (sorrindo) Realmente você se lembra, heim? Pois é. Você tinha dito
que não conseguia entender...
FRANCISCO Mas senhor, veja, não se trata apenas de dinheiro. Pense em minha
dignidade.
GOUVEIA Não seja bobo. Onde já se viu, um homem do seu tamanho, na sua
idade. Quem está falando de dignidade? Tem o seu dinheiro. Agora,
nunca mais fale nada sobre ter assinado qualquer documento para
mim. Você tem um bom dinheiro para ficar quieto.
FRANCISCO Mas não quero seu dinheiro. (começa um choro contido) Quero seu
respeito, senhor.
GOUVEIA Deixe disso, homem. Deixe disso. E me diga, como conseguiu entrar
na casa. Gostaria de saber, como conseguiu entrar na casa...
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CENA 14- FRANCISCO desiste II
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Quartinho na igreja. Francisco deitado acorda assustado.
REMO (entrando) Mãe, tudo bem aí? Seu Francisco, o que houve?
FRANCISCO (acordando. para REMO, um tanto desorientado) Ai, meu deus. Seu
Gouveia, seu Gouveia...
REMO (terno) Não, seu Francisco. Não sou o Gouveia, sou o Remo,
lembra-se? O filho da dona Rosário.
ROSÁRIO Sim, ele é mesmo. Um anjo em minha vida. Tenho muito orgulho
dele. Deus me abençoou com um bom menino.
REMO
ROSÁRIO Sim, melhor irmos mesmo pro seu Francisco poder descansar.
FRANCISCO Dona Rosário, a senhora, por favor, poderia ficar mais uns
minutinho? Por favor.
REMO E eu vou nessa. Bom noite, mãe, vê se não demora muito, heim?
Seu Francisco precisa descansar. (seu celular recebe uma
notificação de mensagem) Eita, que foi agora? (Ele a lê)
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Alegria de pobre dura pouco, né, mãe? Tenho que ir mais cedo pro
trabalho hoje. Vou me arrumar e sair
REMO Pois é…. a lanchonete tá recebendo uns produtos que são entregues
só de madrugada, mas um dos meninos faltou, aí o chefe tá me
chamando...
REMO Amém. Tchau, seu seu Francisco. Vê se dorme, heim? Amanhã vai
estar novinho em folha. (sai)
ROSÁRIO Não precisa dizer isso. Não fiz nada diferente do que se espera de
uma serva de deus.
FRANCISCO Sim, sim. Eu sei. Mesmo assim, a senhora fez mais do que muita
gente já fez. E eu quero lhe mostrar algo.
ROSÁRIO Seu Francisco, não precisa tocar nesse assunto, sei que é muito
angustiante para o senhor….
ROSÁRIO Mesmo que não fosse, eu não o julgaria, não posso fazer isso.
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FRANCISCO Veja, olha isso. (estende a mão com o envelope para ela) é o meu
extrato de banco.
FRANCISCO Sim, ele é. Seu Gouveia o depositou em minha conta… Disse que é
uma compensação….(pausa) Mas acho que é pra eu ficar calado e
aceitar tudo o que tá acontecendo.
ROSÁRIO Que pilantra. Mas, bem… É muito dinheiro. O senhor vai devolver?
FRANCISCO Pensei nisso. Mas isso não traria minha dignidade de volta.
ROSÁRIO Como não? Todo mundo vai saber que o senhor é inocente...
ROSÁRIO Agora?
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ROSÁRIO Não, seu Francisco, eu não posso. Por favor.
FRANCISCO Dona Rosário. Eu quem lhe peço por favor. Fica com eles. Por favor,
fica com eles. (se deitando e se preparando para dormir) Fica com
eles. Depois conversamos. Por favor.
ROSÁRIO Ai, seu Francisco. Tá bem, tá bem. Amanhã eu devolvo pro senhor.
Agora descansa, heim. Vê se dorme.
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CENA 15 - Escolhas e caminhos
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Praça. REMO está sentado no encosto no banco, assobia uma música animada. Está
sorrindo.
ADÃO (empurrando-o com força) Que porra que foi aquilo lá em casa,
seu puto?
REMO Caralho, Adão. Não sabia que minha mãe conhecia sua esposa. Faz
dias que estou tentando falar contigo pra falarmos a respeito, mas
você não atende.
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ADÃO Puta merda. Puta merda. Que merda você foi fazer em casa?
(sentando-se no encosto do banco). Cara, é minha casa, é minha
família.
REMO Eu não sabia que minha mãe e sua mulher se conheciam. Eu não
sabia que era sua casa…. (com disfarçado desdém) sua família.
Minha mãe disse que ia visitar uma nova amiga da igreja, pediu
pra eu ir junto, não tinha nada pra fazer, queria deixar minha mãe
feliz. Ela reclama que passo pouco tempo com ela. Ela é muito
sozinha, só tem a igreja e eu. Me convidou a ir, eu.. sei lá… aceitei
pra deixar ela feliz… Não sabia que era a sua casa...
REMO (Indo até ele, para abraçá-lo) Ah, gato deixa disso…..
ADÃO Que gato o caralho…. sai de perto de mim. Eu não sou viado, eu sou
viado., porra.
REMO Ah, não é viado? É o que então, porra? Vc come meu cu, caralho.
Pede pra eu comer o seu… É o que então?
REMO Tá com medo do que? De que sua mulherzinha descubra que você
tem um caso? Ou só não quer saber que ela saiba que tem um
caso com outro cara?
ADÃO (Chorando, com o rosto entre as mãos) Eu não sou viado… não sou….
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Você, pirou, pirou geral. Sai daqui, maluco. Sai daqui. Não quero te
ver nunca mais.
REMO Vai, atira, seu filha da puta. Atira. Seja homem uma vez na vida.
Assume uma vez sua bronca, vai. Atira, caralho, (gritando) atira.
Achei que você seria homem uma vez na vida. Mas se não foi nem
pra assumir quem é, não seria pra puxar seu próprio gatinho. Você
é um bosta de um filha da puta.
ADÃO Te odeio, cara. Olha o que fez comigo. Olha no que me transformou.
Quase destruiu minha família.
REMO Não, não sou comunista, não. Nem sei o que é isso. Mas quer saber
de uma coisa. Eu vou é descobrir o que é um comunista. Vou sim.
Certamente é alguém bem melhor do que você. (sai)
ADÃO Remo, Remo…. volta aqui, porra. Volta aqui seu puto. volta.
Comunista, comunista. Vai embora seu, comunista. (volta a chorar,
senta-se, coloca o rosto entre as mãos)
FASCISTA 1 Olha só, não falei que nessa praça só tem viado?
FASCISTA 2 Mas será que sabe usar essa porra? Atira, viado, Vai. Atira se é
macho.
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(ADÃO segura aponta a arma para o rosto de
FASCISTA 1, mas sua mão treme. não consegue
atirar. FASCISTA 2 acerta suas costas com um
taco,. ADÃO cai no chão. FASCISTA 1 e FASCISTA
2 começam a espancá-lo.)
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CENA 16 - EVA encontra Jesus
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EVA Mas vou te falar, viu? Se quando ele chegar em casa não tiver
uma boa desculpa eu vou….
ROSÁRIO Eva...
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(EVA sai de cena, como indo ao quarto de
FRANCISCO. EVA, ainda fora de cena, grita)
EVA (Voltando ao palco) Meu deus do céu. Sangue de Jesus tem poder.
Ele tá… ele tá….
ROSÁRIO Não. Ele se matou, Eva. Deixou isso aqui. (estende a ela a mão que
segura o bilhete)
ROSÁRIO Não, não era. O patrão dele deixou pra ele. É uma história enrolada,
mas não é dinheiro sujo, não. Era dele, ele merecia.
ROSÁRIO Obrigada.
EVA Mas agora precisamos saber o que fazer. Você chamou a polícia?
Precisamos avisar as autoridades.
ROSÁRIO Não, ainda não. Chamei você, e chamei o pastor, ele pode nos
aconselhar melhor.
EVA Tadinho.
EVA É… Não é bem sumiu… mas saiu pra jogar bola e não voltou. Só de
madrugada que deu sinal de vida….
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84
ROSÁRIO Ah, esses homens. Meu marido ele tinha a mania de….
PASTOR OMAR E, o que houve, Rosário? Em nome de Deus o que aconteceu que
me chamou a essa hora?
EVA Ele se matou, Pastor. Estava muito triste. Se matou. Acho que
precisamos chamar a polícia, não?
PASTOR OMAR Sim, sim, precisamos. Vamos chamar (pausa curta) daqui há pouco.
E ele não deixou nada escrito?
PASTOR OMAR Dinheiro? Ele te deixou dinheiro, Rosário? Que dinheiro, em nome
de Deus? Quanto?
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(ROSÁRIO lhe entrega o extrato bancário)
EVA Não é bom, Pastor? Rosário agora poderá fazer sua cirurgia. Depois
de tantos anos vai acabar de uma vez por todas com tanta dor que
sofre.
PASTOR OMAR Sim, claro. É dinheiro suficiente pra fazer sua cirurgia e até arranjar
uma casinha pra ela. Não precisará mais dormir aqui na igreja.
PASTOR OMAR Se, é claro, ela parou de crer em Deus, nosso senhor e em seu filho,
Jesus Cristo.
PASTOR OMAR Dona Eva, Deus tem um propósito a cada um de nós, um plano pra
cada um. Ele provê tudo o que precisamos. Mas provê o que é
necessário, não o luxo. O luxo quem oferece é o inimigo. Mas Deus,
Deus dá sem cobrar, o satanás cobra, e cobra caro. Ou a senhora
esqueceu como é?
EVA Mas Deus está provendo pra Rosário. Deus pôs esse anjo, o seu
Francisco, no caminho dela.
PASTOR OMAR Dona Eva, que empáfia a da senhora. “Pois todo aquele que a si
mesmo se exaltar será humilhado, (para OBREIRA ROSÁRIO) e
todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado” (para
EVA) Isso é Mateus, Mateus 23, 12. A senhora se esqueceu de
Mateus, irmã? Estou aqui para lembrá-la.
ROSÁRIO Amém.
PASTOR OMAR (para OBREIRA ROSÁRIO) Amém. (para EVA) Essa sua postura é
um pecado, a irmã sabia? Quem a senhora pensa que é pra me dar
aula? Aula sobre os desígnios de Deus. Não, não, não, não. Não de
forma alguma. (pausa. didático) Francisco parecia um bom homem.
Muito solícito, muito humilde. (pausa) Mas é um suicida.
PASTOR OMAR Amém, amém, irmã. Francisco era um covarde que pensou que
podia fugir da vontade de Deus. “O Senhor prova o justo”, irmã
Eva, “O Senhor prova o justo. Mas sua alma odeia o ímpio.” Se ele
tinha problemas, é porque Deus o quis provar. Mas ele deixou pelo
caminho a prova do Senhor. Optou por ser o ímpio, e não o justo.
EVA Pastor….
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PASTOR OMAR (levantando a voz) Dona Eva, por acaso Jó tentou se aproveitar do
acaso ou dos suicídios alheios para fugir das provações impostas
por deus? Ele por acaso o questionou?
EVA Não é disso que estou falando, Pastor, desculpa. É que eu pensei
que….
PASTOR OMAR E onde está escrito, dona Eva, onde está escrito na Bíblia que o
papel da senhora ou de qualquer outro fiel é pensar sobre as
decisões divinas? Quem é a senhora, afinal? O que quer? É um
“espírito livre”? Acha que pode fazer como quer? E a unidade, dona
Eva? E o espírito de corpo da igreja? Saiba a senhora (em um tom
de voz mais alto e impositivo) que o sangue e a dor nos iguala em
Cristo.
ROSÁRIO Eu disse para parar, Eva. O Pastor está certo. (para PASTOR OMAR)
Peço desculpas pela Eva, pastor, ela é nova na igreja. Ainda está
aprendendo. A culpa é minha se ela ainda está aprendendo muito
devagar.
PASTOR OMAR Eu acho que o dinheiro do seu Francisco deveria ficar aqui para a
igreja.
EVA Rosário….
ROSÁRIO Não quero mais falar disso, Eva. Aprenda agora, ou pode ir embora,
se quiser. Pode ir embora aqui da igreja.
EVA Eu...
EVA Rosár...
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ROSÁRIO Eva, você é uma amiga que fiz na igreja, e fora da igreja, não tem
nada pra mim. Se quer continuar a ser minha amiga, é aqui na
igreja, ou em lugar nenhum. Você consegue entender?
EVA Sim.
ROSÁRIO O sangue e a dor nos iguala em Cristo. (pausa) Todo mundo tem
dor. Cada um tem a sua, e foi Deus quem deu. Aceitar Deus é
aceitar a dor que ele deu. Eu aceito a minha. Você vai aceitar a
sua?
EVA Eu...
PASTOR OMAR “Busquem o Senhor enquanto é possível achá-lo; clamem por ele
enquanto está perto." Eva, “clame por ele enquanto está perto”.... O
cavalo não vai passar duas vezes na sua frente, minha filha, ou é
agora ou você vai pra danação… Aceita Cristo como seu salvador?
Aceita? Diz, aceita?
EVA (em êxtase) Aceito, aceito, aceito. (cai de joelhos. começa a chorar)
Meu Deus, eu aceito. Não aguento mais sofrer, não aguento mais
viver.
EVA Aceito.
EVA Aceito.
PASTOR OMAR Aceita a igreja de Jesus como sua única e segura casa?
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(PASTOR OMAR se aproxima de EVA coloca uma
de suas mãos em sua cabeça, e a outra aponta
para cima, iniciando uma oração)
PASTOR OMAR Deus, pai misericordioso, tenha piedade dessa sua serva, nossa irmã
Eva, que como todos nós é mesquinha e cheia de desejos espúrios,
mas que com os sacrifícios aprendemos a controlar. Deus, aceita
essa sua serva, pecadora, mas sua filha. Amém.
(ROSÁRIO os entrega)
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CENA 17 - GOUVEIA transfere dividendo
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Sala de estar de GOUVEIA. ele está na poltrona, veste pijama e tem uma coberta sobre as
pernas,. Ele recebe o soro que está pendurado em um suporte, ao seu lado. Também recebe
oxigênio. Está bem debilitado.
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mesmas coisas. (ouve) Querem ser como nós, que mais poderia
ser? Quem ia querer outra coisa? (pousa a mãos com o telefone
sobre o peito. pausa volta com o telefone ao ouvido) Albuquerque,
acho que preciso desligar. (ouve) Não, não nos falamos depois.
(ouve) Ué, porque eu vu morrer, porra. Não vai haver depois para
mim, mas vida que segue. Transfiro meus dividendos. Boa noite,
Albuquerque. Adeus. (desliga o telefone) É um idiota. Sempre foi.
(Desfalece)
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CENA 18 - EVA encontra um ANJO
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Casa de ADÃO e EVA. EVA entra em casa. Percebe-se que ela está em choque. EVA liga a
TV e se senta para ouvir um culto transmitido. Ele assiste ao programa e lentamente
adormece. A luz vai baixando na medida em que ela pisca mais lentamente até adormecer,
ficando então apenas uma luz a pino sobre ela, não muito forte. Ocorre um barulho e ela
acorda assustada.
EVA (assustada) Quem está aí? É você, Adão? (mais assustada) Quem
está aí? Socorro, ladrão! Ladrão!
ANJO Não precisa gritar, Eva. não vou te fazer mal algum. Também nem
vai adiantar. Ninguém pode ouvir você.
EVA Como assim? Quem é você? Que está fazendo aqui? Como entrou?
ANJO (levantando-se e indo até ela) Sim, você me chamou. E agora estou
aqui.
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(ANJO abre suas asas)
ANJO Não. Aí é demais. Não sou Deus. Sou um anjo. Só um anjo. Mas um
anjo de verdade. E por favor, levante-se, isso é deprimente.
EVA (EVA extasiada, andando ao redor dele, tocando nas asas de ANJO)
Você é um anjo de deus. Um anjo de verdade.
EVA Heim…?
ANJO Não sabe o que dizer? Mas estava até agora pouco se lamuriando
toda.
ANJO É….
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EVA Eu achei que…. bem…. Sei lá, imaginava tantas coisas quando era
criança.
ANJO Ah é….?
EVA É… mas agora eu… (entre excitada e acanhada) Eu não sei se deveria
perguntar. Sei lá… a cabeça de criança é danada, pensa muitas
bobagem.
EVA Como?
EVA Sonhei tanto com uma chance dessas… Falar com um anjo. Um anjo
de verdade.
ANJO Tudo bem, essa é minha última visita hoje... Tenho tempo.
EVA Não, espera, por favor. Preciso de ajuda. Preciso entender… Quer
dizer, se é assim mesmo que as coisas acontecerem..
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ANJO Que coisas?
EVA Não, não é isso…. Você ainda usa caderninhos pra anotar coisas?
Por que não anota no celular?
ANJO Celular? nem pensando. Celulares são coisas do diabo. Prefiro isso
aqui (mostra o caderninho e o lápis) Melhores invenções, só
perdem pra roda. (guardando a caderneta) Mas então, qual é o
problema?
EVA É que a Rosário tem um problema da coluna, que dói muito. E ela
precisa de dinheiro para uma cirurgia...
EVA Francisco
EVA Sim, esse mesmo. Bem, ele deixou uma herança para a Rosário.
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ANJO Que generoso.
ANJO (sentando-se) Ai, Jesus…. Acho que isso vai demorar. Tudo bem,
continue.
EVA Isso.
ANJO Hum… Não, não conheço, não. Não, nenhum pastor Omar….
EVA Bem, ele chegou, ela disse o tinha acontecido, ele foi olhar o seu
Francisco….
ANJO O morto...
EVA Sim, o morto. Bem, aí ele voltou e fez algumas perguntas, disse
algumas coisas e, bem, perguntou o que ele tinha deixado. E ela
disse que o seu Francisco deixou o dinheirinho pra ela. Mas ele...
ANJO Ele...
EVA Ele a convenceu de que Deus gostaria que o dinheiro ficasse para a
igreja.
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(ANJO guarda a caderneta)
EVA Achei isso errado. Ela precisa do dinheiro. A coluna dela… tentei
dizer isso a ela, mas…. Mas ela parecia enfeitiçada pelo que o pastor
disse. Ela queria ficar com o dinheiro, mas não disse nada, ela
entregou o dinheiro e... (pausa) Me pareceu errado. Mas ela ralhou
comigo. Disse que era a vontade de Deus. Ele citou tantos versículos
da Bíblia, fiquei até confusa...
ANJO Os pastores gostam muito da Bíblia, acho estranho, mas são assim.
EVA Eu… eu orei com ela, e pedi perdão pelo que tinha dito. (pausa
longa) Você não conhece mesmo o pastor Omar?
EVA Olha, ela precisa demais do dinheiro. Para que ela tinha que dar o
dinheiro para a igreja?
EVA Disse.
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EVA Mas é isso mesmo?
ANJO Mas como vou saber? Eu não estava lá. Nem conheço esse tal de
pastor Osmar.
EVA Omar.
ANJO Ah, minha filha, mas você está levando isso muito a sério
ANJO Mas como poderia saber se a igreja desse precisa ou não desse
dinheiro.
EVA (alheia, consigo mesma) Bom, isso tudo deve estar nos propósitos
de Deus... (voltando-se a ANJO) E quem seria eu para questionar os
propósitos de Deus, não é?
EVA Não tem? Como assim? O que ele te disse? Por que ele te mandou
aqui?
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ANJO Ele não me falou nada. Pra te falar a verdade eu nunca vi deus.
Aliás, nenhum outro anjo que eu conheço viu deus. Ninguém
nunca o viu.
EVA Eu só queria uma palavra dele. Uma palavra… Deus é pai, não é?
Por que fica tão silencioso comigo?
ANJO Não, não o que quer. O que pode. As escolhas que cada pessoa faz
criam consequências, as consequências por, sua vez, se amontoam,
foram possibilidades, para uns, entraves para outros. Assim, as vidas
se entrelaçam. Se tornam história. Geração após geração a história
humana vai se construindo pelo livre arbítrio. Mas como disse, é
uma liberdade que se faz na história que se herda.
ANJO Acho que entende sim. Mas é uma verdade dolorosa, porque
aprendemos que não é Deus quem traça seu caminho. E você que
tem lidar com ele.
ANJO O que importa isso? Para que quer saber onde está Deus?
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ANJO Olhe à sua volta. Olhe para dentro dessa sala. Agora, olhe para o
quarteira. Veja agora o bairro. Agora, olhemos o estado. O país
agora. Veja o mundo, Eva. Veja o mundo. Você vê Deus em tudo o
que existe?
ANJO Não. Deus não abandonou você. Nenhum de vocês foi abandonado
por deus.
ANJO Acho que você leva muito a sério essa coisa de anjos, de Deus, de
propósitos… Muito a sério.
EVA Azar?
EVA Como?
ANJO Olha, Eva, você está querendo que eu diga se sua vida valeu a
pena. Se tudo o que você passou até aqui tem um significado. Pois
bem, não tem, não sei se tem….
ANJO Não tem nada que Deus possa fazer por Rosário que você mesmo
não possa fazer por ela.
ANJO Você está levando a sério demais novamente. Só tenho asas porque
não fico me prendendo tanto quanto você às coisas.,
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EVA (pensativa) Não pode ser assim tão simples.
ANJO Acho que Deus não tem nada a ver com isso. Mas se quiser
acreditar nisso, vá em frente...
EVA Não, não pode ser. (fanatizada, de forma triunfante) Deus tem seus
desígnios. Deus nos coloca no deserto, não para perecer, mas para
nos elevarmos.
EVA Omar
ANJO Não o leve tão a sério. Ele não sabe do que está falando. Está
mentindo para você.
EVA Você tem asas… Somos diferentes. Precisamos ser iguais. Somos
todos filhos de Deus.
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100
(fumaça. música evangélica. luz se fecha
lentamente em foco sobre EVA até o breu total. a
música se interrompe subitamente. luz e som
campainha. EVA está deitada no sofá, dormindo.
acorda assustada. vai até a porta e a abre, ADÃO
entra, muito machucado, caminha até o sofá e se
senta)
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CENA 19 - Revelações silenciadas
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Casa de ADÃO e EVA. Eva está dormindo no sofá. Tocam a campainha desesperadamente
até que ela acorda e a vai atender.
ADÃO Tudo bem. Deixa prá lá. O importante é que eu consegui chegar em
casa.
EVA Mas me diz, o que aconteceu com você? olha seu estado.
EVA Briga?
EVA Assalto?
EVA Precisamos?
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101
ADÃO Sabe, esse tempo todo… as ligações de celular, minhas ausências,
minhas saídas….
EVA Não, não precisa. Você é meu marido, não tem nada que dizer.
ADÃO Eva...
EVA (pondo o dedo em seus lábios, num sinal de “não fale”) Não há
nada a dizer. Está tudo bem.
ADÃO (levantando-se com raiva) Não, não está bem. Nada está bem, Eva.
Eu tinha um caso. Um caso com outro homem. Um homem, Eva,
você está ouvindo. Eu sou uma bicha, uma bosta de uma bicha.
EVA Está tudo bem, meu marido. Eu te aceito como você é….
PASTOR OMAR Foi, não foi? Deus sabe o que faz, meu irmão. Deus sabe o que faz.
Ele sempre recompensa os justos..
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102
ALBUQUERQUE Um país rico.
PASTOR OMAR Nós fizemos isso, meu filho, pela graça de Deus que nunca deixou
de prover.
ALBUQUERQUE Agora vocês estão conosco. Imagino que isso vá mudar muita coisa.
PASTOR OMAR Não estamos aqui para mudar nada, meu amigo. Ou quase nada.
PASTOR OMAR Chegamos? Não, ainda não chegamos lá. Falta muito ainda. O Brasil
é grande. Um presidente só não dá conta de nos levar a todo o país.
Um presidente dura quatro, oito anos apenas. É pouco, irmão, é
pouco. Mas é um bom começo. Deus tem planos para o Brasil.
ALBUQUERQUE Um brinde.
(bebem)
(saem)
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CENA 20 - Ano zero
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103
Casa de ADÃO e EVA. EVA está passando um pano na mesa. ADÃO entra carregando
sacolas de mercado nas mãos e as coloca na mesa. ADÃO., está vestido de forma sóbria e
tem seus cabelos penteados para trás.
EVA Ah, que bom que chegou com as compras. Já não tava sem tempo.
conseguiu trazer tudo?
EVA Ué, mas que adianta ser seu próprio patrão se não pode descansar
um pouco?
ADÃO Não é assim, Eva. A gente é dono do nosso nariz, mas tem que
ralar...
EVA Você tem dirigido quase 14 horas por dia, de segunda a sábado.
EVA Ai ai…
(assustada) Adão.
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(ela corre até ele, senta-se a seu lado. formam
uma Pietà)
EVA Eu estou aqui. Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo
bem.
LOCUTOR DA TV Já circula em nosso país o novo vírus que tem dizimado muitas
vidas ao redor do mundo. As autoridades dizem que só se deve
buscar hospitais caso já se sinta muito mal. Em contrário, basta se
isolar em casa. O presidente da república defende o tratamento
precoce.
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