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CAMPINAS
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2014/08028-4; CAPES
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
Título em outro idioma: Peripheral women's movement in São Paulo's East Zone : political
cycles, discursive networks and counterpublics
Palavras-chave em inglês:
Nonformal education
Public sphere
Sociology
Urban peripheries
Women's movement
Área de concentração: Educação
Titulação: Doutor em Educação
Banca examinadora:
Maria da Glória Marcondes Gohn [Orientador]
Mario Augusto Medeiros da Silva
Flavia Mateus Rios
Angela Randolpho Paiva
Luciano Pereira
Data de defesa: 02-10-2017
Programa de Pós-Graduação: Educação
TESE DE DOUTORADO
COMISSÃO JULGADORA:
Luciano Pereira
A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida
acadêmica do aluno.
2017
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AGRADECIMENTOS
Avelino da Silva Melo, Elma da Paixão, Eloisa Sousa Pedra, Maria Amélia Portugal,
Railda Alves, Teresinha Rodrigues Romão e Vanessa Oliveira;
agradeço ao prof. Marcos Nobre, pela amizade e inspiração intelectual, muito do que
faço e do que penso tem suas reflexões como diálogo e referência, espero muito
que a tese esteja respeitosa com o legado do Eder; o grande amigo Adriano
Januário leu praticamente todas as versões preliminares de seções e capítulos desta
tese, sempre aliando, de forma hábil e surpreendente, generosidade intelectual e
rigor conceitual sem concessões; Fabíola Fanti foi uma interlocutora permanente da
pesquisa e ainda fez relatoria dedicada do texto debatido em plenária; também
agradeço nominalmente ao camarada Rúrion Melo (a quem admiro pela capacidade
crítica mas também por sua horizontalidade sem sequer se esforçar), às amigas
Natália Neris e Bianca Tavolari, além dos comentários de Anita Silveira, Felipe
Gonçalves Silva, Gabriel Busch de Brito, Ingrid Cyfer (a quem devo um convite para
falar em evento no Memorial da América Latina e que resultou na seção da tese
dedicada à campanha #NãoPoetizeOMachismo), José Rodrigo Rodriguez e Mariana
Valente; e a todos os demais integrantes do NDD; agradeço também a todas as
pessoas que passaram pelo Subgrupo "Esfera Pública e Cultura Política" (conhecido
pelos mais íntimos como o "grupo de baixo pra cima"), nossas discussões foram
lentamente moldando minhas preocupações nesta tese;
ministrada pelo grande prof. Lúcio Kowarick (e onde pude conhecer Ana Claudia
Pereira Leal, Janaína Maudonnet, José Uchôa e Otávio de Souza); e,
retrospectivamente, minha formação como pesquisador empírico começou na
disciplina “Elaboração de Projetos de Pesquisa em Sociologia” (no 1º semestre de
2012), a qual o prof. Brasílio Sallum gentilmente me permitiu assistir como ouvinte;
à minha mãe, Marina, tanto pelo carinho presente quanto pelo cuidado e
criação de todos estes anos, muita admiração por você e gratidão por eu ser quem
sou muito por quem você é;
e, por fim, o que dizer da Antonia Malta Campos? Meu amor, meu
amorzin, esta tese não existiria sem você; você me inspira e me fortalece; foi com
você que aprendi lentamente a ser (espero) sociólogo, com nossas conversas, com
sua dissertação, com seus raciocínios e insights; com você aprendo no dia a dia
sobre gênero e feminismo muito mais do que com textos teóricos; jamais vou me
esquecer dos seus olhos quando o Projeto de Lei 5069 foi anunciado: seu olhar de
pavor me ensinou mais sobre empatia do que eu jamais seria capaz de alcançar
sozinho; te admiro demais, você é a intelectual que eu mais respeito e considero
neste mundo.
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RESUMO
ABSTRACT
This dissertation’s theme is the women’s associativism at the outskirts of the São
Paulo’s East Zone and its relationship with nonformal education. Two political cycles
are compared: “Popular Feminism” and “Peripheral Feminism”. To that end, the
concept of “discursive matrixes” was chosen as the main framework, understood as
the public spheres that enable the everyday life’s symbolic elaboration and the
collective action’s emergence against unfair social situations. The main procedure
were semi-structured interviews; and in the case of the collectives that constitute the
second cycle, complementary techniques were mobilized: participant observation,
Facebook pages’ network analysis and online campaign’s content analysis. The
achieved results point to complex and heterogeneous relations between the cycles.
From a societal point of view, the discontinuities prevail: three discursive matrixes
were identified for the first cycle (Church Communities; feminist NGOs; and samba
schools) and two other matrixes were identified for the second cycle (cultural
movements and digital public spheres’ feminisms). But there are continuities if one
considers a discursive dimension (black feminism went from secondary to
hegemonic) and a political-institutional dimension (the institutionalization of treatment
of women in violent situations has paradoxically opened space to less institutional
practices).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE TABELAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 23
REFERÊNCIAS 225
INTRODUÇÃO
Por que um homem branco de classe média escolhe escrever uma tese
sobre mulheres periféricas, muitas delas negras? Esta pergunta me foi feita
inúmeras vezes nos últimos anos, tanto nos espaços acadêmicos em que
apresentava resultados parciais do doutorado quanto pelas minhas interlocutoras no
decorrer da pesquisa de campo. Em vez de introduzir a tese apresentando um
objeto de pesquisa pronto e acabado, escolhi abrir o processo da sua construção,
ressaltando a minha trajetória e, principalmente, as relações e interações nas quais
estive inserido e implicado, afinal de contas uma pesquisa qualitativa em ciências
humanas nunca é um ato isolado e sim o fruto do encontro e do diálogo da pessoa
investigadora com muitos sujeitos: interlocutoras no campo, professoras/es, colegas
e amigos/as, fora e dentro da universidade.
comparando o Brasil com outros países. Nunca vou esquecer a reação, efusiva e
quase consensual da sala: as alunas se posicionavam totalmente contrárias ao
aumento da licença paternidade pois a única consequência de uma proposta dessas
seria que seus maridos ficariam assistindo TV e bebendo cerveja em casa e de jeito
nenhum seriam parceiros nos cuidados com o bebê recém-nascido. Nada que eu
pudesse falar ou argumentar era capaz de alterar ou flexibilizar a opinião delas.
provocar uma leitura de seu “método dialético” que não reificasse a classe proletária
como o único sujeito histórico possível, abrindo espaço para o reconhecimento de
outros movimentos sociais (como os movimentos camponês, feminista e negro)
enquanto sujeitos da transformação social. Minha trajetória intelectual e política
anterior também tinha me colocado em contato com movimentos populares (em
especial meu envolvimento durante a graduação e o começo da pós com uma certa
tradição na USP de projetos de extensão universitária inspirados na educação
popular freireana). Mas nem esta experiência prática nem meu acúmulo teórico (que
incluía, além de Lukács: Lucien Goldmann, Paulo Freire, Robin Celikates e Florestan
Fernandes) me prepararam devidamente para a riqueza e profundidade das
questões metodológicas da pesquisa de campo que eu iria começar.
a ela a gênese da temática na sala de aula com minhas alunas, futuras pedagogas.
Ela me parabenizou e disse “Ter uma iniciativa assim, é difícil fazer e é difícil
querer fazer. Você, como homem”. Minha reação naquele momento foi ressaltar a
dificuldade que eu imaginava me deparar quando eu fosse organizar grupos focais
religiosamente homogêneos – uma etapa planejada da pesquisa empírica que
depois foi descartada, pois o objeto da tese foi mudando conforme a investigação se
desenrolava. Na minha resposta a ela, eu acabei focando muito mais na dificuldade
de acessar as igrejas e contornar possíveis problemas com pastores do que na
minha relação entre pesquisador homem e interlocutoras mulheres.
Retrospectivamente, vejo que ela estava muito mais consciente dos desafios que eu
enfrentaria no trabalho de campo do que eu próprio estava.
sua justificativa de porque ela esperava surgir no seu apartamento, naquela primeira
tarde que passamos juntos, um homem negro. Não era apenas pela minha voz, mas
principalmente porque, segundo ela, “só pretos se interessam por pretos”.
dela foi ríspida: “Ah, se até agora você não conseguiu sacar...!”. A erosão do
respeito dela por mim foi momentânea: era como se eu ignorasse a realidade social
ou não tivesse prestado atenção em tudo que ela já havia me relatado acerca da
situação destas mulheres: social e economicamente vulneráveis e vítimas da
interseccção de sexismo e racismo por serem mulheres negras. Tudo o que eu
queria ali era uma resposta que sintetizasse todos estes elementos para o bem da
transcrição da entrevista e futura citação de sua fala; mas ela recebeu minha
insistência em ser rígido com o guia como um desligamento ou uma alienação
inaceitáveis. Acho que ao final da entrevista consegui alguma redenção com ela,
principalmente quando conversamos sobre A integração do negro na sociedade de
classes, de Florestan Fernandes, e ela ter me dito, já quando o gravador estava
desligado, que “até que você tá entendendo algumas coisas...”.
estavam me rendendo muitos insights. Até que, sem que eu pudesse me preparar,
uma das jovens que entrevistei me pegou pelo braço e saiu me apresentando para
os artistas que estavam grafitando os muros, repetindo: “Este aqui é o meu
empresário!”. Em geral, as entrevistadas me apresentam como um “jornalista” em
vez de um “pesquisador da Unicamp” (como eu sempre me apresentei para elas).
Aulas ou manuais metodológicos não preparam o investigador para lidar com o
humor singular de seus interlocutores em campo; ela insistia com cada um dos
grafiteiros que eu iria levá-la para “expor no MASP, na Paulista”. A cada nova
incursão com um grupo de grafiteiros eu me encontrava constrangido e impelido a
desmentir a piada dela; na minha cabeça, eu pensava comigo mesmo “vixe, e se
algum deles realmente quiser que eu o represente no mercado de arte?!” (um
raciocínio talvez naturalizado para mim, enquanto filho de pai artista plástico) – tive
dificuldades, portanto, de improvisar no fluxo cênico que ela me propôs.
Retrospectivamente, vejo esse episódio como um jeito bem humorado, complexo e
ambíguo dela me incluir na atividade e, simultaneamente, escancarar nossas
distâncias sociais. Como disse um amigo – jovem, ruivo e pálido – da outra grafiteira
que eu havia entrevistado, quando me viu: “Nossa! Um outro branco!”.
Apresentar-me como seu “empresário” atribuía, de certa forma, significado à minha
presença ali: o que estaria fazendo um homem branco vindo claramente de fora da
periferia naquela tarde ensolarada na Cidade Tiradentes? “Só poderia ser” um
empresário... Foi, portanto, um modo de fixar criticamente a situação social ocupada
majoritariamente por homens brancos: detentores dos meios de produção. Também
era um modo criativo de se valorizar frente aos grafiteiros convidados à atividade
(organizada por um coletivo integrado somente por mulheres, mas a enorme maioria
dos artistas que atenderam a convocação para grafitar eram homens): ela, além de
mulher, também bem mais jovem do que muitos deles (na época ela tinha somente
19 anos), não só estava organizando o bem-sucedido evento como já era agenciada
por um empresário! Em um só lance, improvisado e inteligente, a grafiteira marcou
comigo tanto proximidades como distanciamentos; em eventos posteriores que nós
nos encontramos, ela prosseguiu com a piada e continuou me chamando, de certo
modo de uma forma carinhosa, de “Ô, empresário!”.
organizada pela SOF (Sempreviva Organização Feminista). Cheguei mais cedo para
ver a performance do coletivo e me postei num andar superior com relação ao palco
que havia sido montado. Uma das integrantes com quem eu estava falando
virtualmente me reconheceu e trocamos gestos confirmando que a entrevista se
daria assim que acabasse o show. Passei toda a apresentação nesta parte de cima.
A maioria dos espectadores permaneceu sentada nas escadas que separavam o
andar onde eu estava e o palco. E um número bem inferior, do que entendi,
composto de pessoas que já conheciam o trabalho das sambistas de coco (junto
com amigos e fãs) e algumas poucas feministas da SOF, dançavam animadamente
as músicas de luta das jovens. Depois do show, fomos fazer a entrevista num andar
inferior, enquanto ocorriam outros shows da Virada Feminista. Em determinado
momento, uma das entrevistadas reclamou do público: mesmo com várias
convocações para as pessoas participarem dançando na frente do tablado onde elas
estavam enfileiradas, com seus microfones e instrumentos, a adesão foi mínima (e,
portanto, decepcionante para elas). Eu recebi essa observação crítica à atitude
contemplativa de um “público intelectualizado” como um recado que também me
abarcava; afinal de contas, permaneci parado lá em cima, no máximo me
empolgando com algumas palmas acompanhando o ritmo, mas nada mais do que
isto; minha timidez e vergonha de dançar publicamente me impediram de observar o
evento de forma efetivamente participante.
Uma ocasião relevante para mim foi um encontro feminista promovido por
um movimento cultural da Zona Leste (um coletivo misto, mas quem efetivamente
organizou e tocou a atividade foram somente mulheres). Estavam programadas
duas rodas de conversa. Era uma tarde ensolarada em uma praça aberta, seria
difícil acompanhar o debate de muito longe, então, de imediato, não tive dúvida e
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sentei no círculo junto com todas as outras participantes. Lá pelo meio da discussão
percebi que eu era o único homem ali sentado. Na segunda atividade com este
mesmo formato, resolvi mudar de estratégia: tentaria acompanhar o debate sentado
num banquinho da praça, do lado de fora da conversa; estava simultaneamente
preocupado em estar ocupando um espaço que talvez eu não devesse estar
partilhando e também poderia ser a oportunidade de observar as dinâmicas e
interações de um outro ponto de vista. Contudo, uma das debatedoras convidadas
para a primeira roda me convocou enfaticamente para eu sentar no círculo interno,
exigência que cumpri prontamente.
serem coletados por quem eu sou e por onde eu me situo socialmente. Certamente,
sob certos aspectos, outras pessoas, em outras situações sociais, conseguiriam
produzir dados e análises muito mais densos do que eu fui capaz.
que ela tinha fantasiado: entendo, nas entrelinhas, que ela esperava ser
bombardeada por questões difíceis e politizadas e até cobranças com relação à sua
falta de engajamento político no atual momento de sua vida.
Para mim, isto revela que toda posicionalidade (com suas diversas
intersecções, de raça, gênero, classe, sexualidade e geração) traz limites, mas
também potencialidades; e as posicionalidades do e da investigadora em interação
com as posicionalidades dos sujeitos que são seus e suas interlocutoras também
trazem, igualmente, vantagens e desvantagens. Com isto, quero defender que, se
existem muitos limites, também existe uma produtividade específica de um homem
branco de classe média estudando movimentos de mulheres periféricas. Como
teorizou a feminista Donna Haraway (1988), todo conhecimento é local e situado; o
que busquei fazer nesta Introdução, mais narrativa e biográfica do que propriamente
teórica, é explicitar o caráter situado do que fui capaz de produzir, em interação com
as mulheres que aceitaram colaborar com este trabalho. 1
* * *!
da profa. dra. Maria da Glória Gohn. Fui beneficiado pelo seu acúmulo de décadas
de pesquisa empírica e teórica sobre ações coletivas, o que permitiu minha
passagem de uma perspectiva que se aproximava, de início, mais da psicologia
social, para um enfoque propriamente sociológico acerca dos movimentos sociais
(primeiro me apresentando a autores estadunidenses, como Snow, Benford, Tarrow
e McAdam, depois reforçando minha opção pelo diálogo privilegiado com a obra de
Sader).
Por outro lado, ao mesmo tempo que as conquistas de uma geração são
usufruídas pela próxima, há uma flagrante descontinuidade geracional no ativismo
propriamente dito, o que fica expresso no desabafo de uma militante que presenciei
nas falas de abertura da Plenária Deliberativa de São Miguel e Itaim Paulista,
organizada pela Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, no início de 2015.
Ela se demonstrou muito preocupada, pois via na plateia (mas também em outros
espaços de participação por ela frequentados) uma maioria de pessoas entrando na
terceira idade; e se perguntava, retoricamente, buscando sensibilizar a todas as
mulheres presentes: “para quem vamos passar o bastão?”.
1
Ciclos políticos no associativismo de mulheres
da Zona Leste de São Paulo
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3
As associações e os coletivos de mulheres entrevistados foram, em ordem alfabética:
(1) Abayomi Ateliê;
(2) Agentes Bem Querer Mulher;
(3) Associação Comunitária das Mulheres do Movimento Sem Terra de Ermelino Matarazzo;
(4) Associação Comunitária de Mulheres, Idosos, Deficientes e Promotoras Legais Populares
de Cidade Tiradentes (A.C.M.ID.DEF.PLPs.CI.TI.);
(5) Associação da União das Mulheres (ADUM) Dalva Paixão;
(6) Associação de Familiares e Amigos de Presos/as (Amparar);
(7) Associação de Mulheres da Columbia (A.M.C.);
(8) Associação de Mulheres da Zona Leste (Amzol);
(9) Associação de Mulheres do Jardim Colorado (AMJAC);
(10) Associação Fala Negão / Fala Mulher!;
(11) Casa da Mulher Lilith;
(12) CDCM (Centro de Defesa e Convivência da Mulher) Casa Anastácia;
(13) CDCM Casa Cidinha Kopcak;
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7
Explicarei mais a frente seus objetivos e sua composição.
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uma constelação de coletivos que atuam de forma autônoma).8 Este foi um dos
principais resultados que alcancei em meu trabalho de campo: a identificação de
dois momentos históricos diversos, que proponho conceitualizar como constituindo
dois ciclos políticos.
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8
Ao longo da análise do material empírico buscarei demonstrar que estas duas denominações
adotadas tem algum ancoramento na auto-compreensão das mulheres entrevistadas, além de
proporcionar uma organização produtiva do material empírico coligido em termos históricos.
! 47
O uso que farei do conceito tem, por sua vez, suas restrições. É claro que
é possível hipotetizar que tanto o “Feminismo Popular” participa de alguma forma do
ciclo de contestação da redemocratização brasileira da década de 1980 quanto o
“Feminismo Periférico” está de alguma maneira conectado ao ciclo da década de
2010 cujo ápice é Junho de 2013. Contudo, os limites de minha investigação são
inerentes a uma abordagem microssociológica: sendo o conceito de “ciclo de
protestos” ou “ciclo de confronto” eminentemente macro, não tenho à minha
disposição os meios para comprovar empiricamente tais hipóteses nem demonstrar
de modo fundamentado todas as conexões e mediações entre o micro e o macro.
Espero que a tese seja uma contribuição ao debate sobre os movimentos sociais no
Brasil e o associativismo de mulheres na Zona Leste de São Paulo e que tais
conexões e mediações possam ser estudadas em contextos de colaboração coletiva
e de médio e longo prazos, uma vez que, no contexto do trabalho individual desta
tese de doutorado, não me foi possível superar tais limites.
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10
Socióloga e educadora popular, internacionalmente conhecida por ter coletado o depoimento-
testemunho da mineira boliviana Domitila Barrios de Chungara (cf. VIEZZER, 1987).
11
Já em 21 de março de 1992, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, é
fundada a Associação Fala Negão / Fala Mulher!, a qual foi entrevistada, mas não incluída na lista
acima por ser uma associação mista (que reúne homens e mulheres).
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12
Amzol, Lilith, São Miguel, Oriashé e Dandara.
13
São Mateus e Fala Negão (a mãe da entrevistada, sua fundadora, já é falecida).
14
No sentido lato de “formas de ação coletiva”; para outros significados que o conceito foi tomando
no desenvolvimento da obra de Charles Tilly, cf. Alonso (2012).
15
Estes atendimentos, jurídicos e psicológicos, parecem ser desdobramentos de um repertório
inicialmente inaugurado pela experiência do SOS Mulher de São Paulo, de breve existência, entre
1980 e 83 (PONTES, 1986).
! 54
política pública de assistência social. Entre 2002 e 2004, foram criados dois serviços
conveniados (a Casa Cidinha, em São Mateus, no primeiro ano da gestão, e a Casa
Viviane, em Guaianases, no último ano) e entre 8 de março de 2003 e o início de
2005 (quando assume José Serra – do PSDB –, haja visto a não reeleição de Marta)
funcionou o Espaço Lilás na Cidade Tiradentes, mantido pelo Oriashé; ao contrário
das duas outras iniciativas, também oriundas da sociedade civil, o Oriashé – a única
a trabalhar especificamente com a temática das mulheres negras – não contou com
apoio da prefeitura petista para se institucionalizar, sob o formato de um convênio
que financiasse suas atividades e um contrato que assegurasse a sua permanência
na sede então cedida. Hoje, o número dessas casas conveniadas mais do que
triplicou; mais importante do que o acréscimo quantitativo, hoje elas se organizam
sob a forma de uma rede – a Rede Leste de Enfrentamento à Violência – que
mescla uma atuação enquanto sociedade civil e enquanto braço do Estado.
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16
Informações disponíveis no site da Secretaria.
17
Todos os 49 CRAS (Centros de Referência de Assistência Social); os 24 CREAS (Centros de
Referência Especializado de Assistência Social); e os 2 Centros POP (Centros de Referência
Especializado para População em Situação de Rua).
18
Dentre os quais: os CCAs (Centros para Crianças e Adolescentes); os CJs (Centros para
Juventude); os SASFs (Serviços de Assistência Social à Família); os NCIs (Núcleos de Convivência
do Idoso); além de outras modalidades.
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civil organizada que se deve começar a entender os CDCMs, embora isto não
esgote nem determine por completo a sua atuação (SANTOS, C., 2015).
Mais da metade (4) destes CDCMs têm por trás dos convênios entidades
com origem na Igreja Católica: Associação Padre Moreira (no caso da Casa
Cidinha); AVIB-Associação de Voluntários Integrados no Brasil (nos casos da Casa
Viviane e da Casa Anastácia); e CIAP19 São Patrício (no caso da Casa Zizi). Estas
três entidades tiveram alguma relação inicial com as CEBs de sua respectiva região,
ou na década de 1980 ou de 1990: a Padre Moreira nos distritos São Rafael e São
Mateus; a AVIB nos distritos de Guaianases e Lajeado; e o CIAP São Patrício no
distrito de Sapopemba.
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19
Centro de Assistência Social e Formação Profissional.
20
A Rede Leste também é composta por equipamentos públicos diretos ou então outros órgãos do
poder público que não entram no escopo de minha investigação acerca do associativismo de
mulheres por não terem relação com a sociedade civil organizada (como é a situação das casas
conveniadas). Além dos 7 CDCMs, do Agentes Bem Querer Mulher e das PLPs do Hospital de São
Mateus, participavam da Rede Leste em 2015: o Centro de Cidadania da Mulher (CCM) Itaquera
(então ligado à SMPM-Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres); a Casa Abrigo Helenira
Rezende de Souza Nazareth, conhecida como “Casa Helenira” (também ligada à SMPM); o Centro
de Atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva “Maria Auxiliadora Lara Barcellos”, de Cidade Tiradentes,
conhecido por “Casa Ser” ou “Casa Ser Dorinha” (ligada à SMS-Secretaria Municipal da Saúde); e o
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado
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21
Ressalto também as conclusões equivocadas acerca dos CDCMs Maria da Penha e Naná Serafim,
os quais não concederam entrevistas à autora; minhas próprias entrevistas com suas coordenadoras
contradizem inteiramente as teses levantadas pela autora (SANTOS, 2015, p. 595), acerca de uma
suposta abordagem “familista” por parte destas duas casas conveniadas, cabendo muito mais falar na
adoção de uma perspectiva “de gênero”.
! 59
(3) a Coletiva Maria Sem Vergonha nasceu em 2014, com o Sarau das
Mina, que circulava por bibliotecas municipais em diferentes bairros periféricos; um
sarau feminista fixo também foi criado, em Pirituba, Zona Norte de São Paulo; em
2016 a coletiva assumiu seu nome atual (FACEBOOK);
(4) o Coletivo Mulheres na Luta, do Grajaú, Zona Sul de São Paulo, criou
em janeiro de 2015 um “Grupo de estudos sobre: Feminismo periférico” (com página
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22
Não encontrei bibliografia que tenha buscado interpretar amplamente este fenômeno, mas destaco
aqui o artigo de Moutinho, Alves e Mateuzi (2016) e o mestrado em andamento de Danielle Regina de
Oliveira na sociologia da Unicamp, intitulado Guerreiras: feminismo do cotidiano.
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23
https://www.facebook.com/groups/595289357269525/
24
http://revistarever.com/2014/10/03/rever-entrevista-lidi-do-pagufunk
25
https://www.youtube.com/watch?v=V84d11wX8e4
26
https://www.youtube.com/watch?v=jpyvnl9g-a4
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28
Para a diferenciação entre os enquadramentos diagnóstico, prognóstico e motivacional, cf. Snow;
Benford (1988).
29
Haveria um coletivo pioneiro, o Anastácia Livre!, criado em 2010; mas a ex-integrante que o fundou
se recusou a ser entrevistada.
! 63
partidos políticos que estruturem este novo associativismo, tal como foi o caso do PT
no ciclo político anterior.30
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30
Sem contar a presença de outros partidos em associações de mulheres também surgidas nas
décadas de 1980 e 90 e sobre as quais não me debrucei, por não terem atuações diretamente
relacionadas aos direitos das mulheres, ligadas ao PMDB e ao PCdoB.
31
Sobre o conceito de impulsões igualitárias, cf. Fernandes (2008) e Campos (2014).
32
No momento da 1ª entrevista realizada (em 9 de abril de 2015), o coletivo ainda não tinha este
nome, chamando-se apenas “Núcleo Feminista do Movimento Aliança da Praça (M.A.P.)”. Em
questão de dias, as jovens integrantes do coletivo lançaram oficialmente o Núcleo Feminista, ainda
sem nome, no 2º aniversário do Sarau do M.A.P. (em 19 de abril), e depois, em 27 de abril, uma
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São Miguel Paulista (sendo que as suas integrantes não se conheciam antes de
começar a frequentar o sarau), enquanto que o Coletivo Juntas na Luta continua a
ocupação da Biblioteca Cora Coralina33, em Guaianases, iniciado como Sarau da
Maloca pelo Coletivo Arte Maloqueira (predominantemente masculino) e o
transforma em um Sarau Feminista chamado “Junte-se na Luta”. Outra forma de
apropriação de equipamento público é atestada pelo Coletivo Fayola Odara, que
realizou oficinas em torno da estética e beleza da mulher negra no CEU Lajeado. Já
os coletivos Mulheres de Orí e Mulheriu Clã têm suas principais atividades sediadas
no Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes (de gestão municipal), o
primeiro articulando gastronomia, dança, artes visuais e um núcleo de pesquisa,
enquanto que o segundo se constitui como um “coletivo de coletivos” de rap
feminino a fim de combater a discriminação e segregação de mulheres dentro do
Movimento Hip Hop, ainda majoritariamente masculino e machista. Outro coletivo
que também concentra suas atividades na Cidade Tiradentes, o M.A.N.A. (Mulher
Atitude Negritude e Arte) Crew, utiliza a Biblioteca Comunitária Solano Trindade34;
seu objetivo é agregar mulheres grafiteiras e popularizar esta linguagem para outras
mulheres, combatendo tanto a discriminação que a Cultura Hip Hop sofre
externamente, quanto a interna, voltada contra as mulheres. Por fim, o Grupo de
Coco Semente Crioula realiza seus ensaios no Ponto de Cultura de Guaianases,
mesclando o resgate de sambas de coco originários de Pernambuco com
composições próprias e inéditas de suas integrantes, com temáticas feministas.35
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página no Facebook, já com o nome “Ser Vi Elas”. Ao final do ano, as poetisas romperam com o
M.A.P. (por questões sexistas e machistas), se autonomizando. Elas realizaram uma atividade fora da
Zona Leste, não estando mais “ativas”. Esta rapidez e fluidez são comprovações do caráter
emergente destes coletivos feministas no extremo leste de São Paulo (e em outras periferias,
inclusive de outras cidades), mas também da sua instabilidade.
33
Pude realizar observação participante na inauguração, em 4 de julho de 2015, da Sala Temática
que transformou a Cora Coralina na primeira e única biblioteca municipal com temática feminista.
Após discursos de diversas autoridades (incluindo o Prefeito Fernando Haddad, a Primeira-Dama, a
Vice-Prefeita e os Secretários Municipais da Cultura, de Políticas para Mulheres, dos Direitos
Humanos e das Relações Governamentais, além de outros convidados, como a profa. da Unicamp e
historiadora feminista Margareth Rago e uma militante do Movimento de Mulheres de São Miguel,
chamada Maria Niuza Ferreira), houve uma performance da poetisa Tula Pilar homenageando a
escritora Carolina Maria de Jesus, um show das rappers Sharylaine, Yzalú e Amanda Negrasim e,
para encerrar, uma edição do Sarau Feminista “Junte-se na Luta”.
34
Mantida pelo Coletivo de Esquerda Força Ativa (fundado, por sua vez, na década de 1980), esta
biblioteca foi a primeira da Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo.
35
Para se ter alguma noção da cronologia do novo associativismo de mulheres na Zona Leste de São
Paulo, seguem as datas de fundação dos coletivos (entre os anos de 2010-15, mas mais
intensamente entre 2012-15): em agosto de 2010, se inicia o Coletivo “Anastácia Livre!”; em 7 de
! 65
A tabela a seguir pode ser útil para que o leitor retorne a esta
sistematização caso seja necessário relembrar as características singulares dos
coletivos no momento em que estiver lendo os trechos das entrevistas apresentados
no decorrer do texto:
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36
http://nosmulheresdaperiferia.com.br/
37
Originalmente abrigado no site da Folha de S. Paulo, hoje em dia o Mural é uma “Agência de
Jornalismo das Periferias”: http://agenciamural.com.br/
! 67
Para fins da interpretação dos dados nesta tese, a unidade de análise, por
assim dizer, consistirá no conjunto dos sete coletivos feministas periféricos
anteriormente apresentados em tabela: Fayola Odara, Juntas na Luta, M.A.N.A.
Crew, Mulheres de Orí, Mulheriu Clã, Semente Crioula e Ser Vi Elas. O material
empírico concernente ao “Feminismo Periférico” estará restrito, via de regra, às
militantes destes grupos, sejam as entrevistas semi-estruturadas, a análise de rede
das páginas de Facebook por elas curtidas e os eventos etnografados e por elas
organizados.
16); aponta a expansão dos movimentos sociais “para além da sociedade civil”
(ALVAREZ, 2014, p. 17), isto é, abarcaria sua extensão vertical “em direção à
sociedade política, ao Estado, e outros públicos dominantes nacionais e
transnacionais” (ALVAREZ, 2014, p. 18); e, por fim, em vez de focar nos “'fluxos e
refluxos' dos movimentos”, aponta para o caráter “permanente” dos campos
discursivos de ação nas “formações políticas na modernidade tardia/descolonial”
(ALVAREZ, 2014, p. 45).
Mesmo com estas críticas, a autora sustenta que o campo feminista já era
nos anos 1970 e 80 “plural e heterogêneo”. Havia “alianças e coligações” entre
“mulheres de classe média” e outras mulheres, pobres, negras ou lésbicas, assim
como surgiram já no final da década de 70 organizações de mulheres negras,
autônomas tanto do movimento feminista branco quanto do movimento negro misto
(ALVAREZ, 2014, p. 24).
novo momento: inicialmente ela assinala a vitória eleitoral de Hugo Chaves em 1998
na Venezuela como o ponto de partida da “maré rosa” na América Latina (governos
progressistas, que às vezes são chamados por outros autores de “pós-neoliberais”)
e o Fórum Social Mundial (realizado pela primeira vez em 2001), mas, em seguida,
foca sua análise em pesquisa de campo realizada em 2013-14, anos emblemáticos,
como ela faz questão de enfatizar, pelas conexões entre esta nova fase do campo
feminista e Junho de 2013 e protestos contra a Copa do Mundo de 2014. A década
de 2000 não é tratada mais detidamente, mas a autora sinaliza que a absorção
tecnocrática do gênero por governos e instituições internacionais, além da
“ONGização e transnacionalização do advocacy feminista” levaram a mais
desigualdades, conflitos e, por fim, a “novos paradoxos que propulsaram mudanças
no campo feminista da região [da América Latina]” (ALVAREZ, 2014, p. 32). Esta
noção de “paradoxos transformadores” não é aprofundada até as últimas
consequências, mas poderia render interessantes hipóteses explicativas para a
dinamicidade do campo feminista, como alude a própria autora em um outro artigo:
“paradoxos são o que movem os movimentos” (ALVAREZ, 2014b, p. 73).39
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39
“[Nós percebemos que os] paradoxos que identificamos eram vividos como tensões, trazendo [a]
história pessoal e [a] coletiva para o presente, e esses desconfortos agudos [pressionaram] as
mulheres a agirem. [Paradoxos davam movimento] aos próprios movimentos, pressionando-os a
concretizar o futuro enquanto [se] moviam no tempo” (RUBIN; SOKOLOFF-RUBIN apud ALVAREZ,
2014b, p. 73, n. 16; tradução alterada e complementada por mim).
40
Gohn (2010, p. 148) também aponta, além das mulheres negras, a questão da invisibilidade das
mulheres indígenas,“gerada pelo cruzamento [de] temáticas”.
! 72
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Alvarez (2014, p. 43) chega a hipotetizar que este processo seria crucial para “a popularização dos
feminismos entre estudantes”, algo que talvez pudesse ajudar a explicar a explosão de coletivos
feministas universitários nos últimos anos.
! 73
Mulheres (em 2004, 2007 e 2011) e o que algumas autoras estão chamando de
“feminismo estatal participativo” ou então de “ativismo institucional”.
75
!
Imagem 2 – Mapa do subcampo feminista da Zona Leste
(com as marcações dos mapas seguintes)
76
!
Imagem 3 – Mapa São Miguel e Itaim Paulista
77
!
Imagem 4 – Mapa Itaquera e Guaianases
78
!
Imagem 5 – Mapa Cidade Tiradentes
79
!
Imagem 6 – Mapa Vila Prudente e São Mateus
80
!
Imagem 7 – Mapa região centro-oeste (“ONGs feministas centrais”)
81
!
! 82
2
Esferas públicas como matrizes discursivas
No meu entender, quem pode auxiliar neste sentido é Eder Sader, com
sua obra clássica Quando novos personagens entraram em cena.43 Seus princípios
epistemológicos e metodológicos podem ser expressos como um marxismo
heterodoxo, com uma sensibilidade etnográfica; é justamente neste quadro
interpretativo que se explica, por exemplo, a centralidade de Thompson para Sader
(1988, p. 44-45). Trata-se de uma abordagem que tem como princípio analítico o
primado da experiência, cuja operacionalização empírica é aparente por toda a obra
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Para um panorama que insere a obra de Sader em um contexto intelectual, social e político mais
amplo, cf. Perruso (2009). A formulação deste autor de que certas pesquisas empíricas realizadas na
década de 1980 sobre movimentos sociais populares urbanos operaram uma “virada fenomenológica”
tem grande relevância para meus propósitos.
! 84
44
de Sader. Este princípio se desdobra nos seguintes conceitos centrais:
experiência, vida e cotidiano; sujeito, práticas, valores e identidades; discursos e
matrizes discursivas; e espaço público (melhor traduzido como esfera pública) e
sociedade (civil). Quanto à sua operacionalização em uma metodologia de pesquisa
empírica, o recurso sistemático a depoimentos pessoais é central.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
44
Este princípio analítico do primado da experiência, que identifiquei na obra de Sader, me auxilia
sobremaneira na operacionalização empírica da primeira formulação de Thompson apresentada no
início do capítulo, acerca da indissociabilidade entre a investigação de modos de vida (e a categoria
que será apresentada mais a frente de matrizes discursivas) e a pesquisa qualitativa, baseada em
“dados literários” (tais como os depoimentos pessoais mobilizados por Sader).
! 85
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45
Esta noção é claramente tomada emprestada de Florestan Fernandes, embora Sader não explicite
a referência.
! 87
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46
Note-se que o uso da tradução francesa d’A mudança estrutural da esfera pública (intitulada
L’espace public) leva Sader a se referir frequentemente a “espaço público”, em vez de “esfera”.
Procurarei sempre ressaltar a tradução já consolidada e consagrada de “esfera pública” na recepção
brasileira de Habermas. Contribui também para o esquecimento da inspiração habermasiana na obra
de Sader o fato de que autores que continuaram a sua agenda de pesquisa sobre movimentos sociais
(ao menos até o início dos anos 2000), como Telles (1999) e Feltran (2005), utilizem sempre o
conceito de “espaço público” pois a interlocutora privilegiada das análises de ambos é Hannah Arendt
e não Habermas.
! 89
dentro de casa, os bares e botecos (com sinuca, dominó e carteado – sem nunca
dispensar o “mé”), os bailes na escola de samba, o futebol de várzea, a excursão à
praia, o concurso de violeiros e, por fim, meios de comunicação, como o rádio e a
TV. Questionários, entrevistas e observações participantes são realizadas entre
1979 e 81 para reconstruir este “pedaço”, ou seja, uma “intrincada rede de relações
formada por laços de parentesco, vizinhança e coleguismo” (MAGNANI, 2003
[1984], p. 113).
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47
A pesquisa etnográfica de Pereira (2005), orientada por Magnani, confirma esta intuição.
! 90
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48
Magnani não é o único que desenvolveu esta perspectiva específica (a seguir, as datas em chaves
se referem à defesa destas pesquisas, haja visto que todos os livros foram antes teses de doutorado):
CALDEIRA, Teresa. A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam
do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984 [1982]; ZALUAR, Alba. A máquina e a
revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985 [1984];
MACEDO, Carmen Cinira. Tempo de gênesis: o povo das Comunidades Eclesiais de Base. São
Paulo: Brasiliense, 1986 [1985]. A origem desta abordagem está em suas orientadoras: Caldeira e
Magnani (1984 [1982]) foram orientados por Ruth Cardoso; e Zaluar e Macedo foram orientadas por
Eunice Durham, tendo a maioria destes pesquisadores participado do Cebrap (o Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento) na década de 1980. Para visões de conjunto da obra destas antropólogas,
cf. DURHAM, Eunice. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify,
2004; e CALDEIRA, Teresa (Org.). Ruth Cardoso: obra reunida. São Paulo: Mameluco, 2011.
49
Autores pioneiros e inovadores no estudo dos movimentos populares urbanos são Gohn (1979;
1985) e Moisés (1978). Com relação a Sader, é importante ressaltar que ele não está sozinho na
defesa de uma abordagem societal para o período; na realidade, sua obra é a mais importante
sistematização do espírito de uma série de pesquisas empíricas anteriores que se debruçaram sobre
os movimentos sociais populares: CACCIA BAVA, Sílvio. Práticas cotidianas e movimentos
sociais: elementos para reconstrução de um objeto de estudo. Orient. Lúcio Kowarick. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política) – FFLCH/USP, São Paulo, 1983; TELLES, Vera da Silva. A
experiência do autoritarismo e práticas instituintes: os movimentos sociais em São Paulo nos
anos 70. Orient. Lúcio Kowarick. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – FFLCH/USP, São
Paulo, 1984; JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas: demandas por saneamento
basico e saúde – São Paulo, 1974-84. São Paulo: Cortez, 1985 [1985]; ABRAMO, Laís. O resgate da
dignidade. Campinas: Unicamp/Imprensa Oficial, 1999 [1987]; e NUNES, Edison. Carências
urbanas, reivindicações sociais e valores democráticas. Lua Nova, São Paulo, n. 17, jun. 1989
[1988]. Em uma expressão feliz, Perruso (2009) caracteriza esta perspectiva – desenvolvida em sua
maioria por pesquisadores pertencentes ao CEDEC (o Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea) na década de 1980 – como uma “virada fenomenológica”, como dito anteriormente.
Uma sistematização alternativa deste período histórico pode ser encontrada em Doimo (1995). Por
fim, em uma chave epistemologicamente similar à produção do CEDEC, mas que sai do mundo
urbano para dar conta de movimentos populares no campo, cf. Martins (1989).
! 91
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
A referência empírica, a partir de artigo do sociólogo e ex-professor da FAU-USP, Gabriel Bolaffi,
são as COHABs nas periferias de São Paulo.
51
Agradeço à profa. Áurea Guimarães por ter chamado a minha atenção no exame de qualificação
para a necessidade de recorrer ao artigo original de Guattari para compreender mais profundamente
o que estava em jogo nesta passagem de Sader.
52
Um exemplo histórico dado pelo autor em sua palestra transformada em artigo é o Mar
Mediterrâneo, que inicialmente era um espaço estriado (ou seja, com fronteiras políticas e
econômicas, mas também mágicas e mitológicas) e depois passa por uma desterritorialização.
Invasões, tecnologias militares ou concepções estratégicas “podem desterritorializar bruscamente
espaços continentais inteiros”, tanto em casos da História Antiga, como a invasão de Gengis Kahn,
quanto no caso da mundialização capitalista (GUATTARI, 1985, p. 112).
! 92
Os sujeitos não são livres para produzir seus discursos e nem podem
inventar na hora seus sistemas de comunicação. Eles recorrem a
matrizes discursivas constituídas e, em primeiro lugar, à matriz da
própria cultura instituída, reproduzida através de uma pluralidade de
agências sociais. Mas encontramos na sociedade agências que,
embora participando da cultura instituída (condição para que haja
comunicação social), expressam práticas de resistência e projetos de
ruptura. Constituem novas formas de agenciamento social, que
abrem espaço para a elaboração de experiências até então
silenciadas ou interpretadas de outro modo. As matrizes discursivas
devem ser, pois, entendidas como modos de abordagem da
realidade, que implicam diversas atribuições de significado. Implicam
também, em decorrência, o uso de determinadas categorias de
nomeação e interpretação (das situações, dos temas, dos atores)
como na referência a determinados valores e objetivos. Mas não são
simples ideias: sua produção e reprodução dependem de lugares e
práticas materiais de onde são emitidas as falas. (SADER, 1988, p.
142-143)
(no caso dos metalúrgicos de São Bernardo). Mais uma vez, a crise de uma
instituição é a gênese de novas práticas. O grande tema que possibilita esta
reconexão entre a direção sindical e sua base é o da dignidade dos trabalhadores e,
portanto, o seu merecimento em participar do desenvolvimento que o país vivia no
decorrer da década de 1970. Os pronunciamentos públicos dos sindicalistas
denunciando que os índices oficiais de inflação eram distorcidos pelo governo
ganham destaque na imprensa, quebrando um silêncio anterior sobre os conflitos
trabalhistas. E com relação ao lugar de onde se emitem estas falas? “Os discursos
emitidos pelo 'novo sindicalismo' se fazem de um lugar social – os próprios
sindicatos – que integra a institucionalidade estatal” (SADER, 1988, p. 183). De um
lado, esta “obrigatória cumplicidade impunha sérias limitações às falas e
movimentos dos sindicalistas”, condicionando “suas modalidades discursivas”
(SADER, 1988, p. 183), mas de outro lado traz a vantagem de que eles são
reconhecidos publicamente como agenciadores dos conflitos trabalhistas:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
Grifarei em itálico, na continuidade, o termo “público” toda vez que ele aparecer nas citações de
Sader.
! 99
!
numa história pública, diversa da comunidade familiar.
Independentemente das formulações explícitas dos discursos
pastorais (que quase nada falam sobre isso) a integração das
mulheres nesses espaços de reflexão crítica coletiva e de luta social
implica uma passagem da esfera privada para a esfera pública, com
fundas consequências práticas. (SADER, 1988, p. 166; meus grifos)
!
Os lugares públicos decisivos onde se reelaboraram as experiências
populares foram constituídas pelas pastorais católicas e
expressaram essa hegemonia. Mas essas pastorais não tinham um
discurso capaz de dar conta dos problemas das lutas de classe e das
condições da sociedade capitalista, tal como requeriam os militantes.
Foi por aí que entraram as teses de uma esquerda dispersada.
Entraram desarticuladas dos seus discursos de origem, montados
como programas e estratégias revolucionárias. (SADER, 1988, p.
178; meu grifo)
* * *
comparativos que me parecem ser heurísticos, uma vez que permitirão, por
contraste, identificar as matrizes discursivas do “Feminismo Periférico”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
É possível inclusive hipotetizar que seus repertórios constituem um “sub-ciclo” tardio de um ciclo de
contestação política maior, que coincide com a redemocratização brasileira e cujo ápice é a
Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 (cf. BRANDÃO, 2011).
55
Em outros campos empíricos, Bonetti (2000; 2007) nomeia fenômenos políticos similares de
“participação política feminina popular” e de “ativismo feminino popular”. O único outro uso do qual
tive notícia de “feminismo popular”, praticamente no mesmo sentido em que emprego, é um artigo de
A. Costa (2005).
56
Os quais podem ser considerados, na terminologia de McAdam vista no capítulo 1, como
movimentos iniciadores, enquanto que as associações feministas populares seriam movimentos
derivados.
57
A categoria do “popular” também está presente na reflexão das ciências sociais brasileiras acerca
das mobilizações sociais e políticas neste momento histórico (cf. DOIMO, 1995; e também: PAOLI;
SADER, 1983; e PAOLI; SADER; TELLES, 1986).
! 102
MSZL) defende que “A força que eu tenho pra lutar no movimento, eu adquiri
com a Igreja de Dom Angélico 59 ”. Segundo a presidente da Amzol, “Dom
Angélico foi um bispo revolucionário”. No caso de São Mateus e de Vila
Prudente (distrito onde se localiza o bairro da Vila Alpina, onde eram desenvolvidas
as atividades da Casa Lilith), o responsável por levar a cabo estas mesmas
diretrizes, era Dom Luciano Mendes de Almeida, responsável pela Região Episcopal
Belém, a qual permanece até hoje ligada diretamente à Arquidiocese de São Paulo.
Como explica a fundadora da Casa Lilith, as CEBs foram um “espaço que nos deu
muita força e conhecimento para enfrentar a ditadura militar” e “as pessoas
cresceram muito nesse processo”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
Outra característica em comum entre estas ONGs, além da localização de suas sedes (cf. a
Imagem 7 desta tese para os seus bairros: Bela Vista, Lapa, Liberdade, Pinheiros), são suas datas de
fundação, todas nas décadas de 1980 e 90: Rede Mulher de Educação (1980); União de Mulheres do
Município de São Paulo (1981); Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (1981); Geledés (1988);
Católicas pelo Direito de Decidir (1993); e Fala Preta! (1997). A única exceção é a SOF, fundada em
1963, mas que passa por transformações nominais, já na década de 1980, e assume, a partir de
1993, uma identidade feminista (GOMIDE, 2002, p. 84).
62
O uso do artigo masculino, “o”, para a SOF (Sempreviva Organização Feminista), se deve ao fato
de que a ONG tinha antigamente um outro nome: o “Serviço de Orientação Familiar”; o uso contínuo
da expressão “o SOF” denota a longa atuação da SOF na região leste da cidade, a ponto de ficar
marcado na memória das militantes do “Feminismo Popular” o significado anterior da sigla, que foi
mantida.
! 105
para que em 1996 fosse aberto o Centro Jurídico Maria Miguel.63 Para a Casa da
Mulher Lilith, a colaboração mais longeva foi com o CFSS-Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde (COLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE, 2000),
com o qual as militantes da Vila Alpina publicaram a revista semestral Enfoque
Feminista, tiveram auxílio com o boletim bimestral Lilith Informa, além de manter
atividades voltadas à sensibilização e conscientização em torno da AIDS. Em mais
de uma entrevista também surgiu a importância de Marta Suplicy, então feminista e
sexóloga, da sua participação em um programa de televisão64, mas também da sua
participação em debates e palestras, realizadas tanto pela SOF quanto em
paróquias da Igreja Católica. Por fim, as entidades deste ciclo que inovaram ao
tematizar explicitamente a questão da mulher negra mantiveram alianças e parcerias
com as ONGs feministas centrais que foram pioneiras no feminismo negro: as ONGs
Geledés e Fala Preta (CARLOS, 2009; SANTOS, S., 2008) sempre enviavam dicas
de editais de financiamento para o Dandara (e a Fala Negão / Fala Mulher!),
enquanto que o Oriashé promoveu em colaboração com o Geledés dois cursos de
formação de PLPs na Cidade Tiradentes.
originalmente, um dos primeiros blocos afro composto apenas por mulheres negras,
fundado no final da década de 1980 no Bixiga, região central da cidade (CASTRO,
2008; MENDONÇA, 1993); com a saída de uma das suas fundadoras do Bixiga para
a Cidade Tiradentes (a entrevistada, que inclusive foi militante do MNU-Movimento
Negro Unificado), as mulheres que permaneceram no Centro criam, alguns anos
depois, o Bloco Afro Ilú Obá de Min (SOUZA, 2014). Se a Associação Fala Negão /
Fala Mulher! (de composição mista) for considerada, sua origem também está no
mundo do carnaval: uma das principais entidades que participou de sua fundação é
a Leandro de Itaquera, uma escola de samba com grande participação de negros e
um discurso crítico com relação à questão racial (OLIVEIRA, K., 2002).
Um terceiro aspecto que não pode ser ignorado é: não foram apenas
estas militantes feministas que deixaram de realizar trabalho de base, mas foi
fundamentalmente o Partido dos Trabalhadores, do qual todas as entrevistadas
deste ciclo político fizeram parte em algum momento de suas trajetórias militantes.
Em meados da década de 1990, a prioridade do partido deixa de ser a construção
“de baixo para cima”, a partir dos movimentos sociais e das bases populares, para
se concentrar exclusivamente na disputa da eleição presidencial; esta estratégia,
aliada a uma saída de lideranças de suas bases para trabalhar em gabinetes, resulta
em um processo que muitos autores qualificam como uma “burocratização” do
partido.67 Algumas entrevistadas, mesmo permanecendo filiadas ao PT, demonstram
alguma decepção com os rumos do partido; mesmo que publicamente defendam-no
e ao governo da então presidenta Dilma Rousseff (inclusive enfaticamente nas redes
sociais), reservadamente, com o microfone ligado ou não, compartilham sua
infelicidade e, principalmente, sua dificuldade em serem cabos eleitorais em suas
regiões de atuação, por conta seja do governo federal (da então presidente Dilma
Rousseff), seja do municipal (a gestão do então prefeito Fernando Haddad). De
qualquer modo, o mais importante a ser destacado é a ausência de trabalho de base
por parte do PT, o que tem consequências diretas para as atividades das
associações, organizações e movimentos que gravitavam em torno dele desde a
década de 1980.
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66
Anotei estas falas em meu caderno de campo.
67
Secco (2011), por exemplo, analisa a história do PT mostrando como no seu início ele atuava como
“oposição social” (extraparlamentar), mas na década de 1990 ele passa a agir como “oposição
parlamentar”, até que, após a eleição de Lula em 2002, passa a ser “partido de governo”. Para uma
outra análise desta estratégia eleitoral do PT e da sua aceitação crescente da lógica de
funcionamento do sistema político brasileiro, cf. Nobre (2013).
! 109
3
A formação de um “Feminismo Periférico”
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68
Segundo Setton (2005) outro sociólogo contemporâneo fundamental para se pensar nos processos
de socialização, além de Dubet, é Bernard Lahire (2003). Para uma outra história das teorias da
socialização em diferentes ciências humanas, cf. Dubar (2005).
! 113
No caso do Mulheriu Clã, os dois grupos de rap que estão na sua origem
e estruturam suas ações para incluir outros coletivos ou MC’s individuais têm uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Da mesma forma como o é para o conceito de esfera pública, o que inclusive justifica a
aproximação realizada por Sader, já mencionada, das categorias de “esfera pública” (Habermas) e
“redes de sociabilidade” (Magnani).
! 114
família da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mais conhecidos
como mórmons, cristãos não-evangélicos). O que é interessante nestas
configurações da religiosidade das militantes e de seus coletivos é o intenso
pluralismo religioso, inclusive majoritariamente evangélico pentecostal e afro-
brasileiro, com incidência católica menor70. O catolicismo inclusive aparece como
instituição conflitiva: o Sarau do M.A.P., do qual as mulheres do Ser Vi Elas
participavam, vive em atrito com a Igreja Católica pois a Praça do Forró se localiza
na frente da Catedral de São Miguel Arcanjo, sede da Diocese de São Miguel
Paulista, ocupada por setores mais conservadores desde a saída de D. Angélico em
1989 (IFFLY, 2010), com o padre constantemente chamando a Polícia Militar para
impedir e reprimir a presença de jovens e seus microfones e caixas de som na
praça.
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72
Para uma investigação qualitativa da cultura política de “prounistas”, cf. H. Costa (2016).
! 118
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73
O VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) foi criado pela Lei nº 13.540/2003, de autoria do então
vereador Nabil Bonduki (PT), o qual, durante o ciclo de contestação política anterior, considerado de
forma mais ampla (ou seja, abrangendo os movimentos sociais populares urbanos como um todo),
participou junto a movimentos de moradia não só em assessorias técnicas a mutirões, como também
atuando na gestão municipal de Luíza Erundina (então no PT).
74
Além dos 7 coletivos analisados mais detidamente, inclui nesta contabilidade também o Nós,
Mulheres da Periferia.
75
Parece ser uma característica comum a diferentes manifestações sociais e políticas
contemporâneas a ocupação de espaços públicos e uma reivindicação, direta ou indireta, do “direito à
cidade” (cf. TAVOLARI, 2016). Assim como os movimentos culturais que tratei aqui, o renascimento
do carnaval de rua em diferentes cidades (como nas capitais de São Paulo e Minas Gerais) é um
fenômeno similar. No caso específico de Belo Horizonte, por exemplo, Ricci e Arley (2014) apontaram
como blocos de carnaval integram a gênese das manifestações de junho de 2013 nesta cidade.
! 120
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76
Concordo com os objetivos e resultados da investigação de Balbino, que mapeou as mulheres nas
literaturas marginal e periférica, as quais “rompem com a máxima ‘Pode o Subalterno Falar?’ e
inovam no jeito de narrar, reportar e contar a própria história, além de romperem com o estigma de
que os subalternos não têm vez, tampouco voz” (BALBINO, 2014). Além da apropriação destes
estudos originais da presença de mulheres nos movimentos culturais periféricos (BALBINO, 2016;
! 121
(RAMOS, 2016, p. 46; meu grifo). Ramos ainda aponta como o cenário atual do rap
brasileiro conta com hip hoppers mulheres com grande destaque na indústria cultural
considerada de modo mais amplo, tais como Karol Conka e Tássia Reis, artistas
cuja profissionalização não tem relação direta com a FNMH2.
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78
Balbino (2016) explica que, devido ao seu caráter dinâmico e recente, há uma “instabilidade
conceitual” em relação à nomeação deste fenômeno social e cultural, havendo múltiplos termos:
“literatura marginal”, “literatura periférica”, “literatura divergente”, “literatura alternativa”, “literatura hip
hop”, etc. Ramos (2016) ainda aponta outras possibilidades além destas, como “literatura de rua” e
“literarua”. Sigo aqui a solução de Balbino por “literatura periférica/marginal”.
! 124
esferas públicas despoja a “opinião pública” de força prática (no sentido de passar
da opinião e da vontade para a deliberação) junto ao Estado.
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79
Fraser cunhou a categoria combinando os termos “subalterno” e “contrapúblico”, respectivamente
das teóricas literárias Gayatri Spivak e Rita Felski.
! 129
Uma das razões pelas quais os feminismos das esferas públicas digitais
podem ser interpretados como uma matriz discursiva é o modo como o
compartilhamento de narrativas pessoais auxilia na construção de uma identidade
coletiva:
protestos, como há uma nova intersecção entre formas online e offline. Isto, contudo,
não anula a relevância da transformação ocorrida, que permite às pessoas se
comunicarem diretamente, fora do alcance da grande mídia tradicional e dos
sistemas econômico e político uma vez que “as novas formas de comunicação digital
e interação possibilitadas por novas mídias” são estruturalmente comparáveis “à
lógica estrutural destas mídias no sentido de serem horizontais, descentralizadas,
transnacionais, sem líderes, inclusivas, dinâmicas e organizadas em rede”
(CELIKATES, 2015, p. 167). Na “imprensa mainstream” e na “esfera pública
tradicional” há uma clara diferenciação entre, de um lado, uma “elite relativamente
fechada de jornalistas e ‘formadores de opinião’ com acesso aos políticos e aos
meios de comunicação” e, de outro, uma “audiência relativamente passiva, anônima
e silenciosa” (CELIKATES, 2015, p. 168). Já na esfera pública digital a inovação
reside em um “modo de comunicação de muitos-para-muitos”, combinando, pela
primeira vez, tanto o caráter massivo da mídia quanto um aspecto interativo; nesta
configuração, quem decide o que é ou não relevante não é uma minoria que detém
os meios de comunicação antes da sua publicação e sim os próprios usuários
depois da publicação (CELIKATES, 2015, p. 168 e 167).
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87
Parto aqui do conceito desenvolvido por Castells: “Individuação é a tendência cultural que enfatiza
os projetos do indivíduo como supremo princípio orientador de seu comportamento. Individuação não
é individualismo, pois o projeto do indivíduo pode ser adaptado à ação coletiva e a ideais comuns,
como preservar o meio ambiente ou criar uma comunidade, enquanto o individualismo faz do bem-
estar do indivíduo o principal objetivo de seu projeto particular” (CASTELLS, 2013, p. 172).
! 136
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Agradeço a Márcio Moretto Ribeiro tanto pelo trabalho de processamento e análise quanto pela
seguinte explicação metodológica: “O tamanho dos nós é proporcional ao número de usuários que
curtiram alguma das postagens na amostragem selecionada. Para cada duas páginas A e B foi criada
uma aresta cujo peso é o número de usuários que curtiram postagens das duas ao mesmo tempo
(intersecção de A e B) dividido pelo número de usuários que curtiram pelo menos uma delas (união
de A e B). A disposição dos nós nas figuras é construída pelo software Gephi da seguinte maneira: os
nós possuem uma força de repulsão entre si (como imãs de mesma polaridade) e as arestas os
aproximam proporcionalmente ao peso delas. Esse processo de repulsa e reaproximação é repetido
várias vezes até chegar em um ponto de equilíbrio. As cores indicam clusters, os quais são gerados
pelo Gephi tentando minimizar a razão entre o peso das arestas que cruzam os agrupamentos pelo
número que cruzaria se o grafo tivesse o mesmo número de arestas dispostas de maneira aleatória.
Assim, o agrupamento indica, de certa forma, que há mais arestas intra do que inter-agrupamentos.
Neste caso, o agrupamento das páginas indica grupos de leitores comuns”.
! 140
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Refiro-me a “núcleo interno” e “núcleo externo” apenas com o intuito de diferenciar o sub-
agrupamento com mais curtidas e conexões internas mais intensas do sub-agrupamento com menos
curtidas e menos conectado, respectivamente.
! 142
[2.2] mulheres no Hip Hop e no rap (Rap Feminino; FNMH2; Rima Mina;
Por um Hip Hop mais igualitário; Issa Paz; e Sharylaine);
Slam das Minas – SP, um coletivo feminista periférico itinerante). Minha hipótese é
que este cluster virtual representa a rede online mais próxima e similar à rede offline
dos coletivos, sua base “física”, “real”, “material”, ou seja: justamente os movimentos
culturais.
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92
Pude observar a presença de uma ativista identificada com esta vertente do sagrado feminino em
duas atividades que etnografei durante minha pesquisa de campo, mas ela não militava em nenhum
dos coletivos feministas periféricos mapeados e entrevistados, e sua proposta de dança circular foi
realizada em ambas as ocasiões como forma de encerrar os eventos em questão.
! 145
[4.3] “temática LGBT” (Para Tudo; Nome Social É Direito; e Canal das
Bee).
maquiagem, pele, moda, turbantes, jóias, vestuário, lifestyle, unhas, “noiva negra”,
cuidados com o corpo, sendo alguma destas páginas lojas que vendem produtos,
outras trazendo apenas dicas e fotos (como: Beleza Natural; Boutique de Krioula;
Belocrespo ( By Amanda Gil ); Blog das Cabeludas - Crespas e Cacheadas; Soul
Vaidosa; Débora Ninja; Negras Plus Size; Prapreta; Eva Lima; Gata Crespa
Cacheada por Aline Silva; Negra Rosa; Encrespa Geral; Criloura; Negra Vaidosa;
Divas & Crespas - tipo 4; Canal Patrícia Avelino; e Soul Negra);
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Sobre a inserção digital do Geledés, cf. SANTANA, Bianca. Dia da mulher negra no Facebook: uma
análise de rede social, a partir da página do Geledés. Seminário FESPSP “Cidades conectadas: os
desafios sociais na era das redes”, São Paulo, 18-20 out. 2016.
! 148
feminismo nas redes sociais digitais como uma única matriz discursiva (na
suposição de que seria um “centro de elaboração discursiva” homogêneo) e sim a
internet como uma rede discursiva (ou dito de modo talvez mais rigoroso: uma rede
de redes discursivas). E no interior desta rede discursiva foi possível identificar
alguns agrupamentos [clusters] que poderiam ser interpretados como matrizes
discursivas do “Feminismo Periférico” (porém não necessariamente todos os
grupos).
coletivamente por meio do uso das novas TIC’s: GoogleDocs, Skype, Facebook,
WhatsApp.99 A reflexão da militante no debate avançou para uma ponte com a obra
e o pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman: “Somos fluídas demais, somos…
como fala? Líquidas…! […] A internet faz a gente ser líquida, esses bagulho
todo…”. Por este motivo o coletivo buscou se inscrever no Programa VAI para
dialogar “com quem tá com o pé no chão”; foram realizadas durante o ano de
2015 oficinas com mulheres das mais diferentes idades acerca das representações
da mulher periférica na grande mídia e uma exposição (“fixa e física”) com a
produção colaborativa do coletivo com as participantes foi realizada no Centro
Cultural da Juventude. Foi um “desafio para a geração online”; e elas continuam
debatendo internamente o risco de “não estar pisando no chão”.100
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
Uma das duas entrevistas que realizei com uma jornalista do coletivo foi por meio do Skype, a
pedido dela (tarde da noite, depois dela chegar em casa do trabalho); foi um caso único em toda a
minha pesquisa de campo.
100
Todas as falas encontram-se anotadas em meu caderno de campo. Um desdobramento posterior
à exposição foi a renovação do Programa VAI pelo Nós, Mulheres da Periferia, o qual resultou em um
documentário chamado “Nós, Carolinas” – Carolina, aqui é tanto referência a uma senhora
entrevistada pelo coletivo quanto uma alusão à Carolina Maria de Jesus – lançado em 8 de março de
2017, na Galeria Olido.
101
Um terceiro elemento da “Primavera Feminista” pode ser apontado como as oficinas de gênero e
feminismo nas escolas ocupadas por estudantes secundaristas paulistas contra o projeto da
“reorganização” escolar em novembro e dezembro de 2015, de modo quase simultâneo aos atos de
rua e às campanhas virtuais; estas oficinas foram identificadas como as mais comuns entre as
atividades que foram doadas às ocupações, tendo sido oferecidas principalmente por coletivos
feministas universitários (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016).
102
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/22/politica/1445529917_555272.html
103
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1701406-colunistas-abrem-espaco-para-que-
mulheres-falem-de-seus-direitos.shtml
104
http://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2015/11/meuamigosecreto-nova-
campanha-na-internet-denuncia-o-machismo-nosso-de-cada-dia.html e
http://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2015/11/20-relatos-da-hashtag-meuamigosecreto-
que-precisam-ser-lidos.html
! 154
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105
http://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/mulheres-criam-campanha-contra-machismo-na-
cena-cultural-periferica/
! 155
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106
Mantive os posts exatamente como foram escritos e publicados, sem quaisquer correções,
partindo de um pressuposto epistemológico de investigações qualitativas de que o mais importante é
a fidelidade à fala dos sujeitos sociais tal como ela se apresenta e não aspectos formais que iriam
requerer intervenções nos textos para adaptá-los à norma padrão do português.
! 156
é muito maior. A tentativa de piada esconde seu desconforto e mal-estar com esta
nova situação no cenário cultural periférico.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
A abundância de citações se justifica, ao meu ver, para enfatizar a quantidade de casos, o que
revelaria um padrão nas relações de gênero e não situações isoladas.
! 159
como um sim, para algo que ele ainda nem havia me pedido. E
que nem viria pedir depois também. Fez à força mesmo.
Quando fui me despedir para descer do carro, ele me agarrou e
me beijou. Só ele beijou. Babando no meu rosto, enquanto eu
mantinha a boca fechada e o empurrava para ele me soltar.
Quando ele soltou, eu ~que sempre jurei que estouraria a cara
do primeiro palhaço que cometesse qualquer tipo de abuso
contra mim~ fiquei paralisada. Pelo choque e pelo medo. Eu não
esperava aquilo, ele era o dobro do meu tamanho, meu
empurrão não tinha surtido efeito algum diante da força dele, era
de madrugada, a rua estava deserta e eu dormiria sozinha no
local em que eu estava hospedada. E ele sabia disso. Se eu não
consegui impedir o beijo, imagina o que mais eu não
conseguiria impedir.
Por medo de entrar em conflito com ele, sorri sem graça e o
lembrei de que ele era casado. Ao responder "meu casamento é
aberto", ele me agarrou novamente. E, diante de mais uma
negação, me agarrou pela terceira e última vez, quando eu
finalmente consegui ter coragem de sair do carro. Repito... eu de
boca fechada e empurrando ele.
Ao me despedir, mantive um ar amigável, ignorando o tremor
das pernas e os pensamentos tenebrosos. Eu só queria que ele
fosse embora pra eu ter a certeza de que nada pior aconteceria.
Assim que me vi dentro de casa, com a porta trancada, caí no
choro e corri para lavar o rosto, porque tava com muito nojo do
cheiro da saliva dele no meu rosto e com raiva de mim mesma,
porque queria ter conseguido reagir de outra forma.
Ele se despediu sorrindo. Talvez até sem desconfiar de que
tinha acabado de abusar de mim. Ele foi criado em uma
sociedade que acha que o homem não deve conter seus
"instintos". Contei pra pouquíssimas pessoas e ouvi de duas
delas que eu deveria ter sido mais firme no meu "não". Que eu
deveria ter deixado mais claro que não queria. Que eu não
deveria ter pego carona.... Que eu.. Que eu.... Eu..
ELE NÃO DEVERIA TER FEITO O QUE FEZ.
E ponto.
Engoli isso e guardei comigo porque, depois dos
questionamentos, também fiquei achando que a culpa era
minha. Hoje, fortalecida por um grupo lindo de mulheres-caos-
amor, senti força o suficiente pra somar no movimento.
O #naopoetizeomachismo é nosso grito ( e vários vêm
acompanhados de vômito) pra avisar às mulheres que elas não
estão sozinhas e pra avisar aos homens que NÃO VAI MAIS TER
SILÊNCIO. (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)
como diz uma postagem: “[…] os valores machistas estão enraizados e esse
tipo de relação não é vivenciada de maneira igualitária”. Outras vezes, os
relacionamentos vêm acompanhados de traições:
Fiquei com o ele por 8 meses. A primeira vez que ele tentou ficar
comigo eu não quis. Ele insistiu bastante, mas depois parou.
Combinamos outro dia e assim que cheguei no rolê, já veio me
beijar. Me senti desconfortável de início, mas depois rolaram
outros e outros encontros até a primeira vez que fui na casa
dele.
Quando chegamos, a primeira coisa que ele fez foi me beijar e
tirar minha roupa.
Fazia 1 ano que eu não transava com um homem. Tinha 18 anos,
estava nervosa e só tinha transado com um garoto na minha
vida (um namoro de 3 anos).
! 163
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108
Devo a indicação da necessidade desta passagem – das categorias descritivas para as analíticas
– a uma observação da profa. Flávia Rios no meu exame de qualificação.
! 165
destes artistas da sua vida privada – na qual eles perpetram abusos, assédios e
violências (psicológicos, físicos e sexuais). Esta dissociação denunciada implica que
não importa o que estes artistas façam privadamente, seu prestígio público tem
permanecido inabalável; a campanha de publicização da vida privada é uma
tentativa das feministas periféricas de questionar o machismo e fortalecer a
solidariedade entre as mulheres.
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109
A autora aponta uma segunda retórica da privacidade, a qual pertenceria à “propriedade privada
em uma economia de mercado”; seu efeito seria prejudicar grupos sociais subordinados como os
trabalhadores frente aos empresários e proprietários (FRASER, 1992, p. 131-132).
! 166
4
Coletivos feministas periféricos
É possível dizer que muitos dos coletivos feministas periféricos têm como
primeira motivação para sua formação a temática ou a questão da mulher negra –
uma mudança significativa com relação ao “Feminismo Popular”: se neste primeiro
ciclo a tematização da questão racial era bastante minoritária, no ciclo político mais
recente as jovens periféricas lhe atribuem um significado central. Segundo a
militante entrevistada do coletivo Mulheres de Orí, o primeiro telefonema que ela fez
convidando as outras integrantes para constituir um “grupo de mulheres” foi para
“falar da nossa dor”:
Dois dos grandes problemas sociais que as mulheres negras vivem e que
foram destacados nas entrevistas foram: a violência e o racismo no mercado de
trabalho.
ações. Já neste novo ciclo político, o foco na violência específica (isto é, racista) que
as mulheres negras sofrem é um ponto de partida de seus discursos e suas práticas:
Então é isso, assim, sabe? O que nos dispersa fora disso, sabe?
Eu acho que o que dispersa muito é o dinheiro, porque falando
de mulher preta, as nossas condições de vida são bem piores
comparada às outras… às outras pessoas. Então é mais difícil.
Então é mais difícil. (MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)
! 170
Mas, por outro lado, mesmo as mulheres negras que acessam o ensino
superior encontram o racismo quando tentam se inserir no mercado de trabalho em
posições melhores devido à qualificação de sua força de trabalho. A integrante
entrevistada pelo coletivo Fayola Odara, por exemplo, é auxiliar jurídica (tendo
passado na prova da OAB uns poucos meses depois da entrevista ser realizada):
[…] porque a pessoa desde pequena ela ouve dizendo que o que
é bonito é o cabelo liso: “Abaixa esse cabelo, e começa a
subir”… Ou no trabalho, então, houve essa resistência: “Será
que o emprego vai me aceitar? Será que eu estou no padrão do
emprego?” Eu mesma, como estudante de bacharel em Direito,
eu já ouvi muitas vezes que eu não era o padrão de advogada…
por ser negra, aí, eu falei assim: “Então eu acho que eu nunca
vou fazer padrão nenhum!” Porque sou negra, sou gorda, sou
mãe solteira, e vou continuar usando meu cabelo crespo! Eles
vão ter que me aceitar, eu estudei! Entendeu? Então, é essa
resistência que nós sofremos, e que tentamos transpassar pra
elas e mostrar que dá pra conseguir reverter isso daí.
[…]
Vou te contar uma situação, né, nossa! Eu, nesse escritório que
eu tô, ele é de grande porte, tem em vários lugares de São
Paulo, fora do Brasil, e quando eu fui fazer a entrevista, eu tava
de trança. “Ah, em uma semana eu te ligo…” Deu uma semana,
não ligaram, eu falei: “Ah, não passei”. Aí, quando foi à tarde
“Não, você passou, tal, tal, tal”. E [eu] tinha tirado as tranças,
meu cabelo tava bem maior. A primeira coisa que a gestora
falou foi: “Cadê o seu cabelo?!”, eu falei: “Ah, tá na minha
cabeça”. / “Não, mas você não veio assim na entrevista…” Aí,
eu respirei fundo… No primeiro dia, nem bom dia ela falou! Ai eu
falei: “Ah, não tem negros no escritório?” Ela ficou vermelha
[risos]. […] “Não tem negros não? Porque eu não vou cortar
meu cabelo, eu não vou alisar meu cabelo. Eu sou assim”. / “É
verdade, né? Você é assim”. Me apresentou pra equipe, quando
eu olhei em volta, quantos negros tinham? Eu, a única. E até
hoje tem piadinhas racistas, sou obrigada a ouvir, tenho que
trabalhar, eu não posso ficar rebatendo toda hora. E aí, eles vão
falar: “Ah, você é vítima”. Não é questão de vítima, é questão até
de respeito, né? E isso que elas [as mulheres negras] não
querem sofrer no trabalho. Evitar esses tipos de situações,
entendeu? (FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
Cf. o guia das entrevistas semi-estruturadas no Apêndice A, no final desta tese.
! 171
[Risos]
L: Então, ela já está avançada, mas por quê?
T: Por causa que ela já tem tudo isso.
L: Porque ela tem dinheiro, não é porque ela tem estudo, não é
porque ela trabalhe melhor ou pior que eu, mas ela tem essa
visibilidade, porque ela tem… dinheiro e ela é branca! E essa
parte do branca, não conta muito pra gente porque está dentro
da cultura [hip hop], mas pra um contato… conta. Para estar em
um evento social… conta!
(M.A.N.A. CREW, entrevista, 11 jul. 2015)
!
Como um espaço político ocupado por homens, mulheres e crianças,
letrados e não-letrados, ex-escravos e [pessoas] formalmente livres,
membros da Igreja e não-membros, a disponibilidade e uso da
Primeira Africana para encontros de massas permitiu a construção
de preocupações políticas em um espaço democrático.
[…] A igreja providenciou mais do que espaço físico, recursos
financeiros e uma rede de comunicação; ela também providenciou
uma base cultural que validou a emoção e a experiência como
modos de conhecimento e aspirou a um chamado e a uma resposta
coletivos, encorajando a participação ativa de todos. (BROWN, 1994,
p. 110 e 117)!
!
Como apontam as entrevistadas do Mulheriu Clã, o campo religioso brasileiro é
diferente do estadunidense: as igrejas cristãs não são uma base para a formação de
uma identidade racial da mesma forma como ocorre na conexão entre as igrejas
batistas negras e a ação coletiva antirracista nos EUA.
!
A ideia de uma esfera pública subalterna enfatiza o problema de
compreender como arranjos específicos de poder configuram e
reconfiguram os espaços discursivos nos quais grupos sociais
interpretam suas necessidades, inventam suas identidades e
formulam coletivamente seus compromissos políticos. Dito de outra
forma, a presença de um contrapúblico pode dirigir a atenção para as
arenas públicas onde interações discursivas no nível micro são
moldadas por discursos e arranjos institucionais de poder mais
amplos, e localiza o processo de politização e a formação de
identidades oposicionais nas relações sociais e práticas que
engendra ou incita deliberação e debate públicos. (GREGORY, 1994,
p. 153; meus grifos)!
!
Hanchard é o único autor no dossiê da Public Culture que se ocupa da
esfera pública negra brasileira. De início, ele aponta uma suposta singularidade
latino-americana (considerando Brasil, México, Cuba, Venezuela, Colômbia e outros
países) com relação à questão racial nos Estados Unidos ou no Caribe: “o colapso
retórico da diferença racial sob a bandeira da identidade nacional” (HANCHARD,
1994, p. 181). A ausência das formas de segregação racial comuns nos Estados
Unidos ou na África do Sul tornam, segundo o autor, a pergunta “o que é a cultura
afro-brasileira?” mais complexa no caso do nosso país. Historicamente, “A cultura
nacional brasileira sempre traduziu e transformou práticas culturais afro-brasileiras
como práticas culturais nacionais, tornando-as, deste modo, mercadorias na cultura
popular a serem consumidas por todos” (HANCHARD, 1994, p. 182). Esta operação
cultural passou a ser questionada com a emergência do movimento negro brasileiro
contemporâneo, em meados da década de 1970, e os espaços de sociabilidade que
constituíram sua gênese, como os bailes Black Soul e os blocos afro (como Olodum
e Illê Aiyê), “que produzem letras e músicas que utilizam a identidade afro-brasileira
! 182
Tanto as escolas de samba e os blocos afro – que apontei como uma das
matrizes discursivas do “Feminismo Popular” – quanto o Movimento Hip Hop e os
saraus periféricos – movimentos culturais periféricos os quais eu interpretei como
uma matriz discursiva do “Feminismo Periférico” – podem ser considerados como
esferas públicas negras, uma vez que mobilizam uma identidade negra, tematizam a
discriminação racial e podem fomentar ações coletivas antirracistas. Porém ainda
será preciso, em pesquisas futuras, se apropriar mais detidamente desta literatura
estadunidense e investigar comparativamente realidades sociais distintas para dar
conta das especificidades da questão racial brasileira.
!
Ao contrário do trabalho de mulheres brancas de classe média, o
trabalho de mulheres negras como trabalhadoras domésticas as
levou, por meio da esfera pública branca e controlada por homens,
para dentro da esfera privada da família branca gerida pela mulher.
Contudo, o que era público para homens brancos e privado para
mulheres brancas era altamente público para mulheres afro-
americanas – dentro era verdadeiramente fora. (HILL COLLINS,
1998, p. 21)!
!
A base para o ativismo político das mulheres negras (e para o desenvolvimento de
um pensamento feminista negro) nos EUA não seria, portanto, o mesmo do que a
das mulheres brancas. A experiência vivida a partir de sua situação social
ressignifica as noções de público e privado de um modo singular:
Existiria, então, alguma relação positiva que estas militantes que moram
nas periferias urbanas da Zona Leste de São Paulo estabelecem com o feminismo?
Há, na realidade, diversas formulações. Na avaliação da entrevistada pelo Juntas na
Luta, por exemplo, uma das dificuldades dos “coletivos de feminismo periférico”,
termos dela, junto com a falta de dinheiro e problemas de relacionamento pessoal
decorrentes da intensa convivência entre as mulheres, é a falta de “base teórica”;
ela relata debates no interior do coletivo: “Homem pode participar? Vamos ser
contra os homens? Homem é feminista?”. Sem uma “bagagem [teórica] de
! 187
gênero”, não teria sido possível chegar a respostas consensuais entre as ativistas,
assim como não teria sido suficiente que as jovens vivessem sistematicamente
experiências de machismo no contato com homens de movimentos culturais
periféricos dos quais elas participavam ou com os quais estavam em contato; a
ausência do referencial teórico feminista teria bloqueado a sua conceitualização e
reconhecimento enquanto machismo, levando-as a discordarem entre si quanto à
avaliação e interpretação de ocorridos. Ao mesmo tempo que ela afirma que a base
teórica ajuda a entender estas questões (“a percepção só a partir da prática não
rola”), ela deixa em aberto uma outra possibilidade: quando perguntada sobre a
evolução da situação social das mulheres nas últimas décadas, além de apontar
avanços em termos institucionais (Lei Maria da Penha, Delegacias de Defesa da
Mulher), ela aponta o “boom de um feminismo periférico”; por conta da internet,
“tem muita gente falando” e as mulheres agora podem aprender sobre, por
exemplo, transfobia em debates do Facebook, independente de já terem pisado na
universidade (trecho que já citei na subseção 3.2.2). Anteriormente, ela havia
afirmado que “estamos construindo do nosso jeito” o que ela chamou de
“feminismo de quebrada”; as ativistas podem não se reportar aos “clássicos” do
pensamento feminista, mas “é o que se tem para hoje” (JUNTAS NA LUTA,
entrevista, 26 mai. 2015).
C. pegou num ponto que era o que eu tava pensando assim, né?
Eu acho que de alguma maneira a gente… O feminismo ganha o
nome de feminismo enquanto movimento organizado, mas com
certeza a maioria de nós já tinha pensamento e atitudes
feministas anteriores né? E acho que comigo não foi diferente
né. Vindo de uma família que eu fui criada só pela minha mãe
né, justamente por motivo de separação de violência, por parte
do meu pai, então é impossível você conviver com isso e não ter
nenhum tipo de reação, né? Cada um de um modo, mas algum
tipo de reação. Então acho que nesse sentido, acho que a gente
sempre foi feminista sem ter esse tipo de organização feminista,
né. Mas pensando em se assumir mesmo “Eu sou feminista e
participo de ações com esse cunho”, pra mim foi a partir do
! 188
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
114
Outra indicação do diálogo deste coletivo com o feminismo negro brasileiro é o convite para Sueli
Carneiro republicar um texto seu de 1993 em seu livro (que contou com apoio do Programa VAI):
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto aos orixás. In: NOVAES, Priscila
(Org.). Ajeum: o sabor das deusas. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2017. p. 45-72. Para um
panorama das referências teóricas e bibliográficas do coletivo Mulheres de Orí, vale a pena
reproduzir aqui uma lista dos livros que o coletivo propunha a serem lidos em seu grupo de estudos e
que tive a oportunidade de registrar em meu caderno de campo, quando realizei observação
participante na 1ª Mostra da Mulher Afro Latino-Americana Caribenha (no CFCCT, em julho de 2015):
BENISTE, José. Dicionário yorubá-português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011; BERNARDO,
Teresinha; CLEMENTE, Claudelir Corrêa (Org.). Diásporas, redes e guetos: conceitos e
configurações no contexto transnacional. São Paulo: CAPES/EDUC, 2008; CASCUDO, Luís da
Câmara. História da alimentação no Brasil. Sâo Paulo: Global, 2011; FARELLI, Maria Helena.
Comida de santo. Rio de Janeiro: Pallas, 2005; FONSECA, Dagoberto José. Você conhece
aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira. São Paulo: Summus, 2012; GARCIA, Antonia dos
Santos. Mulheres da cidade d’Oxum: relações de gênero, raça, classe e organização espacial do
movimento de bairros em Salvador. Salvador: EDUFBA, 2006; LODY, Raul. Cabelos de axé:
identidade e resistência. São Paulo: Senac Nacional, 2004; LODY, Raul. Dendê: símbolo e sabor da
Bahia. São Paulo: Senac, 2009; LODY, Raul. Santo também come: estudo sócio-cultural da
alimentação cerimonial em terreiros afro-brasileiros. Rio de Janeiro/Recife: Artenova/Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979; MAURÍCIO, George; OXALÁ, Vera de. O candomblé bem
explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon. Rio de Janeiro: Pallas, 2009; NASCIMENTO, Elisa Larkin
(Org.). Afrocentricidade: um abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009;
PORTUGAL FILHO, Fernandez. Guia prático da língua yorubá. São Paulo: Madras, 2002; PRANDI,
Reginaldo. Mitologias do orixá. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; PSIQUE & Negritude: os
efeitos psicossociais do racismo. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Amma Psique e Negritude,
2008; RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010; SANTOS,
Gevanilda. Relações raciais e desigualdade no Brasil. São Paulo: Summus, 2009; THEODORO,
Helena. Iansã: rainha dos ventos e das tempestades. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
! 190
E o feminismo negro?
Eu acho que não existe. Eu acho que existe o mulherismo
[africana], o feminismo negro não. Eu acho que é só uma
vertente que colocaram pra chamar as mulheres negras pra luta.
(FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
Algumas leituras fundamentais para complementar este panorama são textos de autoras
mulheristas africana (HUDSON-WEEMS, 1993, 2003; DOVE, 1998, 2003) e feministas negras (HILL
COLLINS, 1998; 2009 [2000]; 2006). Destaco a obra de Patricia Hill Collins (dentre tantas outras
autoras do pensamento feminista negro) tanto pelo fato dela dialogar criticamente com as teorizações
sobre gênero e sexualidade no interior do nacionalismo negro, do pan-africanismo e da
afrocentricidade – muito relacionadas com a emergência do mulherismo africana – quanto por ela
desenvolver reflexões ricas e avançadas sobre as conexões entre a categoria de esfera pública
(central para minha investigação) e as experiências de mulheres negras estadunidenses.
! 194
[6] “campo da educação para a vida ou a arte de bem viver. […] como
viver ou conviver com o stress”.
!
Os procedimentos metodológicos utilizados nos processos da
educação não formal estão pouco codificados na palavra escrita e
bastante organizados ao redor da fala. A voz ou vozes, que entoam
ou ecoam de seus participantes são carregadas de emoções,
pensamentos, desejos, etc. São falas que estiveram caladas e
passaram a se expressar por algum motivo impulsionador (carência
socioeconômica, direito individual ou coletivo usurpado ou negado,
projeto de mudança, demanda não atendida). Ao se expressar, os
atores/sujeitos dos processos de aprendizagem articulam o universo
de saberes disponíveis, passados e presente, no esforço de
! 195
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
119
A rapper Beatriz Oliveira era conhecida como Bê O, mas depois passou a adotar Bia D’Oxum
como seu nome artístico.
! 199
expectativa com relação à filha e, de outro, sua prática de não assumir sua própria
identidade, uma das militantes do coletivo, muito pacientemente, buscava
problematizar que o principal modelo da criança é a mãe (“ou seja: você!”), por
isso ela própria precisaria se fortalecer enquanto mulher negra, seja para “bancar”
a manutenção do cabelo liso, seja para “encrespá-lo”.
Pelo que pôde ser visto nas últimas páginas, diferentes linguagens
artísticas – como a poesia e a literatura periféricas, a música (essencialmente o rap,
eventualmente o funk, mas também uma vertente da cultura popular como é o
samba de coco), o grafite como arte visual urbana e mesmo a expressão da
identidade negra por meio da valorização do cabelo, da beleza e da estética das
“mulheres pretas” – estão estruturando este novo associativismo de jovens
periféricas. Como afirma Gohn (2015), é preciso analisar a presença das linguagens
artísticas no campo da educação não formal, uma vez que (referindo-se
especificamente às manifestações de rua de Junho de 2013): “A arte de fazer
política renovou-se com o auxílio da própria arte, que utilizou diferentes linguagens
para fixar a memória e desenvolver o aprendizado dos saberes desenvolvidos,
especialmente em espaços e meios culturais” (GOHN, 2015, p. 40). Junho de 2013
foi um marco na política brasileira, com a “entrada em cena de novíssimos
personagens” (MORAES; TIBLE, 2015) e o “surgimento de uma nova geração
política” (NUNES, 2014). O “Feminismo Periférico” participa deste novo momento
histórico e espero que esta investigação tenha contribuído para a compreensão das
profundas alterações que estamos todos nós vivendo, na rica chave da educação
não formal e da contínua constituição de uma cultura política democrática e de lutas
por direitos. !
! 210
CONCLUSÃO:
continuidades e descontinuidades entre os ciclos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
Não foi incomum, por exemplo, que entrevistadas de diferentes gerações indicassem algumas
casas conveniadas para que eu realizasse novas entrevistas, em especial as Casas Viviane e
Anastácia, encarando-as mais como organizações da sociedade civil do que como braços do Estado
que executam uma política pública. Outro exemplo do caráter de sociedade civil organizada destas
duas casas conveniadas são os atos de rua – passeatas pelas ruas da Cidade Tiradentes – que elas
convocam anualmente, em julho, para protestar contra a violência contra a mulher.
! 212
Projetos Rappers e Femini Rappers, não acredito ser possível atribuir à ONG o
incremento nos últimos anos da participação feminina nos movimentos culturais
periféricos, o qual é, em grande parte, autoconstruído pelas artistas, individual ou
coletivamente.123
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
O “Feminismo Periférico” está sendo “inventado” a partir de suas próprias referências – como as
experiências práticas vividas pelas militantes e também as redes sociais – mas fundamentalmente
mobilizando e aprofundando estruturas de sentimento (WILLIAMS, 1977) difundidas em poesias e
letras de rap nas quais a questão racial é central de um modo que não estava presente no ciclo
anterior.
! 214
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128
Além dos autores já mencionados na subseção 4.1.1 (BROWN, 1994; DAWSON, 1994;
GREGORY, 1994; HANCHARD, 1994), cf. para o conceito de “esfera pública negra”: Squires (2002) e
Pough (2004).
! 218
com base nas experiências e vivências cotidianas das próprias mulheres negras, ou
até mesmo na formulação ampla de um feminismo periférico que, mesmo sem
buscar rupturas com o movimento feminista tradicional, já não repete de modo
algum a invisibilização da questão racial no interior da situação social das mulheres
periféricas.
Resta saber o que acontecerá nos próximos anos, frente ao que está se
passando no momento em que termino de redigir esta tese. Uma série de medidas e
de viradas nas políticas públicas dos governos Michel Temer (federal) e João Dória
(municipal) podem ser interpretadas como constituindo um processo de
desinstitucionalização de conquistas históricas de vários movimentos sociais desde
o período da redemocratização. Vejo este processo principalmente a partir do
impeachment de Dilma Rousseff em 2016, mas com elementos que antecedem este
evento tais como: o recrudescimento da repressão ao direito de protesto desde
2013, o ajuste fiscal logo após as eleições de 2014 e a retirada do status de
ministério da SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres) e da Seppir (Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), já em outubro de 2015, sendo elas
fundidas, junto com a Secretaria de Direitos Humanos, em um Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. O governo Temer montou
seu primeiro ministério sem uma única mulher e radicalizou o enfraquecimento da
SPM, subordinando-a ao Ministério da Justiça.
* * *
REFERÊNCIAS
ENTREVISTAS ANALISADAS
APÊNDICE 1
Guia para entrevistas semi-estruturadas em associações de mulheres
[1] Histórico
[1.1] Vamos começar conversando sobre o histórico da associação [do movimento,
do coletivo, etc.], mas antes: você poderia se apresentar para ficar registrado na gravação?
- Nome completo
- Data e local de nascimento [Se não nasceu em São Paulo, quando veio?]
- Bairro em que mora [Desde quando?]
- Ocupação
- Pratica alguma religião? [Onde é a igreja [etc.] que você frequenta?]
[1.2] Bom, você pode contar a história da associação [etc.]? [deixar correr de forma
mais ou menos livre, mas seguem perguntas de tópicos que não podem deixar de ser
tratados:]
- Qual foi a data de fundação?
- Como surgiu a ideia de fundar uma associação [etc.]?
- Quem eram os membros fundadores?
- A associação [etc.] passou por outras sedes além desta em que estamos? É
(eram) sede(s) própria(s)?
- Houve relação da associação [etc.] com alguma igreja ou religião em algum
momento?
[6] Indicações
Para ir encerrando a nossa entrevista...
[6.1] Vocês conhecem alguma pesquisa acadêmica que já foi feita sobre a associação
[etc.]?
[6.2] Por acaso vocês teriam textos, documentos ou outros materiais escritos produzidos
pela própria associação [etc.] ou sobre a associação [etc.] que poderiam ser disponibilizados
para a minha pesquisa?
[6.3] Para finalizar, vocês teriam sugestões de outras associações [etc.] que lutam pelos
direitos das mulheres na Zona Leste que eu possa conversar? Vocês têm os contatos destas
associações [etc.]?
APÊNDICE 2
Lista de páginas do Facebook
1 1º Vale Histeria
2 21º Parada do Orgulho LGBT SÃO PAULO 2017
3 25 de Julho - Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha
4 25 de novembro
5 33 Dias Sem Machismo
6 2015 - Marcha das Mulheres Negras
7 Á Africa em Nós.
8 A COR ERA VIOLETA
9 A Favor da Despenalização do Aborto
10 A liberdade ainda que tardia
11 A mãe preta
12 A Menina Do Vestido Vermelho
13 A Mulher negra e o Feminismo
14 A Negra
15 A Paixão de Claudia
16 A Poderosa Beleza
17 A Revolta da Lâmpada
18 A Vadia Que Sua Mãe Sonhou
19 A Voz do Povo Negro
20 A voz não tem cor
21 A's Trinca
22 Abayomi Cabeleireiras
23 Aborto Seguro - Brasil
24 Abuso e violência "NÃO"
25 Acampamento de Feminismo Interseccional
26 Aceitação Afro
27 Acidez Feminina
28 Acontece Comigo
29 Activistas de Angola Pelo Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas
30 Adelinas - Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas
31 Advogadas Feministas
! 240
78 As Negαs Do Ziriguidum.
79 As Rosas Falam - Sarau das Rosas
80 As Tavares
81 As Trapeiras
82 As Vantagens de se Enrolar
83 Ashanti
84 Assata Shakur em Português
85 Assistência Jurídica para as Minas
86 Assistindo Mais Mulheres
87 Assoc. Nacional de Mídia Afro - ANMA
88 Associação de Mulheres da Zona Leste
89 Associação de Mulheres de Ação e Reação
90 Associação de Mulheres do Grajaú
91 Assuma Sua Negritude
92 Atitude Feminina
93 Ato do Oito de Março - SP
94 Atóxico / Renata Nolasco
95 Audácia
96 Audre Lorde
97 Autoestima- GG
98 Autonomia à Margem
99 Bailando & Brindando
100 Banda A Mulherada
101 Barbie sem Ken
102 Bastet QUEEN
103 Beauvoir comenta
104 Beleza afro
105 Beleza Natural
106 Belezas de Kianda
107 Bell Hooks
108 Bella Fernandes
109 Belocrespo ( By Amanda Gil )
110 Beneditas - dos terreiros aos bailes blacks
111 Bi yourself
112 Bi: Notes for a Bisexual Revolution
113 Bi-sides
114 Bia Doxum
115 Bicha Nagô
116 Bicudas
117 Binóculos
118 Bitraduzido
119 Bissexual
120 Bissexualizando
121 Bixa, Preta e Pobre
122 Black Brasil
123 Black Dondocas
! 242
446 Lado M
447 Latinidades Afrolatinas
448 LBL-SP
449 Legaliza O Aborto 28 De Setembro
450 Lei Maria da Penha. Pelo fim da Violência contra a Mulher.
451 Leia Mulheres Negras
452 Lelê Paes
453 Lélia Gonzalez
454 Lésbicas Negras
455 Letícia fez um blog
456 Letra Machista
457 Levante Mulher
458 Levante Negro
459 LGBT Brasil
460 Liga Feminina de Mc's
461 Liga Feminina de Mc's - São Paulo
462 Liniker
463 Livraria Africanidades
464 Livre de Abuso
465 Lovelove6
466 Lua Rodrigues
467 Lugar de Fala
468 Lugar de Negra
469 Luta que pariu
470 Luz Ribeiro
471 M'Ana - Mulher conserta pra Mulher
472 Machismo chato de cada dia
473 Madame Sartori
474 Mães pela Diversidade
475 Mães pela Igualdade
476 Magá Moura
477 Mais uma mulher morta
478 Makeda Cultural
479 Malkia Tranças
480 MAMA
481 Mamatraca
482 MAMU - mapa de coletivos de mulheres
483 MANA Crew
484 Manas e Monas
485 Manas na luta - ML
486 Manifesto Crespo
487 Manifesto Grrrl Power
488 Maquiagem para Negras
489 Maquiagem para negras por Josi Helena
490 Marcha das vadias - Aracaju, Sergipe.
491 Marcha das Vadias Rio de Janeiro
! 250