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JONAS MARCONDES SARUBI DE MEDEIROS

MOVIMENTOS DE MULHERES PERIFÉRICAS


NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO:
ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos

Tese de Doutorado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade
Estadual de Campinas para
obtenção do título de Doutor em
Educação, na área de
concentração de Educação.

Orientadora: Maria da Glória Marcondes Gohn

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO
JONAS MARCONDES SARUBI DE MEDEIROS, E
ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARIA DA
GLÓRIA MARCONDES GOHN

CAMPINAS
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2014/08028-4; CAPES

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751

Medeiros, Jonas Marcondes Sarubi de, 1985-


M467m MedMovimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São Paulo : ciclos
políticos, redes discursivas e contrapúblicos / Jonas Marcondes Sarubi de
Medeiros. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

MedOrientador: Maria da Glória Marcondes Gohn.


MedTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.

Med1. Educação não-formal. 2. Esfera pública. 3. Movimento de mulheres. 4.


Periferias urbanas. 5. Sociologia. I. Gohn, Maria da Glória Marcondes, 1947-.
II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Peripheral women's movement in São Paulo's East Zone : political
cycles, discursive networks and counterpublics
Palavras-chave em inglês:
Nonformal education
Public sphere
Sociology
Urban peripheries
Women's movement
Área de concentração: Educação
Titulação: Doutor em Educação
Banca examinadora:
Maria da Glória Marcondes Gohn [Orientador]
Mario Augusto Medeiros da Silva
Flavia Mateus Rios
Angela Randolpho Paiva
Luciano Pereira
Data de defesa: 02-10-2017
Programa de Pós-Graduação: Educação

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

MOVIMENTOS DE MULHERES PERIFÉRICAS


NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO:
ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos

Autor : Jonas Marcondes Sarubi de Medeiros

COMISSÃO JULGADORA:

Maria da Glória Marcondes Gohn

Luciano Pereira

Mário Augusto Medeiros da Silva

Ângela Randolpho Paiva

Flávia Mateus Rios

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida
acadêmica do aluno.

2017
!

Dedico esta tese a todas as lutadoras pelos direitos das


mulheres nas quebradas da ZL; espero que este trabalho
esteja minimamente à altura de suas experiências de luta
!

AGRADECIMENTOS

Inicio agradecendo a absolutamente todas as minhas interlocutoras, que


conheci e interagi no trabalho de campo (a maioria delas da Zona Leste, mas muitas
de outras regiões); sem a disposição de colaborar de cada uma de vocês, esta
pesquisa simplesmente não teria saído do papel. Agradeço nominalmente a: Aline
Kátia Melo, Aline Moreno, Ana Célia Minuto, Analu Maciel, Anna Bueno, Andreia
Rosa, Bia Doxum, Camila Freitas, Carina Rocha, Débora Garcia, Débora Guerra,
Elaine Mineiro, Elizandra Souza, Evelin Barbosa, Fabiana Castilho, Fátima Freitas,
Fermina Silva Lopes, Flávia Pereira, Gabriela Vallim, Hilda Calixto Mitev, Iris Gomes,
Jenyffer Nascimento, Jéssica Moreira, Jô Freitas, Jô Maloupas "Odisseiana", Juliana
Castilho, Keila Abadia Ferreira, Kel Fidelis, Kika Silva, Larissa Xavier, Letícia Costa
de Paula, Letícia Saron, Lita Uchoa, Lívia Lima da Silva, Lucimara Nunes, Mano
Feu, Maria Aparecida de Lima (a Cida), Maria Auxiliadora de Paula, Maria Isabel
Patrícia Oliveira, Maria Niuza Ferreira, Mariana Felix, Mel Duarte, Nathielly Janutte,
Nay Lopes, Nayra Maia, Nina Ferreira, Pamela Araújo, Pamela Rosa, Patrícia Costa,
Priscila Novaes, Queila Rodrigues, Raquel Almeida, Regiany Silva, Renata de
Oliveira Armelin, Rúbia Mara, Semayat Oliveira, Sharylaine, Sílvia da Silva, Tais
Telles, Tatiane Rodrigues, Tayla Fernandes, Thayaneddy Alves, Tula Ferreira, Vilma
da Silva Lopes e Yzalú;

agradeço também a todas as lutadoras dos Centros de Defesa e


Convivência da Mulher (CDCMs) e da Rede Leste de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher: Fabiana Pitanga (a Bia), Ivone Assis Dias, Jandayra Alves Santos
Clementino, Joseane Andrade Silva Bernardes, Juciara Almeida Souza, Keli Oliveira
Rodrigues, Keyse Bandeira, Lilian Aparecida, Maria Lúcia Lima, Marina Milhassi
Vedovato, Marine Lopes Pacheco, Miriam Oliveira Rocha, Renata Carvalho, Shirlei
Cristina de Fátima Martins, Suely Campos de Oliveira e Talita Melo; as funcionárias
da Secretaria de Política para as Mulheres de São Paulo na gestão Haddad, Silvia
Elena Soares Barbosa e Dulce Xavier; as integrantes da Sempreviva Organização
Feminista (SOF), Sônia Maria Coelho Gomes e Nalu Faria; e as militantes cujas
entrevistas acabaram não sendo analisadas nesta tese: Ana Rita Eduardo, Eleci
!

Avelino da Silva Melo, Elma da Paixão, Eloisa Sousa Pedra, Maria Amélia Portugal,
Railda Alves, Teresinha Rodrigues Romão e Vanessa Oliveira;

ao Coletivo de Esquerda Força Ativa, que mantém a Biblioteca


Comunitária Solano Trindade na Cidade Tiradentes, que frequentei algumas vezes e
com quem busquei dialogar, sobre feminismo e também sobre o movimento
secundarista: Bia, Lillian Sankofa, Tito, Wellington, Nando e Goes;

agradeço ao Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes


(CFCCT), palco de várias atividades que frequentei e observei, em especial a Ana
Paula Nascimento, pelas trocas, confiança e acolhimento;

alguns homens participantes de movimentos culturais com quem interagi


na pesquisa de campo, e aos quais agradeço, foram: Alex “X-Jay”; Anderson
“Dbronks”; Cláudio Kakis; Daniel Galdino; e Thiago Ambulante Peixoto;

a todos que conheci da REJU (Rede Ecumênica da Juventude), do IPDM


(Igreja – Povo de Deus – em Movimento) e da Rede Religiosa de Proteção à Mulher
Vítima de Violência: Eduardo Brasileiro (amigo generoso), padre Paulo Bezerra (com
admiração), Cristiane Alves, Alexandre Magno da Glória, Renato Araújo Mendonça,
Lucas de Francesco, Rafaela Guabiraba, Franklin Félix, André Severino, Tabata
Tesser, Edilson da Silva Cruz, Lídia Maria de Lima e Ester Lisboa;

por fim, o campo antes da pesquisa de campo foram minhas salas de


aula, nas quais tive a oportunidade de ser professor; por este aprendizado, agradeço
a minhas alunas e alunos, primeiro na Faculdade Paschoal Dantas (entre 2012-13),
onde esta tese começou a nascer (agradeço também às profas. Clarice Ramos,
Dirce Encarnación Tavares e Sanderli Brito) e depois na Escola ALEF (entre 2013-
14), em especial na Unidade Paraisópolis (aproveito para agradecer Ricardo
Crissiuma, Fábio Luís Franco, Juliana Gonçalves, Renée Avigdor e Joana Salém
Vasconcelos).

Saindo do campo e adentrando a universidade, também acumulei muitos


débitos e gratidões. Começando pela minha orientadora, Maria da Glória Gohn, que
conheci pessoalmente alguns anos antes de entrar no doutorado, tive a
oportunidade de aprender referenciais teóricos que mudaram e enriqueceram
sobremaneira minha forma de construir o objeto da investigação; graças ao conjunto
de sua obra, que acumula décadas de pesquisas empíricas e teóricas, meu
!

doutorado se beneficiou de sua perspectiva crítica e abrangente; agradeço a ela


especialmente pela confiança em mim e em meu trabalho, desde o início até o final,
e pelo diálogo franco e construtivo, além de sua acolhida na educação e na
sociologia dos movimentos sociais de alguém que vinha de um mestrado na filosofia,
sem ter ainda tido a experiência de realizar pesquisas empíricas até aquele
momento;

agradeço à FAPESP e à CAPES pela bolsa concedida por 36 meses (de


setembro de 2014 a agosto de 2017), sob o Processo nº 2014/08028-4, Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) o que permitiu minha
dedicação exclusiva à pesquisa, sem contar a reserva técnica, que possibilitou
custear a ida a congressos acadêmicos, a aquisição de livros dificilmente acessíveis
de outra maneira, além da transcrição das entrevistas realizadas;

às professoras que participaram de meu exame de qualificação, pelos


seus comentários valiosos e certeiros para a versão final da tese: à profa. dra. Aurea
Guimarães me auxiliou no aprofundamento de categorias e no esclarecimento das
metodologias, além de ter me dado confiança para escrever a Introdução desta tese
sob uma forma narrativa e quase biográfica; e à profa. dra. Flávia Rios, por ter, com
suas intervenções generosas e rigorosas, permitido a reinvenção das considerações
finais desta tese, e a quem devo ainda mais, por ter aceito vir ao estado de São
Paulo em condições tão precárias como as que vive atualmente a universidade
pública brasileira, nunca me esquecerei disto;

com relação à Faculdade de Educação da Unicamp, agradeço


especificamente aos profs. drs. Newton Antonio Paciulli Bryan e Luis Enrique Aguilar
(do Lapplane) e Luciano Pereira; meu colega Lucas Milhomens, pelos encontros em
Campinas e na Anpocs; e as funcionárias da Secretaria de Pós-Graduação, em
especial Nadir Camacho, Lígia de Andrade Cunha e Viviani Vincentin Bergamaschi;

tenho o privilégio de participar do Núcleo Direito e Democracia do Centro


Brasileiro de Análise e Planejamento (NDD/Cebrap), ambiente interdisciplinar, onde
tive a oportunidade de debater resultados parciais da minha pesquisa; faço questão
de agradecer ao prof. Ricardo Terra por ter me convidado a entrar no Núcleo, a
quase 10 anos atrás (quando ele ainda orientava minha Iniciação Científica), jamais
me esquecerei do que ele disse ao final de meu mestrado na filosofia: algo como
“agora está na hora de você ir para o mundo” – foi o que busquei fazer nesta tese;
!

agradeço ao prof. Marcos Nobre, pela amizade e inspiração intelectual, muito do que
faço e do que penso tem suas reflexões como diálogo e referência, espero muito
que a tese esteja respeitosa com o legado do Eder; o grande amigo Adriano
Januário leu praticamente todas as versões preliminares de seções e capítulos desta
tese, sempre aliando, de forma hábil e surpreendente, generosidade intelectual e
rigor conceitual sem concessões; Fabíola Fanti foi uma interlocutora permanente da
pesquisa e ainda fez relatoria dedicada do texto debatido em plenária; também
agradeço nominalmente ao camarada Rúrion Melo (a quem admiro pela capacidade
crítica mas também por sua horizontalidade sem sequer se esforçar), às amigas
Natália Neris e Bianca Tavolari, além dos comentários de Anita Silveira, Felipe
Gonçalves Silva, Gabriel Busch de Brito, Ingrid Cyfer (a quem devo um convite para
falar em evento no Memorial da América Latina e que resultou na seção da tese
dedicada à campanha #NãoPoetizeOMachismo), José Rodrigo Rodriguez e Mariana
Valente; e a todos os demais integrantes do NDD; agradeço também a todas as
pessoas que passaram pelo Subgrupo "Esfera Pública e Cultura Política" (conhecido
pelos mais íntimos como o "grupo de baixo pra cima"), nossas discussões foram
lentamente moldando minhas preocupações nesta tese;

tive também a sorte de encontrar, ao longo do caminho, pesquisadoras


generosas com quem pude trocar e debater os resultados e metodologias de minha
e de suas próprias pesquisas, com as quais tinha várias afinidades temáticas; por
esta razão, aproveito para agradecer a Jéssica Balbino, Izabela Nalio Ramos, Lívia
Lima, Natália Lago, Isadora Lins França, Tatiane Duarte e Shisleni de Oliveira-
Macedo; um momento especial de troca foi, para mim, o "Encontro de pesquisas:
feminismos, feminismo negro e mídias sociais", organizado pelo Nepac/Unicamp no
1º semestre de 2017: agradeço, em primeiro lugar a Ana Claudia Teixeira, Luciana
Tatagiba e Wagner Romão, e a todas as pesquisadoras ali presentes que
partilharam suas investigações e contribuíram com questões e indicações (gostaria
de ter podido incorporar muito mais do que fui capaz): Bianca Santana, Dulci da
Conceição Lima, Fernanda Polidoro Paiva, Lais Modelli, Larissa Meneses, Sidélia
Silva e, mais uma vez, Natália Neris;

duas disciplinas que eu frequentei na FFLCH/USP foram muito relevantes


para a trajetória desta tese: em primeiro lugar o curso “Movimentos sociais,
sociedade civil e (sub)cidadania: teorias e realidades” (no 1º semestre de 2015),
!

ministrada pelo grande prof. Lúcio Kowarick (e onde pude conhecer Ana Claudia
Pereira Leal, Janaína Maudonnet, José Uchôa e Otávio de Souza); e,
retrospectivamente, minha formação como pesquisador empírico começou na
disciplina “Elaboração de Projetos de Pesquisa em Sociologia” (no 1º semestre de
2012), a qual o prof. Brasílio Sallum gentilmente me permitiu assistir como ouvinte;

a pesquisa em ciências humanas é, ou deveria ser, fruto de interações e


debates intelectuais, nos quais é crucial estar aberto às críticas de seus pares;
posso dizer que a maioria dos congressos acadêmicos nos quais apresentei papers
foram momentos importantes de “teste” do andamento da pesquisa; por isto
agradeço aos comentários de: Breno Bringel, José Szwacko e Mônica Dowbor (no
XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, 2015); Sandra Costa e Nilton Santos (no 1º
Congresso Nacional de Ciências Sociais, 2015); Ana Letícia de Fiori e Maria Luisa
Scaramella (na I Jornada de Antropologia do PPGAS/USP, 2016); Carlos Augusto
Mello Machado e, uma vez mais, Flávia Rios (no 40º Encontro Anual da Anpocs,
2016); e, por fim, Marcus Abílio Pereira (no III Encontro Internacional Participação,
Democracia e Políticas Públicas, 2017);

o convite do amigo José Henrique Bortoluci para dividir uma disciplina


sobre movimentos sociais na FGV-SP foi, retrospectivamente, um momento crucial
de consolidação de uma mudança do meu diagnóstico de tempo, por conta de
nossos debates sobre Junho de 2013, movimentos populares, a Constituinte e a
Constituição, os movimentos feminista e secundarista; por isto, agradeço a ele, a
Oliver Stuenkel e Allan Greicon Macedo Lima e a todos e todas as estudantes pela
oportunidade ímpar;

em dois momentos tive a sorte de ter a amizade e a colaboração de


pesquisadores de áreas relativamente distantes, que foram gentis e pacientes em
realizar trabalhos de “assessoria técnica”: Maurílio José Barbosa Soares,
pesquisador do NEPO/Unicamp, me assistiu com dados estatísticos do Censo do
IBGE e sua espacialização por ferramentas de geoprocessamento (dados que,
infelizmente, acabei não incluindo na tese devido a perda de centralidade da
temática religiosa); e Márcio Moretto Ribeiro, prof. da EACH/USP e pesquisador do
Gpopai, com quem não só tive a felicidade de retomar a amizade com a pesquisa
que resultou no livro Escolas de Luta, como também, sem ele, todo o trabalho de
!

análise de rede de páginas do Facebook no Capítulo 3 teria sido simplesmente


impossível;

agradeço a Marina Lopes pela transcrição competente e animada das


entrevistas dos coletivos feministas periféricos; e também as seguintes pessoas e
instituições, que gentilmente cederam suas fotos para ilustrar esta tese: Caju
Photos, Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes (CFCCT), Douglas de
Campos, Letícia Saron & Lita Uchoa, Marginalia – Fotografia, Nathielly Janutte,
Renata Armelin, Ricardo Kafka e Tiago Santana.

Por fim, queria agradecer a amigos, amigas e familiares:

começando por Leonardo de Oliveira Fontes: trocamos muitas


experiências de campo e resultados parciais de nossos doutorados, com tantas
afinidades e complementaridades; agradeço a sua leitura crítica e atenta de meus
textos em várias etapas da pesquisa; ao José Henrique Bortoluci, não apenas pela
confiança em me convidar para dividir a disciplina sobre movimentos sociais acima
referida, mas pelo interesse e animação com o andamento da investigação, que me
fortaleceram para prosseguir; a amizade, cumplicidade afetiva e interlocução
intelectual de Camila Rocha também foram fundamentais em praticamente todo o
processo; também agradeço nominalmente às amigas(os) Andreza Galli, Danilo
Fiore, Frederico Assis, Luciana Lima, Melina Rombach, Renata Braga, Sérgio
Roberto Guedes Reis, Talita Capella, André Vereta Nahoum e Paula Rojas;

à minha mãe, Marina, tanto pelo carinho presente quanto pelo cuidado e
criação de todos estes anos, muita admiração por você e gratidão por eu ser quem
sou muito por quem você é;

aos tios Floriano e Maria Alice, pelo companheirismo de todos os


momentos, em especial na crise de apendicite que interrompeu minha pesquisa de
campo; aos primos Clara e Lucas, por serem os irmãos mais novos que eu nunca
tive, admiração pelos adultos que vocês se tornaram; à minha madrinha Tati, pelo
ombro amigo e carinho; à minha tia Mônica, que me acolheu por quase um mês,
junto com meu gato, quando meu apartamento foi interditado para obras, lá no
longínquo ano de 2014, primeiro ano do doutorado, minha gratidão para sempre; ao
João Pedro, meu irmão mais velho que eu nunca tive, sempre amoroso mesmo que
distante fisicamente, e também à Mari e ao Bento – linda inspiração;
!

não poderia deixar de explicitar agradecimentos à família da Antonia:


Antonio e Kika, presenças de carinho e cuidado em momentos difíceis (Antonio
provavelmente salvou minha vida na crise de apendicite); Maria e Cândido, pelas
conversas, o interesse na pesquisa e pelas férias em Ubatuba; Dona Aurora – junto
com eles, meus avós substitutos – sou muito grato pela animação com a pesquisa e
muito tocado por ela me incluir em suas orações;

e, por fim, o que dizer da Antonia Malta Campos? Meu amor, meu
amorzin, esta tese não existiria sem você; você me inspira e me fortalece; foi com
você que aprendi lentamente a ser (espero) sociólogo, com nossas conversas, com
sua dissertação, com seus raciocínios e insights; com você aprendo no dia a dia
sobre gênero e feminismo muito mais do que com textos teóricos; jamais vou me
esquecer dos seus olhos quando o Projeto de Lei 5069 foi anunciado: seu olhar de
pavor me ensinou mais sobre empatia do que eu jamais seria capaz de alcançar
sozinho; te admiro demais, você é a intelectual que eu mais respeito e considero
neste mundo.
!

Eu, mulheres, todas – a maioria – a gente teve que quebrar


muito paralelepípedo. Então eu vou dizer assim: vindo de lá, de
1956 a 2015, nós pisamos em muito paralelepípedo, antes dele
se transformar em bloco pequeno. Mulheres sangraram os pés.
O homem não podia colocar a mão, mas a mulher era
sacrificada pelo erro do homem; isso, né, às vezes até hoje. E aí
depois nós começamos a quebrar esses paralelepípedos e
transformar eles... pra colocar nos asfaltos pra branco sentar,
pra branco andar. Aí nós fomos crescendo, eu digo “nós”, as
pessoas antes de mim e um pouco mais pra frente. Aí a gente
conseguiu quebrar até esses paralelepípedos! O que nós
deixamos, o que eu ainda vou deixar, o que as minhas pessoas
do Dandara deixaram, foram esses paralelepípedos, quebrados,
sabe, como cascalho grande – como cascalho grande! Tá muito
mais fácil hoje pra esse pessoal, essas mulheres de hoje, essas
meninas, adolescentes, essas senhoras, sabe? Nós tivemos que
pegar marreta. Elas podem pegar a caneta! Podem pegar a
caneta e transformar esses cascalhos em pó, pra não ter que
ficar com o pé rachado. Porque a nossa parte, estamos aqui e
vamos continuar fazendo, mas a gente facilitou. As minhas
ancestrais, de alguma forma, quebraram lá o granito. A gente já
veio tentando quebrar os paralelepípedos. Tiramos todas as
pedras? Não dava. Não tivemos tempo ainda, mas ainda
estamos – mulheres da minha geração –, nós estamos ainda
quebrando paralelepípedo e deixando cascalho pra essas
meninadas, essas mulheres que tão vindo, só bater com o livro
do discernimento e da sabedoria e transformar isso em pó. Não
é em asfalto não, sabe? É daquela terra bem suave que dá pra
você andar, que ela fique mais suave do que a areia do mar.

(Sílvia da Silva, do Grupo Cultural Dandara – nascida em 1956 e


entrevistada em julho de 2015)
!

RESUMO

MEDEIROS, Jonas. Movimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São


Paulo: ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos. Orient. Maria da Glória
Gohn. Tese (Doutorado em Educação) – FE/Unicamp, Campinas, 2017.

O tema desta pesquisa é o associativismo de mulheres nas periferias da Zona Leste


de São Paulo e sua relação com a educação não formal. Dois ciclos políticos são
comparados: o “Feminismo Popular” e o “Feminismo Periférico”. O recorte conceitual
eleito para tal é a categoria de matrizes discursivas, compreendida como esferas
públicas que permitem a reelaboração simbólica da vida cotidiana e a emergência
de ações coletivas contra situações sociais avaliadas como injustas. O principal
procedimento utilizado foram entrevistas semi-estruturadas; técnicas
complementares foram mobilizadas no caso dos coletivos que constituem o segundo
ciclo: observação participante, análise de rede de páginas do Facebook e análise de
conteúdo de uma campanha virtual. Os resultados alcançados apontam a
complexidade e heterogeneidade das relações entre os ciclos. De um ponto de vista
societal, as descontinuidades predominam: para o primeiro ciclo foram identificadas
três matrizes discursivas (Comunidades Eclesiais de Base; ONGs feministas; e
escolas de samba e blocos afro) e, para o segundo ciclo, duas matrizes diversas
(movimentos culturais periféricos e feminismos das esferas públicas digitais). Porém,
há continuidades se forem consideradas as dimensões discursiva (o feminismo
negro passou de minoritário para hegemônico) e político-institucional (a
institucionalização da prática de atendimento de mulheres em situação de violência
abriu espaço, paradoxalmente, para práticas menos institucionais).

Palavras-chave: Educação Não Formal; Esfera Pública; Movimento de Mulheres;


Periferias Urbanas; Sociologia.
!

ABSTRACT

MEDEIROS, Jonas. Peripheral Women’s Movements in São Paulo’s East Zone:


Political Cycles, Discursive Networks and Counterpublics. Supervisor Maria da Glória
Gohn. Dissertation (Ph.D. in Education) – FE/Unicamp, Campinas, 2017.

This dissertation’s theme is the women’s associativism at the outskirts of the São
Paulo’s East Zone and its relationship with nonformal education. Two political cycles
are compared: “Popular Feminism” and “Peripheral Feminism”. To that end, the
concept of “discursive matrixes” was chosen as the main framework, understood as
the public spheres that enable the everyday life’s symbolic elaboration and the
collective action’s emergence against unfair social situations. The main procedure
were semi-structured interviews; and in the case of the collectives that constitute the
second cycle, complementary techniques were mobilized: participant observation,
Facebook pages’ network analysis and online campaign’s content analysis. The
achieved results point to complex and heterogeneous relations between the cycles.
From a societal point of view, the discontinuities prevail: three discursive matrixes
were identified for the first cycle (Church Communities; feminist NGOs; and samba
schools) and two other matrixes were identified for the second cycle (cultural
movements and digital public spheres’ feminisms). But there are continuities if one
considers a discursive dimension (black feminism went from secondary to
hegemonic) and a political-institutional dimension (the institutionalization of treatment
of women in violent situations has paradoxically opened space to less institutional
practices).

Key-Words: Nonformal Education; Public Sphere; Sociology; Urban Peripheries;


Women’s Movement.
!

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Mapa do subcampo feminista da Zona Leste (cerca de 2015)


75

Imagem 2 – Mapa do subcampo feminista da Zona Leste (com as marcações dos


mapas seguintes) 76

Imagem 3 – Mapa São Miguel e Itaim Paulista 77

Imagem 4 – Mapa Itaquera e Guaianases 78

Imagem 5 – Mapa Cidade Tiradentes 79

Imagem 6 – Mapa Vila Prudente e São Mateus 80

Imagem 7 – Mapa região centro-oeste (“ONGs feministas centrais”) 81

Imagem 8 – Agrupamentos da rede de páginas do Facebook 138

Imagem 9 – Subclusters do agrupamento vermelho (“feminismo digital”) 139

Imagem 10 – Subclusters do agrupamento rosa (“mulheres nos movimentos


culturais”) 141

Imagem 11 – Subclusters do agrupamento azul (“feminismo mais institucionalizado”)


144

Imagem 12 – Subclusters do agrupamento verde (“mulheres negras”) 146

Imagem 13 – Grafite do coletivo M.A.N.A. Crew 177

Imagem 14 – Show do rapper Neto no Sarau do M.A.P. 197

Imagem 15 – Roda de conversa “Mulher e arte na periferia” 199

Imagem 16 – Rapper Bê O no 1º Circuito do Mulheriu Clã 201

Imagem 17 – Evento “Cartel de Tinta” 203

Imagem 18 – Apresentação do Semente Crioula 204

Imagem 19 – Rapper Sharylaine no sarau Junte-se na Luta 205

Imagem 20 – Sarau das Odaras 206

Imagem 21 – Atividade “Resistência Ancestral” 208


!

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Informações sistematizadas sobre os coletivos 65


!

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Amzol Associação de Mulheres da Zona Leste


AP Ação Popular
AVIB Associação de Voluntários Integrados do Brasil
CCJ Centro Cultural da Juventude
CCM Centro de Cidadania da Mulher
CDC Clube da Comunidade [Tide Setubal – em São Miguel]
CDCM Centro de Defesa e Convivência da Mulher
CDD Católicas pelo Direito de Decidir
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
CEU Centro de Educação Unificado
CFCCT Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes
CFSS Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde
CIAP Centro de Assistência Social e Formação Profissional
CIC Centro de Integração da Cidadania
CIEJA Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos
Cohab Conjunto Habitacional
CRM Centro de Referência da Mulher
DEM partido Democratas
DJ Disc Jockey
DPE-SP Defensoria Pública do Estado de São Paulo
FGV-SP Fundação Getúlio Vargas de São Paulo
Programa de Financiamento Estudantil (do Ministério da
FIES
Educação)
FNMH2 Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop
Grupo de Educação Popular do Instituto de Planejamento
GEP-Urplan
Regional e Urbano (da PUC-SP)
Grupo de Estudos por Relações Igualitárias do Instituto
GERI-IPJ
Paulista da Juventude
HGSM Hospital Geral de São Mateus
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Organização Interclesiástica para a Cooperação ao
ICCO
Desenvolvimento (da Holanda)
IPJ Instituto Paulista da Juventude
!

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e


LGBT
Transgêneros
M.A.N.A. Mulher Atitude Negritude e Arte
M.A.P. Movimento Aliança da Praça
MC Mestre de Cerimônia
MEP Movimento de Emancipação do Proletariado
MMM Marcha Mundial das Mulheres
MNU Movimento Negro Unificado
MR8 Movimento Revolucionário Oito de Outubro
MSZL Movimento de Saúde da Zona Leste
Núcleo de Atendimento à Vítimas de Violência Doméstica (do
NAAVID
HGSM)
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da
NUDEM
Mulher (da DPE-SP)
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PCB Partido Comunista Brasileiro
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PFL Partido da Frente Liberal
PGE-SP Procuradoria Geral do Estado de São Paulo
PLPs Promotoras Legais Populares
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
POC Partido Operário Comunista
Polop Organização Revolucionária Marxista Política Operária
Programa Universidade para Todos (do Ministério da
Prouni
Educação)
PT Partido dos Trabalhadores
PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RME Rede Mulher de Educação
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
SMADS
de São Paulo
SMC Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de São
SMPM
Paulo
SMS Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo
!

Sempreviva Organização Feminista (ex-Serviço de Orientação


SOF
da Família)
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
SPM-PR
República
TICs Tecnologias da Informação e da Comunicação
TL Teologia da Libertação
UMSP União de Mulheres de São Paulo
Unesp Universidade Estadual Paulista
VAI Programa Valorização de Iniciativas Culturais
!

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 23

1 Ciclos políticos no associativismo de mulheres da Zona Leste de


São Paulo 43

1.1 “Feminismo Popular” 50

1.2 “Feminismo Periférico” 59

1.3 Um subcampo feminista na Zona Leste de São Paulo? 67

2 Esferas públicas como matrizes discursivas 82

3 A formação de um “Feminismo Periférico” 111

3.1 Ponto de partida: a vida cotidiana de mulheres periféricas 111

3.2 Matrizes discursivas do “Feminismo Periférico” 117

3.2.1 Os movimentos culturais periféricos 117

3.2.2 Os feminismos nas esferas públicas digitais 129

3.3 Exemplo de hibridismo online/offline: a campanha


#NãoPoetizeOMachismo 152

4 Coletivos feministas periféricos 167

4.1 Discursos: a questão racial no “Feminismo Periférico” 167

4.1.1 A problemática das mulheres negras 168

4.1.2 Feminismo negro e mulherismo africana 182

4.2 Práticas: educação não formal e contrapúblicos 193


!

CONCLUSÃO: continuidades e descontinuidades entre os ciclos


210

REFERÊNCIAS 225

ENTREVISTAS ANALISADAS 236

APÊNDICE 1 – Guia das entrevistas semi-estruturadas 237

APÊNDICE 2 – Lista de páginas do Facebook 239


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INTRODUÇÃO

Por que um homem branco de classe média escolhe escrever uma tese
sobre mulheres periféricas, muitas delas negras? Esta pergunta me foi feita
inúmeras vezes nos últimos anos, tanto nos espaços acadêmicos em que
apresentava resultados parciais do doutorado quanto pelas minhas interlocutoras no
decorrer da pesquisa de campo. Em vez de introduzir a tese apresentando um
objeto de pesquisa pronto e acabado, escolhi abrir o processo da sua construção,
ressaltando a minha trajetória e, principalmente, as relações e interações nas quais
estive inserido e implicado, afinal de contas uma pesquisa qualitativa em ciências
humanas nunca é um ato isolado e sim o fruto do encontro e do diálogo da pessoa
investigadora com muitos sujeitos: interlocutoras no campo, professoras/es, colegas
e amigos/as, fora e dentro da universidade.

Esta tese de doutorado começou a nascer em uma sala de aula. Durante


quatro semestres, fui professor em uma graduação de pedagogia. Era uma
faculdade particular na Zona Leste de São Paulo, ao lado do Parque do Carmo. As
disciplinas que eu dava eram Metodologia da Pesquisa (no primeiro semestre de
curso) e Trabalho de Conclusão de Curso I e II (nos últimos dois semestres). O
corpo discente era esmagadoramente feminino: de uma média de 100 estudantes
que entravam todo semestre, de 96 a 99 eram mulheres. Algumas discussões
recorrentes nessas aulas me marcaram muito.

Conforme meu trabalho era basicamente auxiliar na construção dos


objetos de pesquisa dos TCCs das alunas, conversávamos muito sobre possíveis
temas de investigação. Eu fazia sugestões a partir da apresentação das temáticas
dos Grupos de Trabalho (GT's) da Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação). Para ilustrar pesquisas pouco usuais (o mais comum era a
repetição de temas com uma orientação bastante prática e imediata, como
“alfabetização” ou “dificuldades de aprendizagem”), eu recorria à apresentação de
um destes GT's, chamado "Gênero, Sexualidade e Educação". Não se tratava de
aprofundar um debate teórico, mas apenas de chamar a atenção para como a noção
de gênero busca desnaturalizar atribuições de essências a homens e mulheres; e
um dos exemplos concretos que eu dava era comparar a licença paternidade,
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comparando o Brasil com outros países. Nunca vou esquecer a reação, efusiva e
quase consensual da sala: as alunas se posicionavam totalmente contrárias ao
aumento da licença paternidade pois a única consequência de uma proposta dessas
seria que seus maridos ficariam assistindo TV e bebendo cerveja em casa e de jeito
nenhum seriam parceiros nos cuidados com o bebê recém-nascido. Nada que eu
pudesse falar ou argumentar era capaz de alterar ou flexibilizar a opinião delas.

Uma segunda discussão que me marcou profundamente se deu quando


passei a receber as primeiras versões dos Projetos de Pesquisa. Uma construção
que surgia de modo persistente nos textos das minhas alunas era a narrativa de um
círculo vicioso: os alunos da educação básica “de hoje em dia” têm muitas
dificuldades de aprendizagem, além das escolas serem ambientes muito violentos; a
educação não começa na escola e sim na família; aquelas dificuldades e aquela
violência seriam decorrentes de uma “família desestruturada”; basicamente essa
desestruturação seria fruto da ausência das mães, obrigadas a trabalhar fora de
casa para contribuir financeiramente na manutenção da família; logo, a solução para
a má qualidade da educação escolar não estava na própria escola nem na formação
inicial ou continuada dos professores, muito menos no aumento de investimentos na
escola pública e sim “no lar” e na responsabilidade educacional das mulheres
enquanto mães. Dito de modo simplista, o que me espantava nessa construção é
que em nenhum momento as alunas (que variavam dos 18 aos 70 anos de idade,
mas com uma maioria de não-jovens, ou seja, elas tinham majoritariamente mais de
30 anos) estavam explicitamente falando de si mesmas e sim da mulher “em geral”,
de forma distanciada e impessoal (sendo que, na maioria das vezes, suas
construções de temas e hipóteses de pesquisa eram bastante próximas e
personalizadas). Contudo, elas podiam se encaixar perfeitamente no quadro que
elas próprias apontavam: várias eram mães, todas eram trabalhadoras e o
acréscimo de uma “terceira jornada” (da entrada muitas vezes tardia no Ensino
Superior, recém-saídas do supletivo, com o objetivo de se qualificar e sair de
ocupações como empregada doméstica ou operadora de telemarketing, para se
tornarem professoras) certamente poderia ser descrito como um obstáculo a mais na
idealizada dedicação exclusiva à educação moral de seus filhos e filhas. Parecia-me
de modo implícito e indireto um mal-estar com sua própria condição de mulheres
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trabalhadoras, supostamente incompatível com sua missão educativa enquanto


mães.

Também comecei a ficar muito intrigado com uma categoria que as


alunas mobilizavam, semestre após semestre, de diferentes turmas e com objetos
de pesquisa diversos, que sintetizava aquele círculo vicioso (mas também expandia
seu potencial explicativo para além da crise da educação escolar): a noção de
“inversão de valores”. Esse conceito era mobilizado para explicar vários processos
(sociais, psicológicos, morais). Lá pelo segundo semestre de aulas, finalmente
descobri, na internet, a origem da categoria: as pregações de Silas Malafaia (da
Assembleia de Deus Vitória em Cristo, igreja evangélica pentecostal) e tantos outros
pastores evangélicos (reverberada por políticos conservadores).

Quando liguei cada uma destas discussões entre si – recusa de pautas


feministas, como tratar igualmente as licenças paternidade e maternidade;
responsabilização da mãe pela educação moral dos filhos e por tudo que há de
errado com a educação escolar; recorrência no uso de uma categoria religiosa e
conservadora para formular hipóteses de pesquisas acadêmicas – não tive dúvidas
que o objeto do meu próprio projeto de pesquisa para ingressar no doutorado na
Educação da Unicamp seria a conexão entre gênero e religião nas periferias da
Zona Leste de São Paulo. A escolha pelo território da Zona Leste não tinha uma
justificativa apenas pessoal (pois passei dois anos dando aulas no Parque do
Carmo) mas era uma escolha sociologicamente produtiva, pois associava um
passado histórico de lutas sociais de movimentos populares egressos em grande
parte do catolicismo progressista com um presente fortemente marcado pelo
pluralismo religioso, com um avanço ímpar das diversas igrejas evangélicas,
pentecostais e neopentecostais.

Estas discussões com minhas alunas em sala de aula se deram de modo


quase concomitante ao fim do meu mestrado, na Filosofia. A riqueza dessa vivência
se encontrou inesperadamente com as considerações finais da minha dissertação
(MEDEIROS, 2013, p. 122-148), que versava sobre o livro História e consciência de
classe, do filósofo marxista Georg Lukács. Esta conclusão heterodoxa (do ponto de
vista da filosofia acadêmica) buscava não apenas avançar uma interpretação sobre
a teoria da ação social em Lukács (seu recurso ao jovem Marx e, principalmente, a
Weber para fugir de uma espécie de funcionalismo do Marx maduro), mas também
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provocar uma leitura de seu “método dialético” que não reificasse a classe proletária
como o único sujeito histórico possível, abrindo espaço para o reconhecimento de
outros movimentos sociais (como os movimentos camponês, feminista e negro)
enquanto sujeitos da transformação social. Minha trajetória intelectual e política
anterior também tinha me colocado em contato com movimentos populares (em
especial meu envolvimento durante a graduação e o começo da pós com uma certa
tradição na USP de projetos de extensão universitária inspirados na educação
popular freireana). Mas nem esta experiência prática nem meu acúmulo teórico (que
incluía, além de Lukács: Lucien Goldmann, Paulo Freire, Robin Celikates e Florestan
Fernandes) me prepararam devidamente para a riqueza e profundidade das
questões metodológicas da pesquisa de campo que eu iria começar.

A posição do homem branco tem sido naturalizada como a de um sujeito


universal do conhecimento (e, inversamente, as situações sociais de mulheres,
negros e mulheres negras tem sido reificadas como a de sujeitos particulares ou
particularizados). Constantemente fui (re)marcado na pesquisa de campo pelas
minhas interlocutoras enquanto homem branco de classe média. Considerei que,
aqui, era mais relevante metodológica e epistemologicamente narrar, para os e as
leitoras, as interações entre pesquisador e interlocutoras no lugar de focar em mim
como indivíduo isolado e nos detalhes da minha trajetória biográfica. O que buscarei
destacar a seguir não é a minha posição considerada em si mesma (e nem mesmo
uma teorização abstrata das diferenças sociais entre nós) e sim as interações –
aquelas interações concretas e específicas – que travamos no decorrer do trabalho
de campo, pois são estas que produziram os dados aqui descritos, analisados e
interpretados. E por mais que elas possam ser teorizadas em termos de
posicionalidade e interseccionalidade, elas não são sempre constantes ou
mecanicamente previsíveis, pois cada sujeito concreto elabora prática e
simbolicamente de determinadas formas estas interações a partir de sua
personalidade, trajetória e horizontes culturais.

Não foram, portanto, apenas pessoas dentro da academia que me


perguntaram porque eu estava fazendo esta pesquisa. Minhas interlocutoras em
campo também eventualmente me indagaram neste mesmo sentido. Ao final de uma
entrevista (uma das primeiras que eu realizei), a integrante de um coletivo me
perguntou porque afinal de contas eu decidi escolher este tema de pesquisa. Contei
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a ela a gênese da temática na sala de aula com minhas alunas, futuras pedagogas.
Ela me parabenizou e disse “Ter uma iniciativa assim, é difícil fazer e é difícil
querer fazer. Você, como homem”. Minha reação naquele momento foi ressaltar a
dificuldade que eu imaginava me deparar quando eu fosse organizar grupos focais
religiosamente homogêneos – uma etapa planejada da pesquisa empírica que
depois foi descartada, pois o objeto da tese foi mudando conforme a investigação se
desenrolava. Na minha resposta a ela, eu acabei focando muito mais na dificuldade
de acessar as igrejas e contornar possíveis problemas com pastores do que na
minha relação entre pesquisador homem e interlocutoras mulheres.
Retrospectivamente, vejo que ela estava muito mais consciente dos desafios que eu
enfrentaria no trabalho de campo do que eu próprio estava.

Se no caso desta militante era a minha condição de homem que chamava


sua atenção, em outras duas circunstâncias o choque de que eu era um homem
branco foi mais marcante. Assim que eu encontrei uma militante de outro coletivo,
em um shopping no centro da cidade onde tínhamos combinado de realizar a
entrevista, ela se mostrou surpresa, pois achou que eu fosse “um negão alto”.

Uma situação muito similar se deu com uma integrante de um grupo


cultural de dança afro-brasileira, mais velha. Fui entrevistá-la no conjunto
habitacional na Cidade Tiradentes, onde ela reside. Conforme seu apartamento era
um dos únicos do prédio (ou, ao menos, do andar) com um telefone fixo, a entrevista
foi interrompida algumas vezes por telefonemas ou por pedidos de vizinhos para
utilizá-lo. A entrevista rendeu muitas horas de conversa (tendo sido a mais longa de
todas as que eu realizei, rendendo duas sessões); na segunda vez que voltei ao seu
apartamento, o telefone tocou e tive de desligar o gravador pois percebi que seria
um telefonema mais longo. Era uma amiga da entrevistada; provavelmente ela já
devia ter contado da primeira sessão da entrevista. Disse, como se a amiga já me
conhecesse de longa data: “Estou aqui com o Jonas!”. A conversa continuou, com
ela, na cozinha, falando bem alto e eu, na sala, acompanhando o diálogo: pelo que
ela tinha ouvido da minha voz ao telefone (quando liguei para marcar nosso
encontro inicial), ela tinha pensado que eu seria “um antropólogo, negão, alto”. A
quebra de expectativa, para ela, não poderia ser maior: “e aí, Fulana, chegou um...
adolescente!!”. Tirando a minha surpresa de ter minha idade aparente reduzida,
aos meus 30 anos recém-completos em junho de 2015, o que mais me marcou foi
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sua justificativa de porque ela esperava surgir no seu apartamento, naquela primeira
tarde que passamos juntos, um homem negro. Não era apenas pela minha voz, mas
principalmente porque, segundo ela, “só pretos se interessam por pretos”.

Em inúmeros momentos, a diferença social foi demarcada pelos meus


interlocutores e interlocutoras em campo. Destaco aqui apenas alguns deles. A
primeira vez que me deparei com esta situação foi no final de 2014, logo no primeiro
evento em que fui realizar observação participante; era um debate organizado pelo
Blog Mural na sede da Folha de S. Paulo, no centro da cidade, para discutir “o que é
periferia”. Foi neste momento que conheci várias das integrantes do coletivo Nós,
Mulheres da Periferia. Ao final do evento, abordei várias pessoas para pedir
sugestões e contatos de associações de mulheres na Zona Leste. Uma das pessoas
era um jornalista, colaborador do Mural (que depois se tornou um portal de notícias
comunitárias sobre as periferias urbanas de São Paulo). De início ele estava
bastante aberto e interessado, até o momento em que ele me perguntou “Onde
você mora?”, ao passo que respondi “Na Consolação”. A reação imediata dele foi:
“Ah! Burguesão, então?”. Fiquei sem graça; não lembro minhas exatas palavras,
mas devo ter concordado com a conclusão dele. Trocamos e-mails alguns dias
depois, mas ele nunca chegou a me enviar contatos de associações ou coletivos,
uma situação que não me lembro de ter se repetido (com exceção de uma ou outra
solicitação de entrevista com jovens de coletivos que acabaram ou sendo recusadas
ou então não se efetivaram por desencontros ou outros problemas pessoais): meus
pedidos de ajuda ou indicações foram, em geral, respondidas de forma bastante
solícita. Mas não consigo deixar de pensar que, da parte dele, eu não morar na
periferia era um forte desincentivo para ele colaborar com a minha pesquisa. Por
outro lado, se esta disposição fosse a regra, minha pesquisa teria sido simplesmente
inviabilizada, o que de fato não ocorreu.

Outro momento-limite, no qual senti que quase perdi o respeito de minha


interlocutora foi durante uma entrevista. Estávamos conversando sobre o serviço de
atendimento a mulheres em situação de violência que esta militante fundou. Minhas
entrevistas seguiam um guia semi-estruturado, até que chegamos à pergunta “Qual
é o perfil do público-alvo de suas atividades?”. A entrevistada já havia apontado, de
modo disperso, alguns elementos que caracterizavam as mulheres atendidas, no
decorrer de suas respostas anteriores. Mas segui o roteiro e fiz a pergunta; a reação
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dela foi ríspida: “Ah, se até agora você não conseguiu sacar...!”. A erosão do
respeito dela por mim foi momentânea: era como se eu ignorasse a realidade social
ou não tivesse prestado atenção em tudo que ela já havia me relatado acerca da
situação destas mulheres: social e economicamente vulneráveis e vítimas da
interseccção de sexismo e racismo por serem mulheres negras. Tudo o que eu
queria ali era uma resposta que sintetizasse todos estes elementos para o bem da
transcrição da entrevista e futura citação de sua fala; mas ela recebeu minha
insistência em ser rígido com o guia como um desligamento ou uma alienação
inaceitáveis. Acho que ao final da entrevista consegui alguma redenção com ela,
principalmente quando conversamos sobre A integração do negro na sociedade de
classes, de Florestan Fernandes, e ela ter me dito, já quando o gravador estava
desligado, que “até que você tá entendendo algumas coisas...”.

Outra fala em off, foi da ex-integrante de um coletivo, depois da entrevista


ter se encerrado. Ela, adepta do mulherismo africana, me avisou que “a experiência
da mulher negra” é incomensurável para mim, “homem branco”. De forma
surpreendente, esta afirmação e esta concepção não a impediram de colaborar com
a pesquisa, não apenas dando a entrevista, mas me inundando, por mais de uma
hora, de sugestões de novas pessoas que eu poderia entrevistar, seus contatos e
até mesmo referências bibliográficas. Por isso chamei sua fala de um “aviso”; era
uma demarcação de nossas diferenças sociais, não um decreto de que minha
pesquisa era inviável ou indesejável, apenas um apontamento dos seus limites.

Talvez o único momento em que eu, mesmo que retrospectivamente,


tenha sentido um questionamento da escolha em si do tema da pesquisa tenha sido
em uma entrevista com uma coordenadora de um CDCM, quando perguntei por
novas indicações de pessoas e movimentos a serem entrevistados, ela sugeriu que
eu entrasse em contato com um grupo da Zona Leste que discute masculinidades. O
grupo não estava no escopo da ajuda que eu estava solicitando: grupos formados
exclusivamente por mulheres que lutam pelos seus direitos enquanto mulheres. Vejo
a sua insistência como uma crítica sutil à minha escolha – um homem estudando
mulheres – e uma sugestão propositiva de alteração do olhar, privilegiando uma
outra abordagem nos estudos de gênero, acerca das masculinidades, um
desdobramento, com outros limites e desafios seria a escolha da seguinte temática
alternativa: um homem não-periférico estudando homens periféricos, o que
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redirecionaria a demarcação de diferenças sociais para os eixos de classe e raça,


diminuindo a importância do gênero. Realmente, um encontro teórico posterior que
tive foi com a obra da socióloga Raewyn Connell, referência para os estudos das
masculinidades. Infelizmente, não tive a oportunidade de desenvolver ou aprofundar
esta perspectiva, nem ao menos de incluí-la na construção do objeto da pesquisa;
mas continua sendo um caminho fértil a ser trilhado, a inclusão de uma investigação
etnográfica acerca das masculinidades nas periferias urbanas e, em especial, nos
movimentos culturais, já que uma de minhas principais teses é apontar o Hip Hop e
os saraus, movimentos ainda protagonizados por homens e estruturados pelo
machismo, como os espaços de sociabilidade a partir dos quais emergem os
coletivos feministas das jovens periféricas.

As entrevistas foram um meio primordial de coleta de dados; são


interações criadas de certa forma artificialmente por meio da solicitação externa do
pesquisador. Tentei, com os casos anteriores, apontar para alguns momentos em
que as interlocutoras demarcaram nossas diferenças sociais: eu, homem branco de
classe média; elas, mulheres periféricas, a maioria delas negras. Porém toda uma
outra série de interações, desafios e limites precisam ser considerados, quando
passamos das entrevistas para as observações participantes, uma vez que, nestes
casos, não sou eu quem crio estas situações e sim os próprios coletivos e
movimentos; passamos, assim, de uma situação “artificial” (solicitada pelo
investigador) para outra, “espontânea” (na qual o investigador acompanha os
“sujeitos investigados” em uma atividade previamente marcada, independente de
minhas intenções). Tentarei a seguir argumentar que uma expressão talvez mais
precisa para descrever esta segunda metodologia primordial seja a de “observação
semi-participante”.

O primeiro caso que quero relatar se deu em um evento organizado por


um coletivo de grafiteiras, no extremo leste da cidade. As jovens conseguiram
reservar para a arte urbana os muros de um quarteirão gigantesco de um conjunto
habitacional. Minha postura foi, inicialmente, conversar com as grafiteiras, que eu já
havia entrevistado algumas semanas antes, e depois fiquei circulando pelas ruas,
acompanhando o trabalho visual dos artistas e observando as interações entre eles,
elas e também os moradores do bairro. Eu permanecia com um certo
distanciamento físico, mas estava satisfeito com o andamento da observação, que
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estavam me rendendo muitos insights. Até que, sem que eu pudesse me preparar,
uma das jovens que entrevistei me pegou pelo braço e saiu me apresentando para
os artistas que estavam grafitando os muros, repetindo: “Este aqui é o meu
empresário!”. Em geral, as entrevistadas me apresentam como um “jornalista” em
vez de um “pesquisador da Unicamp” (como eu sempre me apresentei para elas).
Aulas ou manuais metodológicos não preparam o investigador para lidar com o
humor singular de seus interlocutores em campo; ela insistia com cada um dos
grafiteiros que eu iria levá-la para “expor no MASP, na Paulista”. A cada nova
incursão com um grupo de grafiteiros eu me encontrava constrangido e impelido a
desmentir a piada dela; na minha cabeça, eu pensava comigo mesmo “vixe, e se
algum deles realmente quiser que eu o represente no mercado de arte?!” (um
raciocínio talvez naturalizado para mim, enquanto filho de pai artista plástico) – tive
dificuldades, portanto, de improvisar no fluxo cênico que ela me propôs.
Retrospectivamente, vejo esse episódio como um jeito bem humorado, complexo e
ambíguo dela me incluir na atividade e, simultaneamente, escancarar nossas
distâncias sociais. Como disse um amigo – jovem, ruivo e pálido – da outra grafiteira
que eu havia entrevistado, quando me viu: “Nossa! Um outro branco!”.
Apresentar-me como seu “empresário” atribuía, de certa forma, significado à minha
presença ali: o que estaria fazendo um homem branco vindo claramente de fora da
periferia naquela tarde ensolarada na Cidade Tiradentes? “Só poderia ser” um
empresário... Foi, portanto, um modo de fixar criticamente a situação social ocupada
majoritariamente por homens brancos: detentores dos meios de produção. Também
era um modo criativo de se valorizar frente aos grafiteiros convidados à atividade
(organizada por um coletivo integrado somente por mulheres, mas a enorme maioria
dos artistas que atenderam a convocação para grafitar eram homens): ela, além de
mulher, também bem mais jovem do que muitos deles (na época ela tinha somente
19 anos), não só estava organizando o bem-sucedido evento como já era agenciada
por um empresário! Em um só lance, improvisado e inteligente, a grafiteira marcou
comigo tanto proximidades como distanciamentos; em eventos posteriores que nós
nos encontramos, ela prosseguiu com a piada e continuou me chamando, de certo
modo de uma forma carinhosa, de “Ô, empresário!”.

Já em outro caso, de um grupo que compõe sambas de coco feministas,


marcamos a entrevista para o mesmo dia de sua apresentação na Virada Feminista,
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organizada pela SOF (Sempreviva Organização Feminista). Cheguei mais cedo para
ver a performance do coletivo e me postei num andar superior com relação ao palco
que havia sido montado. Uma das integrantes com quem eu estava falando
virtualmente me reconheceu e trocamos gestos confirmando que a entrevista se
daria assim que acabasse o show. Passei toda a apresentação nesta parte de cima.
A maioria dos espectadores permaneceu sentada nas escadas que separavam o
andar onde eu estava e o palco. E um número bem inferior, do que entendi,
composto de pessoas que já conheciam o trabalho das sambistas de coco (junto
com amigos e fãs) e algumas poucas feministas da SOF, dançavam animadamente
as músicas de luta das jovens. Depois do show, fomos fazer a entrevista num andar
inferior, enquanto ocorriam outros shows da Virada Feminista. Em determinado
momento, uma das entrevistadas reclamou do público: mesmo com várias
convocações para as pessoas participarem dançando na frente do tablado onde elas
estavam enfileiradas, com seus microfones e instrumentos, a adesão foi mínima (e,
portanto, decepcionante para elas). Eu recebi essa observação crítica à atitude
contemplativa de um “público intelectualizado” como um recado que também me
abarcava; afinal de contas, permaneci parado lá em cima, no máximo me
empolgando com algumas palmas acompanhando o ritmo, mas nada mais do que
isto; minha timidez e vergonha de dançar publicamente me impediram de observar o
evento de forma efetivamente participante.

Outra ocasião similar ocorreu numa oficina de turbantes, realizada por um


coletivo de fora da Zona Leste, como parte da Mostra da Mulher Afro, Latino-
Americana e Caribenha, no CFCCT (Centro de Formação Cultural de Cidade
Tiradentes). Mais uma vez, me encontrei paralisado e envergonhado de participar
ativamente da oficina. Eventualmente, o único outro homem na oficina passou a se
engajar na prática proposta. E, pouco depois, a militante que estava protagonizando
a atividade me chamou dizendo que “isto também pode ser muito importante na
sua pesquisa, viu?”. Entendi sua fala como mais uma crítica a um intelectualismo
contemplativo. Por sorte, uma funcionária do CFCCT com quem eu já tinha
conversado longamente em outra atividade organizada por um coletivo feminista
periférico na Cidade Tiradentes, foi me incluindo didática e pacientemente.

Estas duas atividades se deram, respectivamente, no começo e no final


de julho de 2015. Quero crer que, com o passar do tempo, minha disposição
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contemplativa foi diminuindo. Em oficina de dança organizada em novembro deste


mesmo ano por um coletivo que eu entrevistei alguns meses antes, não tive dúvidas:
participei colocando meu corpo em movimento desde o primeiro instante. Interagi
pouco com as adolescentes que aderiram prontamente à convocação da oficineira
dançarina (estavam “de bobeira” pelo CFCCT naquela tarde; os adolescentes
homens que estavam com elas se recusaram a participar, ficaram contemplando),
mas fiz dupla várias vezes com a mãe da militante que eu havia entrevistado no
semestre anterior.

Busquei, portanto, combater minhas pré-disposições contemplativas e


também me vi ou cobrado ou convidado a ter uma participação mais ativa; minhas
interlocutoras mais uma vez se mostraram mais lúcidas do que eu em campo: a
participação altera a qualidade e a densidade da observação.

Até agora tratei de observações semi-participantes que se relacionam


mais com a questão racial – mais especificamente os desafios epistemológicos das
corporalidades afro-brasileiras (presentes no samba de coco, na oficina de turbante
e, claro, na dança afro) ao que poderia ser chamado de intelectualismo ocidental e
branco – do que com a questão de gênero. E com relação ao fato de ser um homem:
quando e sob quais condições pode um homem participar e observar atividades
organizadas por mulheres feministas? Em mais de uma circunstância me indaguei:
posso ir neste evento? Sento ou não na roda que só tem mulheres? Seria invasivo
ou inapropriado escrever agora no meu caderno de campo? Inúmeras vezes eu era
o único homem em uma atividade pública e aberta tanto a mulheres quanto a
homens. Felizmente, minha presença não impediu que as mulheres partilhassem
histórias pesadas e sofridas relativas a violência obstétrica, sexo vazio no contexto
da solidão da mulher negra, companheiro agressor e até um relato de estupro.
Interrompi minha escrita no caderno em todos estes momentos e, se eu
eventualmente me refiro a estas situações no decorrer desta tese, sempre preservei
o anonimato de quem narrou estes acontecimentos.

Uma ocasião relevante para mim foi um encontro feminista promovido por
um movimento cultural da Zona Leste (um coletivo misto, mas quem efetivamente
organizou e tocou a atividade foram somente mulheres). Estavam programadas
duas rodas de conversa. Era uma tarde ensolarada em uma praça aberta, seria
difícil acompanhar o debate de muito longe, então, de imediato, não tive dúvida e
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sentei no círculo junto com todas as outras participantes. Lá pelo meio da discussão
percebi que eu era o único homem ali sentado. Na segunda atividade com este
mesmo formato, resolvi mudar de estratégia: tentaria acompanhar o debate sentado
num banquinho da praça, do lado de fora da conversa; estava simultaneamente
preocupado em estar ocupando um espaço que talvez eu não devesse estar
partilhando e também poderia ser a oportunidade de observar as dinâmicas e
interações de um outro ponto de vista. Contudo, uma das debatedoras convidadas
para a primeira roda me convocou enfaticamente para eu sentar no círculo interno,
exigência que cumpri prontamente.

Durante todo o encontro havia um pequeno número de homens


circulando; porém, via de regra, eles sempre estavam a margem, de pé, em
pequenos círculos, distantes da atividade principal, bebendo cerveja e interagindo
somente entre si e, eventualmente, com algumas poucas mulheres. Mas não vi
nenhum outro homem que estivesse disposto a sentar nas rodas de conversa e
efetivamente ouvisse o que estava sendo debatido. Acredito que a debatedora que
me convocou deve ter visto que eu era o único homem que participou da primeira
discussão (mesmo que somente da condição de ouvinte) e, provavelmente, deve ter
estranhado o distanciamento que eu adotei. Com este relato quero me referir à
necessidade dos homens se disporem a participar de atividades feministas (quando
abertas a nós) na condição de escuta, de abertura às narrativas das mulheres, algo
que foi raro de encontrar nas atividades que etnografei, agravado pelo fato de que
em várias ocasiões a presença dos homens, quando existe, se efetiva por meio de
falas, via de regra, demasiadamente longas; parece-me uma necessidade de
restaurar o protagonismo masculino em atividades auto-organizadas por mulheres.

Evidente que, em determinadas circunstâncias, a minha observação não


era permitida nem mesmo sob a condição de semi-participante ou não-participante.
Em uma entrevista, fui convidado pela militante para observar a oficina que seu
coletivo realizaria em uma casa conveniada; mas quando fui confirmar a permissão
de minha participação, percebi que não cabia a minha presença. Outro exemplo que
posso dar está nas redes sociais digitais: diversos grupos e comunidades feministas
no Facebook não são abertos para homens. Ou então: comunidades do mulherismo
africana, que são, em geral, fechadas para pessoas brancas. Estes limites precisam
ser reconhecidos e incorporados na análise dos dados que foram possíveis de
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serem coletados por quem eu sou e por onde eu me situo socialmente. Certamente,
sob certos aspectos, outras pessoas, em outras situações sociais, conseguiriam
produzir dados e análises muito mais densos do que eu fui capaz.

Por outro lado, gostaria de chamar a atenção para a produtividade do que


poderia ser chamado de o lado reverso das interseccionalidades envolvidas em meu
trabalho de campo. Em mais de uma ocasião, mulheres que eu entrevistei
compartilharam visões anti-feministas: um coletivo de mulheres atuantes no
movimento Hip Hop e uma associação de mulheres que mantém vários convênios
com a assistência social municipal (nenhum deles, contudo, relacionado à violência
contra a mulher e sim voltados para a infância, a terceira idade, etc.). Estas
entrevistas acabaram não entrando no recorte que eu elegi para analisar os dados
coletados, mas caso eu optasse por tratá-los eles seriam acessíveis a mim,
pesquisador homem, mas dificilmente teriam sido produzidos a partir da interação
das mesmas interlocutoras com uma pesquisadora mulher que se identificasse
abertamente como feminista.

Mais relevante ainda é o seguinte caso. Retomo a entrevista com o grupo


de dança afro-brasileira. A militante mais velha com quem eu tinha entrado em
contato – a mesma que revelou estar surpresa por eu não ser “um antropólogo,
negão, alto” – convidou para participar da entrevista uma integrante mais nova, que
era dançarina do grupo na década de 1990. A iniciativa foi muito interessante para a
entrevista pois complexificou a produção dos dados, trazendo perspectivas
geracionais diferentes e permitiu um reencontro entre as duas e um balanço
reflexivo coletivo da dupla. Na mesma pausa da entrevista com o telefonema da
amiga da entrevistada mais velha, fiquei conversando com a mais nova. Quando ela
recebeu o convite para participar da entrevista, não sabia nem mesmo que eu era
um homem – partiu do pressuposto, então, de que eu seria uma mulher e, mais
especificamente, uma mulher negra. Ou, então, várias mulheres negras. A
perspectiva de ser entrevistada por “pesquisadoras, mulheres, negras,
poderosas, com turbantes, muito cabeça” estava lhe deixando muito nervosa no
dia anterior ao nosso primeiro encontro. Ela imaginou que estas entrevistadoras
negras iriam “nos colocar contra a parede” com suas perguntas. E, por fim, ela fez
um suspiro de alívio, reencenando como teria sido sua reação ao me ver sentado na
casa de sua ex-professora de dança, um homem branco que não faria tudo aquilo
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que ela tinha fantasiado: entendo, nas entrelinhas, que ela esperava ser
bombardeada por questões difíceis e politizadas e até cobranças com relação à sua
falta de engajamento político no atual momento de sua vida.

Para mim, isto revela que toda posicionalidade (com suas diversas
intersecções, de raça, gênero, classe, sexualidade e geração) traz limites, mas
também potencialidades; e as posicionalidades do e da investigadora em interação
com as posicionalidades dos sujeitos que são seus e suas interlocutoras também
trazem, igualmente, vantagens e desvantagens. Com isto, quero defender que, se
existem muitos limites, também existe uma produtividade específica de um homem
branco de classe média estudando movimentos de mulheres periféricas. Como
teorizou a feminista Donna Haraway (1988), todo conhecimento é local e situado; o
que busquei fazer nesta Introdução, mais narrativa e biográfica do que propriamente
teórica, é explicitar o caráter situado do que fui capaz de produzir, em interação com
as mulheres que aceitaram colaborar com este trabalho. 1

No decorrer da pesquisa de campo, fui me deparando com desafios e


questões que não estavam presentes em meu planejamento original do doutorado. A
inclusão das relações raciais na investigação é o exemplo mais paradigmático: meu
recorte inicial considerava apenas a intersecção entre classe e gênero, e a categoria
que eu trabalhava nos projetos para o processo seletivo da Faculdade de Educação
da Unicamp e, mais tarde, da Fapesp, era a de “mulheres trabalhadoras”. Talvez
apenas um pesquisador branco pudesse não conceber, de saída, a necessidade de
trazer a questão racial para o centro da pesquisa. Ao menos, busquei estar aberto
ao que o trabalho de campo me indicou e tentei absorver os temas sensíveis às
minhas interlocutoras como meus próprios temas de pesquisa. Espero ter corrigido,
em parte, no meio do caminho, esta espécie de cegueira.

Além desta reflexão na Introdução, os leitores perceberão que não


apenas eu escrevi a tese inteira na primeira pessoa do singular (repetir o “nós”
pregado na academia me pareceu um convite para a reprodução e naturalização do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Pouco depois da banca de defesa da minha tese, foi lançado o livro O que é lugar de fala, de
Djamila Ribeiro (2017). A filósofa busca interpretar e aprofundar o conceito de lugar de fala por meio
da sua aproximação com a feminist standpoint theory (“teoria do ponto de vista feminista”, elaborada
por autoras como Dorothy Smith, Nancy Hartsock, Sandra Harding, Donna Haraway e uma das
principais interlocutoras de Ribeiro: Patricia Hill Collins). Uma das teses apresentadas pela autora é
que “todo mundo tem lugar de fala” (RIBEIRO, 2017, p. 81-90); esta Introdução visa justamente
explicitar a minha própria localização social.
! 37

homem branco como o sujeito universal do conhecimento, enquanto que o “eu” me


remarca enquanto tal, evitando falsificações ideológicas) como também todas as
falas de minhas interlocutoras estão sempre destacadas em negrito.

Minha esperança é que esta tese seja, em breve, ultrapassada. Com a


mínima democratização do ensino superior que vimos nos últimos anos, a tendência
seria a entrada, cada vez maior, de mulheres periféricas em programas de pós-
graduação. Acredito que a minha contribuição é modesta; não atingi o que eu
esperava (ou considero necessário): uma investigação teórico-crítica que articulasse
uma compreensão empírica simultânea de dominações e resistências. O que as
leitoras e os leitores encontrarão aqui é, ao menos, um registro histórico (dentre
vários possíveis) da memória de lutas sociais travadas no território da Zona Leste,
começando na década de 1980 até, principalmente, o ano de 2015, que concentrou
meu trabalho de campo sob a forma de entrevistas e observações
(semi)participantes. Certamente, se os retrocessos vistos nos últimos meses não
impedirem o acesso mais democrático à pós-graduação, novas dissertações e teses
serão capazes de retificar meus erros ou omissões, adensar a compreensão destes
fenômenos e superar várias das condições e limitações que minha situação social
impôs a esta pesquisa.!

* * *!

O objeto desta tese é uma comparação restrita entre dois momentos


históricos do associativismo de mulheres na Zona Leste de São Paulo. Os dois
momentos serão apresentados como dois ciclos políticos: o “Feminismo Popular” e o
“Feminismo Periférico”, sendo a identificação desta diversidade histórica e
geracional um dos principais resultados de minha pesquisa de campo. Digo que se
trata de uma comparação restrita por dois motivos: em primeiro lugar, o recorte
conceitual desta comparação é, primariamente, a categoria de matrizes discursivas
(desenvolvida por Eder Sader), interpretada por mim como esferas públicas; e, em
segundo lugar, o peso do segundo ciclo na totalidade da tese é maior do que o do
primeiro ciclo (para este, utilizei uma única técnica de pesquisa, as entrevistas; para
aquele, agreguei, para além das entrevistas, metodologias complementares, como:
! 38

as observações, a análise de rede e a análise de conteúdo de uma campanha virtual


– estas duas últimas focadas na rede social Facebook), pois fui encaminhando o
desenvolvimento da tese cada vez mais para uma preocupação com o tempo
presente.

As características específicas do ciclo mais recente serão evidenciadas


por meio do contraste com o ciclo anterior. Neste sentido, não apresentarei aqui um
tratamento exaustivo do primeiro ciclo político – seria necessário um esforço
analítico de maior fôlego para tal interpretação histórica –, mas sim apenas um
esboço daqueles traços que considero heurísticos, pois indispensáveis para
estabelecer uma comparação entre as duas gerações de militantes dos direitos das
mulheres nas periferias da Zona Leste.

Confesso que o objeto da pesquisa foi se alterando consideravelmente


desde que ela começou a ser pensada, no final de 2012, passando pela entrada no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp (em 2014) e, por fim, até
que a pesquisa de campo efetivamente fosse iniciada (em 2015).2

O foco deixou, por exemplo, de ser a religiosidade (como eu planejava


originalmente), e a questão racial passou a ser central pois o próprio campo assim o
exigiu: foram minhas jovens interlocutoras, do “Feminismo Periférico”, que
explicitaram a relevância atribuída às especificidades da situação social de mulheres
periféricas negras em seus discursos e suas práticas, me levando a também
incorporar este tema na construção da problemática de minha investigação. O tema
das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), como as redes
sociais digitais, também não estava no meu horizonte inicial.

Uma contribuição primordial para o amadurecimento não apenas do


recorte do objeto mas também em termos dos referenciais teóricos foi a orientação
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
O título do projeto que apresentei no processo seletivo da Faculdade de Educação da Unicamp era
“Representações sociais das mulheres das classes populares: lógica do desenvolvimento cognitivo e
processos não-formais de aprendizagem”. Já o nome do projeto que submeti à Fapesp para pedir
uma bolsa de pesquisa era “Gênero, classe e religião na periferia de São Paulo: educação não-formal
de mulheres trabalhadoras enquanto aprendizagem política”. Por fim, o título final desta tese é
“Movimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São Paulo: ciclos políticos, redes discursivas
e contrapúblicos”. Ressalto aqui as mudanças na nomeação das sujeitas: “mulheres das classes
populares”, “mulheres trabalhadoras” e “mulheres periféricas”. E, para não me alongar, explicito que o
título da tese tanto busca uma fusão de duas categorias muito caras aos dois ciclos políticos
(“movimento de mulheres” no caso do “Feminismo Popular” e “mulheres periféricas” no caso do
“Feminismo Periférico”) quanto faz uma alusão ao título da dissertação de Correa (2015): Mulheres
da periferia em movimento.
! 39

da profa. dra. Maria da Glória Gohn. Fui beneficiado pelo seu acúmulo de décadas
de pesquisa empírica e teórica sobre ações coletivas, o que permitiu minha
passagem de uma perspectiva que se aproximava, de início, mais da psicologia
social, para um enfoque propriamente sociológico acerca dos movimentos sociais
(primeiro me apresentando a autores estadunidenses, como Snow, Benford, Tarrow
e McAdam, depois reforçando minha opção pelo diálogo privilegiado com a obra de
Sader).

A ênfase com o presente também é fruto de uma gradual mudança de um


diagnóstico crítico do tempo presente (no sentido dado pela Teoria Crítica; cf.
NOBRE, 2004). Com o passar dos anos procurei avançar uma compreensão do
“Feminismo Periférico” como mais uma evidência empírica da efervescência da
sociedade civil brasileira em meados da década de 2010 (MEDEIROS, 2016).

Procurei deliberadamente não escrever um “capítulo teórico”, apartado da


análise do material empírico. Por este motivo, os conceitos centrais para minha
interpretação dos ciclos políticos vão sendo apresentados, aprofundados, revistos e
atualizados conforme assim exigem o campo e a empiria, recortados em cada
capítulo.

No primeiro capítulo, “Ciclos políticos no associativismo de mulheres da


Zona Leste de São Paulo”, introduzo a categoria de ciclos de ação coletiva,
originalmente desenvolvida no seio da teoria do processo político (Sidney Tarrow, de
início, mas, para meus propósitos, o diálogo mais forte será com o trabalho de
Douglas McAdam). Em seguida, apresento de forma descritiva as principais
características dos dois ciclos políticos que eu identifiquei: as associações de
mulheres do “Feminismo Popular” (e, posteriormente, os Centros de Defesa e
Convivência da Mulher – CDCMs) e os coletivos do “Feminismo Periférico”. Por fim,
tento articular estes dois ciclos, até agora aparentemente desconexos, por meio da
noção de campo discursivo de ação, com a qual Sonia Alvarez tem buscado
diagnosticar a história recente dos feminismos latino-americanos.

Já no segundo capítulo, “Esferas públicas como matrizes discursivas”,


meu ponto de partida é o livro clássico de Eder Sader. Apresento seu conceito de
matrizes discursivas não de forma abstrata e sim já por meio de sua própria
operacionalização empírica. Para mim, a interpretação correta desta categoria, tão
mencionada e tão pouco compreendida, é a identificação de determinadas esferas
! 40

públicas que operam como mediações simbólicas entre estruturas objetivas


opressoras e ações coletivas contra estas mesmas opressões. A partir do contraste
com as três matrizes discursivas que Sader identifica para os movimentos populares
da década de 1970 – a Teologia da Libertação, o marxismo e o novo sindicalismo –
construo as três matrizes discursivas do “Feminismo Popular”: a Teologia da
Libertação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); o feminismo de uma rede
de Organizações Não-Governamentais (ONGs); e o que uma interlocutora chamou
de “mundo do carnaval” (escolas de samba e blocos afro). Ao final do capítulo,
passo da gênese deste ciclo político para o seu desenvolvimento, rumo à
institucionalização da sua principal prática – o atendimento psicológico e jurídico de
mulheres em situação de violência – sob a forma de uma política pública de
assistência social que se efetivou por meio de convênios, em especial os CDCMs, e
a Rede Leste de Enfrentamento à Violência.

No terceiro capítulo, “A formação de um 'Feminismo Periférico'” construo


as suas duas matrizes discursivas, em oposição ao que eu havia identificado com
relação ao ciclo anterior: eu argumento que as duas esferas públicas responsáveis
atualmente pela reelaboração simbólica da vida cotidiana das mulheres moradoras
da Zona Leste são os movimentos culturais periféricos – em especial o Movimento
Hip Hop e os saraus periféricos – e os feminismos das esferas públicas digitais. Ao
final das sub-seções 3.2.1 e 3.2.2, sou compelido pelas especificidades do material
empírico apresentado, a trazer novos autores que atualizam e retificam conceitos
anteriormente apresentados: a partir da ocupação dos movimentos culturais pelas
mulheres, fez-se necessário contestar a concepção clássica habermasiana de
“esfera pública” e parto, assim, para a apropriação do conceito crítico (e feminista)
de Nancy Fraser, de contrapúblicos (subalternos); já a partir da importância cada vez
maior das redes sociais digitais, a obra de Manuel Castells se revela significativa e
passo, portanto, a falar, em vez de matrizes discursivas, em redes discursivas, frente
ao material empírico que resultou da análise de rede de páginas do Facebook,
fundamentais para a formação e informação em torno dos direitos das mulheres.
Contudo, como o próprio Castells defende, não existe, na realidade social, uma
separação estrita entre as redes online e as redes offline; por isto, absorvo suas
categorias de autocomunicação de massa, movimentos sociais em rede e espaços
públicos híbridos e exploro este hibridismo por meio de uma análise de conteúdo da
! 41

campanha #NãoPoetizeOMachismo, realizada por poetas e artistas feministas


periféricas, também no Facebook, denunciando publicamente casos de machismo
ocorridos em movimentos culturais. As quatro categorias descritivas construídas
pela análise de conteúdo são, por fim, reinterpretadas por meio da crítica feminista
às distinções entre público e privado (Fraser é novamente a referência).

Por último, no quarto capítulo, “Coletivos feministas periféricos”, busco


inicialmente demonstrar empiricamente (por meio de uma análise de conteúdo das
entrevistas com os coletivos das jovens) que a questão racial passa de secundária,
no primeiro ciclo político, para central, no segundo ciclo. Por um lado, há um
diagnóstico amplamente compartilhado (inclusive por mulheres periféricas brancas),
acerca da necessidade do ativismo atentar para as especificidades da situação
social das mulheres negras (a intersecção entre sexismo e racismo). Defendo que o
antirracismo ter se tornado hegemônico neste segundo momento histórico se deve
ao fato das matrizes/redes discursivas do “Feminismo Periférico” se constituírem
como esferas públicas negras (ou contrapúblicos negros), conceitos desenvolvidos
por diferentes autores em dossiê dedicado a esta temática na revista Public Culture.
O material empírico também traz divergências quanto ao prognóstico defendido
pelos coletivos: a maioria se alinha ao feminismo negro, mas ao menos um coletivo
traz uma concepção política alternativa, chamada de mulherismo africana. São duas
formas diversas de elaborar politicamente os significados de “público” e “privado” a
partir da situação social das mulheres negras (sendo Patricia Hill Collins uma autora
chave nesta discussão). Em seguida, passo das entrevistas às observações
participantes (inspirado por Clifford Geertz), a fim de defender que as práticas destes
coletivos feministas periféricos instauram contrapúblicos subalternos que permitem
levar a cabo atividades no campo da educação não formal (no sentido dado por
Maria da Glória Gohn). O grande desafio e dilema destas práticas educativas
alternativas é, contudo, ampliar seu público-alvo para além das mulheres periféricas
que já estão inseridas no circuito cultural do Hip Hop e dos saraus.

A Conclusão da tese buscará, então, delinear o que há de continuidades


e descontinuidades entre os ciclos do “Feminismo Popular” e do “Feminismo
Periférico”. Um motor para explorar estas (des)continuidades é a contraposição
entre duas falas de interlocutoras do primeiro ciclo político.
! 42

A epígrafe escolhida para abrir a tese formula de maneira metafórica (e


até mesmo poética) uma noção de continuidade e transmissão intergeracional que
certamente tem um fundo de verdade; mesmo que se relativize o caráter
“evolucionista” ou “desenvolvimental” da narrativa construída no momento da
entrevista, é possível reconhecer – como fazem todas as militantes que entrevistei,
das mais variadas idades – que a situação social das mulheres (em geral, mas
também especificamente das mulheres periféricas) melhorou. As alterações nos
seus modos de vida, em termos materiais e simbólicos, são por elas explicados
como ganhos e conquistas das lutas sociais dos movimentos feministas, de
mulheres, populares, etc.

Por outro lado, ao mesmo tempo que as conquistas de uma geração são
usufruídas pela próxima, há uma flagrante descontinuidade geracional no ativismo
propriamente dito, o que fica expresso no desabafo de uma militante que presenciei
nas falas de abertura da Plenária Deliberativa de São Miguel e Itaim Paulista,
organizada pela Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, no início de 2015.
Ela se demonstrou muito preocupada, pois via na plateia (mas também em outros
espaços de participação por ela frequentados) uma maioria de pessoas entrando na
terceira idade; e se perguntava, retoricamente, buscando sensibilizar a todas as
mulheres presentes: “para quem vamos passar o bastão?”.

Buscarei na Conclusão, portanto, refletir sobre a complexidade das


relações entre os dois ciclos, considerando três dimensões diferentes: a
descontinuidade na dimensão societal (especialmente considerando a desconexão
entre a gênese do segundo ciclo com relação ao desenvolvimento do primeiro ciclo,
quando levamos em conta as formas de sociabilidade e as esferas públicas que
operam como matrizes discursivas); e as continuidades na dimensão discursiva (a
passagem do feminismo negro das margens no “Feminismo Popular” para o centro
do “Feminismo Periférico”, embora presente em ambos os momentos históricos) e
na dimensão político-institucional (em especial, o “paradoxo transformador”, nos
dizeres de Alvarez, entre o impulso institucionalizador do primeiro ciclo que, ao
estabelecer uma nova política pública de assistência social, permite, de certa forma,
um novo impulso, não-institucionalista e a-partidário, no segundo ciclo). As
continuidades e descontinuidades entre o “Feminismo Popular” e o “Feminismo
Periférico” são, portanto, complexas e heterogêneas.
! 43

1
Ciclos políticos no associativismo de mulheres
da Zona Leste de São Paulo

Quando formulei meu projeto de pesquisa, eu conhecia apenas uma


organização que lutava pelos direitos das mulheres na região por mim escolhida: a
Associação de Mulheres da Zona Leste (mais conhecida como Amzol). Com o início
da pesquisa de campo, cujo primeiro objetivo era o mapeamento do associativismo
de mulheres nas periferias da Zona Leste da cidade de São Paulo – ou seja:
associações, organizações, movimentos e coletivos que lutam pelos direitos das
mulheres nesta região –, rapidamente constatei a complexidade deste fenômeno em
termos históricos, geracionais, organizacionais e discursivos. Encontrei entidades
similares ou com conexões próximas ou distantes da Amzol; deparei-me com
associações de mulheres cujas temáticas e atividades recusavam qualquer
aproximação com o feminismo; passei a conhecer novas modalidades de atuação
vinculadas ao Estado, sob o formato de serviços conveniados; e, principalmente, me
surpreendi com a descoberta de coletivos recém-criados de mulheres jovens.

Em termos de procedimentos metodológicos, realizei 40 entrevistas semi-


estruturadas com mulheres lideranças comunitárias, militantes e ativistas,
totalizando 36 iniciativas 3 da sociedade civil. 4 Para chegar nas associações,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3
As associações e os coletivos de mulheres entrevistados foram, em ordem alfabética:
(1) Abayomi Ateliê;
(2) Agentes Bem Querer Mulher;
(3) Associação Comunitária das Mulheres do Movimento Sem Terra de Ermelino Matarazzo;
(4) Associação Comunitária de Mulheres, Idosos, Deficientes e Promotoras Legais Populares
de Cidade Tiradentes (A.C.M.ID.DEF.PLPs.CI.TI.);
(5) Associação da União das Mulheres (ADUM) Dalva Paixão;
(6) Associação de Familiares e Amigos de Presos/as (Amparar);
(7) Associação de Mulheres da Columbia (A.M.C.);
(8) Associação de Mulheres da Zona Leste (Amzol);
(9) Associação de Mulheres do Jardim Colorado (AMJAC);
(10) Associação Fala Negão / Fala Mulher!;
(11) Casa da Mulher Lilith;
(12) CDCM (Centro de Defesa e Convivência da Mulher) Casa Anastácia;
(13) CDCM Casa Cidinha Kopcak;
! 44

organizações, movimentos e coletivos de mulheres utilizei dos seguintes


procedimentos: busca na internet; levantamento bibliográfico; presença na maioria
das Plenárias Deliberativas organizadas pela Secretaria Municipal de Políticas para
Mulheres (SMPM) na Zona Leste5; presença em uma reunião da Rede Leste de
Enfrentamento à Violência6; e, por fim, a técnica de amostragem snow ball (“bola de
neve”), por meio da qual busca-se exaurir, dentro do possível, o mapeamento dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
(14) CDCM Casa Zizi;
(15) CDCM Maria da Penha;
(16) CDCM MulherAção;
(17) CDCM Naná Serafim;
(18) Coletivo de Mulheres de São Mateus;
(19) Coletivo de Mulheres Negras Fayola Odara;
(20) Coletivo Juntas na Luta;
(21) Coletivo M.A.N.A. (Mulher Atitude Negritude e Arte) Crew;
(22) Coletivo Mulheres de Orí;
(23) Coletivo Mulheres em Ação;
(24) Coletivo Nós, Mulheres da Periferia;
(25) Coletivo Quitéria;
(26) Espaço Lilás do Oriashé;
(27) Grupo Cultural Dandara;
(28) Grupo de Coco Semente Crioula;
(29) Grupo de Estudos por Relações Igualitárias do Instituto Paulista de Juventude (GERI-
IPJ);
(30) Movimento Cultural de Cidade Tiradentes (Mocuti);
(31) Movimento de Mulheres de Itaim Paulista;
(32) Movimento de Mulheres de São Miguel;
(33) Mulheriu Clã;
(34) Núcleo de Atendimento à Vítimas de Violência Doméstica do Hospital Geral de São
Mateus (NAAVID/HGSM) – também conhecidas como “as PLPs (Promotoras Legais Populares) do
Hospital”;
(35) Odisseia das Flores;
(36) Ser Vi Elas.
4
O número de entrevistas não bate com o número de grupos entrevistados pelos seguintes motivos.
Foram entrevistadas separadamente duas integrantes do Coletivo Nós, Mulheres da Periferia (um
coletivo “interperiférico” com integrantes de todas as zonas da cidade; entrevistei separadamente as
duas que são residentes da Zona Leste) e duas integrantes do Ser Vi Elas (uma em 2015 e outra em
2016; a necessidade de realizar nova entrevista decorreu de alterações na dinâmica do coletivo,
depois dele se autonomizar do sarau periférico do qual antes era um Núcleo Feminista). Por fim, de
modo excepcional, ambas as entrevistas com o Grupo Cultural Dandara e com o Movimento Cultural
de Cidade Tiradentes (Mocuti) tiveram de se dar em duas sessões diferentes, cada.
5
Entre fevereiro e março de 2015, a SMPM promoveu 16 Plenárias Deliberativas reunindo as 32
Subprefeituras da cidade de São Paulo, duas a duas, a fim de eleger mulheres delegadas para
compor 5 Fóruns Regionais de Mulheres (Leste, Sul, Oeste, Norte e Centro) e participar de um curso
de formação política a ser ministrado pela ONG Sempreviva Organização Feminista (SOF). Das 6
Plenárias Deliberativas da Zona Leste estive presente em 4 (Guaianases/Cidade Tiradentes, Vila
Prudente/Sapopemba, São Mateus/Itaquera e São Miguel/Itaim Paulista) e não pude ir em apenas 2
(Ermelino Matarazzo/Penha e Mooca/Aricanduva). Foi interessante frequentar estes espaços pois foi
possível realizar contatos com associações e coletivos bem como conhecer pessoalmente algumas
lideranças, militantes e ativistas.
6
Em 9 de abril de 2015, realizada no Centro de Cidadania da Mulher (CCM) Itaquera.
! 45

atores sociais já que as entrevistadas são convidadas a indicar novas mulheres a


serem entrevistadas (cf. LAVALLE; CASTELLO; BICHIR, 2011).

Um primeiro problema que encontrei na descrição e análise do perfil das


associações e coletivos foi a constatação de que nem todas as iniciativas da
sociedade civil mapeadas e entrevistadas tinham como foco de atuação os direitos
das mulheres, o que fugia de minha abordagem inicial, que definia o associativismo
de mulheres como sendo o “conjunto de associações, organizações, movimentos e
coletivos que lutam pelos direitos das mulheres”. Isto criou um impasse na própria
execução da entrevista semi-estruturada pois diversas perguntas pressupunham que
as atividades da entidade estariam voltadas para um público-alvo composto
majoritária ou exclusivamente de mulheres. Descobri, no campo da pesquisa, que
várias das associações que se denominam “Associações de Mulheres” na realidade
tem suas atividades voltadas para os direitos da criança e do adolescente ou os
direitos dos idosos, principalmente por meio de convênios com a Secretaria
Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Em um outro caso,
um auto-denominado “Movimento de Mulheres” se orientava para a luta dos direitos
sociais de um modo amplo, incluindo a luta por moradia, por creche, por postos de
saúde e outras melhorias urbanas, numa abordagem típica de movimentos
populares urbanos – os quais são, na maioria dos casos, compostos principalmente
por mulheres (GOHN, 1985; SADER, 1988) – mas sem desenvolver uma luta
específica pelos direitos das mulheres.

A solução encontrada foi privilegiar os grupos cuja área temática de


atuação fosse majoritária ou exclusivamente o campo dos direitos das mulheres,
bem como a exclusão de grupos mistos (ou seja, também compostos por homens).
Passei, então, de uma formulação ainda genérica “associativismo de mulheres” para
uma mais particular: associativismo de mulheres (voltado) para mulheres. Deste
modo, reduzi o número de grupos entrevistados a serem considerados na minha
análise. Proponho uma classificação do associativismo de mulheres, compreendido
nesta chave particularizante, em dois agrupamentos: (1) o “Feminismo Popular”
(com a Rede Leste de Enfrentamento à Violência 7 como resultado de seu
desenvolvimento e institucionalização); e (2) o “Feminismo Periférico” (composto por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
Explicarei mais a frente seus objetivos e sua composição.
! 46

uma constelação de coletivos que atuam de forma autônoma).8 Este foi um dos
principais resultados que alcancei em meu trabalho de campo: a identificação de
dois momentos históricos diversos, que proponho conceitualizar como constituindo
dois ciclos políticos.

Conforme aponta Gohn (2012, p. 92-98), quem avança na


conceitualização dos ciclos de protesto politico – depois renomeados de ciclos de
contestação ou de confronto [contention] – é Sidney Tarrow (1993; 1998). Este autor
inicialmente investiga empiricamente o ciclo de protesto italiano entre 1965 e 1974 e
depois conceitualiza de modo mais abstrato os ciclos de ação coletiva como ondas
de protesto com algumas características determinadas: (i) ocorrência intensa de
conflitos por todo o sistema social; (ii) difusão geográfica (do centro para a periferia)
e setorial (dos grupos com maiores tendências insurgentes para os com menores
tendências); (iii) conforme os ciclos de protesto não estão sob o controle de uma
única organização de movimento social, eles contêm eventos imprevisíveis e não
acabam apenas porque um grupo particular tenha sua demanda satisfeita; (iv)
produção de novos símbolos, enquadramentos [frames] de significado e ideologias,
que surgem a partir de grupos insurgentes e se espalham para além destes; (v)
desenvolvimento de novos repertórios de contestação, ou seja, novas formas de
ação coletiva (TARROW, 1993, p. 284-286). A definição operacional de ciclo de
protesto é “uma onda crescente e depois decrescente de ações coletivas
interrelacionadas, e reações a elas, cuja frequência agregada, intensidade e formas
crescem e depois declinam em brusca proximidade cronológica” (TARROW, 1993, p.
287). Posteriormente, Tarrow também acrescenta que o que é distintivo dos ciclos
de contestação é:

[...] o efeito demonstração da ação coletiva por parte de um grupo de


madrugadores [early risers] que desencadeia uma variedade de
processos de difusão, extensão, imitação e reação entre grupos que
são normalmente mais silenciosos e tem menos recursos para se
engajar na ação coletiva. (TARROW, 1998, p. 145)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Ao longo da análise do material empírico buscarei demonstrar que estas duas denominações
adotadas tem algum ancoramento na auto-compreensão das mulheres entrevistadas, além de
proporcionar uma organização produtiva do material empírico coligido em termos históricos.
! 47

Apesar dos principais teóricos do confronto político já terem realizado


críticas ao que eles chamam de “modelo do ciclo de protesto”, dele se afastando
(MCADAM; TARROW; TILLY, 2001, p. 65-67), isto não impediu que a literatura
brasileira de movimentos sociais recorresse nos últimos anos ao conceito para
analisar diferentes fenômenos de forma produtiva, tais como: as mobilizações
sociais e políticas em torno da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 como
um ciclo de confronto (BRANDÃO, 2011); as ocupações de diferentes reitorias por
movimentos estudantis universitários entre 2007-08 como um ciclo de protestos
(BRINGEL, 2012); e as manifestações de Junho de 2013 como um ciclo de protestos
(SILVA, 2014; ALONSO; MISCHE, 2017; GOHN, 2017). Estas mobilizações de 2013
inclusive já foram comparadas com outros ciclos de protesto anteriores, como o das
Diretas Já de 1984 e o Fora Collor de 1992 (TATAGIBA, 2014) e também analisadas
como conectadas a dois outros ciclos de protesto posteriores em 2015-16, a favor e
contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff (ALONSO, 2017).

O uso que farei do conceito tem, por sua vez, suas restrições. É claro que
é possível hipotetizar que tanto o “Feminismo Popular” participa de alguma forma do
ciclo de contestação da redemocratização brasileira da década de 1980 quanto o
“Feminismo Periférico” está de alguma maneira conectado ao ciclo da década de
2010 cujo ápice é Junho de 2013. Contudo, os limites de minha investigação são
inerentes a uma abordagem microssociológica: sendo o conceito de “ciclo de
protestos” ou “ciclo de confronto” eminentemente macro, não tenho à minha
disposição os meios para comprovar empiricamente tais hipóteses nem demonstrar
de modo fundamentado todas as conexões e mediações entre o micro e o macro.
Espero que a tese seja uma contribuição ao debate sobre os movimentos sociais no
Brasil e o associativismo de mulheres na Zona Leste de São Paulo e que tais
conexões e mediações possam ser estudadas em contextos de colaboração coletiva
e de médio e longo prazos, uma vez que, no contexto do trabalho individual desta
tese de doutorado, não me foi possível superar tais limites.

Mais do que da definição canônica de Tarrow (1993; 1998) acima referida,


vou me valer de modo pontual da conceitualização de McAdam (1995) acerca dos
“movimentos iniciadores” e os “movimentos derivados [spin-off]”. McAdam critica
análises que elegem um único movimento social como unidade de análise, tratando-
o como uma entidade discreta por meio de um estudo de caso; sua proposta é, ao
! 48

contrário, buscar explicar “famílias de movimentos ideologicamente coerentes” uma


vez que os movimentos estariam “incrustrados [embedded]” nestas famílias ou então
ciclos. Em uma revisão de sua própria versão da teoria do processo político, que
priorizava as mudanças nas estruturas de oportunidades políticas para explicar a
emergência da ação coletiva, McAdam passa a diferenciar os “movimentos
iniciadores” dos “movimentos derivados”. Se, para os primeiros, a explicação causal
permanece política, para os segundos e para os ciclos de protestos de caráter
reformista (ou seja, não revolucionários) ela se deve mais a processos culturais do
que políticos, pois o impulso fundamental para a mobilização no caso dos
movimentos derivados é essencialmente cognitivo e cultural: o nível da “consciência
insurgente” presente em uma dada população.

A expansão das oportunidades políticas facilita a ação coletiva ao


aumentar a “influência [leverage]” de um primeiro grupo desafiador mas o seu
empoderamento pode desencadear um ciclo de protestos ao encorajar uma
mobilização mimética por outros grupos. Movimentos iniciadores encorajam a
ascensão de grupos “posteriores [latecomers]” pondo em movimento processos
complexos de difusão. McAdam (1995) aponta a interdependência dos movimentos
que se agrupam em uma mesma família: movimentos derivados dependeriam do
contexto organizacional e os recursos materiais e ideacionais de movimentos
anteriores.

Como exemplos históricos, o autor aponta dois casos nos quais os


movimentos madrugadores forneceram o contexto organizacional no interior do qual
se desenvolveram os movimentos posteriores: (a) os grupos abolicionistas nos EUA
na década de 1840 e, posteriormente, o movimento dos direitos das mulheres; e (b)
as redes associativas do movimento de direitos civis do Sul em específico e a Nova
Esquerda em geral também nos EUA na década de 1960 e, posteriormente, o
movimento de libertação das mulheres. Estes são bons exemplos para meus
próprios objetivos pois, em seguida, McAdam (1995) critica interpretações que
absolutizam as continuidades entre o movimento feminista do século XIX e o do
século XX; no seu entender, esse tipo de abordagem não dá conta de explicar a
emergência da onda de mobilização feminista na década de 1960 pois ele a
interpreta como um movimento derivado e pertencente ao ciclo de protestos mais
amplo que foi iniciado pelo movimento dos direitos civis. As feministas foram apenas
! 49

um dos grupos que partiu do enquadramento da opressão da população negra e o


adaptou criativamente à sua própria situação social, assim como movimentos LGBT,
de direitos indígenas, etc. Muito embora, o autor não ignore que a ênfase na
continuidade entre os dois feminismos não apenas fornece uma rica história de lutas
para o feminismo contemporâneo, como também reduz, em última instância, a sua
dependência cultural do movimento de direitos civis e outros movimentos
madrugadores do ciclo de protestos da década de 1960.

Aqui não se trata de debater esta tese em si mesma, aceitando-a ou


rejeitando-a, mas sim de se apropriar dos conceitos de “ciclo”, “movimento iniciador”
e “movimento derivado” como úteis para interpretar o desenvolvimento histórico do
associativismo de mulheres na Zona Leste de São Paulo. Por um lado, organizar
historicamente as associações e coletivos identificados em minha pesquisa de
campo a partir de dois “ciclos políticos” – evitando, assim, o caráter
macrossociológico do conceito de “ciclo de protestos” – marca desde o início uma
das minhas hipóteses, de descontinuidade societal entre os dois fenômenos sociais
e políticos, a ser demonstrada empiricamente nos próximos capítulos. Por outro,
insere simultaneamente o “Feminismo Popular” e o “Feminismo Periférico” em
diferentes “famílias de movimentos ideologicamente coerentes”: o primeiro como
derivado dos movimentos sociais populares urbanos das décadas de 1970-80 e o
segundo como derivado dos movimentos culturais periféricos das décadas de 1990
e 2000.

A dependência cultural dos movimentos derivados em relação aos


movimentos madrugadores não é, contudo, mecânica ou automática: aqueles têm
um papel de “adaptadores e intérpretes criativos das ‘lições’ culturais” destes
(MCADAM, 1995, p. 229).9 Os movimentos derivados em geral se desenvolvem no
interior das organizações ou redes associativas de um movimento anterior, também
se apropriando e adaptando elementos do seu enquadramento [frame] de ação
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
9
A dinâmica deste processo de empréstimos teria três dimensões: (i) a difusão de elementos
ideacionais e materiais refletem um aprendizado mediado por estruturas de rede da vida social
cotidiana; (ii) a pré-condição desta difusão são redes fortes e estabelecidas de comunicação da
população em questão; e (iii) para além desta proximidade dos laços da rede, há processos
sociopsicológicos que desencadeiam a adoção pelos movimentos derivados de inovações associadas
com os movimentos madrugadores, sendo o processo de difusão uma construção social na qual os
primeiros definem a si mesmos e a sua situação como essencialmente similar a dos segundos, o que
McAdam (1995) chama de atribuição de similaridade.
! 50

coletiva. Da mesma forma como o “Feminismo Popular” se desenvolveu no interior


das redes associativas de movimentos populares como os de moradia, saúde e luta
por creche, ele também se apropriou e adaptou do enquadramento “povo”/“popular”;
e o “Feminismo Periférico” se desenvolveu a partir das redes associativas do
movimento Hip Hop e dos saraus periféricos e também adaptou e interpretou
criativamente o enquadramento “periferia”/“periférico”.

A seguir, descreverei brevemente os dois ciclos políticos do


associativismo de mulheres da Zona Leste de São Paulo (seções 1.1 e 1.2) e
apresentarei um primeiro esboço de sua articulação por meio da noção de que eles
compõem dois momentos históricos de um mesmo campo discursivo feminista
(seção 1.3), para então, nos próximos capítulos (2 a 4) avançar análises e
interpretações, com base no material empírico coletado e em novos recursos
teórico-conceituais.

1.1 “Feminismo Popular”

No ano de 1983, são iniciadas duas pesquisas que culminarão na


fundação de duas entidades, as quais serão, por sua vez, protagonistas da história
de lutas pelos direitos das mulheres na Zona Leste da cidade de São Paulo. Uma
delas, “autóctone”, foi uma iniciativa de Flávia Pereira, hoje educadora social
aposentada, ex-costureira e ex-vereadora, nascida em Caracol (Piauí); ela realizou
uma enquete com 50 mulheres sobre a temática do autoritarismo, não apenas
político, mas também social, nas relações entre homens e mulheres. A outra,
iniciada a partir de fora, pela ONG Rede Mulher de Educação (RME), mas sob o
formato de uma “pesquisa-ação participante”, começou a mapear todos os Clubes
de Mães e Grupos de Mulheres da Zona Leste (principalmente Itaim Paulista,
Ermelino Matarazzo, São Miguel Paulista, Guaianazes e Itaquera), engajando as
mulheres participantes enquanto investigadoras.

Com os resultados em mãos, Flávia chamou uma reunião para o dia 8 de


março de 1983; padre Patrício a apoia, abrindo o salão da igreja da Vila Alpina, mas
se recusando a assumir o protagonismo e deixando-lhe a responsabilidade em
planejar a dinâmica do encontro. Flávia se surpreende ao chegar na paróquia, pois
encontra “105 mulheres e um homem”; ela realiza uma “dinâmica com fotos” e a
! 51

partir dali um Grupo de Mulheres (12, mais especificamente) passa a realizar


atividades mensais, nos sábados pela tarde.

Já a pesquisa da RME teve vários produtos, dentre os quais um


documento mimeografado que identificou 94 organizações formadas por mulheres,
traçando o seu perfil; um vídeo/slide chamado “E agora, Maria?” que retrata a
experiência de um grupo de teatro com o mesmo nome; e a dissertação de mestrado
de Moema Viezzer10, que depois seria publicada em forma de livro (VIEZZER, 1989).

Um produto indireto da pesquisa-ação participante da RME foi a fundação


da Associação de Mulheres da Zona Leste (a Amzol), em 24 de maio de 1987 na
igreja do bairro Silva Telles, no distrito do Itaim Paulista, reunindo 150 mulheres, a
maioria donas de casa. Da mesma forma como foi fundada em 10 de outubro de
1989, a Casa da Mulher Lilith, com o intuito de criar uma entidade autônoma da
Igreja Católica, com recursos e agenda próprios. Amzol e Lilith foram as primeiras
organizações surgidas na Zona Leste que atenderam mulheres em situação de
violência.

Entre o final da década de 1980 e o início da de 90, surgem outras


iniciativas da sociedade civil que se ocuparam da temática dos direitos das mulheres
na Zona Leste:

- em 26 de setembro de 1988 é fundado no centro da cidade o Bloco Afro


Oriashé, o qual 15 anos depois criaria um espaço de acolhimento e formação de
mulheres no extremo leste de São Paulo;

- em 1989 é realizado o primeiro 8 de março do Coletivo de Mulheres de


São Mateus;

- o Grupo Cultural Dandara realiza sua primeira apresentação de dança


afro em agosto de 1990;11

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
Socióloga e educadora popular, internacionalmente conhecida por ter coletado o depoimento-
testemunho da mineira boliviana Domitila Barrios de Chungara (cf. VIEZZER, 1987).
11
Já em 21 de março de 1992, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, é
fundada a Associação Fala Negão / Fala Mulher!, a qual foi entrevistada, mas não incluída na lista
acima por ser uma associação mista (que reúne homens e mulheres).
! 52

- e, por fim, em 1993, nasce o Movimento de Mulheres de São Miguel,


enquanto uma comissão temática de saúde da mulher no interior do Movimento de
Saúde da Zona Leste (MSZL).

Segundo algumas das entrevistadas, a década de 1990 teria


representado uma “época de ouro” para estas organizações; segundo a fundadora
da Casa da Mulher Lilith, seu auge teria sido entre 1989 (a fundação) e 1996-97
(quando teriam começado dificuldades financeiras); já no caso da Amzol, o período
durante o qual foi desenvolvido o repertório pelo qual ela ficou conhecida, o Centro
Jurídico Maria Miguel, durou entre 1996 e 2004, quando acaba um convênio com a
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, o que também leva a dificuldades
financeiras. Para além da década de 1990, o Governo de Marta Suplicy (então no
PT) na Prefeitura de São Paulo foi importante para outras organizações: o Coletivo
de Mulheres de São Mateus se torna a Casa Cidinha Kopcak em 2002; no ano
seguinte, o Oriashé inaugura o Espaço Lilás na Cidade Tiradentes; e no último ano
da gestão, em 2004, o Movimento Abra os Olhos Companheira, de Guaianases,
conquista a Casa Viviane dos Santos. Contudo, conforme Marta não se reelege, há
uma estagnação neste processo de institucionalização, que só será retomado no
último ano da gestão do prefeito Gilberto Kassab (então DEM, ex-PFL).

O que buscarei apresentar (a seguir e, depois, nas Considerações Finais)


será uma compreensão de como, nos últimos anos, pôde acontecer
simultaneamente: de um lado, um bem-sucedido processo de institucionalização
deste atendimento a mulheres (um salto de 2 para 7 serviços conveniados na Zona
Leste entre 2012-13) e uma crise na sustentabilidade das atividades daquelas duas
entidades paradigmáticas e pioneiras (em 2011 a Casa Lilith devolve o imóvel na
Vila Alpina que alugava por falta de dinheiro, enquanto que, em 2012, a Amzol é
despejada de sua sede em uma Cohab na Vila Mara; com a perda das duas sedes,
ambas as entidades encontram muitas dificuldades para seguir atuando). O
desenvolvimento posterior deste ciclo aponta para a consolidação de uma política
pública de assistência social que institucionaliza um repertório de ação coletiva
surgido inicialmente no âmbito da sociedade civil organizada.

Uma característica que unifica todas as iniciativas da sociedade civil


consideradas na análise deste ciclo político é a presença do Partido dos
! 53

Trabalhadores (PT). As entrevistadas de cada um destes grupos são12 ou foram13


filiadas ao PT. A fundadora da Casa Lilith foi eleita suplente de vereadora na
Câmara paulistana no pleito de 2000, tendo assumido uma cadeira em 2002 (mas
não se reelegendo em 2004); já a então presidente da Amzol se candidatou a
vereadora em 2012, mas não chegou a ser eleita.

As entidades que estou aqui classificando como compondo um


“Feminismo Popular” na Zona Leste de São Paulo desenvolveram uma série de
repertórios 14 . Considerando tanto a eleição da Amzol e da Casa Lilith como
entidades paradigmáticas, como o histórico posterior de desenvolvimento do ciclo,
com a institucionalização de uma determinada política de assistência social, o
repertório por excelência deste período é o atendimento a mulheres que sofreram
violência doméstica.15 De um lado, temos o Centro Jurídico Maria Miguel, criado pela
Amzol em 1996, em decorrência do curso de formação de PLPs; ele era mantido por
um convênio com a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP) e
forneceu atendimento jurídico gratuito a cerca de 18 mil mulheres em menos de 10
anos. De outro, mesmo anteriormente, a Casa da Mulher Lilith já ofertava
atendimentos psicológicos, sob a forma de terapias comunitárias, mas também aulas
de yoga, ginástica e “biodança”.

Uma inovação foi trazida pelo Oriashé, quando é criado, já na década de


2000, o Espaço Lilás, pois sua atuação se volta para a especificidade racista da
violência sofrida pelas mulheres negras, a maioria da população feminina na Cidade
Tiradentes. Além de orientação jurídica, encaminhamento e escuta de mulheres em
situação de violência, foram realizados dois cursos de formação de PLPs em
parceria com o Geledés, numa outra inovação, que muda a chave do atendimento
jurídico para a formação política em torno de direitos (muito embora não fosse
necessariamente o mesmo público que recebesse orientação).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Amzol, Lilith, São Miguel, Oriashé e Dandara.
13
São Mateus e Fala Negão (a mãe da entrevistada, sua fundadora, já é falecida).
14
No sentido lato de “formas de ação coletiva”; para outros significados que o conceito foi tomando
no desenvolvimento da obra de Charles Tilly, cf. Alonso (2012).
15
Estes atendimentos, jurídicos e psicológicos, parecem ser desdobramentos de um repertório
inicialmente inaugurado pela experiência do SOS Mulher de São Paulo, de breve existência, entre
1980 e 83 (PONTES, 1986).
! 54

Há também outras ações coletivas que precisam ser apontadas. A própria


Amzol, antes do Centro Jurídico, promovia atividades de formação: oficinas,
encontros, plenárias. Depois do fim do convênio com a PGE-SP e com a criação
logo em seguida da Defensoria Pública, o foco se voltou mais para a geração de
emprego e renda para mulheres, com cursos de capacitação (qualificação, gestão,
culinária). O Espaço Lilás do Oriashé também realizou, durante a sua breve
existência, cursos de cooperativismo, aulas de dança, balé e ginástica, oficinas de
percussão e artesanato. O Coletivo de Mulheres de São Mateus, antes de se tornar
a Casa Cidinha (transformação esta que, segundo a entrevistada, foi inspirada pela
atuação da Casa Lilith), promovia encontros, seminários, palestras, cinemas,
atividades de formação e cultos ecumênicos. Já o repertório do Movimento de
Mulheres de São Miguel gira em torno, até hoje, da saúde da mulher: oficinas sobre
esta temática, mas também sobre auto-estima, debates, seminários e rodas de
conversa, além de um sarau anual próximo ao dia 8 de março e um projeto com
doulas no Hospital Santa Marcelina o qual foi encerrado por motivos político-
partidários. Por fim, a principal atividade do Grupo Cultural Dandara, um grupo de
dança afro infanto-juvenil, eram ensaios e apresentações, idealizadas por um
pequeno grupo de mulheres responsáveis por dirigir dançarinas e dançarinos, além
de um grupo de meninos percussionistas; muitos destes jovens eram filhos ou
sobrinhos das mulheres dirigentes. Junto com a dança, havia uma preocupação com
a conscientização das crianças e dos adolescentes do grupo em torno do racismo,
da valorização da mulher negra (sua beleza, auto-estima e amor próprio) e até
mesmo da orientação sexual. Outro repertório relevante foi a criação de rodas de
conversa, compostas apenas por mulheres, que começaram como uma espécie de
terapia coletiva e que depois passaram para o âmbito da Associação Fala Negão /
Fala Mulher!, da qual faziam parte várias das integrantes do Dandara; estas rodas
de conversa foram evoluindo, sob a mediação de uma psicóloga, e elas passaram a
falar menos de si mesmas e mais sobre as questões da mulher em geral, contando
até com a inclusão de mulheres da comunidade que não faziam parte da direção da
associação.

Como dito anteriormente, o repertório de ação coletiva por excelência


deste ciclo político – o atendimento jurídico e psicológico a mulheres em situação de
violência – começa a ser institucionalizado, a partir do governo Marta, como uma
! 55

política pública de assistência social. Entre 2002 e 2004, foram criados dois serviços
conveniados (a Casa Cidinha, em São Mateus, no primeiro ano da gestão, e a Casa
Viviane, em Guaianases, no último ano) e entre 8 de março de 2003 e o início de
2005 (quando assume José Serra – do PSDB –, haja visto a não reeleição de Marta)
funcionou o Espaço Lilás na Cidade Tiradentes, mantido pelo Oriashé; ao contrário
das duas outras iniciativas, também oriundas da sociedade civil, o Oriashé – a única
a trabalhar especificamente com a temática das mulheres negras – não contou com
apoio da prefeitura petista para se institucionalizar, sob o formato de um convênio
que financiasse suas atividades e um contrato que assegurasse a sua permanência
na sede então cedida. Hoje, o número dessas casas conveniadas mais do que
triplicou; mais importante do que o acréscimo quantitativo, hoje elas se organizam
sob a forma de uma rede – a Rede Leste de Enfrentamento à Violência – que
mescla uma atuação enquanto sociedade civil e enquanto braço do Estado.

Quando formulei meu projeto de pesquisa, eu desconhecia não apenas a


Rede Leste como também esta nova modalidade de atuação no campo dos direitos
das mulheres que são os CDCMs: os Centros de Defesa e Convivência da Mulher. A
cidade de São Paulo tem hoje 13 destes Centros, todos serviços conveniados com a
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS); a maioria
se localiza na Zona Leste (7) mas também estão presentes em outras regiões (3 na
Zona Sul, 2 na Zona Norte e 1 na Região Central). Há um formato padrão pré-
determinado pela Secretaria (há, por exemplo, sempre uma gerente – ou
coordenadora –, uma assistente social, uma psicóloga e uma advogada) e as
entidades conveniadas devem vencer um processo de audiência pública.

Em 2014, a SMADS contabilizava 1190 serviços. 16 Apenas 6,3% são


serviços diretos, da Prefeitura Municipal de São Paulo. 17 Os outros 93,7% dos
serviços da SMADS são convênios com 1575 organizações diferentes.18 É neste
contexto de parceria entre a Assistência Social municipal e entidades da sociedade

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Informações disponíveis no site da Secretaria.
17
Todos os 49 CRAS (Centros de Referência de Assistência Social); os 24 CREAS (Centros de
Referência Especializado de Assistência Social); e os 2 Centros POP (Centros de Referência
Especializado para População em Situação de Rua).
18
Dentre os quais: os CCAs (Centros para Crianças e Adolescentes); os CJs (Centros para
Juventude); os SASFs (Serviços de Assistência Social à Família); os NCIs (Núcleos de Convivência
do Idoso); além de outras modalidades.
! 56

civil organizada que se deve começar a entender os CDCMs, embora isto não
esgote nem determine por completo a sua atuação (SANTOS, C., 2015).

Os 7 CDCMs da Zona Leste têm dois momentos históricos básicos de


suas fundações: a “primeira geração” (a Casa Cidinha e a Casa Viviane) e a
“segunda geração” (todos são de 2012, no final da gestão do prefeito Gilberto
Kassab: Casa Anastácia; Casa Zizi; MulherAção; e Maria da Penha; com exceção
do Naná Serafim, inaugurado em 2013, já no primeiro ano da gestão de Fernando
Haddad).

Mais da metade (4) destes CDCMs têm por trás dos convênios entidades
com origem na Igreja Católica: Associação Padre Moreira (no caso da Casa
Cidinha); AVIB-Associação de Voluntários Integrados no Brasil (nos casos da Casa
Viviane e da Casa Anastácia); e CIAP19 São Patrício (no caso da Casa Zizi). Estas
três entidades tiveram alguma relação inicial com as CEBs de sua respectiva região,
ou na década de 1980 ou de 1990: a Padre Moreira nos distritos São Rafael e São
Mateus; a AVIB nos distritos de Guaianases e Lajeado; e o CIAP São Patrício no
distrito de Sapopemba.

Já no caso dos outros CDCMs não se verificou a centralidade religiosa,


católica ou não: a Casa de Isabel, uma ONG de combate à violência contra a mulher
fundada em 1996 (no caso do CDCM “Projeto Naná Serafim”); a Rede Criança de
Combate à Violência, uma ONG iniciada em 1998 e com vínculos políticos com o
PCdoB (no caso do CDCM Maria da Penha); e o Instituto Social Santa Lúcia,
originalmente uma Associação de Moradores no distrito Jardim Ângela, Zona Sul de
São Paulo, criada em 2000 (no caso do CDCM MulherAção).

Participam da Rede Leste outras organizações que não se configuram


enquanto CDCMs.20 O Agentes Bem Querer Mulher é, por exemplo, um atendimento

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Centro de Assistência Social e Formação Profissional.
20
A Rede Leste também é composta por equipamentos públicos diretos ou então outros órgãos do
poder público que não entram no escopo de minha investigação acerca do associativismo de
mulheres por não terem relação com a sociedade civil organizada (como é a situação das casas
conveniadas). Além dos 7 CDCMs, do Agentes Bem Querer Mulher e das PLPs do Hospital de São
Mateus, participavam da Rede Leste em 2015: o Centro de Cidadania da Mulher (CCM) Itaquera
(então ligado à SMPM-Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres); a Casa Abrigo Helenira
Rezende de Souza Nazareth, conhecida como “Casa Helenira” (também ligada à SMPM); o Centro
de Atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva “Maria Auxiliadora Lara Barcellos”, de Cidade Tiradentes,
conhecido por “Casa Ser” ou “Casa Ser Dorinha” (ligada à SMS-Secretaria Municipal da Saúde); e o
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado
! 57

a mulheres em situação de violência, de iniciativa da sociedade civil (com apoio da


ONG Abeviva) mas sediada no CIC Leste (serviço localizado no Itaim Paulista e
ligado à Secretaria Estadual de Justiça do Governo de São Paulo). Segundo a
entrevistada, um dos desejos da equipe seria dar, no futuro, um salto de
institucionalização em direção à sua constituição enquanto CDCM; embora ainda
não seja uma casa conveniada, já participa da Rede Leste. Já o Núcleo de
Atendimento à Vítimas de Violência Doméstica do Hospital Geral de São Mateus do
Hospital São Mateus (NAAVID/HGSM, também conhecidas como as PLPs do
Hospital) é composto por auxiliares de serviço que fizeram o curso de Promotoras
Legais Populares ministrado pelo Geledés; elas realizam o acolhimento de mulheres
que chegam ao Hospital com sinais de violência doméstica e buscam depois fazer o
seu encaminhamento para outros serviços, notadamente a Casa Cidinha, cuja
localização é muito próxima.

É fundamental não ignorar, como às vezes é feito, que os CDCMs são,


inicialmente, fruto de iniciativas da sociedade civil: o Coletivo de Mulheres de São
Mateus está na origem da Casa Cidinha (informação fruto de entrevistas com a
coordenadora da Casa e uma ex-integrante do Coletivo) e o Movimento “Abra os
Olhos Companheira!” em Guaianases resultou na Casa Viviane (CORREIA, 2015;
SILVA, 2014). Esta institucionalização dos movimentos de mulheres sob a forma de
um convênio com a SMADS pode ser interpretada como um hibridismo: o grupo de
mulheres passa a ser um braço do poder público e, simultaneamente, parte
integrante da mobilização da sociedade civil organizada. Contudo, as entrevistas
que realizei evidenciam que este hibridismo não é vivenciado da mesma maneira por
cada uma das casas conveniadas, revelando não apenas origens históricas
diferentes mas também princípios políticos e sociais diferenciados.

Nos últimos anos começaram a surgir pesquisas empíricas sobre alguns


dos CDCMs – Casa Viviane (LADEIRA, 2013; PINTO, 2016); Casa Anastácia
(MARTINS, 2015); Casa Viviane e Casa Anastácia (CORREIA, 2015); Casa Cidinha
(SOUZA, 2015); PLPs do Hospital São Mateus (LORENZO, 2012; SOUZA;
MACEDO; FERNANDES, 2014) – e até mesmo as primeiras tentativas de abarcar a
Rede Leste como um todo (SANTOS, C., 2015). O aspecto positivo deste trabalho
recente de Cecília MacDowell Santos (2015) é o mapeamento de diferentes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
de São Paulo (NUDEM/DPESP).
! 58

abordagens ou perspectivas acerca da violência contra a mulher, às quais ela


nomeia de: “familista”, “de gênero”, “feminista” e “interseccional de gênero, raça e
classe”, o que, nos termos de uma corrente da teoria dos movimentos sociais,
poderia ser chamado de frames, ou seja, enquadramentos. O aspecto negativo21 se
encontra na sua proposta metodológica de uma “etnografia do Estado”, o que acaba
por obscurecer o processo histórico de surgimento dos CDCMs a partir da sociedade
civil e das esferas públicas informais construídas pelas próprias mulheres.

Também é interessante a percepção, mesmo que superficial (pois


baseada apenas em entrevistas orais com coordenadoras e assistentes sociais e
não em observações participantes do dia a dia das casas conveniadas, as quais eu
não realizei), de que todos os CDCMs entrevistados não cumprem um papel
meramente assistencialista nem tampouco centrado apenas no aspecto penal da Lei
Maria da Penha (o “D” de defesa), mas com uma forte ênfase no aspecto da
sociabilidade entre as mulheres (o “C” de convivência), assim como efetivando
relevante papel no campo da educação jurídica popular, conscientizando as
mulheres que são seu público-alvo acerca de todos os seus direitos, com relação à
casa própria, aos filhos, à pensão, etc. Ao abordar a educação sob a perspectiva da
educação não formal, ou seja, da construção de uma cultura política democrática
(GOHN, 2011), então os CDCMs aparecem como espaços eminentemente
educativos.

De qualquer modo, não me parece possível dissociar o surgimento dos


CDCMs e sua expansão enquanto serviço privilegiado pela Assistência Social para
contribuir na efetivação da Lei Maria da Penha e o declínio do ciclo político do
“Feminismo Popular”, uma vez que alguns dos Movimentos de Mulheres
desapareceram pois foram canalizados para a execução do convênio ou então
outras Associações de Mulheres que não quiseram ou não puderam se adequar às
inevitáveis restrições por parte da SMADS se encontram em uma difícil situação em
termos de financiamento e manutenção de sua sede e de atividades contínuas, o
que eu gostaria de chamar de uma crise de sustentabilidade prolongada.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Ressalto também as conclusões equivocadas acerca dos CDCMs Maria da Penha e Naná Serafim,
os quais não concederam entrevistas à autora; minhas próprias entrevistas com suas coordenadoras
contradizem inteiramente as teses levantadas pela autora (SANTOS, 2015, p. 595), acerca de uma
suposta abordagem “familista” por parte destas duas casas conveniadas, cabendo muito mais falar na
adoção de uma perspectiva “de gênero”.
! 59

1.2 “Feminismo Periférico”

Em oposição a este declínio do ciclo político anterior (ao menos


considerando organizações da sociedade civil, fora da relação direta com o Estado
na forma de convênios), verifica-se que há, desde o início da década de 2010, uma
explosão de iniciativas sob a forma de coletivos feministas nas periferias de grandes
cidades (como nas Zonas Sul, Norte e Leste de São Paulo e em Belo Horizonte) e
de suas Regiões Metropolitanas (como em Diadema-SP, na Baixada Fluminense,
em cidades-satélite do Distrito Federal e em Pernambuco), sempre de modo
intimamente ligado a movimentos culturais (como os saraus periféricos e a cultura
Hip Hop). Os treze exemplos abaixo demonstram empiricamente que o fenômeno
que estou chamando de “Feminismo Periférico” não está circunscrito à Zona Leste
da cidade de São Paulo e indicam que ele seja, inclusive, de abrangência nacional22:

(1) o Coletivo Cultural Esperança Garcia existe desde 2009 e “é formado


por mulheres negras e periféricas que participam e frequentam os saraus
literários, Sarau Elo da Corrente e Sarau da Brasa” (FACEBOOK), realizados,
respectivamente, em Pirituba e Brasilândia, ambos os distritos pertencentes à Zona
Norte de São Paulo;

(2) a Coletiva Fala Guerreira, composta por moradoras de diferentes


distritos da Zona Sul de São Paulo (como Jardim Ângela, Grajaú, Jardim São Luís e
Capão Redondo), foi fundada em 2011-12 enquanto “Coletivo Rosas”, por mulheres
frequentadoras de saraus periféricos, mas depois assumindo o nome da revista que
passou a publicar: “Fala Guerreira! Mulher e mídia na quebrada”;

(3) a Coletiva Maria Sem Vergonha nasceu em 2014, com o Sarau das
Mina, que circulava por bibliotecas municipais em diferentes bairros periféricos; um
sarau feminista fixo também foi criado, em Pirituba, Zona Norte de São Paulo; em
2016 a coletiva assumiu seu nome atual (FACEBOOK);

(4) o Coletivo Mulheres na Luta, do Grajaú, Zona Sul de São Paulo, criou
em janeiro de 2015 um “Grupo de estudos sobre: Feminismo periférico” (com página
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Não encontrei bibliografia que tenha buscado interpretar amplamente este fenômeno, mas destaco
aqui o artigo de Moutinho, Alves e Mateuzi (2016) e o mestrado em andamento de Danielle Regina de
Oliveira na sociologia da Unicamp, intitulado Guerreiras: feminismo do cotidiano.
! 60

no Facebook – uma comunidade fechada23 – e encontros presenciais desde março


deste mesmo ano, abertos a homens e mulheres), além de promover um segundo
Sarau das Mina;

(5) o Coletivo Audácia é “formado por mulheres residentes na zona


sul de São Paulo com o intuito de expandir a sororidade, o conhecimento
sobre o feminismo e a visibilidade de mulheres negras e periféricas através de
atividades culturais e sócio-educativas” (FACEBOOK);

(6) o Coletivo Mulherada de Perus foi criado em dezembro de 2016, na


Zona Norte de São Paulo e “tem como objetivo enfrentar o machismo associado
a classe e raça ainda presente em nossa periferia, assim como a invisibilidade
das mulheres peruenses” (FACEBOOK);

(7) o Coletivo DiadeNega, de Diadema (município da Região


Metropolitana de São Paulo), fundado em 25 de julho de 2014, é “um coletivo
formado por mulheres negras, cujo objetivo é trazer reflexões acerca do
protagonismo e empoderamento desta mulher” (FACEBOOK);

(8) o PaguFunk é um grupo de funk feminista, “um grupo autônomo,


[que] surgiu em julho de 2013, numa biblioteca comunitária na Baixada
Fluminense” (FACEBOOK), mais especificamente no Parque Paulista, bairro de
Duque de Caxias-RJ24;

(9) uma Frente Feminista Periférica surgiu em 2013 dentro do Coletivo


ArtSam, que organiza o Sarau Samambaia Poética em Samambaia-DF25;

(10) o Coletivo Maria Perifa, da Ceilândia-DF fez em 2014 um vídeo


intitulado “Maria Perifa – Feminismo Periférico e Negro”26, sobre a sua fundação e a
importância do Sarau da CM (Caligrafia Mardita), sendo também possível
acompanhar um depoimento de uma das integrantes acerca do “feminismo
periférico” em Moreira (2014);

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
https://www.facebook.com/groups/595289357269525/
24
http://revistarever.com/2014/10/03/rever-entrevista-lidi-do-pagufunk
25
https://www.youtube.com/watch?v=V84d11wX8e4
26
https://www.youtube.com/watch?v=jpyvnl9g-a4
! 61

(11) o Minas de Minas, de Belo Horizonte, é uma Crew fundada em 2012


e formada apenas por grafiteiras mulheres (ao menos uma delas é moradora do
Taquaril, bairro periférico da capital mineira);

(12) o Ori Odara foi fundado em janeiro de 2015, também em Belo


Horizonte, tendo surgido “do desejo e da necessidade de falar do cabelo crespo
e dos Turbantes como um ato de empoderamento e resistência negra”
(FACEBOOK);

(13) o 8.0.8 Crew “é um grupo de garotas do interior de Pernambuco


e Região Metropolitana do Recife, dentro das vertentes do HIP HOP, que
trabalham juntas em prol das mulheres, da periferia e da cena” (FACEBOOK).

Nesta via de aproximação com outros focos em diversas localidades é


que me parece possível considerar a categoria “Feminismo Periférico” como
imanente (ancorada na auto-representação das mulheres militantes) a este amplo
fenômeno social emergente e não como exógena (exterior à sua auto-
representação, meramente imputada pelo pesquisador).27

Passei a trabalhar com a categoria de “Feminismo Periférico” como uma


hipótese por meio da qual busquei uma organização histórica do material empírico
coligido e uma descrição deste associativismo de mulheres contemporâneo, como
um campo de possibilidades de enquadramentos [frames] discursivos e práticos, que
podem ser convergentes ou divergentes. Não poderia ser de outra forma, haja visto
que se trata de um fenômeno social emergente, cuja configuração se desdobra
diante de nossos olhos. Justamente pelo caráter emergente deste novo
associativismo, é que se justifica o interesse em acompanhar, registrar e escutar
suas vozes e reivindicações.

Buscarei apresentar o “Feminismo Periférico” nesta tese primariamente a


partir de uma perspectiva societal, que privilegie a forma como processos de
socialização e formas de sociabilidade condicionam os enquadramentos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Busquei superar o caráter aparentemente exógeno desta categoria verificando se ela tem algum
ancoramento na auto-compreensão das mulheres entrevistadas (um desafio interpretativo foi, por
exemplo, o combate ao feminismo – “branco” ou “negro” – pela via do mulherismo africana no caso
do coletivo Fayola Odara). Como se trata de um fenômeno social emergente, entendo que ainda não
há categorias explicativas consolidadas. Contudo, verifiquei a imanência da categoria (em oposição à
sua possível exogeneidade) com relação a algumas outras iniciativas de coletivos feministas fora da
Zona Leste de São Paulo (o coletivo Fala Guerreira, na Zona Sul da capital, talvez seja o exemplo
mais forte).
! 62

diagnósticos (a problematização da situação social de mulheres periféricas),


prognósticos (efetivar impulsões igualitárias de combate ao machismo por meio do
feminismo negro, do anarco-feminismo, do feminismo radical ou do mulherismo
africana) e motivacionais (como mobilizar o público-alvo para as atividades públicas
e culturais) propostos pelos coletivos mapeados.28

Uma forma de ressaltar a especificidade de um novo ciclo político, que


parece se iniciar com o surgimento desde 201229 de coletivos feministas formados
por mulheres jovens na Zona Leste de São Paulo, foi por meio do contraste com o
ciclo político anterior. A primeira novidade que salta aos olhos é nominal: o
associativismo de mulheres (voltado) para mulheres antes se dava majoritariamente
pela forma-associação (com personalidade jurídica e sede próprias), mas agora as
próprias autodenominações evidenciam uma mudança significativa pois
praticamente todas as iniciativas se organizam por meio da forma-coletivo. De um
lado, isto implica maior liberdade e fluidez pois nunca há, em nenhum dos casos
entrevistados, divisão formal de cargos, sempre implicando uma auto-organização
de caráter eminentemente horizontal. Por outro lado, isto implica igualmente uma
maior instabilidade: desde que efetivamente comecei, no final de fevereiro de 2015,
o mapeamento das associações e coletivos de mulheres na Zona Leste de São
Paulo, ao menos 4 coletivos estão com suas atividades “paralisadas”, “esse ano
está de ‘férias’”, “não está mais na ativa”, ou então “acabou”, nos dizeres das
próprias militantes contatadas. Esta instabilidade da forma-coletivo parece ser
agravada pelo fato de que a situação social das mulheres periféricas implica que a
sua militância é, em geral, uma “quarta jornada de trabalho”: para além da ocupação
profissional, dos serviços domésticos (ainda determinados pela divisão sexual do
trabalho, intensificado por algumas militantes serem mães solteiras) e, por último, da
frequência, muitas vezes comum mas nem sempre determinante, em um curso de
graduação no Ensino Superior (e, mais raramente, na Pós-Graduação). Aliado à
horizontalidade destes coletivos, é preciso reconhecer também seu caráter
apartidário (o que não significa dizer “anti-partidário”) ou, ao menos, a ausência de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Para a diferenciação entre os enquadramentos diagnóstico, prognóstico e motivacional, cf. Snow;
Benford (1988).
29
Haveria um coletivo pioneiro, o Anastácia Livre!, criado em 2010; mas a ex-integrante que o fundou
se recusou a ser entrevistada.
! 63

partidos políticos que estruturem este novo associativismo, tal como foi o caso do PT
no ciclo político anterior.30

No decorrer da tese, vou apresentar alguns resultados das entrevistas


que realizei com militantes e ativistas, além das observações participantes
realizadas, privilegiando um recorte específico e determinado: os processos de
socialização e as formas ou espaços de sociabilidade. Esta abordagem é relevante
para a investigação da ação coletiva na forma do “Feminismo Periférico” a fim de:

[…] compreender a gênese das categorias críticas com base na


reconstrução de experiências pré-teóricas e inscrever suas
pretensões normativas fundamentalmente nas interações sociais (no
domínio amplo e paradigmático para a teoria crítica pós-
habermasiana do que Honneth entende por “social”) […]. (MELO,
2015, p. 23)

Isto implica em considerar que a gênese das impulsões igualitárias31 do


“Feminismo Periférico” e os diferentes enquadramentos que convivem no seu interior
– anarco-feminismo, feminismo interseccional, feminismo negro, feminismo radical,
mulherismo africana e sagrado feminino – está nas experiências práticas que as
mulheres periféricas vivenciam no seu cotidiano (cf. seção 3.1). Deste modo,
também busco me filiar a uma certa tradição das ciências sociais brasileiras; a
principal referência aqui é, como será explicitado no capítulo 2, o trabalho clássico
de Eder Sader (1988).

Para expor uma análise baseada nesta perspectiva societal, é preciso


antes apresentar os coletivos mapeados, entrevistados e que foram eleitos para a
análise. Como ficará claro adiante, os saraus periféricos são um espaço de
sociabilidade crucial para estas jovens se encontrarem, se descobrirem e se
articularem. O Ser Vi Elas, por exemplo, nasceu como o “Núcleo Feminista” do
Sarau do M.A.P. (Movimento Aliança da Praça)32, realizado na Praça do Forró, em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
Sem contar a presença de outros partidos em associações de mulheres também surgidas nas
décadas de 1980 e 90 e sobre as quais não me debrucei, por não terem atuações diretamente
relacionadas aos direitos das mulheres, ligadas ao PMDB e ao PCdoB.
31
Sobre o conceito de impulsões igualitárias, cf. Fernandes (2008) e Campos (2014).
32
No momento da 1ª entrevista realizada (em 9 de abril de 2015), o coletivo ainda não tinha este
nome, chamando-se apenas “Núcleo Feminista do Movimento Aliança da Praça (M.A.P.)”. Em
questão de dias, as jovens integrantes do coletivo lançaram oficialmente o Núcleo Feminista, ainda
sem nome, no 2º aniversário do Sarau do M.A.P. (em 19 de abril), e depois, em 27 de abril, uma
! 64

São Miguel Paulista (sendo que as suas integrantes não se conheciam antes de
começar a frequentar o sarau), enquanto que o Coletivo Juntas na Luta continua a
ocupação da Biblioteca Cora Coralina33, em Guaianases, iniciado como Sarau da
Maloca pelo Coletivo Arte Maloqueira (predominantemente masculino) e o
transforma em um Sarau Feminista chamado “Junte-se na Luta”. Outra forma de
apropriação de equipamento público é atestada pelo Coletivo Fayola Odara, que
realizou oficinas em torno da estética e beleza da mulher negra no CEU Lajeado. Já
os coletivos Mulheres de Orí e Mulheriu Clã têm suas principais atividades sediadas
no Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes (de gestão municipal), o
primeiro articulando gastronomia, dança, artes visuais e um núcleo de pesquisa,
enquanto que o segundo se constitui como um “coletivo de coletivos” de rap
feminino a fim de combater a discriminação e segregação de mulheres dentro do
Movimento Hip Hop, ainda majoritariamente masculino e machista. Outro coletivo
que também concentra suas atividades na Cidade Tiradentes, o M.A.N.A. (Mulher
Atitude Negritude e Arte) Crew, utiliza a Biblioteca Comunitária Solano Trindade34;
seu objetivo é agregar mulheres grafiteiras e popularizar esta linguagem para outras
mulheres, combatendo tanto a discriminação que a Cultura Hip Hop sofre
externamente, quanto a interna, voltada contra as mulheres. Por fim, o Grupo de
Coco Semente Crioula realiza seus ensaios no Ponto de Cultura de Guaianases,
mesclando o resgate de sambas de coco originários de Pernambuco com
composições próprias e inéditas de suas integrantes, com temáticas feministas.35

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
página no Facebook, já com o nome “Ser Vi Elas”. Ao final do ano, as poetisas romperam com o
M.A.P. (por questões sexistas e machistas), se autonomizando. Elas realizaram uma atividade fora da
Zona Leste, não estando mais “ativas”. Esta rapidez e fluidez são comprovações do caráter
emergente destes coletivos feministas no extremo leste de São Paulo (e em outras periferias,
inclusive de outras cidades), mas também da sua instabilidade.
33
Pude realizar observação participante na inauguração, em 4 de julho de 2015, da Sala Temática
que transformou a Cora Coralina na primeira e única biblioteca municipal com temática feminista.
Após discursos de diversas autoridades (incluindo o Prefeito Fernando Haddad, a Primeira-Dama, a
Vice-Prefeita e os Secretários Municipais da Cultura, de Políticas para Mulheres, dos Direitos
Humanos e das Relações Governamentais, além de outros convidados, como a profa. da Unicamp e
historiadora feminista Margareth Rago e uma militante do Movimento de Mulheres de São Miguel,
chamada Maria Niuza Ferreira), houve uma performance da poetisa Tula Pilar homenageando a
escritora Carolina Maria de Jesus, um show das rappers Sharylaine, Yzalú e Amanda Negrasim e,
para encerrar, uma edição do Sarau Feminista “Junte-se na Luta”.
34
Mantida pelo Coletivo de Esquerda Força Ativa (fundado, por sua vez, na década de 1980), esta
biblioteca foi a primeira da Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo.
35
Para se ter alguma noção da cronologia do novo associativismo de mulheres na Zona Leste de São
Paulo, seguem as datas de fundação dos coletivos (entre os anos de 2010-15, mas mais
intensamente entre 2012-15): em agosto de 2010, se inicia o Coletivo “Anastácia Livre!”; em 7 de
! 65

A tabela a seguir pode ser útil para que o leitor retorne a esta
sistematização caso seja necessário relembrar as características singulares dos
coletivos no momento em que estiver lendo os trechos das entrevistas apresentados
no decorrer do texto:

Tabela 1 – Informações sistematizadas sobre os coletivos


PRINCIPAIS PRINCIPAL
NOME FUNDAÇÃO BAIRRO "SEDE" LINGUAGENS REFERÊNCIA
ARTÍSTICAS DISCURSIVA
sarau, maquiagem mulherismo
Fayola Odara 2013 Guaianases CEU Lajeado
e turbante africana
Biblioteca Cora Coralina
poesia e música feminismo
Juntas na Luta 2012 Guaianases (e Fábrica de Cultura
(rap e funk) interseccional
Vila Curuçá)
Biblioteca Comunitária feminismo
M.A.N.A. Crew 2015 Cidade Tiradentes grafite
Solano Trindade negro
Centro de Formação
feminismo
Mulheres de Orí 2014 Cidade Tiradentes Cultural de Cidade dança e culinária
negro
Tiradentes (CFCCT)
Centro de Formação
feminismo
Mulheriu Clã 2013 Cidade Tiradentes Cultural de Cidade música (rap)
(X femismo)
Tiradentes (CFCCT)
Ponto de Cultura de música feminismo
Semente Crioula 2014 Guaianases
Guaianases (samba de coco) interseccional
Praça do Forró
(enquanto foi o núcleo feminismo
Ser Vi Elas 2015 São Miguel poesia
feminista do Sarau do (radical?)
M.A.P.)

fonte: elaboração própria a partir das entrevistas e da internet

Também foram identificados e mapeados outros coletivos, mas com


relações diversas com seus territórios de atuação. O coletivo Nós, Mulheres da
Periferia, por exemplo, é a reunião de nove mulheres jovens (oito jornalistas e uma
designer), moradoras de diferentes bairros periféricos – da Zona Leste (Artur Alvim e
Cidade Tiradentes), da Zona Sul (Cidade Ademar, Jardim Ângela e Paraisópolis), da
Zona Norte (Perus, Vila Zilda e Jova Rural) e da Região Metropolitana de São Paulo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
março de 2012 é publicado artigo de algumas integrantes do futuro Coletivo “Nós, Mulheres da
Periferia” na Folha de S. Paulo; em outubro de 2012, surge o Juntas na Luta; “em 2013” começa o
Mulheriu Clã, embora a ideia tenha surgido “em 2012”; em 22 de novembro de 2013, o Fayola Odara
realiza sua primeira atividade; em 20 de julho de 2014, acontece a primeira apresentação do
Semente Crioula; em 25 de julho de 2014, o Mulheres de Orí é fundado (no dia da Mulher Afro Latino-
Americana Caribenha); já em 30 de janeiro de 2015 é fundado o M.A.N.A. Crew; e, por fim, em 19 de
abril de 2015 acontece a primeira apresentação pública do Ser Vi Elas (no segundo aniversário do
M.A.P.), ainda sem esta denominação (embora a ideia de um “núcleo feminista” estivesse sendo
discutida pelas poetisas e artistas a pelo menos um semestre, desde 2014).
! 66

(Carapicuíba) – o coletivo mantém um site36 e uma página no Facebook nos quais


veiculam notícias, reportagens, crônicas e seu manifesto. O encontro das
integrantes do coletivo foi propiciado pelo Blog Mural 37 , no qual mais de 50
jornalistas comunitários produzem material sobre seus bairros periféricos, não só da
cidade de São Paulo como de sua Região Metropolitana. Em 2012, algumas das
jovens publicam um artigo na Seção Tendências e Debates do jornal Folha de S.
Paulo (PEDRINA; et alli, 2012); o texto repercute, principalmente com a sua leitura
espontânea por uma mulher no Sarau “O que dizem os umbigos?!” (no Itaim
Paulista) – sempre os saraus! A especificidade do Nós, Mulheres da Periferia é o
seu caráter, por assim dizer, “interperiférico”: trata-se de articular as experiências a
um só tempo comuns e singulares da situação social das mulheres em diferentes
periferias urbanas. Por me parecer paradigmático deste novo ciclo político, no qual
explodem (um verdadeiro “boom”, no dizer da entrevistada pelo Juntas na Luta)
iniciativas de coletivos feministas periféricos, decidi entrevistar as duas integrantes
moradoras da Zona Leste deste coletivo para incluir na pesquisa esta experiência
singular de associativismo de mulheres, agora sem necessariamente ter uma única
base territorial – como era o caso das Associações de Mulheres surgidas na década
de 1980, que muitas vezes se confundiam com uma associação de bairro por
almejar melhorias urbanas em sua localidade –, mas viabilizada e potencializada
pela apropriação da internet e das redes sociais por parte de jovens mulheres
periféricas.

Coletivos “interperiféricos”, mas com uma atuação mais territorializada e


menos digitalizada são: o Slam das Minas – SP, o Sarau das Pretas – SP e o Sarau
DasPrê. Em todos estes três casos, poetisas de diferentes bairros e regiões
afastadas entre si da capital paulistana promovem encontros poéticos de caráter
itinerante. Uma outra configuração encontrada foi a do Movimento Cultural Ermelino
Matarazzo, que promoveu um Encontro Feminista em 19 de junho de 2016, na sua
Ocupação Cultural da Praça Benedicto Ramos Rodrigues; neste contexto, as
mulheres que participam do movimento cultural não sentiram necessidade de criar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
http://nosmulheresdaperiferia.com.br/
37
Originalmente abrigado no site da Folha de S. Paulo, hoje em dia o Mural é uma “Agência de
Jornalismo das Periferias”: http://agenciamural.com.br/
! 67

nem um coletivo autonomizado e nem sequer um núcleo feminista com uma


autonomia relativa no interior do movimento cultural.

Outros coletivos da Zona Leste da capital que descobri (tardiamente) até


o momento da escrita da tese foram: Coletivo de Oyá (Coletivo de Mulheres Negras
da Periferia de SP); Feministas da Leste; FemiSistahs; e Pretas Peri. Infelizmente,
tive que encerrar a coleta de entrevistas para começar a dar conta da análise das
várias horas de áudio que já haviam sido gravados.

Para fins da interpretação dos dados nesta tese, a unidade de análise, por
assim dizer, consistirá no conjunto dos sete coletivos feministas periféricos
anteriormente apresentados em tabela: Fayola Odara, Juntas na Luta, M.A.N.A.
Crew, Mulheres de Orí, Mulheriu Clã, Semente Crioula e Ser Vi Elas. O material
empírico concernente ao “Feminismo Periférico” estará restrito, via de regra, às
militantes destes grupos, sejam as entrevistas semi-estruturadas, a análise de rede
das páginas de Facebook por elas curtidas e os eventos etnografados e por elas
organizados.

1.3 Um subcampo feminista na Zona Leste de São Paulo?

Recentemente, Alvarez (2014) apresentou um diagnóstico amplo,


complexo e, ao mesmo tempo, sintético do(s) feminismo(s) latino-americano(s).
Como este diagnóstico pode auxiliar na compreensão do tema de investigação desta
tese? “Feminismo Popular” e “Feminismo Periférico” foram concebidos até agora
como dois ciclos políticos, mas eles também podem ser interpretados como dois
momentos históricos de um mesmo “campo discursivo de ação” (ou, melhor dizendo,
do que poderia ser chamado de subcampo feminista na Zona Leste de São Paulo).

Em vez de falar em “o movimento feminista”, a autora propõe uma


“alternativa epistêmica” (ALVAREZ, 2014, p. 20) e uma “nova unidade de análise”
(ALVAREZ, 2014, p. 16), ao interpretar os feminismos como campos discursivos de
ação. Esta abordagem teria várias vantagens: evita a formulação de um modelo “do
movimento” que nunca se encontra na realidade empírica; em vez de determinar a
priori ou externamente quais militantes estão incluídas ou excluídas do feminismo,
define esta própria discussão acerca de “autenticidade” e “pertencimento” como “um
dos componentes discursivos que articula o campo feminista” (ALVAREZ, 2014, p.
! 68

16); aponta a expansão dos movimentos sociais “para além da sociedade civil”
(ALVAREZ, 2014, p. 17), isto é, abarcaria sua extensão vertical “em direção à
sociedade política, ao Estado, e outros públicos dominantes nacionais e
transnacionais” (ALVAREZ, 2014, p. 18); e, por fim, em vez de focar nos “'fluxos e
refluxos' dos movimentos”, aponta para o caráter “permanente” dos campos
discursivos de ação nas “formações políticas na modernidade tardia/descolonial”
(ALVAREZ, 2014, p. 45).

A “principal dívida teórica na formulação” da noção de campo discursivo


de ação “é com a literatura brasileira sobre campos 'ético-políticos'”, como as obras
de Sérgio Baierle, Ana Maria Doimo e Eder Sader (ALVAREZ, 2014, p. 16). No
momento em que mais explicita a definição deste conceito, Alvarez afirma que
“alguns dos elementos que conformam um campo discursivo de ação” são:

1) atoras/es mais ou menos visíveis, hegemônicos, marginalizados;


2) malhas/teias/redes articuladoras; 3) pontos nodais; 4) dimensões
verticais, horizontais, e talvez densidade; 5) discursos definidores; 6)
lutas interpretativas/conflitos constitutivos; e 7) paradoxos
transformadores. (ALVAREZ, 2014, p. 46)

A autora enfatiza que os campos discursivos de ação não são nem


“meros aglomerados de organizações voltadas para uma determinada problemática”
(ALVAREZ, 2014, p. 18) nem apenas “processos de enquadramento” (ALVAREZ,
2014, p. 19). Estes campos se articulam tanto “através de redes político-
comunicativas [...] reticuladas” que entrelaçam, vinculam e interconectam indivíduos,
coletivos, grupos e ONG’s situados em diversos espaços – na sociedade civil, no
Estado, em redes transnacionais, na universidade, na indústria cultural, na mídia, na
internet, etc. (ALVAREZ, 2014, p. 18) – como também se articulam
“discursivamente”, ou seja, compartilham uma “gramática política” ou “universo de
significados” (ALVAREZ, 2014, p. 19)

Os campos feministas (como outros campos discursivos de ação) seriam


“sempre minados por desigualdades e relações desiguais de poder” (ALVAREZ,
2014, p. 19). Contudo, “essas iniquidades” são históricas e dinâmicas: “o campo
feminista está permanentemente em fluxo” (ALVAREZ, 2014, p. 20). Estes fluxos e
reconfigurações são fruto tanto de relações externas (do campo feminista com seu
contexto mais amplo, como campos de poder e também as diferentes fases do
! 69

neoliberalismo na América Latina) quanto de relações internas (mudanças em


alianças e disputas no interior do campo feminista).

Tendo todas estas considerações em vista, Alvarez (2014) apresenta três


momentos das trajetórias dos campos feministas brasileiro e latino-americano.

O primeiro momento é caracterizado pelo “centramento” do campo


discursivo de ação e a configuração do “feminismo no singular”. A partir da década
de 1970, um “componente [...] central da gramática política compartilhada que
articulava o incipiente campo feminista” foi a dicotomia “luta geral-militância política”
versus “luta específica-militância autônoma” (ALVAREZ, 2014, p. 22). O “exterior
constitutivo” do campo neste momento foram principalmente os partidos e grupos
políticos de esquerda, muitos deles revolucionários. Além da valorização da
autonomia, as “feministas fundadoras” estavam no campo da oposição à ditadura
militar, se organizavam em coletivos e realizavam regularmente manifestações de
rua. A referida “luta específica” se tornou um traço do feminismo hegemônico neste
momento; contudo, para muitas mulheres, ela estaria “profundamente marcada pela
classe social, a heteronormatividade, e uma branquidade ‘inominada’ ou implícita
que constituía um pano de fundo silenciado” (ALVAREZ, 2014, p. 23).

Mesmo com estas críticas, a autora sustenta que o campo feminista já era
nos anos 1970 e 80 “plural e heterogêneo”. Havia “alianças e coligações” entre
“mulheres de classe média” e outras mulheres, pobres, negras ou lésbicas, assim
como surgiram já no final da década de 70 organizações de mulheres negras,
autônomas tanto do movimento feminista branco quanto do movimento negro misto
(ALVAREZ, 2014, p. 24).

Já o segundo momento é caracterizado pelo descentramento e a


pluralização dos feminismos, além do mainstreaming (fluxos verticais) do gênero.
Se, antes, a principal forma de organização eram os coletivos autônomos, um dos
principais nós articuladores do campo feminista passaram a ser na década de 1990
ONG’s, com “sedes permanentes, orçamentos expressivos, departamentos
especializados, e pessoal remunerado”. As ONG’s “tranacionalizadas,
profissionalizadas e especializadas” passaram a conformar “um núcleo hegemônico
do campo feminista” (ALVAREZ, 2014, p. 26). Este novo momento também viveu um
reposicionamento de várias atoras “para além da sociedade civil”; a autora chama
isto de uma “articulação vertical”, ou seja, em direção à sociedade política e ao
! 70

Estado, além de partidos eleitorais, governos, universidades e instituições


internacionais como ONU e Banco Mundial.38

Um outro nó articulador, também situado “para além da sociedade civil”,


específico ao campo feminista brasileiro, foi o Partido dos Trabalhadores (PT), junto
com sindicatos, movimento dos sem-terra, os movimentos populares ligados à Igreja
Católica, movimentos estudantis, além de grupos feministas dentro das
administrações municipais e estaduais do partido (ALVAREZ, 2014, p. 27-28).

Os discursos de gênero constituíram, por sua vez, um terreno “movediço”


e “traiçoeiro” (ALVAREZ, 2014, p. 30): por um lado, forneceram uma “gramática
política compartilhada” para diversas atoras (ALVAREZ, 2014, p. 29), mas, por outro,
a “noção de gênero” foi passível de despolitização tecnocrática, ao ser absorvida por
governos e instituições internacionais em um contexto neoliberal. Nesta conjuntura,
“associações da sociedade civil”, acadêmicas e ONGs feministas foram convocadas
a “administrar projetos direcionados às mulheres pobres e/ou de grupos raciais
subalternizados” (ALVAREZ, 2014, p. 31). A hegemonização do campo feminista
pelas ONG’s exacerbou desigualdades já existentes e gerou novas, com relação a
recursos econômicos, culturais e acesso à esfera pública. Contudo, este segundo
momento também viveu uma pluralização e diversificação dos feminismos,
especialmente quando se considera os encontros e as organizações dos
movimentos de mulheres negras: “Em efeito, a ‘diversidade’ aparece entre os
produtos mais proeminentes no campo feminista nos anos 1990” (ALVAREZ, 2014,
p. 28; meu grifo).

Por fim, o terceiro (e atual) momento é marcado pela multiplicação de


campos feministas e o sidestreaming (fluxos horizontais) no interior destes
feminismos plurais. Alvarez (2014) não deixa muito claro quando começaria este
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Gohn também assinala esta tendência em um capítulo sobre os movimentos de mulheres e
feministas: “Nos anos 90, a conjuntura sociopolítica se alterou no Brasil, seguindo a tendência de
fortalecimento de grupos institucionalizados e certa desativação de movimentos sociais
independentes de organizações ou políticas públicas. Apesar da conquista de inúmeros espaços na
vida cotidiana e nas políticas estatais, movimentos de mulheres, assim como outros movimentos
sociais, refluíram enquanto mobilizações. Em compensação, ONGs criadas e coordenadas por
mulheres se multiplicaram em todas as classes e camadas sociais e foram se tornando a forma de
representação predominante das mulheres no Brasil. As mulheres passaram a estar presentes em
novas arenas, não como movimento social de mulheres, mas como 'movimento feminista'. Esse
termo passou a expressar a articulação das feministas em práticas institucionalizadas, atuando via
ONGs em projetos e programas sociais apoiados por órgãos públicos, com apoio de organismos
internacionais. Na realidade, essas novas ONGs não são movimentos sociais, mas organizações
sociais institucionalizadas que trabalham com mulheres” (GOHN, 2010, p. 153-154).
! 71

novo momento: inicialmente ela assinala a vitória eleitoral de Hugo Chaves em 1998
na Venezuela como o ponto de partida da “maré rosa” na América Latina (governos
progressistas, que às vezes são chamados por outros autores de “pós-neoliberais”)
e o Fórum Social Mundial (realizado pela primeira vez em 2001), mas, em seguida,
foca sua análise em pesquisa de campo realizada em 2013-14, anos emblemáticos,
como ela faz questão de enfatizar, pelas conexões entre esta nova fase do campo
feminista e Junho de 2013 e protestos contra a Copa do Mundo de 2014. A década
de 2000 não é tratada mais detidamente, mas a autora sinaliza que a absorção
tecnocrática do gênero por governos e instituições internacionais, além da
“ONGização e transnacionalização do advocacy feminista” levaram a mais
desigualdades, conflitos e, por fim, a “novos paradoxos que propulsaram mudanças
no campo feminista da região [da América Latina]” (ALVAREZ, 2014, p. 32). Esta
noção de “paradoxos transformadores” não é aprofundada até as últimas
consequências, mas poderia render interessantes hipóteses explicativas para a
dinamicidade do campo feminista, como alude a própria autora em um outro artigo:
“paradoxos são o que movem os movimentos” (ALVAREZ, 2014b, p. 73).39

A grande novidade deste terceiro momento seria a multiplicação de novos


campos e subcampos feministas. Se, no segundo momento, nos anos 90, um dos
discursos articuladores era a “diversidade”, Alvarez detecta que agora o discurso
articulador passou a ser a “desigualdade”, em especial a racial (ALVAREZ, 2014, p.
37). Muitas mulheres brancas jovens que foram entrevistadas pela autora afirmam
que seu feminismo é antirracista: “As diferenças intergeracionais em relação ao
reconhecimento do racismo e, especialmente, do privilégio das mulheres brancas
foram notáveis, mesmo que não uniformes” nas entrevistas realizadas (ALVAREZ,
2014, p. 37, n. 21). Não só o campo feminista se complexificou e a temática racial
ganha centralidade para as militantes mais jovens, como este campo desemboca
“em novos e distintos campos discursivos de ação” (ALVAREZ, 2014, p. 42), sendo
um caso emblemático, para a autora, o do feminismo negro.40

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
39
“[Nós percebemos que os] paradoxos que identificamos eram vividos como tensões, trazendo [a]
história pessoal e [a] coletiva para o presente, e esses desconfortos agudos [pressionaram] as
mulheres a agirem. [Paradoxos davam movimento] aos próprios movimentos, pressionando-os a
concretizar o futuro enquanto [se] moviam no tempo” (RUBIN; SOKOLOFF-RUBIN apud ALVAREZ,
2014b, p. 73, n. 16; tradução alterada e complementada por mim).
40
Gohn (2010, p. 148) também aponta, além das mulheres negras, a questão da invisibilidade das
mulheres indígenas,“gerada pelo cruzamento [de] temáticas”.
! 72

Um outro discurso articulador é o da autonomia. Depois do segundo


momento ser marcado por processos de institucionalização (os “fluxos verticais”), o
feminismo parece viver uma “volta” aos anos 70 (lembrando que o primeiro momento
era organizado em torno de coletivos autônomos). Há tanto uma crítica na aposta do
segundo momento na formulação e implementação de políticas públicas quanto um
“desincentivo material aos formatos mais 'institucionalizados'” devido ao
deslocamento da cooperação internacional “para outras partes do 'Sul Global' em
consequência do tão celebrado (e talvez efêmero) crescimento latino-americano da
década dos 2000” (ALVAREZ, 2014, p. 36). A política institucional, a gestão pública
e financiamentos como os da Fundação Ford são reavaliados como insuficientes
para a luta feminista. Um exemplo de como a autonomia passa a ser um discurso
articulador do campo é a sua reivindicação por vertentes extremamente
heterogêneas do “feminismo jovem”, como as anarco-autonomistas, as militantes de
partidos trotskistas, como o PSTU, mas também a Marcha Mundial das Mulheres
(coordenada pela ONG Sempreviva Organização Feminista e vinculada a uma
tendência do PT), independentemente de suas pluralidades, contradições e conflitos.

Um terceiro discurso articulador são os debates sobre corporalidades,


sexualidades e identidades de gênero, os quais impelem “o campo feminista para
além dos binarismos de gênero”, implodindo a categoria “mulher” e “a própria noção
do feminismo” – pois se o feminismo é um campo discursivo de ação, um dos
elementos centrais deste conceito seria a identificação “de quem seriam os seus
sujeitos privilegiados e sua visão de mundo compartilhada” (ALVAREZ, 2014, p. 44).

Mesmo que as mulheres negras, jovens e populares tenham alcançado


grande visibilidade neste novo momento, ainda há continuidades de certas
características do segundo momento: as ONGs transnacionais continuam fortes,
além dos centros de estudos feministas e/ou de gênero nas universidades estarem
ainda mais consolidados.41 Se aquelas ONGs especializadas e profissionalizadas
eram um nó articulador no segundo momento, agora o próprio Estado precisa ser
considerado um dos “principais articuladores do campo [feminista] brasileiro hoje em
dia” (ALVAREZ, 2014, p. 44), com as Conferências Nacionais de Políticas para as

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Alvarez (2014, p. 43) chega a hipotetizar que este processo seria crucial para “a popularização dos
feminismos entre estudantes”, algo que talvez pudesse ajudar a explicar a explosão de coletivos
feministas universitários nos últimos anos.
! 73

Mulheres (em 2004, 2007 e 2011) e o que algumas autoras estão chamando de
“feminismo estatal participativo” ou então de “ativismo institucional”.

Já uma novidade é o papel de destaque das redes sociais da internet na


popularização dos feminismos, além de viabilizar a articulação de campos mais
“incipientes” e “precarizados”. Alvarez também afirma que o predomínio destes
meios de comunicação tem como reflexo a “predominância da modalidade
'Marcha'42” (ALVAREZ, 2014, p. 45) – como nas Marchas: Mundial das Mulheres,
das Vadias, das Mulheres Negras, das Margaridas, do Orgulho LGBT, etc. – o que
estaria em consonância com os movimentos globais de protesto, como Occupy Wall
Street nos EUA e Indignados na Espanha, pois “envolve[m] a aglomeração de
massas de indivíduos de diversas origens em espaços físicos” (JURIS apud
ALVAREZ, 2014, p. 45).

Se no primeiro momento, a hegemonia do campo feminista era dos


coletivos autônomos que defendiam a concepção de “luta específica” (mas que eram
constituídos predominantemente por mulheres brancas de classe média) e, no
segundo momento, era das ONGs especializadas e profissionalizadas, a autora
conclui que, atualmente, a hegemonia do campo feminista passou a ser
“indeterminada ou, no máximo, disputada” (ALVAREZ, 2014, p. 43). Não apenas há
uma multiplicação de campos e subcampos como ela identifica, nos seus interiores,
processos de sidestreaming (isto é, “fluxos horizontais”): tanto o feminismo negro e o
“feminismo jovem” são, em si mesmos, heterogêneos e plurais (contendo tanto
alianças entre atoras diferentes quanto conflitos e disputas), como o “feminismo
estatal participativo” promove “sidestreaming via mainstreaming” (ou seja: “fluxos
horizontais do feminismo em consequência da transversalidade vertical do gênero” –
ALVAREZ, 2014, p. 44), bem como a estratégia da Marcha Mundial das Mulheres de
criar núcleos auto-organizados em outros campos movimentistas paralelos
(movimentos populares, sindicais, estudantis e do campo) também é uma forma de
sidestreaming. A multiplicação de campos feministas e seus fluxos horizontais
seriam, portanto, as principais marcas do profundo processo de complexificação dos
feminismos contemporâneos na América Latina.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
42
A quase uma década atrás, Gohn já havia diagnosticado uma tendência de “rearticulação de lutas e
movimentos sociais”, na qual as mulheres protagonizavam a junção de “causas
estruturais/econômicas e causas específicas vividas pelas mulheres”. E o que Alvarez chamou de
modalidade-marcha também é por ela apontada; cf. Gohn (2010, p. 156-158).
! 74

Com esta nova referência conceitual de campo discursivo feminista, é


possível se perguntar se o conjunto dos ciclos políticos “Feminismo Popular” e
“Feminismo Periférico” não podem ser interpretados como momentos históricos de
um mesmo (sub)campo feminista na Zona Leste de São Paulo. Seguindo Alvarez,
isto evitaria focar apenas nos “fluxos e refluxos” dos movimentos, alterando a visada
para o caráter permanente, porém dinâmico, da mobilização feminista. Esta noção
de campo (mesmo que territorializada regionalmente como um subcampo) pode ser
útil para abranger alguns fenômenos que Alvarez (2014) também analisa, em
especial os “nós articuladores” e os “fluxos verticais”. Desta forma, seria produtivo
não considerar isoladamente, em primeiro lugar, as associações e movimentos do
primeiro ciclo/momento e, em segundo lugar, os coletivos feministas periféricos.
Seria preciso também dar conta do principal nó articulador do “Feminismo Popular”
com relação ao campo feminista, quais sejam: as “ONGs feministas centrais”, cujas
sedes estão, via de regra, localizadas fora da Zona Leste (mais especificamente na
região centro-oeste da cidade de São Paulo). Assim como do principal fluxo vertical
identificado, o desenvolvimento do “Feminismo Popular” em direção à
institucionalização, sob a forma dos CDCMs e da constituição da Rede Leste de
Enfrentamento à Violência.

Por estes motivos, apresento, a seguir, mapas da cidade abrangendo


todos estes elementos, especializando-os em uma perspectiva macro (Imagens 1 e
2) e em perspectivas micro (Imagens 3 a 7). Desta forma, encerro a descrição dos
dois ciclos/momentos e passo, nos capítulos seguintes, a avançar alguns elementos
explicativos da sua gênese e do seu desenvolvimento.
Imagem 1 – Mapa do subcampo feminista da Zona Leste (cerca de 2015)

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”

75
!
Imagem 2 – Mapa do subcampo feminista da Zona Leste
(com as marcações dos mapas seguintes)

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

76
!
Imagem 3 – Mapa São Miguel e Itaim Paulista

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”

77
!
Imagem 4 – Mapa Itaquera e Guaianases

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”

78
!
Imagem 5 – Mapa Cidade Tiradentes

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”

79
!
Imagem 6 – Mapa Vila Prudente e São Mateus

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”

80
!
Imagem 7 – Mapa região centro-oeste (“ONGs feministas centrais”)

fonte: elaboração própria com o GoogleMaps

legenda: vinho = associações e movimentos do “Feminismo Popular”


roxo claro = Rede Leste de Enfrentamento à Violência
vermelho = ONGs feministas centrais
roxo escuro = coletivos do “Feminismo Periférico”!

81
!
! 82

2
Esferas públicas como matrizes discursivas

O ponto de partida teórico-conceitual deste capítulo é a diferenciação


realizada por E. P. Thompson, em seu posicionamento no debate historiográfico
acerca da chamada “controvérsia do padrão de vida” da classe operária durante as
primeiras fases da Revolução Industrial:

[...] o termo “padrão” nos leva de informações suscetíveis de


medição estatística (salários ou artigos de consumo) para aquelas
satisfações algumas vezes descritas como “imponderáveis” pelos
estatísticos. Da alimentação passamos à moradia, da moradia à
saúde, da saúde à vida familiar, e desse ponto ao ócio, à disciplina
no trabalho, à educação e lazer, à intensidade do trabalho, e assim
por diante. Do padrão de vida passamos ao modo de vida. Mas eles
não significam a mesma coisa. O primeiro é uma medida de
quantidades; o segundo, uma descrição (e, às vezes, uma avaliação)
de qualidades. Enquanto as evidências estatísticas são apropriadas
para o primeiro caso, precisamos confiar em “dados literários” para o
segundo. (THOMPSON, 2012, p. 42-43; meus grifos)

Esta ênfase fundamental no qualitativo guarda íntima conexão com a


retomada por Thompson de uma “categoria básica de análise”, que é a “experiência
histórica e cultural das pessoas” (GOHN, 2012, p. 203). Além do historiador inglês
seguir “a trilha deixada pelos próprios atores na história, em suas diferentes
manifestações, nos locais vivenciados e por meio dos registros e memórias
existentes”, ele nos deixou um verdadeiro “legado”:

Para a análise dos movimentos sociais populares o legado


metodológico de Thompson nos leva a observar o cotidiano das
camadas populares, no sentido de apreender como o vivenciam. A
situação de carência ganha relevância, não pela objetividade da
coisa em si, mas pela forma como as pessoas vivenciam as
carências. Os sentimentos de injustiça e de exclusão surgem desta
vivência e podem, em determinados contextos, expressar-se
socialmente como revolta. (GOHN, 2012, p. 204-205)
! 83

Em sua rica trajetória intelectual, Thompson se debruçou sobre várias


manifestações populares na Inglaterra, tais como as turbas e os motins contra a
fome no século XVIII e a pré-história do cartismo, na virada do XVIII para o XIX.
Neste segundo caso, Thompson defende a tese, contrária a historiadores positivistas
e quantitativistas, de que, no início da Revolução Industrial, o padrão de vida dos
trabalhadores ingleses até poderia ter melhorado (embora ele revele que a sua
quantificação por meio de dados estatísticos não era rigorosamente confiável), mas
do ponto de vista (qualitativo) destes sujeitos sociais, o processo social foi
experienciado como algo catastrófico e apocalíptico, pois também ocorreu um
processo subterrâneo e mais profundo de alteração dos modos de vida plebeus e
operários e é a partir das normas e dos valores que, por um lado, são o legado
cultural do passado e, por outro, são continuamente reelaborados e inovados, que
eles vivenciam, avaliam e criticam as grandes transformações da Inglaterra de
então. Há uma conexão entre modos de vida e uma cultura política democrática que
impulsiona a luta pela preservação de direitos tradicionais bem como a invenção de
novos direitos, antes inexistentes.

Aquela definição de Thompson do conceito de “modo de vida” enquanto


uma “descrição de qualidades” e a metodologia adequada ao seu estudo como a
confiança em “dados literários”, contudo, ainda são insuficientes para pensar a
operacionalização empírica da categoria no contexto de uma pesquisa de campo
que se orienta para a análise do tempo presente, em vez de uma investigação
histórica do passado.

No meu entender, quem pode auxiliar neste sentido é Eder Sader, com
sua obra clássica Quando novos personagens entraram em cena.43 Seus princípios
epistemológicos e metodológicos podem ser expressos como um marxismo
heterodoxo, com uma sensibilidade etnográfica; é justamente neste quadro
interpretativo que se explica, por exemplo, a centralidade de Thompson para Sader
(1988, p. 44-45). Trata-se de uma abordagem que tem como princípio analítico o
primado da experiência, cuja operacionalização empírica é aparente por toda a obra

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Para um panorama que insere a obra de Sader em um contexto intelectual, social e político mais
amplo, cf. Perruso (2009). A formulação deste autor de que certas pesquisas empíricas realizadas na
década de 1980 sobre movimentos sociais populares urbanos operaram uma “virada fenomenológica”
tem grande relevância para meus propósitos.
! 84

44
de Sader. Este princípio se desdobra nos seguintes conceitos centrais:
experiência, vida e cotidiano; sujeito, práticas, valores e identidades; discursos e
matrizes discursivas; e espaço público (melhor traduzido como esfera pública) e
sociedade (civil). Quanto à sua operacionalização em uma metodologia de pesquisa
empírica, o recurso sistemático a depoimentos pessoais é central.

No que concerne aos meus interesses, mais relevante que o 1º capítulo


da obra citada acima – dedicado justamente a explicitar algumas referências teóricas
tais como Thompson, Castoriadis e Foucault – é o 2º, que se ocupa da análise das
condições de existência da classe trabalhadora na Região Metropolitana de São
Paulo, pois, neste momento, a teoria dá lugar aos conceitos em movimento, na
busca de apreender crítica e empiricamente a complexidade do processo social.
Cada uma das seções deste capítulo, intitulado “Sobre as experiências da condição
proletária em São Paulo”, se ocupa de diferentes aspectos da situação social dos
trabalhadores: a vida urbana; a disciplina fabril; o processo migratório; a
autoconstrução das moradias; e a sociabilidade das esferas públicas. Depois de ver
brevemente cada um destes elementos levantados, vou retornar ao meu problema
de pesquisa, apresentado na Introdução, porém já enriquecido pela explicitação
desta abordagem específica (societal), a qual vai me permitir avançar a
compreensão e a comparação entre os ciclos políticos do “Feminismo Popular” e do
“Feminismo Periférico”.

Na seção introdutória, Sader articula de modo muito refinado o que estou


me referindo como primado da experiência, uma vez que todos os dados
quantitativos estão subordinados aos depoimentos pessoais, de caráter
eminentemente qualitativo, de quem vive ou viveu os processos sociais resumidos
naquelas estatísticas. Inclusive o grosso das informações estatísticas está em
separado, como um anexo ao 2º capítulo; quando aparecem no modo de
apresentação do livro, estão conectadas e submetidas às narrativas pessoais,
tenham sido elas coletadas por Sader ou então apropriadas de outros
pesquisadores, principalmente aqueles pertencentes ao GEP-Urplan (Grupo de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
44
Este princípio analítico do primado da experiência, que identifiquei na obra de Sader, me auxilia
sobremaneira na operacionalização empírica da primeira formulação de Thompson apresentada no
início do capítulo, acerca da indissociabilidade entre a investigação de modos de vida (e a categoria
que será apresentada mais a frente de matrizes discursivas) e a pesquisa qualitativa, baseada em
“dados literários” (tais como os depoimentos pessoais mobilizados por Sader).
! 85

Educação Popular do Instituto de Planejamento Regional e Urbano da PUC-SP). O


que permite tal subordinação do quantitativo ao qualitativo, do estatístico ao
narrativo, é o princípio epistemológico de que a sociedade está desde o início
embebida de significados; a realidade social é produzida e reproduzida
simultaneamente nas esferas materiais e simbólicas, não sendo possível abstrair
qualquer uma delas. Por isso, os conceitos centrais desta seção são “modo de vida”
e “experiência vivida”; a condição proletária não é apreensível apenas por meio de
números frios, mas principalmente pelas falas e narrativas daqueles que viveram e
experienciaram “a voragem do progresso” da industrialização e da urbanização.

No segundo item – “A ordenação pelo trabalho” – Sader apresenta como


as condições de trabalho nas fábricas industriais são vividas pelos próprios
trabalhadores, revelando o caráter despótico da organização fabril. A racionalização
do processo de trabalho é exposta a partir dos valores dos operários, evidenciando
que sua situação social de subordinação não é dissociável de suas experiências e
dos significados atribuídos por eles segundo seus próprios padrões e parâmetros
simbólicos e normativos: “É muito provável que a importância do tema da dignidade
profissional entre os operários das grandes indústrias nesse período esteja ligada à
revolta contra essa versão nacional do taylorismo” (SADER, 1988, p. 78). Isto
implica que, por mais que as condições de trabalho fossem reificantes, violentas e
autoritárias, este processo nunca implica uma reificação totalizante: “A insegurança
e a instabilidade fazem parte do seu cotidiano, de onde brotam continuamente tanto
a revolta como a subserviência” (SADER, 1988, p. 83). A exploração no chão de
fábrica é experienciada pelos trabalhadores de modo que o inconformismo e a
solidariedade são tão possíveis quanto a submissão ao despotismo:

A subserviência, a rebeldia, o ressentimento e o desamparo, a


valorização da liberdade e a insubordinação estão aí presentes
através das combinações mais esdrúxulas. Na elaboração dessas
experiências iam se formando identidades coletivas. (SADER, 1988,
p. 88)

É a partir deste solo, destas experiências práticas e pré-teóricas, que será


possível a emergência do chamado Novo Sindicalismo, que elege a dignidade como
central na sua crítica das condições de trabalho, exatamente por esta noção estar
! 86

enraizada na vida cotidiana dos trabalhadores fabris, justificando a sua ressonância


enquanto “matriz discursiva” (conceito este que será definido logo a frente).

Já no terceiro item – “A trajetória dos migrantes na cidade” – Sader


destaca da “experiência da condição proletária em São Paulo” as trajetórias de
migração partindo da região Nordeste. O mais interessante da análise de Sader é
rejeitar a noção, muito difundida na produção acadêmica sobre a classe operária
brasileira, de que a origem rural dos trabalhadores teria um suposto caráter pré-
moderno. Segundo o autor, “[...] mesmo nos casos em que os migrantes são
afetados por mecanismos de exclusão e privação, na maior parte das vezes o
lamento, ou a revolta, já é feito através de valores que indicam a assimilação de
padrões do mundo urbano” (SADER, 1988, p. 81). Na sua interpretação, o
desenraizamento dos migrantes e seus valores ditos comunitários não são
características do atraso, mas possibilidade objetiva de uma crítica imanente da
modernidade brasileira:

Ao apoiar-se na família o migrante recupera (e reinterpreta) toda uma


constelação de normas e valores comunitários no interior das
relações societárias. A mobilização de parentes, vizinhos e
conterrâneos não constitui um resíduo de padrões tradicionais, que
tenderiam a sumir com o progresso da urbanização, mas são
relações atualizadas na vida urbana e constitutivos dela. (SADER,
1988, p. 95)

Em outras palavras, a reelaboração dos padrões comunitários contribuem


para alterar a ordem social competitiva45 na qual eles se integram. No meu entender,
é este forte caráter comunitário que vai explicar a ressonância da matriz discursiva
da Teologia da Libertação, que permite elaborar uma crítica social ao caráter
abstrato e impessoal do capitalismo e do Estado burocratizado a partir da
valorização da comunidade enquanto encontro de seres humanos.

O quarto item – “Projetos familiares: o sonho da casa própria” – apresenta


para mim uma posição coerente com as posturas epistemológicas anteriores com
relação à questão da autoconstrução da moradia pelas classes populares, logo de
saída:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
45
Esta noção é claramente tomada emprestada de Florestan Fernandes, embora Sader não explicite
a referência.
! 87

Da lógica do sistema, pois, o lugar de moradia é base para um tempo


de recomposição, necessário em função da produção capitalista.
Mas a lógica do sistema ainda que dominante não é a única atuante
na sociedade. Do ponto de vista do trabalhador, seu trabalho foi
apenas um sacrifício necessário para a obtenção de um salário com
o qual pudesse viver. Por isso, o tempo fora da esfera da produção é
que constitui seu tempo de vida. (SADER, 1988, p. 99)

Encaro esta distinção entre lógicas diferenciadas a partir, de um lado, do


tempo de trabalho para o capital e, de outro, do tempo de vida, em uma crítica e
uma ruptura com interpretação tornada clássica (a partir da obra de Francisco de
Oliveira, Crítica à razão dualista) que reduz a autoconstrução à sua função no
rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho e que, portanto, é tão
somente útil e instrumental para a acumulação de capital. Tal reducionismo – que
pode ser entendido criticamente como uma chave funcionalista e economicista –
ignora que “do ponto de vista do trabalhador” é possível atribuir outros significados à
autoconstrução; tal prática e tal “lugar de moradia” são vividos, experienciados e
elaborados como constituindo “um espaço coletivo, onde habita uma unidade
doméstica, quase sempre uma família” (SADER, 1988, p. 100), enquanto que “a
família se mantém, para a maioria, como o lugar simbólico onde o trabalhador
projeta seus valores” (SADER, 1988, p. 103). Resgatando o aspecto simbólico do
“sonho da casa própria” é possível enxergar mais do que funcionalidades do capital,
pois se revelam valores e significados da perspectiva dos próprios trabalhadores,
enriquecendo e aprofundando a análise sociológica.

Aqui é necessário frisar que, ao considerar as teorizações feministas e


uma perspectiva de gênero acerca da família, a compreensão de Sader pode ser
criticada por idealizar e relativizar as hierarquias que estruturam a instituição familiar.
Por outro lado, o próprio autor frisa, no capítulo seguinte, a importância dos
movimentos populares e das CEBs para a saída das mulheres das classes
populares do espaço privado e doméstico restritivo em direção ao cenário público e
político do país (SADER, 1988, p. 166).

Por fim, no quinto item – “O espaço público e os pedaços da cidade” –,


Sader inova na leitura do regime militar, ao defender, junto com Vera Telles, que “a
estratégia de poder instituída em 1964” não é autoritária apenas enquanto “prática
do Estado contra a sociedade, mas como uma prática social tornada experiência
! 88

cotidiana” (SADER, 1988, p. 115). O fechamento dos “espaços públicos” – noção


tomada de Habermas46 (cf. SADER, 1988, p. 116) – se dá não apenas num sentido
de manifestação política, mas também enquanto “espaços de convivência formados
pelos encontros cotidianos na cidade”, verdadeiros “espaços de encontro e
reconhecimento. Sem incidência política direta, são espaços onde se forma um
‘público’, pelo intercâmbio de comentários, informações, histórias” (SADER, 1988, p.
118). O processo da redemocratização brasileira não é somente abertura do sistema
político, considerado apenas em seu caráter formal, mas a “reconstituição de
espaços de encontros, onde se trocavam informações”. Considerando a gênese dos
movimentos populares a partir do mundo da vida cotidiana dos trabalhadores
paulistanos, Sader afirma que:

Desse cruzamento de falas e experiências foi se reconstituindo um


novo espaço público. É o que J. G. Magnani tão bem apresentou ao
falar dos “pedaços” da cidade: os lugares, em cada vizinhança, que
constituem a mediação entre a casa e o mundo:
“O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o
privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade
básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais
densa, significativa e estável que as relações formais e
individualizadas impostas pela sociedade”. (MAGNANI apud SADER,
1988, p. 120-121)

Vou aprofundar a compreensão desta citação-chave por partes. A


pesquisa etnográfica de Magnani (2003 [1984]) se ocupa do lazer das classes
populares – o uso de seu “tempo de vida”, num dizer mais marxista. Inicialmente, é
preciso dizer que Magnani objetiva polemizar com a clássica distinção realizada pelo
antrópologo Roberto DaMatta entre os pólos dicotômicos casa vs. rua, que
estruturariam a sociedade brasileira. A partir de uma categoria nativa – o “pedaço” –
Magnani busca acompanhar um circo-teatro em um bairro periférico no extremo sul
de São Paulo, a fim de desvendar a rede de lazer na qual ele se insere: o lazer

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
46
Note-se que o uso da tradução francesa d’A mudança estrutural da esfera pública (intitulada
L’espace public) leva Sader a se referir frequentemente a “espaço público”, em vez de “esfera”.
Procurarei sempre ressaltar a tradução já consolidada e consagrada de “esfera pública” na recepção
brasileira de Habermas. Contribui também para o esquecimento da inspiração habermasiana na obra
de Sader o fato de que autores que continuaram a sua agenda de pesquisa sobre movimentos sociais
(ao menos até o início dos anos 2000), como Telles (1999) e Feltran (2005), utilizem sempre o
conceito de “espaço público” pois a interlocutora privilegiada das análises de ambos é Hannah Arendt
e não Habermas.
! 89

dentro de casa, os bares e botecos (com sinuca, dominó e carteado – sem nunca
dispensar o “mé”), os bailes na escola de samba, o futebol de várzea, a excursão à
praia, o concurso de violeiros e, por fim, meios de comunicação, como o rádio e a
TV. Questionários, entrevistas e observações participantes são realizadas entre
1979 e 81 para reconstruir este “pedaço”, ou seja, uma “intrincada rede de relações
formada por laços de parentesco, vizinhança e coleguismo” (MAGNANI, 2003
[1984], p. 113).

Segundo o autor, o “pedaço” – cuja atualização nos dias de hoje seria, me


parece, por meio da categoria igualmente nativa da “quebrada” 47 – tem dois
elementos básicos que o constituem: um componente de ordem espacial e uma
determinada rede de relações sociais. Como visto, o “pedaço” seria uma mediação
entre a casa e a rua; a estratégia do autor para mostrar a sua especificidade é
comparar a situação social de bairros periféricos com, por um lado, cidades
interioranas e, por outro, a situação social das classes médias. No caso do interior, o
trabalho, a devoção religiosa e o lazer são vividos no interior de uma comunidade na
qual todos se conhecem, ao contrário das grandes metrópoles. De outro lado, no
caso das camadas médias, os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da
família são aqueles estabelecidos no mercado de trabalho; conforme as classes
populares estão sujeitas a vínculos profissionais muito mais precários (ainda mais
considerando a crise econômica do período analisado pelo autor, marcada por
desemprego e inflação), elas estão muito mais “dependentes da rede formada por
laços de parentesco, vizinhança e origem”. O “pedaço” seria justamente essa “malha
de relações” que amplia a rede de sociabilidade para além do núcleo familiar,
“permite o estabelecimento de relações mais personalizadas e duradouras que
constituem a base da particular identidade produzida no pedaço” (MAGNANI, 2003
[1984], p. 116) e “onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer, trocam-
se informações, pratica-se a devoção – onde se tece, enfim, a trama do cotidiano”
(MAGNANI, 2003 [1984], p. 117; meu grifo). Contra DaMatta, Magnani afirma que
quando termina a casa, “não surge repentinamente o resto do mundo”; entre ambas,
há um “complexo sistema de mediações”, com “símbolos, normas e vivências”, e
que permite a atribuição de uma identidade às pessoas que não é redutível às

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
A pesquisa etnográfica de Pereira (2005), orientada por Magnani, confirma esta intuição.
! 90

instituições formais, como Estado e mercado (MAGNANI, 2003 [1984], p. 117 e


138).48

Sader, por sua vez, se apropria da etnografia de Magnani para aludir à


recriação de esferas públicas informais decisivas, no seu entender, para a
redemocratização política e social do país: nesses “pedaços” circulariam “novos
significados coletivos que expressam as interpretações formuladas sobre as
condições de vida na metrópole”. Desta reinterpretação, surgiria uma “semântica dos
dominados”: “É desse solo que brotaram os movimentos sociais a partir da metade
da década de 70” (SADER, 1988, p. 121). Esta abordagem, que caracterizo como
societal, privilegia os espaços de sociabilidade que não são redutíveis às lógicas
formais dos sistemas político e econômico e permite reconstruir a pré-história dos
movimentos sociais, a gênese das condições de possibilidade de suas ações
coletivas.49

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
48
Magnani não é o único que desenvolveu esta perspectiva específica (a seguir, as datas em chaves
se referem à defesa destas pesquisas, haja visto que todos os livros foram antes teses de doutorado):
CALDEIRA, Teresa. A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam
do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984 [1982]; ZALUAR, Alba. A máquina e a
revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985 [1984];
MACEDO, Carmen Cinira. Tempo de gênesis: o povo das Comunidades Eclesiais de Base. São
Paulo: Brasiliense, 1986 [1985]. A origem desta abordagem está em suas orientadoras: Caldeira e
Magnani (1984 [1982]) foram orientados por Ruth Cardoso; e Zaluar e Macedo foram orientadas por
Eunice Durham, tendo a maioria destes pesquisadores participado do Cebrap (o Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento) na década de 1980. Para visões de conjunto da obra destas antropólogas,
cf. DURHAM, Eunice. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify,
2004; e CALDEIRA, Teresa (Org.). Ruth Cardoso: obra reunida. São Paulo: Mameluco, 2011.
49
Autores pioneiros e inovadores no estudo dos movimentos populares urbanos são Gohn (1979;
1985) e Moisés (1978). Com relação a Sader, é importante ressaltar que ele não está sozinho na
defesa de uma abordagem societal para o período; na realidade, sua obra é a mais importante
sistematização do espírito de uma série de pesquisas empíricas anteriores que se debruçaram sobre
os movimentos sociais populares: CACCIA BAVA, Sílvio. Práticas cotidianas e movimentos
sociais: elementos para reconstrução de um objeto de estudo. Orient. Lúcio Kowarick. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política) – FFLCH/USP, São Paulo, 1983; TELLES, Vera da Silva. A
experiência do autoritarismo e práticas instituintes: os movimentos sociais em São Paulo nos
anos 70. Orient. Lúcio Kowarick. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – FFLCH/USP, São
Paulo, 1984; JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas: demandas por saneamento
basico e saúde – São Paulo, 1974-84. São Paulo: Cortez, 1985 [1985]; ABRAMO, Laís. O resgate da
dignidade. Campinas: Unicamp/Imprensa Oficial, 1999 [1987]; e NUNES, Edison. Carências
urbanas, reivindicações sociais e valores democráticas. Lua Nova, São Paulo, n. 17, jun. 1989
[1988]. Em uma expressão feliz, Perruso (2009) caracteriza esta perspectiva – desenvolvida em sua
maioria por pesquisadores pertencentes ao CEDEC (o Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea) na década de 1980 – como uma “virada fenomenológica”, como dito anteriormente.
Uma sistematização alternativa deste período histórico pode ser encontrada em Doimo (1995). Por
fim, em uma chave epistemologicamente similar à produção do CEDEC, mas que sai do mundo
urbano para dar conta de movimentos populares no campo, cf. Martins (1989).
! 91

Também me interessa a ideia presente em Sader de que, mesmo sob as


condições de um desenvolvimento urbano concebido de forma tecnocrática50, “uma
nítida diminuição das formas de lazer público” e “uma tendência à privatização da
vida urbana” encarnada na televisão, mesmo assim, “em cada lugar novas
referências são teimosamente recriadas” (SADER, 1988, p. 119). Haveria, deste
modo, tanto um processo de “alisamento da paisagem” – a restrição das esferas
públicas – como um processo posterior de “reestriamento” desta paisagem antes
alisada, a reconstituição das esferas públicas, compreendidas como redes de
sociabilidade; a partir delas, podem surgir mobilizações sociais críticas, nos lugares
onde menos se esperaria.

Os termos “alisamento” e “reestriamento” são emprestados de Félix


Guattari – sendo o significado de “reestriar” abrir novamente estrias ou sulcos. A
preocupação de Guattari (1985) com estas noções é relacionar o poder e o espaço,
considerando não apenas a dominação mas também a resistência. Para entender a
51
oposição entre alisamento e (re)estriagens é preciso antes apresentar a
diferenciação que este autor realiza entre espaço e território:

Os territórios estariam ligados a uma ordem de subjetivação


individual e coletiva e o espaço estando ligado mais às relações
funcionais de toda espécie. O espaço funciona como uma referência
extrínseca em relação aos objetos que ele contêm. Ao passo que o
território funciona em uma relação intrínseca com a subjetividade que
o delimita. (GUATTARI, 1985, p. 110)

O conceito de espaços sociais lisos e funcionais é construído em uma


oposição ao conceito de território: “um espaço liso é um espaço desterritorializado”
(GUATTARI, 1985, p. 112).52

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
A referência empírica, a partir de artigo do sociólogo e ex-professor da FAU-USP, Gabriel Bolaffi,
são as COHABs nas periferias de São Paulo.
51
Agradeço à profa. Áurea Guimarães por ter chamado a minha atenção no exame de qualificação
para a necessidade de recorrer ao artigo original de Guattari para compreender mais profundamente
o que estava em jogo nesta passagem de Sader.
52
Um exemplo histórico dado pelo autor em sua palestra transformada em artigo é o Mar
Mediterrâneo, que inicialmente era um espaço estriado (ou seja, com fronteiras políticas e
econômicas, mas também mágicas e mitológicas) e depois passa por uma desterritorialização.
Invasões, tecnologias militares ou concepções estratégicas “podem desterritorializar bruscamente
espaços continentais inteiros”, tanto em casos da História Antiga, como a invasão de Gengis Kahn,
quanto no caso da mundialização capitalista (GUATTARI, 1985, p. 112).
! 92

Guattari, contudo, complica o uso dos termos quando utiliza a noção de


“reestriar” em um duplo sentido. O sentido menos significativo consiste no
apontamento de que “o alisamento capitalístico é contemporâneo a uma reestriação,
a uma reterritorialização artificial”, ou seja a “reestriagem” é igualada à “redução da
subjetividade capitalística”. Mais importante do que este sentido, é o do termo que é
emprestado por Sader: em um contexto da mundialização capitalista (marcado pelo
“alisamento” do espaço social, ou seja, sua desterritorialização e perda de fronteiras)
o conceito de território tem um significado muito específico, o de assinalar práticas
de resistência – por isto, inclusive, Guattari insistentemente o utiliza acompanhado
de um adjetivo: “território existencial”:

[…] mesmo nessas situações [espaços hiper-equipados, como os


conjuntos habitacionais com seus códigos de uso – J.M.] a
problemática da constituição de territórios existenciais continua se
colocando, não morreu, porque até nos piores espaços
concentracionários [como os campos de concentração – J.M.] há
investimentos de micro-territórios, há o desvio das finalidades de
certos equipamentos. Basta pensar no que acontece nos porões dos
conjuntos habitacionais quando eles são tomados por gangues de
jovens roqueiros. Numa ou em outra – campos de concentração ou
porões de conjuntos habitacionais – de qualquer maneira, se
reconstituem os territórios de subjetivação, territórios existenciais. O
que seria interessante como pesquisa, como investigação para
arquitetos e urbanistas seria analisar concretamente o que são os
pontos de passagens arquitetônicas e urbanísticas entre esses
espaços lisos e esses territórios existenciais; como é que a gente
consegue, assim mesmo, nessa merda toda, fazer pedaços de
territórios para si. Então, o que é que são esses conversores da
subjetividade, etc. […] Encontrar quais são os condensadores de
subjetividade ou condensadores semióticos que, em cada lugar que
se for pensar, permitem superar os espaços para constituir territórios
existenciais. (GUATTARI, 1985, p. 113-114; meus grifos)

A abordagem de Guattari – muito próxima da de Sader, por sinal – pode


ser entendida no quadro de uma “micropolítica do cotidiano”: mesmo nas condições
mais difíceis, de alisamento do espaço, de desterritorialização e de redução da
subjetividade de acordo com constrangimentos capitalistas, sempre há “uma
possibilidade de reestriar o espaço, de refazer territórios” (GUATTARI, 1985, p. 116).
Quando o autor se refere a “fazer pedaços de territórios para si”, é possível
relacionar facilmente esta passagem à noção de pedaço que Magnani busca
! 93

etnografar: redes de sociabilidade densa que não se reduzem às lógicas capitalista


ou estatal.

Os “condensadores de subjetividade” aos quais Guattari se refere podem


ser aproximados de um outro conceito, desenvolvido por Sader, o de matrizes
discursivas. Para avançar na compreensão da gênese de ciclos políticos de
contestação, recorro a esta categoria de matrizes discursivas, elaborada por Sader
neste seu estudo sobre os movimentos sociais e a entrada, no decorrer da década
de 1970, das classes populares no cenário público brasileiro. Sader está preocupado
com a emergência de novos significados, ou seja, na forma pela qual os sujeitos
atribuem novos sentidos à sua vida cotidiana, reelaborando-a simbolicamente;
contudo

Os sujeitos não são livres para produzir seus discursos e nem podem
inventar na hora seus sistemas de comunicação. Eles recorrem a
matrizes discursivas constituídas e, em primeiro lugar, à matriz da
própria cultura instituída, reproduzida através de uma pluralidade de
agências sociais. Mas encontramos na sociedade agências que,
embora participando da cultura instituída (condição para que haja
comunicação social), expressam práticas de resistência e projetos de
ruptura. Constituem novas formas de agenciamento social, que
abrem espaço para a elaboração de experiências até então
silenciadas ou interpretadas de outro modo. As matrizes discursivas
devem ser, pois, entendidas como modos de abordagem da
realidade, que implicam diversas atribuições de significado. Implicam
também, em decorrência, o uso de determinadas categorias de
nomeação e interpretação (das situações, dos temas, dos atores)
como na referência a determinados valores e objetivos. Mas não são
simples ideias: sua produção e reprodução dependem de lugares e
práticas materiais de onde são emitidas as falas. (SADER, 1988, p.
142-143)

Conforme os discursos são indissociáveis destes “lugares e práticas


materiais”, Sader está interessado em descobrir “centros de elaboração discursiva”
que possibilitariam às classes populares reelaborarem suas próprias experiências e
vivências. Tal reelaboração nada mais seria do que uma mediação simbólica entre
as estruturas sociais objetivas e as ações coletivas: um processo de atribuição de
novos significados às condições de existência experienciadas e vivenciadas pelos
sujeitos. As matrizes discursivas podem ser entendidas, deste modo, tanto no seu
caráter institucional, como no de constituírem esferas públicas (muitas vezes
informais) e que podem ser apreendidas como redes de sociabilidade que, pela
! 94

interação social intersubjetiva, podem contribuir com a ressignificação crítica e


reflexiva da vida cotidiana e permitir a emergência de ações coletivas.

Em seu estudo empírico acerca de quatro movimentos populares – o


Movimento de Custo de Vida, a Oposição Metalúrgica de São Paulo, o Movimento
de Saúde da Zona Leste e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo (todos
analisados em seu 4º e último capítulo) – Sader identifica três matrizes discursivas:
a Teologia da Libertação, o marxismo e o novo sindicalismo. A apresentação das
matrizes discursivas no seu 3º capítulo se baseia em reconstruções históricas pouco
sistemáticas, com muitos detalhes concretos (e eventualmente análises
microssociológicas). A seguir, vou buscar reapresentá-las tentando alcançar um
grau de sistematicidade maior.

Em comum as três matrizes discursivas emergem de instituições – o que


Sader antes havia se referido à “cultura instituída” – em crise: (i) a Igreja Católica; (ii)
a esquerda revolucionária; e (iii) a estrutura sindical. Cada crise específica é
interpretada como a gênese de novas práticas – o que Vera Telles se refere como
“práticas instituintes”. Estas novas práticas paulatinamente se institucionalizam –
abordagem coerente com a fenomenologia de Berger e Luckmann (1983), segundo
a qual “a realidade objetiva [é pensada] como o resultado das ações sociais que se
objetivaram” (SADER, 1988, p. 47). Cada uma das três vias de institucionalização
resulta em lugares sociais de onde se emitem falas, mensagens e discursos: (i) as
Comunidades Eclesiais de Base; (ii) organizações e jornais clandestinos; (iii)
sindicatos que integram a institucionalidade estatal mas que buscam se reconectar
às suas bases. As falas emitidas destes lugares se orientam para um público de
ouvintes, para os quais estes discursos podem ou não ter ressonância e aderência.
Por último, interessa a Sader identificar os temas e enunciados que emergem destas
práticas institucionalizadas em lugares sociais de fala, pois seus conteúdos
viabilizaram reelaborações simbólicas de experiências populares, o que foi
fundamental para a emergência dos movimentos sociais que ele analisa no último
capítulo de seu livro. Tratarei agora um pouco mais detidamente de cada uma das
matrizes.

No primeiro item – “O cristianismo das comunidades de base” – a crise da


Igreja Católica é identificada como a "tomada de consciência de sua perda de
influência entre a população mais pobre, sobretudo a partir dos anos 50, frente ao
! 95

crescimento do pentecostalismo e da umbanda e, mesmo, do simples afastamento


das práticas religiosas" (SADER, 1988, p. 150). Várias novas práticas são levadas à
cabo para tentar superar esta crise, tanto em um nível macro (como o Concílio
Vaticano II e a Declaração de Medelin) quanto em um nível micro (a nova gestão de
Dom Paulo Evaristo Arns na Arquidiocese de São Paulo e o crescimento das
Comunidades Eclesiais de Base nas periferias urbanas da capital paulista). No caso
das CEB's, Sader as interpreta como “práticas sociais institucionalizadas na forma
de organização de onde se emitem as falas” (SADER, 1988, p. 150). Costumavam
ser reuniões periódicas (semanais, quinzenais ou mensais), que reuniam de 10 a 30
pessoas (tanto leigos quanto religiosos), cujos debates geralmente se pautavam
pelo chamado “método ver-julgar-agir”: eram trocas de informações e
conhecimentos em torno de problemas da vida cotidiana buscando tanto uma
reflexão crítica como ações locais orientadas por valores cristãos. A Teologia da
Libertação é caracterizada como um “estilo novo de pensar” (SADER, 1988, p. 163).
O seu tema central é a oposição entre libertação e opressão, articulada a uma
“constelação de valores positivos e negativos correspondentes” (SADER, 1988, p.
167), tais como: solidariedade vs. egoísmo, justiça vs. miséria, comunidade vs.
individualismo, crítica vs. alienação, povo vs. autoridades e poderosos, etc. Seria
uma crítica ao capitalismo teologicamente fundamentada em valores cristãos, ou
seja, a aplicação das “categorias de um discurso religioso” a “temas mais profanos,
da experiência cotidiana de seus membros” (SADER, 1988, p. 167).

Já no segundo item – “O marxismo de uma esquerda dispersa” – a crise


da esquerda revolucionária é fruto da derrota política e militar das insurreições
armadas. Diferentes organizações e militantes individuais passaram a realizar no
início da década de 1970 uma “autocrítica do militarismo” (SADER, 1988, p. 172).
Esta crise foi a gênese de novas práticas: tendo o método Paulo Freire – entendido
como “elaboração crítica e coletiva das experiências da vida individual e social dos
educandos” (SADER, 1988, p. 168) – como “paradigma” à “'nova relação' da
esquerda com seu público” (SADER, 1988, p. 168). Militantes e ex-militantes das
organizações da esquerda revolucionária passaram a se engajar em “atividades
junto a oposições sindicais, grupos de alfabetização e educação popular,
associações de bairros, grupos de fábrica […]” (SADER, 1988, p. 173). Estudantes
de medicina, por exemplo, vão às periferias depois de formados para trabalhar como
! 96

sanitaristas, assim como outros militantes também “buscaram vinculações políticas a


partir de suas competências profissionais: advogados, arquitetos, assistentes
sociais, professoras” (SADER, 1988, p. 176). Contudo, os “lugares de onde eram
emitidas as falas marxistas” tinham uma fragilidade, quando comparadas com a
Igreja e as CEB's. Se estas eram instâncias que institucionalizavam as novas
práticas em torno da Teologia da Libertação, no caso do marxismo, o mais próximo
eram as organizações clandestinas. Havia também os jornais, igualmente
clandestinos, os quais circulavam para um “público mais amplo” (SADER, 1988, p.
177). Principalmente tendo em vista a diminuição da ressonância da “luta
revolucionária” e da sua aderência à vida cotidiana da população em geral, os temas
desta matriz discursiva que são destacados na análise não são políticos e
estratégicos (orientados para a revolução) e sim teóricos, como as formulações
marxistas acerca da luta de classes, dos modos de produção, da exploração
capitalista e do conceito de mais-valia, do Estado como instrumento de dominação,
além do socialismo e do comunismo. Essas ideias foram absorvidas para interpretar
as condições de vida nos movimentos sociais: um “Curso de formação básica”
inicialmente elaborado pela Polop foi depois utilizado por várias outras organizações
(como MEP, MR8, AP, POC) e depois estas formulações – explicações marxistas
como temas e enunciados desta matriz discursiva – seriam absorvidas por
oposições sindicais, grupos de educação popular e treinamento pastoral.

Por fim, no terceiro item – “A emergência do 'novo sindicalismo'” – a crise


do sindicalismo é identificada na perda de “suas funções enquanto organismo de
representação das reivindicações operárias”, devido aos “próprios fundamentos da
estrutura sindical criada pelo Estado Novo” (SADER, 1988, p. 179). Onde não havia
a “presença desestabilizadora de mobilizações conflitivas nas bases fabris”, os
dirigentes sindicais se acomodaram bem à estrutura sindical atrelada ao Estado (e,
deste modo, ainda mais sujeita ao controle e à repressão pela ditadura militar do que
outros movimentos sociais). Porém a crise de representatividade eclodiu “nas
categorias onde os conflitos fabris localizados geraram pressões mais contundentes
sobre os próprios sindicatos” (SADER, 1988, p. 180). A saída para esta crise exigiu
a criação de oposições sindicais contra direções acomodadas (como no caso dos
metalúrgicos de São Paulo capital) ou então “as direções sindicais absorveram a
inquietação das bases e operaram uma 'transformação de dentro' na prática sindical”
! 97

(no caso dos metalúrgicos de São Bernardo). Mais uma vez, a crise de uma
instituição é a gênese de novas práticas. O grande tema que possibilita esta
reconexão entre a direção sindical e sua base é o da dignidade dos trabalhadores e,
portanto, o seu merecimento em participar do desenvolvimento que o país vivia no
decorrer da década de 1970. Os pronunciamentos públicos dos sindicalistas
denunciando que os índices oficiais de inflação eram distorcidos pelo governo
ganham destaque na imprensa, quebrando um silêncio anterior sobre os conflitos
trabalhistas. E com relação ao lugar de onde se emitem estas falas? “Os discursos
emitidos pelo 'novo sindicalismo' se fazem de um lugar social – os próprios
sindicatos – que integra a institucionalidade estatal” (SADER, 1988, p. 183). De um
lado, esta “obrigatória cumplicidade impunha sérias limitações às falas e
movimentos dos sindicalistas”, condicionando “suas modalidades discursivas”
(SADER, 1988, p. 183), mas de outro lado traz a vantagem de que eles são
reconhecidos publicamente como agenciadores dos conflitos trabalhistas:

Através de sutis e progressivos deslizamentos de significados, um


discurso da conciliação vai se tornando um outro, da contestação.
[...] A prática discursiva do novo sindicalismo opera essa passagem –
que não estava previamente inscrita em sua matriz nem na
“realidade” –, porque se “abriu” de um modo determinado para os
fatos que constituiu como sua realidade, abordando-os através de
determinadas categorias, e não outras. (SADER, 1988 p. 185)

Sader acompanha esta passagem analisando a imprensa oficial do Sindicato dos


Metalúrgicos de São Bernardo, a Tribuna Metalúrgica, mais especificamente as suas
matérias principais, a seção irônica e crítica dos bilhetes do “João Ferrador”, um
personagem fictício, e, por fim, os discursos do presidente do Sindicato, Luiz Inácio
Lula da Silva.

O panorama do 2º e do 3º capítulos do livro de Sader justifica a sua


eleição como núcleos iluminadores de seus princípios epistemológicos e
metodológicos. É justamente a apresentação, a partir de depoimentos pessoais, da
situação social dos trabalhadores paulistanos durante a década de 1970 – ou, nos
dizeres de Sader, das suas condições de existência, de trabalho e de vida – que
permite a compreensão da emergência e da efetividade dos movimentos populares
na virada dos anos 1970 para 1980, pois o quadro interpretativo do autor, ao não
dissociar os aspectos materiais (revelados por estatísticas e dados quantitativos) e
! 98

os aspectos simbólicos (ilustrados por narrativas, de caráter qualitativo) e até


mesmo subordinar os primeiros aos últimos, revela o caráter imanente das matrizes
discursivas que servem de base e fundamento para as mobilizações sociais e
políticas das classes populares. A teologia da libertação, o novo sindicalismo e o
marxismo só foram capazes de operar como matrizes discursivas com ressonância
na vida cotidiana dos trabalhadores paulistanos pois eram reelaborações simbólicas
– matrizes que permitem atribuir novos significados a situações e condições sociais
– que dialogavam com as experiências prévias, práticas e valorativas, dos próprios
sujeitos.

A efetividade do novo sindicalismo era dependente da experiência vivida


dos trabalhadores do despotismo fabril a partir de uma noção difusa de dignidade
humana que fundamentava seu inconformismo, da mesma forma que a efetividade
da Teologia da Libertação era condicionada pela ressignificação de valores
comunitários pelos migrantes nordestinos que se integravam à ordem social
competitiva em São Paulo de maneira ativa, criticando seus referenciais societários,
puramente abstratos e impessoais. Já com relação a matriz discursiva do marxismo,
embora ela não tivesse um enraizamento comparável na vida cotidiana dos
trabalhadores paulistanos, nenhuma das duas outras matrizes disponibilizava,
segundo Sader, categorias cruciais para a interpretação da realidade social, como
“capitalismo”, “luta de classes”, etc.

Porém, o que mais me interessa reter para os objetivos desta tese é a


interpretação de que a categoria de matrizes discursivas de Sader pode ser melhor
compreendida a partir do conceito (inicialmente habermasiano) de esfera pública, o
que buscarei demonstrar, a seguir, acompanhando como as noções de “público” e
“publicidade” aparecem em cada uma das três matrizes discursivas.

No caso da Teologia da Libertação, Sader identifica “um espaço público


[uma esfera pública – J.M.] sob a forma das comunidades de base”; a partir do lugar
das CEBs “os discursos da Igreja foram reelaborados em função das experiências
de seu público 53 ” (SADER, 1988, p. 176). Quando os membros da Igreja se
incorporam nas CEBs, eles se inscrevem:!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
53
Grifarei em itálico, na continuidade, o termo “público” toda vez que ele aparecer nas citações de
Sader.
! 99

!
numa história pública, diversa da comunidade familiar.
Independentemente das formulações explícitas dos discursos
pastorais (que quase nada falam sobre isso) a integração das
mulheres nesses espaços de reflexão crítica coletiva e de luta social
implica uma passagem da esfera privada para a esfera pública, com
fundas consequências práticas. (SADER, 1988, p. 166; meus grifos)

No caso da matriz discursiva da esquerda marxista, o contexto é mais


complexo. A clandestinidade das suas organizações “definia um 'público' quase
conspirativo” (SADER, 1988, p. 176). E mesmo no caso de sua imprensa, que
almejava atingir pessoas para fora deste círculo restrito, seus jornais também eram
obrigados a serem clandestinos e “tampouco puderam constituir verdadeiramente
um público” (SADER, 1988, p. 177). Esta fragilidade na constituição de uma esfera
pública efetiva (pois clandestinidade e publicidade de certa maneira se excluem
mutuamente) no caso da esquerda que deixava de ser revolucionária a tornou
bastante dependente da base institucional da primeira matriz discursiva para que
suas falas e enunciados circulassem:!

!
Os lugares públicos decisivos onde se reelaboraram as experiências
populares foram constituídas pelas pastorais católicas e
expressaram essa hegemonia. Mas essas pastorais não tinham um
discurso capaz de dar conta dos problemas das lutas de classe e das
condições da sociedade capitalista, tal como requeriam os militantes.
Foi por aí que entraram as teses de uma esquerda dispersada.
Entraram desarticuladas dos seus discursos de origem, montados
como programas e estratégias revolucionárias. (SADER, 1988, p.
178; meu grifo)

Já no caso da matriz discursiva do novo sindicalismo, a sua característica


de esfera pública fica mais evidente quando Sader analisa as falas de Lula quando
ele era presidente do sindicato dos metalúrgicos: “Ele partilha das modalidades
operárias de expressar-se no seu cotidiano ao mesmo tempo que as projeta no
cenário público, onde polemiza de igual com os demais interlocutores” (SADER,
1988, p. 189; meu grifo). Segundo Osakabe (1987) – linguista e interlocutor de
Sader – os discursos de Lula explicitariam a experiência sensível dos trabalhadores,
além de dissolver “as compartimentações entre a linguagem pública e a privada ou
entre o conveniente e o inconveniente”. Era, naquele momento, “a fala de um ator
não domesticado pelas regras instituídas” (SADER, 1988, p. 190). Um discurso
! 100

analisado de modo paradigmático, em seguida, é em uma assembleia dos


trabalhadores em greve, reunidos no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do
Campo. Lula começa convocando seus ouvintes para deliberarem com ele,
interpelando-os. O então sindicalista investe o conflito salarial com um significado
maior, vinculado à honra dos trabalhadores; este registro expressaria “um modo de
interpretação dos fatos que toca muito de perto aquele público”; manter a greve seria
“afirmar a própria dignidade” dos trabalhadores “contra o desrespeito com que
pretendem tratá-los” (SADER, 1988, p. 191). Segundo as palavras de Lula, os
empresários não queriam conceder o aumento salarial “pela importância atribuída
aos metalúrgicos do ABC”; assim, ele quer que os trabalhadores percebam “a
importância pública de que estão revestidos” e a “dimensão histórica desse conflito”
e, assim, passem a investir sua energia na greve como se a sua própria honra
pessoal estivesse em jogo (SADER, 1988, p. 191; meus grifos).

Em síntese – e considerando a inspiração declarada de Sader (1988, p.


145) na obra do linguista brasileiro Haquira Osakabe (1979) –, as matrizes
discursivas são analisadas: (i) observando as “condições de produção do discurso”:
instituições em crise são a gênese de novas práticas (instituintes), as quais se
institucionalizam em lugares sociais de onde se emitem falas inovadoras para um
público de ouvintes (constituindo, desta forma, uma esfera pública); e (ii) captando a
“organização argumentativa” produzida pelos locutores: os principais temas destas
falas. Caso os conteúdos destes discursos e enunciados tenham aderência e
ressonância na vida cotidiana das classes populares, elas podem se apropriar deles
ativamente para reelaborar sua própria experiência, processo que está na gênese
dos movimentos populares da redemocratização brasileira.

* * *

Antes de avançar (nos capítulos 3 e 4 desta tese) na interpretação do


“Feminismo Periférico” por meio da abordagem aqui delineada – e das categorias-
chave que a estruturam: modos de vida, matrizes discursivas, esferas públicas e
formas de sociabilidade – vou retomar de maneira breve e esquemática o ciclo
político anterior, o “Feminismo Popular”, a fim de estabelecer alguns parâmetros
! 101

comparativos que me parecem ser heurísticos, uma vez que permitirão, por
contraste, identificar as matrizes discursivas do “Feminismo Periférico”.

No caso do “Feminismo Popular”, é possível afirmar que o ciclo de ações


coletivas de mulheres trabalhadoras nas periferias da Zona Leste de São Paulo
compartilha várias características do ciclo que o próprio Sader está analisando.54
Compreendo enquanto matrizes discursivas deste ciclo três diferentes instituições
com seus respectivos espaços de sociabilidade: (1) a Igreja Católica, na sua
vertente progressista da Teologia da Libertação e os espaços das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs); (2) Organizações Não-Governamentais (ONGs)
participantes do movimento feminista, fundadas principalmente no decorrer das
décadas de 1980 e 90, cujas sedes não se localizam na Zona Leste, mas realizando
trabalhos de base em bairros periféricos; e (3) o “mundo do carnaval”, com suas
escolas de samba e blocos afro, tanto no Centro quanto espalhadas pela Zona
Leste, enquanto um espaço de resistência da cultura negra.

Para mim, a categoria “Feminismo Popular” 55 busca dar conta de um


fenômeno social que emergiu na década de 1980 que foi a gradual tematização dos
direitos das mulheres no interior dos movimentos sociais populares urbanos56. Na
realidade, a centralidade da noção de “popular” para este ciclo político também pode
ser atestado em outras instâncias: o diálogo mantido pela Teologia da Libertação
com o chamado catolicismo popular; as ONGs feministas encaravam seu trabalho
de base nas periferias como educação popular (em uma clara inspiração no
pensamento e na prática de Paulo Freire); e o samba e o carnaval são
manifestações por excelência da cultura popular brasileira.57

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
É possível inclusive hipotetizar que seus repertórios constituem um “sub-ciclo” tardio de um ciclo de
contestação política maior, que coincide com a redemocratização brasileira e cujo ápice é a
Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 (cf. BRANDÃO, 2011).
55
Em outros campos empíricos, Bonetti (2000; 2007) nomeia fenômenos políticos similares de
“participação política feminina popular” e de “ativismo feminino popular”. O único outro uso do qual
tive notícia de “feminismo popular”, praticamente no mesmo sentido em que emprego, é um artigo de
A. Costa (2005).
56
Os quais podem ser considerados, na terminologia de McAdam vista no capítulo 1, como
movimentos iniciadores, enquanto que as associações feministas populares seriam movimentos
derivados.
57
A categoria do “popular” também está presente na reflexão das ciências sociais brasileiras acerca
das mobilizações sociais e políticas neste momento histórico (cf. DOIMO, 1995; e também: PAOLI;
SADER, 1983; e PAOLI; SADER; TELLES, 1986).
! 102

Quatro das iniciativas que incluímos no “Feminismo Popular” surgiram no


seio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As militantes entrevistadas
enfatizaram a relevância da Teologia da Libertação para a formação de sua visão de
mundo e sua atuação política: a Amzol foi fundada reunindo comunidades e Clubes
de Mães de paróquias do distrito do Itaim Paulista e outras regiões; a Casa da
Mulher Lilith antes era um Grupo de Mulheres que se reunia na Paróquia Nossa
Senhora do Carmo da Vila Alpina (distrito de Vila Prudente); o Movimento de
Mulheres de São Miguel é criado no interior do Movimento de Saúde da Zona Leste
(MSZL) que, por sua vez, surge na Paróquia de Santa Luzia, no Jardim Nordeste
(distrito de Artur Alvim); e, por fim, o Coletivo de Mulheres de São Mateus utilizava
para realizar algumas de suas reuniões a Paróquia São Mateus Apóstolo (distrito de
São Mateus).58

Há nos depoimentos das entrevistadas dois sentidos atribuídos às CEBs


e à Igreja Católica: de um lado, espaço de sociabilidade e lazer, de outro, espaço de
formação política. A ex-integrante do Coletivo de São Mateus explica que, sem
opções de lazer na periferia (no decorrer da década de 1980), a igreja “era o ponto
de encontro”; mas conforme as CEBs eram um local que “fazia a oração ir pra
ação”, além de espaço de encontro, também eram “espaço de reflexão das
pessoas”. A presidente da Amzol explica, por sua vez, que com a “mulherada
dentro das igrejas”, criaram-se “espaços para as pessoas falarem”, ou seja:
compartilharem as histórias de seu lugar, como chegaram neste bairro dormitório (no
caso ela se referia ao Itaim Paulista), apontar o que ali faltava e, deste modo, lutar
para alcançar conquistas no sentido de suprir estas carências. Além de encontrar
um “calor humano na igreja”, todas as entrevistadas são unânimes em apontar o
caráter formativo da participação nas comunidades católicas; elas chegam a atribuir
às CEBs o que ocorreu de mais fundamental nas suas trajetórias de militância:
enquanto a fundadora da Casa Lilith afirma “eu me formei nas discussões de
formação das CEBs”, a militante do Movimento de São Miguel (e atual diretora do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
58
Pelo que averiguei com as entrevistadas e por meio de meu próprio levantamento bibliográfico, a
Amzol é a única associação que foi tema de pesquisas empíricas acadêmicas (VIEZZER, 1989;
TOMITA, 2004; CORREIA, 2015). O Movimento de Mulheres de S. Miguel não foi propriamente
investigado, embora a literatura sobre o MSZL seja relativamente vasta (BOGUS, 1998;
CARIGNATO, 2007; CITELI, 1994; MACHADO, 1995). Por último, a Casa da Mulher Lilith e o
Coletivo de Mulheres de S. Mateus não foram diretamente pesquisados pela academia, embora a
primeira tenha sido mencionada em investigação de pesquisadora estrangeira acerca dos dilemas da
profissionalização dos movimentos de saúde das mulheres (LEBON, 2000).
! 103

MSZL) defende que “A força que eu tenho pra lutar no movimento, eu adquiri
com a Igreja de Dom Angélico 59 ”. Segundo a presidente da Amzol, “Dom
Angélico foi um bispo revolucionário”. No caso de São Mateus e de Vila
Prudente (distrito onde se localiza o bairro da Vila Alpina, onde eram desenvolvidas
as atividades da Casa Lilith), o responsável por levar a cabo estas mesmas
diretrizes, era Dom Luciano Mendes de Almeida, responsável pela Região Episcopal
Belém, a qual permanece até hoje ligada diretamente à Arquidiocese de São Paulo.
Como explica a fundadora da Casa Lilith, as CEBs foram um “espaço que nos deu
muita força e conhecimento para enfrentar a ditadura militar” e “as pessoas
cresceram muito nesse processo”.

É consenso na literatura que a composição dos movimentos populares


era majoritariamente de mulheres (GOHN, 1985; SADER, 1988); contudo, na
maioria dos casos, tratavam-se de lutas sociais em torno de contradições e
carecimentos urbanos: creche, saúde e, principalmente, moradia. Apenas uma
minoria destas mobilizações populares se desenvolveu no sentido de se voltar para
as especificidades da situação social das mulheres para constituir um associativismo
de mulheres voltado para mulheres. Várias das autodenominadas Associações de
Mulheres que entrevistei são fruto deste momento histórico, mas que não deram o
passo em direção aos direitos específicos das mulheres. Nos casos em que este
passo foi dado, pude identificar um tensionamento da Teologia da Libertação em
direção a uma Teologia Feminista da Libertação (TOMITA, 2004)60.

Já no caso de uma matriz discursiva diretamente “feminista”, os “centros


de elaboração discursiva” são o que estou chamando de “ONGs feministas centrais”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
59
Dom Angélico Sândalo Bernardino foi o bispo auxiliar de São Miguel, entre 1975 e 89; foi ele quem
organizou a Igreja Católica, suas pastorais, paróquias e comunidades no sentido defendido por Dom
Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, na linha progressista do Concílio Vaticano II (IFFLY,
2010).
60
No interior da crescente discussão acerca de gênero e sociologia da religião, a Teologia da
Libertação (TL) costuma ser interpretada mais no sentido de seus bloqueios à emancipação das
mulheres do que de seus potenciais, mesmo que não efetivados por completo. Percebi nas falas de
todas as entrevistadas uma auto-identificação com os padres, religiosos e religiosas integrantes desta
vertente progressista da Igreja Católica e, em oposição, uma identificação das vertentes
conservadoras como suas adversárias. Não descarto que esta não-problematização dos bloqueios
anti-feministas da Igreja se relacione diretamente ao aspecto de trauma que teve a intervenção do
Vaticano com a retirada de Dom Angélico Sândalo Bernardino como bispo de São Miguel Paulista e o
desmantelamento da TL nas paróquias e comunidades da Zona Leste em suas vivências políticas,
espirituais e cotidianas. Hoje, mesmo que as entrevistadas ainda eventualmente se declarem
católicas, nenhuma delas têm participação remotamente ativa na vida comunitária e eclesial de suas
ex-paróquias.
! 104

– com sedes localizadas na região central ou na Zona Oeste da cidade de São


Paulo.61 Pode-se dizer que, da mesma forma que a matriz discursiva da esquerda
ex-revolucionária, analisada por Sader, forneceu explicações teóricas marxistas para
as pastorais e os movimentos populares, aqui, é esta articulação de ONGs que
fornecerá explicações teóricas feministas e de gênero para as associações e
movimentos de mulheres da Zona Leste. A relação entre teoria e experiência – ou
teoria e prática – era vivida pelas militantes do “Feminismo Popular” por meio da
atribuição de um caráter exterior à teoria feminista; como me explicou a então
presidente da Associação de Mulheres da Zona Leste: “A Amzol não tem parte
teórica. Nós somos mais da prática, mas a parte teórica veio da Católicas pelo
Direito de Decidir, muito do [sic] SOF e da Rede Mulher de Educação”; outra
entrevistada, pelo Movimento de Mulheres de São Miguel, formula a relação com a
assessoria técnica feminista da seguinte maneira: “Quem nos ensinou a gritar foi
o [sic] SOF”.62

Na maioria dos casos há, portanto, uma colaboração histórica com a


Sempreviva Organização Feminista (SOF) e uma identificação com a Marcha
Mundial das Mulheres (MMM); contribuiu para isto a manutenção até meados da
década de 1990 de uma sede da SOF em uma casa em São Miguel Paulista (onde,
inclusive, funcionou ao lado também a sede da Amzol, por algum tempo). Há a
presença de outras ONGs feministas na trajetória de cada uma das organizações.
As atividades da Amzol, em sua origem, no começo da década de 1980 são, em
grande parte, uma pesquisa-ação participante da RME-Rede Mulher de Educação
(VIEZZER, 1989); já na década de 1990, a Amzol participou do 1º curso de
Promotoras Legais Populares (PLPs), promovido principalmente pela UMSP-União
de Mulheres do Município de São Paulo (RICOLDI, 2005), o que foi fundamental

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
Outra característica em comum entre estas ONGs, além da localização de suas sedes (cf. a
Imagem 7 desta tese para os seus bairros: Bela Vista, Lapa, Liberdade, Pinheiros), são suas datas de
fundação, todas nas décadas de 1980 e 90: Rede Mulher de Educação (1980); União de Mulheres do
Município de São Paulo (1981); Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (1981); Geledés (1988);
Católicas pelo Direito de Decidir (1993); e Fala Preta! (1997). A única exceção é a SOF, fundada em
1963, mas que passa por transformações nominais, já na década de 1980, e assume, a partir de
1993, uma identidade feminista (GOMIDE, 2002, p. 84).
62
O uso do artigo masculino, “o”, para a SOF (Sempreviva Organização Feminista), se deve ao fato
de que a ONG tinha antigamente um outro nome: o “Serviço de Orientação Familiar”; o uso contínuo
da expressão “o SOF” denota a longa atuação da SOF na região leste da cidade, a ponto de ficar
marcado na memória das militantes do “Feminismo Popular” o significado anterior da sigla, que foi
mantida.
! 105

para que em 1996 fosse aberto o Centro Jurídico Maria Miguel.63 Para a Casa da
Mulher Lilith, a colaboração mais longeva foi com o CFSS-Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde (COLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE, 2000),
com o qual as militantes da Vila Alpina publicaram a revista semestral Enfoque
Feminista, tiveram auxílio com o boletim bimestral Lilith Informa, além de manter
atividades voltadas à sensibilização e conscientização em torno da AIDS. Em mais
de uma entrevista também surgiu a importância de Marta Suplicy, então feminista e
sexóloga, da sua participação em um programa de televisão64, mas também da sua
participação em debates e palestras, realizadas tanto pela SOF quanto em
paróquias da Igreja Católica. Por fim, as entidades deste ciclo que inovaram ao
tematizar explicitamente a questão da mulher negra mantiveram alianças e parcerias
com as ONGs feministas centrais que foram pioneiras no feminismo negro: as ONGs
Geledés e Fala Preta (CARLOS, 2009; SANTOS, S., 2008) sempre enviavam dicas
de editais de financiamento para o Dandara (e a Fala Negão / Fala Mulher!),
enquanto que o Oriashé promoveu em colaboração com o Geledés dois cursos de
formação de PLPs na Cidade Tiradentes.

Justamente nestes últimos casos, que privilegiaram em suas práticas e


seus discursos a questão racial, verifica-se que há, no interior do “Feminismo
Popular” uma espécie de substituição da matriz discursiva católica; se na maioria
dos casos há um encontro entre a Teologia da Libertação e as “ONGs feministas
centrais”, nos casos minoritários, do Espaço Lilás e do Dandara, estas agências de
mediação feministas estão presentes, mas no lugar das CEBs está o que uma delas
chamou de “o mundo do samba” e do carnaval. Suas lideranças entrevistadas não
são católicas e sim praticantes do candomblé65. Como explica a entrevistada pelo
Grupo Cultural Dandara, foi o samba quem lhe deu sua identidade racial,
principalmente por conta da escola de samba que ela frequentava na Vila Formosa,
distrito da Zona Leste. Já no caso do Oriashé (cujo nome oficial é “Oriashé –
Sociedade de Cultura e Arte Negra”), que depois criou o Espaço Lilás, foi,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
Algumas pesquisas empíricas realizadas acerca destas ONGs “centrais” podem auxiliar na
compreensão do papel de assessoria técnica que elas prestaram para os movimentos de mulheres
do “Feminismo Popular”: no caso da SOF e da RME (GOMIDE, 2002) e no caso da UMSP
(OLIVEIRA, J., 2013). Para uma compreensão abrangente da história do movimento feminista na
cidade de São Paulo, cf. Fanti (2016).
64
O quadro “Comportamento Sexual”, no programa TV Mulher, na Rede Globo de Televisão.
65
Nação jêje mahin no caso da fundadora do Oriashé e nação ketu no da entrevistada pelo Dandara.
! 106

originalmente, um dos primeiros blocos afro composto apenas por mulheres negras,
fundado no final da década de 1980 no Bixiga, região central da cidade (CASTRO,
2008; MENDONÇA, 1993); com a saída de uma das suas fundadoras do Bixiga para
a Cidade Tiradentes (a entrevistada, que inclusive foi militante do MNU-Movimento
Negro Unificado), as mulheres que permaneceram no Centro criam, alguns anos
depois, o Bloco Afro Ilú Obá de Min (SOUZA, 2014). Se a Associação Fala Negão /
Fala Mulher! (de composição mista) for considerada, sua origem também está no
mundo do carnaval: uma das principais entidades que participou de sua fundação é
a Leandro de Itaquera, uma escola de samba com grande participação de negros e
um discurso crítico com relação à questão racial (OLIVEIRA, K., 2002).

O que importa reter nesta brevíssima apresentação da matriz discursiva


do “mundo do samba”, em sua conexão com diferentes organizações do Movimento
Negro, é como as escolas de samba e os blocos afro se constituem enquanto
espaços de sociabilidade nos quais a cultura é vivida como base para a construção
da identidade racial e como resistência negra; é a partir destes sentidos e
significados que um número minoritário das militantes do ciclo do “Feminismo
Popular” puderam esboçar práticas e discursos que não invisibilizassem as questões
específicas das mulheres negras. Correia aponta, em seu estudo empírico que
abrange a Amzol, como “a temática racial se insere de forma tímida” e como “o
debate racial ainda não era priorizado” (CORREIA, 2015, p. 48). Neste sentido, é
possível atribuir ao Oriashé e ao Dandara a antecipação de certas características do
próximo ciclo político, como será visto adiante.

Se as CEBs, as “ONGs feministas centrais” e o “mundo do samba” são


as matrizes discursivas que contribuíram para a gênese do “Feminismo Popular”, o
que é possível dizer do desenvolvimento deste ciclo político? Já foi visto no Capítulo
1 como os CDCMs institucionalizaram a prática de atendimento psicológico e jurídico
a mulheres em situação de violência como parte da assistência social municipal. As
entidades que foram pioneiras neste tipo de atendimento se viram constrangidas a
adotar este formato dos convênios pois entraram em uma prolongada crise de
! 107

sustentabilidade, praticamente ao mesmo tempo que em que se consolida, muito


recentemente, a Rede Leste de Enfrentamento à Violência, com suas casas
conveniadas passando a atender mulheres em seu lugar. O fator explicativo para
esta simultaneidade não parece ser um único, consistindo em vários processos
sociais paralelos e que se cruzam.

Em primeiro lugar, há de se considerar o processo, com efeitos profundos


e demorados, de intervenção do Vaticano na Igreja Católica paulistana a partir de
1989, com o desmembramento da Arquidiocese de São Paulo e a criação da
Diocese de São Miguel Paulista, substituindo Dom Angélico Sândalo Bernardino,
religioso progressista e braço-direito de Dom Paulo Evaristo Arns, por um bispo
conservador. A mudança no topo da hierarquia da região leste tem consequências
até o cotidiano local e microscópico, com mudanças de padres nas paróquias,
alterações na liturgia que reinstauram o distanciamento entre clero e laicato, sem
contar os obstáculos levantados a iniciativas antes consideradas normais e mesmo
desejáveis (como impedir a utilização do salão da paróquia para a realização de
reuniões, seja dos movimentos populares, seja dos grupos de mulheres em nome de
atividades mais diretamente religiosas) e até perseguições diretas e inescrupulosas
a certos membros da comunidade envolvidos em atividades políticas. Esta
intervenção política conservadora, aliada a um processo mais amplo (e irreversível)
de pluralização e diversificação do campo religioso local, metropolitano e nacional,
corrói os fundamentos que antes facilitavam enormemente tanto um diálogo entre
lideranças e bases no interior do “Feminismo Popular” por meio da Teologia da
Libertação – como também permitiam que o espaço eclesial fosse muito mais do
que isso, enquanto espaço de encontro, lazer e rede de sociabilidade – na forma das
CEBs (MACEDO, 1986).

Em segundo lugar, há uma alteração na presença das “ONGs feministas


centrais” realizando trabalho de base em bairros periféricos da Zona Leste.
Emblemático disso é a saída da SOF (Sempreviva Organização Feminista) de São
Miguel Paulista, em torno de 1996-97, quando deixa sua sede para focar sua
atuação na Zona Sul de São Paulo. Este fato é lembrado em algumas entrevistas
como algo de consequências profundas, como pude também presenciar na fala de
uma das militantes entrevistadas em uma das Plenárias Deliberativas promovidas
pela Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres no início do ano de 2015, com
! 108

assessoria da SOF. Ela exaltou a possibilidade de retomar naquele momento o


trabalho das décadas de 1980 e 90 pois com a saída da SOF “nós não
conseguimos nos segurar”: “é pouca mulher para muita atividade”; seu maior
desejo era “que as mulheres voltem a se reunir como antes”; vários trabalhos
com as mulheres haviam sido feitos com a SOF na região, mas quando ela “foi só
para a Zona Sul, nosso trabalho caiu”.66

Um terceiro aspecto que não pode ser ignorado é: não foram apenas
estas militantes feministas que deixaram de realizar trabalho de base, mas foi
fundamentalmente o Partido dos Trabalhadores, do qual todas as entrevistadas
deste ciclo político fizeram parte em algum momento de suas trajetórias militantes.
Em meados da década de 1990, a prioridade do partido deixa de ser a construção
“de baixo para cima”, a partir dos movimentos sociais e das bases populares, para
se concentrar exclusivamente na disputa da eleição presidencial; esta estratégia,
aliada a uma saída de lideranças de suas bases para trabalhar em gabinetes, resulta
em um processo que muitos autores qualificam como uma “burocratização” do
partido.67 Algumas entrevistadas, mesmo permanecendo filiadas ao PT, demonstram
alguma decepção com os rumos do partido; mesmo que publicamente defendam-no
e ao governo da então presidenta Dilma Rousseff (inclusive enfaticamente nas redes
sociais), reservadamente, com o microfone ligado ou não, compartilham sua
infelicidade e, principalmente, sua dificuldade em serem cabos eleitorais em suas
regiões de atuação, por conta seja do governo federal (da então presidente Dilma
Rousseff), seja do municipal (a gestão do então prefeito Fernando Haddad). De
qualquer modo, o mais importante a ser destacado é a ausência de trabalho de base
por parte do PT, o que tem consequências diretas para as atividades das
associações, organizações e movimentos que gravitavam em torno dele desde a
década de 1980.

O quarto processo a ser indicado é uma questão material: tanto a


fundadora da Casa da Mulher Lilith quanto a então presidente da Amzol relatam que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
66
Anotei estas falas em meu caderno de campo.
67
Secco (2011), por exemplo, analisa a história do PT mostrando como no seu início ele atuava como
“oposição social” (extraparlamentar), mas na década de 1990 ele passa a agir como “oposição
parlamentar”, até que, após a eleição de Lula em 2002, passa a ser “partido de governo”. Para uma
outra análise desta estratégia eleitoral do PT e da sua aceitação crescente da lógica de
funcionamento do sistema político brasileiro, cf. Nobre (2013).
! 109

as dificuldades financeiras das entidades se iniciaram quando começou a escassear


o financiamento de ONGs cristãs internacionais (como as holandesas ICCO e
Fundação Samuel, no caso da primeira, e a alemã Misereor, no caso da segunda).
Na avaliação das entrevistadas, esta mudança, que elas identificam com o final da
década de 1990 e o início do Governo Lula, só seria compreensível se fosse
considerada que a melhoria na economia a partir das presidências petistas teria
levado estas ONGs a priorizar projetos internacionais voltados a países que teriam
mais necessidade de seu financiamento, como os do continente africano.

Em quinto e último lugar, há alterações institucionais incontornáveis. O


ano de 2006 é emblemático, pois ele reúne tanto a promulgação da Lei Maria da
Penha (MACIEL, 2011) quanto a criação da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo (ZAFFALON, 2010). No caso específico da Amzol, não se trata apenas de
uma questão política (não faz mais sentido, para as próprias militantes, ofertar o
atendimento jurídico gratuito pois a luta agora é pela qualidade da Defensoria) mas
também econômica: dois anos antes já havia sido encerrado o convênio mantido
com a PGE-SP que financiava o seu Centro Jurídico Maria Miguel. Estas mudanças
institucionais são inegáveis conquistas de diversos movimentos sociais, mas elas
também impactam diretamente o repertório de ação coletiva, ao menos das duas
entidades que aqui estou considerando como paradigmáticas do “Feminismo
Popular”. Uma nova alteração institucional é, como visto, a expansão dos convênios
da SMADS em torno da violência contra as mulheres no final da gestão Kassab. Em
termos puramente hipotéticos, a Casa Lilith poderia ter se candidatado para ser o
CDCM da região Vila Prudente/Sapopemba (quem ganhou foi o CIAP São Patrício,
que constituiu a Casa Zizi, mas que não tinha experiência prévia com os direitos das
mulheres, antes atuando na área dos direitos das crianças e dos adolescentes),
enquanto que a Amzol poderia tê-lo feito para ser o CDCM de Itaim Paulista (quem
foi escolhida foi a Casa de Isabel, cuja origem é, segundo a própria entrevistada,
uma dissidência da Amzol).

No momento de realização das entrevistas, em meados de 2015, as


militantes da Casa Lilith e da Amzol não cogitavam apostar nestes convênios como
uma forma de atuação; no seu entender, a subordinação à SMADS prejudicaria a
“autonomia” – categoria das próprias entrevistadas – que elas gostariam de manter
para suas associações. O paradoxo desta decisão é o que estou chamando de crise
! 110

de sustentabilidade de suas atividades, sob o risco das entidades deixarem de existir


em um futuro próximo.

Alguns meses depois da entrevista, no final de 2015, a Amzol se


candidatou para o edital de gestão conveniada de um novo serviço indireto da
SMPM, o Centro de Referência da Mulher (CRM) na Zona Leste, mais
especificamente em São Miguel Paulista. A partir do início de 2016, a Amzol passou
a gerir o CRM “Onóris Ferreira Dias”, indicando que a forma de dar continuidade à
instituição é resolver sua crise financeira por meio dos convênios com o poder
público. Na Conclusão, retomarei este convênio e sua curta vida (menos de um ano)
a fim de problematizar que a sociedade civil e os movimentos populares paulistanos
podem estar vivendo uma desinstitucionalização de suas conquistas históricas nos
próximos anos.
! 111

3
A formação de um “Feminismo Periférico”

3.1 Ponto de partida: a vida cotidiana de mulheres periféricas

Os coletivos feministas periféricos são formados majoritariamente por


mulheres jovens, nascidas nas décadas de 1980 e 90 (as exceções são raríssimas).
Assim, um diálogo com a bibliografia da sociologia da juventude pode auxiliar na
elucidação das condições sociais de possibilidade deste novo associativismo. Neste
sentido, a obra de Dayrell (2001) é muito produtiva. Em sua pesquisa sobre os
estilos musicais rap e funk em Belo Horizonte, o autor aponta uma “efervescência
cultural nas periferias”, por meio da qual os jovens elaboram novas “formas de
comunicação”, lançando mão da “dimensão simbólica” e passando de meros
fruidores (principalmente da música) a produtores culturais (DAYRELL, 2001, p. 1).

O objeto de sua pesquisa não são “formas institucionais dos processos


educativos”, mas as relações entre a experiência e vivência dos jovens nos grupos
musicais com as outras instâncias sociais em que se inserem. Em vez de partir de
um modelo de juventude – como é comum de se fazer, sempre partindo da
experiência de “jovens das camadas médias e altas” e avaliando os jovens das
classes populares por meio do negativo (a falta e a ausência) – Dayrell busca
realizar o caminho inverso: partir do cotidiano vivido por rappers e funkeiros para
“apreender os modos pelos quais os estratos juvenis das camadas populares
constroem a sua experiência como tais” (DAYRELL, 2001, p. 11). Assim, ele quer
reconstruir “modos de vida juvenil”: diferentes modos de ser jovem que são
expressos pelos estilos musicais.

Segundo o autor, a juventude é muitas vezes vista como um “momento de


crise”; mas o que lhe interessa é não apenas a “crise da família como instituição
socializadora”, como também a perda do papel central que antes a escola e o
(mercado de) trabalho possuíam em termos de orientação de valores. Em um
contexto em que a juventude é vivida “como um momento de distanciamento da
família”, o “jovem passa a valorizar o grupo de pares como um espaço privilegiado
! 112

de sociabilidade, de busca de novas atitudes e experimentação de novos espaços


sociais, fazendo do grupo uma referência tipicamente juvenil” (DAYRELL, 2001, p.
15-16; meus grifos). Além de buscar neste grupos “de pares”, os jovens também
produzem “culturas juvenis”, ou seja: “modos de vida específicos e práticas
cotidianas dos jovens, que expressam certos significados e valores não tanto no
âmbito das instituições como no âmbito da própria vida cotidiana” (PAIS apud
DAYRELL, 2001, p. 20). Nesta linha, estas culturas (ou “subculturas”, segundo
outras vertentes sociológicas) “cumprem funções positivas que não estão resolvidas
por outras instituições, significando espaços de autonomia e auto-estima para os
jovens […] [e] podem expressar novos valores em oposição e resistência a um
código cultural-padrão” (DAYRELL, 2001, p. 20).

Dayrell também permite dar mais concretude sociológica ao conceito


thompsoniano de “modo de vida”, uma vez que ele busca “compreender como esses
se constroem e são construídos como sujeitos sociais por meio das experiências
socializadoras e das formas de sociabilidade que eles vivenciam” (DAYRELL, 2001,
p. 237; meus grifos). Estas categorias de “socialização” e “sociabilidade” são cruciais
para esta tese, da mesma forma que as noções – paralelas – emprestadas de Sader
(“modos de vida” e “matrizes discursivas”).

Quando Dayrell fala em “experiências socializadoras”, ele traça a sua


origem conceitual partindo de Durkheim – que se ocupou da internalização de
regras, normas e valores, com o predomínio da sociedade sobre o indivíduo –
passando pela sociologia fenomenológica de Berger e Luckmann (1983) – que
buscaram superar este dualismo sociedade/indivíduo – até chegar na “sociologia da
experiência” de François Dubet68 (1996). Segundo este último autor, a tentativa de
Berger e Luckmann não teria sido bem-sucedida pois ainda estaria concebendo a
socialização como um processo de internalização, em vez de um processo de
apropriação ativa pelos sujeitos sociais. Também seria fundamental conceitualizar a
pluralidade e heterogeneidade dos processos de socialização em sociedades
complexas:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
68
Segundo Setton (2005) outro sociólogo contemporâneo fundamental para se pensar nos processos
de socialização, além de Dubet, é Bernard Lahire (2003). Para uma outra história das teorias da
socialização em diferentes ciências humanas, cf. Dubar (2005).
! 113

[Os jovens têm] acesso a múltiplas referências culturais, construindo


um conjunto heterogêneo de redes de significado que são articuladas
e adquirem sentido na sua ação cotidiana. Assim, ele interpreta a
sua posição social, dá um sentido ao conjunto das experiências que
vivencia, faz escolhas, age na sua realidade: a forma como ele se
representa como sujeito é fruto desses múltiplos processos.
(DAYRELL, 2001, p. 234)

Já com relação ao conceito de “sociabilidade”, a principal referência de


Dayrell é a obra clássica de Simmel (1983), segundo o qual a sociabilidade seria
uma “forma de sociação” específica, “emancipada dos conteúdos” (DAYRELL, 2001,
p. 234); “uma relação na qual o fim é a própria relação, o que vale é a pura forma”
(DAYRELL, 2001, p. 235). Além da sociabilidade ser um “jogo de formas”, a
“conversação” é um ato central para o conceito69, o que também é marcante para se
compreender a valorização de espaços autônomos pelos jovens pesquisados:

[…] a conversação assume para os jovens um papel muito


importante, tornando-se uma das motivações principais dos seus
encontros. O “trocar ideias” é de fato um exercício da razão
comunicativa, ainda mais significativo quando encontram poucos
espaços de diálogo além do grupo de pares. […] a sociabilidade para
esses jovens parece responder às suas necessidades de
comunicação, de solidariedade, de democracia, de autonomia, de
trocas afetivas e, principalmente, de identidade. (DAYRELL, 2001, p.
236-237)

Com relação às experiências socializadoras que foram identificadas na


análise das entrevistas como pré-existentes ao surgimento dos coletivos das jovens
mulheres periféricas e que fomentaram ou impulsionaram a sua auto-organização,
podemos apontar, de início, a centralidade da família. Em alguns casos, os laços de
parentesco imediatos são a primeira entrada para as mulheres se organizarem e
darem o ponta-pé inicial ao seu associativismo. Em outros, são as experiências
práticas no interior do espaço familiar que impulsionam a associação entre
mulheres.

No caso do Mulheriu Clã, os dois grupos de rap que estão na sua origem
e estruturam suas ações para incluir outros coletivos ou MC’s individuais têm uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Da mesma forma como o é para o conceito de esfera pública, o que inclusive justifica a
aproximação realizada por Sader, já mencionada, das categorias de “esfera pública” (Habermas) e
“redes de sociabilidade” (Magnani).
! 114

composição familiar: o grupo “A’s Trinca” se compõe de duas irmãs e da cunhada de


uma delas (sendo o marido/irmão o DJ do grupo); e o grupo “GGF A Família” é
composto por esposa, marido e seu casal de filhos. Já na história e na prática do
Mulheres de Orí, por exemplo, tanto a tentativa de incluir novas mulheres na
organização do coletivo apela para a instituição familiar, incentivando irmãs a
participarem mais ativamente quanto a busca de conscientizar mulheres que não
têm contato com temáticas raciais e de gênero se dá, de início, com suas mães, tias
e avós.

Contudo, nem sempre a instituição familiar cumpre um papel de


potencializar o associativismo, podendo servir como um bloqueio aos direitos das
mulheres, o que as impulsiona a buscar outras redes de sociabilidade. O relato da
militante do Juntas na Luta situa na morte de sua mãe a origem da fundação do
coletivo, pois a condição de ser a filha mais velha impôs socialmente e no interior da
família a exigência de assumir a responsabilidade por seus irmãos e irmãs mais
novos; o machismo que livra os homens de assumir os cuidados pelas crianças foi o
que potencializou sua formação enquanto feminista. Uma entrevistada por um outro
coletivo também relatou situações de violência de pai contra filha, preservando o
anonimato da integrante que passou por esta situação. Nestas duas histórias,
busca-se auxílio e apoio fora da família: neste segundo caso, o próprio coletivo
feminista acaba funcionando como uma “segunda família”; já no primeiro, foi no
mercado de trabalho que a militante encontrou acolhimento, amizade e
compreensão. As idealizadoras do Juntas na Luta se conheceram em uma empresa
de telemarketing onde trabalhavam e “sempre conversavam sobre estas
questões”, partindo reflexivamente da experiência de suas próprias mães e de
outras mulheres mais velhas, como as avós, que “ajudam a construir nossa
história”; foi a partir do apoio mútuo e da experiência prática das mulheres
periféricas terem um papel social compulsório de “cuidado dos homens negros
periféricos e das crianças” que sua referência anterior dentro do movimento punk
durante a adolescência floresceu como a base de criação de um coletivo que se
queria inicialmente anarco-feminista.

Outra experiência socializadora relevante é a religiosidade. Em alguns


casos, o espaço religioso foi o responsável pelo encontro e reconhecimento iniciais
das militantes destes coletivos, expandindo laços e vínculos para além do núcleo
! 115

familiar. Duas das idealizadoras do Mulheriu Clã se conheceram na Igreja Renascer


em Cristo (evangélica pentecostal) e cantavam juntas o que elas chamaram de “rap
gospel”. Já quatro das seis integrantes do Semente Crioula se conheceram em
espaços de militância da vertente progressista da Igreja Católica, como o Grupo de
Estudos por Relações Igualitárias do Instituto Paulista da Juventude (GERI-IPJ).
Curiosamente, nestes dois casos, ocorreram afastamentos posteriores das
respectivas comunidades religiosas: as integrantes do Mulheriu Clã continuam se
declarando evangélicas e cristãs – caindo na categoria que o IBGE passou a chamar
a partir do Censo de 2010 de “evangélicos não-determinados” –, porém deixaram de
frequentar a Renascer já a alguns anos (elas próprias consideram que, se
continuassem a ir regularmente à igreja, dificilmente elas teriam as atuais posturas
tolerantes e abertas ao reconhecimento da diversidade, seja ela religiosa, seja com
relação à orientação sexual); já as ex-integrantes do IPJ sequer se declaram
atualmente católicas, o que muito provavelmente se relaciona com a perda dos
poucos espaços que ainda restavam da Teologia da Libertação.

A religiosidade também tem um papel não apenas enquanto espaço


social pré-existente aos coletivos, mas também como reforço da identidade coletiva
que o associativismo destas mulheres jovens busca construir: no caso do Mulheres
de Orí, três das cinco integrantes, todas mulheres negras, passaram a frequentar
uma casa de candomblé, processo de ressocialização não apenas religiosa
(nenhuma das suas famílias se identificava previamente com alguma religiosidade
afro-brasileira) mas também política (dada a centralidade da identidade cultural e
religiosa negra para as atividades de seu coletivo). De qualquer modo, a
ressocialização também pode gerar conflitos com a religiosidade anterior: uma das
integrantes deste mesmo coletivo continuou frequentando a Igreja do Evangelho
Quadrangular (evangélica pentecostal), muito embora depois de um ano de
existência do coletivo, as militantes passaram a se encontrar em harmonia com
relação a esta convivência religiosa, verdadeiro processo de aprendizagem.

Outras jovens entrevistadas também revelaram trajetórias religiosas


singulares: uma das fundadoras do M.A.N.A. Crew estava frequentando, na época
da entrevista, a Igreja Internacional da Graça de Deus; depois de alguns meses
passou a ir na Bola de Neve Church (ambas evangélicas neopentecostais); já uma
integrante do Fayola Odara – um coletivo mulherista africana – narrou ser de uma
! 116

família da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mais conhecidos
como mórmons, cristãos não-evangélicos). O que é interessante nestas
configurações da religiosidade das militantes e de seus coletivos é o intenso
pluralismo religioso, inclusive majoritariamente evangélico pentecostal e afro-
brasileiro, com incidência católica menor70. O catolicismo inclusive aparece como
instituição conflitiva: o Sarau do M.A.P., do qual as mulheres do Ser Vi Elas
participavam, vive em atrito com a Igreja Católica pois a Praça do Forró se localiza
na frente da Catedral de São Miguel Arcanjo, sede da Diocese de São Miguel
Paulista, ocupada por setores mais conservadores desde a saída de D. Angélico em
1989 (IFFLY, 2010), com o padre constantemente chamando a Polícia Militar para
impedir e reprimir a presença de jovens e seus microfones e caixas de som na
praça.

É sintomático com relação às especificidades dos dois ciclos políticos


analisados o crescente processo de diversificação e pluralização do campo religioso
brasileiro. Se o “Feminismo Popular” na Zona Leste é majoritariamente oriundo da
Teologia da Libertação (e seu encontro com agências de mediação como as
denominadas ONGs feministas “centrais”), o “Feminismo Periférico” é tão plural e
diversificado como o é, atualmente, o campo religioso da região (a menos católica
da cidade de São Paulo) e do país.71

Um último exemplo de experiência socializadora que se demonstrou


relevante para o surgimento dos coletivos mapeados é a educação formal, mais
especificamente, o prolongamento da escolarização, incluindo o acesso ao ensino
superior. Muitas das militantes entrevistadas, possivelmente a maioria, são ou foram
universitárias, o que reflete o processo de democratização do ensino superior na
última década. No caso específico do Mulheres de Orí, encontrei um caso menos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
70
As entrevistadas que se declararam católicas foram as duas integrantes do Coletivo “Nós, Mulheres
da Periferia”, uma delas moradora de Artur Alvim e, coincidentemente, frequentadora da Paróquia na
qual se originou o MSZL; e também algumas das integrantes do Semente Crioula, que, como visto, se
conheceram no GERI-IPJ, grupo católico progressista.
71
Como dito na Introdução, um dos meus objetivos de pesquisa era, originalmente, explorar a
conexão entre religião e gênero na Zona Leste, para aprofundar a compreensão dos potenciais e dos
bloqueios que cada uma destas religiosidades portam no sentido da afirmação da consciência dos
direitos das mulheres. Contudo, constatei que, ao contrário do ciclo político anterior, a religiosidade
não é mais um espaço de sociabilidade crucial para a emergência de ações coletivas em torno do
feminismo nas periferias de São Paulo, muito menos uma matriz discursiva. Mas ainda resta
compreender as religiosidades de uma outra forma, mais localizada: inseridas no processo de
pluralização religiosa e como parte integrante das experiências socializadoras e dos modos de vida
das jovens periféricas.
! 117

comum, de que a entrada na universidade não se deu via faculdades particulares –


com as políticas públicas do Prouni72 e do FIES – e sim na universidade pública:
duas de suas integrantes só se conheceram ao entrar na graduação em geografia
da Unesp de Presidente Prudente. De um lado, a entrada de mulheres negras
periféricas em um espaço privilegiado como é o ensino superior público significou
experiências práticas de preconceito e discriminação raciais; por outro lado,
possibilitou o encontro de uma moradora da Zona Leste com outra jovem, residente
no Grajaú, extremo sul da capital paulista, o que redundou tanto na criação de um
coletivo antirracista neste campus da Unesp, como trouxe a ex-moradora da Zona
Sul para espaços de sociabilidade no Extremo Leste da cidade, haja visto que o
principal bairro de atuação do Mulheres de Orí é a Cidade Tiradentes (a mais de 50
km de distância do Grajaú).

Contudo, o espaço universitário é mais uma experiência socializadora


possível, mas não uma forma de sociabilidade imprescindível para a formação do
“Feminismo Periférico” (em oposição a vários coletivos feministas universitários que
também têm surgido nos últimos anos), muito menos uma esfera pública que se
torna uma matriz discursiva para a sua ação coletiva.

A seguir, apresentarei as duas matrizes discursivas que identifiquei para o


novo ciclo político, em contraste com o ciclo anterior: no lugar das CEBs (e da
cultura popular do samba e do carnaval), os movimentos culturais periféricos
(subseção 3.2.1), e no lugar da rede de ONGs feministas com sedes na região
centro-oeste, os feminismos das esferas públicas digitais (subseção 3.2.2).

3.2 Matrizes discursivas do “Feminismo Periférico”

3.2.1 Movimentos culturais periféricos

Na comparação entre os dois ciclos políticos de associativismo de


mulheres que estão sendo tratados aqui, passei a trabalhar com a hipótese de que
os movimentos culturais constituem a primeira matriz discursiva do “Feminismo
Periférico”. A esfera de surgimento destes coletivos é uma diferença crucial com
relação aos movimentos de mulheres surgidos nas décadas de 1980 e 90. No ciclo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
72
Para uma investigação qualitativa da cultura política de “prounistas”, cf. H. Costa (2016).
! 118

político anterior, as Associações de Mulheres surgiam junto ou a partir de


movimentos sociais populares urbanos (como as lutas por moradia, saúde e creche);
agora, os Coletivos Feministas surgem principalmente no seio de movimentos
culturais, tais como os saraus periféricos e o movimento Hip Hop. Este quadro indica
que este novo ciclo político do associativismo de mulheres para mulheres na Zona
Leste de São Paulo implica uma mudança na cultura política: antes orientada para a
participação política popular, agora orientada para uma noção de cultura periférica;
daí também minha proposição como categorias classificatórias dos dois ciclos
políticos o “Feminismo Popular” e o “Feminismo Periférico”.

Érica Peçanha do Nascimento formula um paralelo entre a importância


dos movimentos sociais para análises (principalmente antropológicas) sobre as
periferias urbanas nas décadas de 1970 e 80 e, atualmente, os movimentos culturais
periféricos, assim definindo-os:

Esta noção de cultura da periferia englobaria tanto à ideia de um


conjunto simbólico próprio dos membros das camadas populares que
habitam em bairros da periferia urbana quanto a alguns produtos e
movimentos artístico-culturais por eles protagonizados.
A cultura da periferia seria, então, a junção do modo de vida,
comportamentos coletivos, valores, práticas, linguajares e
vestimentas dos membros das classes populares situados nos
bairros tidos como periféricos. E dela ainda fazem parte
manifestações artísticas específicas, como as expressões do hip hop
(break, rap e grafite) e a literatura marginal-periférica, que
reproduziriam tal cultura no plano artístico não apenas por retratarem
suas singularidades, mas por serem resultados da manipulação dos
códigos culturais periféricos (como a linguagem com regras próprias
de concordância verbal e uso do plural, as gírias específicas, os
neologismos, etc.).
Sob um viés antropológico, essa noção de cultura da periferia pode
ser vista como um conjunto de produções simbólicas e materiais que
é produzido e reproduzido constantemente, por meio do qual se
organizam formas de sociabilidade, modos de sentir e pensar o
mundo, valores, identidades, práticas sociais, comportamentos
coletivos, etc.; e que caracteriza o estilo de vida dos membros das
classes populares que habitam em bairros periféricos.
(NASCIMENTO, 2010, p. 118-119)

Para ser mais exato em minha própria investigação, o eixo de


comparação em termos das formas de sociabilidade cruciais para cada ciclo político
não seria movimentos populares vs. movimentos culturais periféricos, e sim
! 119

Comunidades Eclesiais de Base (matriz discursiva tanto dos movimentos populares


analisados por Sader quanto do “Feminismo Popular”), de um lado, e movimentos
culturais, de outro. Trabalho com a tese de que o crescente circuito cultural
(principalmente de saraus periféricos, mas não apenas) substitui, de certa maneira,
a função que as CEBs preenchiam nas décadas de 70 e 80, no sentido de
estabelecer uma rede descentralizada de circulação de discursos e formação
política, além de propiciar “espaços de convivência formados pelos encontros
cotidianos na cidade”, como falava Sader (1988, p. 118).

Por conta da conexão com os movimentos culturais, os coletivos


feministas periféricos têm como principal foco de interlocução com o poder público
não a área de assistência social (ou outras políticas públicas por meio das quais se
possam efetivar os direitos das mulheres) mas, principalmente, a política cultural. O
financiamento de suas atividades (quando existem: muitas das atividades são auto-
financiadas ou baseadas em trabalho não-remunerado) provém quase que
exclusivamente, até o momento, do edital do Programa VAI 73 , da Secretaria
Municipal da Cultura, tendo 6 dos 8 coletivos entrevistados74 aplicado projetos (dos 2
que ainda não se inscreveram, um considerava, no momento da entrevista, fazê-lo
no próximo edital), 4 deles com sucesso.

É característico destes coletivos feministas (bem como destes


movimentos culturais periféricos) a ocupação não só de equipamentos públicos
estatais (biblioteca, centro cultural e centro educacional) e não-estatais (biblioteca
comunitária, ponto de cultura) como também de espaços públicos (como praças).75
Dando um passo além seria possível afirmar que estes coletivos e movimentos mais
do que “ocupar”, eles instauram espaços públicos (melhor conceitualizados a partir

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
73
O VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) foi criado pela Lei nº 13.540/2003, de autoria do então
vereador Nabil Bonduki (PT), o qual, durante o ciclo de contestação política anterior, considerado de
forma mais ampla (ou seja, abrangendo os movimentos sociais populares urbanos como um todo),
participou junto a movimentos de moradia não só em assessorias técnicas a mutirões, como também
atuando na gestão municipal de Luíza Erundina (então no PT).
74
Além dos 7 coletivos analisados mais detidamente, inclui nesta contabilidade também o Nós,
Mulheres da Periferia.
75
Parece ser uma característica comum a diferentes manifestações sociais e políticas
contemporâneas a ocupação de espaços públicos e uma reivindicação, direta ou indireta, do “direito à
cidade” (cf. TAVOLARI, 2016). Assim como os movimentos culturais que tratei aqui, o renascimento
do carnaval de rua em diferentes cidades (como nas capitais de São Paulo e Minas Gerais) é um
fenômeno similar. No caso específico de Belo Horizonte, por exemplo, Ricci e Arley (2014) apontaram
como blocos de carnaval integram a gênese das manifestações de junho de 2013 nesta cidade.
! 120

das categorias de “esfera pública” de Habermas e de “contrapúblicos” de Fraser),


ainda mais se ele for entendido não como mero espaço físico, mas como redes de
sociabilidade, tal como buscarei desenvolver em seguida (especialmente na seção
4.2).

Não há tantos estudos no campo acadêmico acerca da participação das


mulheres nos movimentos culturais periféricos. Em reprodução de uma conversa “de
bastidor”, as antropólogas Esther Hamburger e Rose Satiko dialogam sobre o
documentário etnográfico Lá do Leste (de 2010), acerca da produção cultural
periférica na Cidade Tiradentes; a primeira diz: “Uma pergunta que eu queria fazer:
cadê as mulheres no filme?”, enquanto que a segunda responde: “Não foram muitas
as mulheres artistas que encontramos no universo da arte de rua em Cidade
Tiradentes. Há mulheres protagonizando outros movimentos artísticos, mas no Hip
Hop são uma minoria” (CAFFÉ; HIKIJI, 2013, p. 51).

Hoje, as mulheres continuam sendo minoria – não há igualdade nem


numérica nem na dinâmica social – mas a realidade está mudando no decorrer da
década de 2010: como bem nota Teresa Caldeira (2014), há uma participação
feminina crescente na cultura periférica, seja no Hip Hop, seja nos saraus; parece-
me, contudo, que a autora ainda avalia como algo muito inicial e demasiadamente
marcado por tensões, ambiguidades e contradições, no interior das quais as
mulheres estariam ainda presas seja à “masculinização” seja a uma reivindicação de
uma “feminilidade essencializada”. Deste modo, a antropóloga não teria verificado a
ampla emergência de coletivos assumidamente feministas (mesmo que com seus
enquadramentos divergentes acerca do que possa significar “feminismo”), da forma
como acredito que pesquisas recentes bem como meu trabalho de campo tenham
apontado; talvez sua avaliação esteja rapidamente sendo ultrapassada pelos rápidos
desdobramentos deste fenômeno social emergente. Dissertações de mestrado
recém-defendidas (BALBINO, 2016; RAMOS, 2016) demonstram empiricamente o
adensamento da participação feminina nestes movimentos culturais, de um modo
muito mais profundo do que a análise de Caldeira dá a entender.76

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
76
Concordo com os objetivos e resultados da investigação de Balbino, que mapeou as mulheres nas
literaturas marginal e periférica, as quais “rompem com a máxima ‘Pode o Subalterno Falar?’ e
inovam no jeito de narrar, reportar e contar a própria história, além de romperem com o estigma de
que os subalternos não têm vez, tampouco voz” (BALBINO, 2014). Além da apropriação destes
estudos originais da presença de mulheres nos movimentos culturais periféricos (BALBINO, 2016;
! 121

O Hip Hop surgiu na década de 1970 no Bronx, em Nova Iorque e chegou


no Brasil na década de 1980. Embora existissem MCs mulheres pioneiras no rap
brasileiro desde o início – Ramos (2016) destaca Sharylaine, Lady Rap, Ieda Hills,
Rubia Fraga e Dina Di – é na década de 1990 que ocorre “o primeiro divisor de
águas” na história do movimento (nos dizeres de Sharylaine, entrevistada por
Ramos): o Projeto Rappers, proposto pela ONG Geledés – Instituto da Mulher
Negra. Oficinas sobre discriminação racial, sobre sexualidade e sobre música foram
realizadas, além da publicação da revista Pode Crê, “a primeira revista brasileira
especializada em Hip Hop de que se tem notícia” 77. Além disso, um desdobramento
foi um outro projeto, chamado Femini Rappers. Segundo Maria Aparecida da Silva,
que foi presidente do Geledés no início dos anos 2000, o Femini Rappers visava
“estimular as jovens negras a reflexão sobre gênero e raça e a produção de atitudes
críticas em relação ao machismo e ao racismo” (SILVA apud RAMOS, 2016, p. 43-
44). Tratou-se de um encontro entre o feminismo negro do instituto e o ativismo
cultural e político das hip hoppers. Ramos (2016) mostra em sua pesquisa como
esta experiência com o Geledés foi relevante para o “Minas da Rima”, criado entre
1999 e 2000 e que passou de um grupo feminino para ser um grupo feminista.
Lunna Rabetti, uma de suas integrantes, funda em 2004 “o portal virtual ‘Mulheres
no Hip Hop’, a partir do qual vários eventos são organizados”, incluindo o I Fórum de
Hip Hop Feminino em 2010, que resulta na criação da Frente Nacional de Mulheres
no Hip Hop [FNMH2] (RAMOS, 2016, p. 46). A FNMH2 “é um coletivo de coletivos
espalhados pelo Brasil, que promove eventos, oficinas, lançamentos e debates
impulsionando a participação, produção e organização das mulheres no movimento”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
RAMOS, 2016), cf. a bibliografia que recentemente se ocupou do hip hop paulistano (MACEDO,
2016), da literatura marginal ou periférica (LEITE, 2014; CAMPOS, 2013), da relação entre literatura
periférica e literatura negra (SILVA, 2011), dos saraus periféricos (NASCIMENTO, 2012; SILVA,
2017), de movimentos culturais periféricos especificamente na Zona Leste (RODRIGUES, 2014) ou,
de modo mais amplo, da “formação dos sujeitos periféricos” (D’ANDREA, 2013). Estudos pioneiros
especificamente sobre mulheres hip hoppers são os de Weller (2005), Lima (2005) e Matsunaga
(2006). Para uma abordagem estadunidense, cf. Pough (2004); já para uma perspectiva comparativa
transnacional do Hip Hop feminista, cf. Saunders (2016). E para uma contribuição não-acadêmica, cf.
Alluci; Valencio; Allucci (2016). Com relação a uma compreensão abrangente das mulheres nos
saraus e na literatura periféricos, o estudo de Balbino é único, até onde pude verificar, embora o
dossiê “Literatura e Periferia”, recentemente organizado por Érica Peçanha e Lucia Tennina na revista
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea traga contribuições específicas sobre: a hipótese de
uma ramificação literária que parte da pioneira Carolina Maria de Jesus (PENTEADO, 2016); a
produção de Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro nos Cadernos Negros (PEREIRA, 2016); e a
obra da poetisa Elizandra Souza interpretada como um diálogo afrodiásporico e transatlântico
(CASTRO, 2016).
77
http://www.geledes.org.br/o-quadro-flash-black-tras-essa-semana-o-especial-das-revistas-pode-
cre/#gs.Y6MJk0U
! 122

(RAMOS, 2016, p. 46; meu grifo). Ramos ainda aponta como o cenário atual do rap
brasileiro conta com hip hoppers mulheres com grande destaque na indústria cultural
considerada de modo mais amplo, tais como Karol Conka e Tássia Reis, artistas
cuja profissionalização não tem relação direta com a FNMH2.

De qualquer modo, a pesquisa etnográfica de Ramos (2016) traz muitos


pontos de contato com minha tese, além de disponibilizar inúmeros elementos que
complexificam a relação entre feminismo e mulheres no hip hop para muito além da
dicotomia apontada por Caldeira entre masculinização vs. feminilidade
essencializada.

De um lado, a autora mostra que a inserção das mulheres neste


movimento cultural se dá muito mais pela exigência – machista e homofóbica – de
um frágil equilíbrio:

A masculinização na atuação no movimento e nas performances


como artistas, assim, parece um ponto de equilíbrio entre ter
necessariamente que exibir certa feminilidade, mas sem que esta
possa ser lida como muito sensual ou erótica. (RAMOS, 2016, p.
100)

É a partir da sua perspectiva antropológica dos marcadores sociais da diferença que


este equilíbrio exigido se torna visível: a exacerbação da feminilidade pode ser
condenada tanto por homens como por mulheres (na construção de uma oposição
entre “mulheres pensantes” e “corpos femininos objetificados”, numa crítica que
muitas vezes se dirige também ao funk) mas a exacerbação da masculinização
passa a ser lida em uma chave preconceituosa, com mulheres lésbicas sendo
exigidas a ter “uma postura ‘menos masculina’” (RAMOS, 2016, p. 100). Contudo, a
sua pesquisa também demonstrou como cada vez mais rappers feministas e rappers
lésbicas têm se expressado artística e politicamente contra e além destas estruturas
machistas e homofóbicas.

Por outro, as hip hoppers que foram interlocutoras de sua investigação


antropológica dialogam ativamente entre si e com hip hoppers estrangeiras – um
diálogo e uma troca de experiência que leva a autora a pensar o Hip Hop como
“fenômeno global e afro-diaspórico” (RAMOS, 2016, p. 81-84) – acerca do
! 123

feminismo, do “feminismo branco” e do feminismo negro, a partir de uma “demanda


de ‘periferizar’ o feminismo” (RAMOS, 2016, p. 80; meu grifo).

Já no caso dos saraus e da literatura periféricos, o marco inaugural


costuma ser identificado no lançamento das edições dedicadas à literatura marginal,
organizadas pelo escritor Ferrez (que já havia publicado o livro Capão Pecado, em
2000) e publicadas pela revista Caros Amigos. Como mostra a investigação de
Balbino, nas 3 edições publicadas entre 2001 e 2004, de um total de 56 autores,
apenas 9 eram mulheres; uma participação “pífia” de apenas 16,1% (BALBINO,
2016, p. 32 e 102). A ausência da equidade de gênero nas coletâneas e antologias
da literatura marginal/periférica78 permanecem, segundo a mesma autora, por toda a
década de 2000. O protagonismo masculino é inquestionável, não apenas em
termos quantitativos, mas também de quem organiza as antologias, funda as
editoras e cria os selos e coleções. Balbino chama a atenção para o fato de que esta
hegemonia dos escritores homens esconde a origem feminina desta literatura: a
primeira autora periférica a publicar um livro teria sido Carolina Maria de Jesus
(Quarto de Despejo, de 1960). Contudo, quando a cena literária marginal ressurge,
na virada dos anos 1990 para 2000, muito associada à cultura hip hop, são os
homens que tomam a frente do processo.

Segundo Balbino (2016), a situação só começa a mudar quando


escritoras periféricas passam a se auto-organizar para publicar coletâneas 100%
compostas por mulheres. Alguns marcos incontornáveis para o incremento da
participação feminina na literatura marginal/periférica são: o livro Águas da Cabaça
(2012, de Elizandra Souza) e as coletâneas Perifeminas I: nossa história (2013,
organizada pelo FNMH2, em mais um cruzamento entre Hip Hop e literatura
periférica), Pretextos de Mulheres Negras (2013, organizada pelo coletivo Mjiba, o
qual foi fundado por Elizandra Souza) e Perifeminas II: sem fronteiras (2014,
FNMH2). A década de 2010 vê uma alteração quantitativa significativa no tocante à
divisão de autores por gênero: segundo levantamento realizado por Balbino (2016,
p. 109-110), a participação de escritoras alcançou 45,7% (em 2012) e 47,0% (2013)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
Balbino (2016) explica que, devido ao seu caráter dinâmico e recente, há uma “instabilidade
conceitual” em relação à nomeação deste fenômeno social e cultural, havendo múltiplos termos:
“literatura marginal”, “literatura periférica”, “literatura divergente”, “literatura alternativa”, “literatura hip
hop”, etc. Ramos (2016) ainda aponta outras possibilidades além destas, como “literatura de rua” e
“literarua”. Sigo aqui a solução de Balbino por “literatura periférica/marginal”.
! 124

e, pela primeira vez na história da literatura marginal/periférica ultrapassou o número


de homens em 2014 (56,7%) e 2015 (52,5%), último ano em que a pesquisadora
contabilizou a distribuição de autores e autoras. Além do surgimento de coletivos e
coletâneas 100% compostos por mulheres, contribuiu para este protagonismo
feminino, segundo a investigadora, a publicação de livros frutos de oficinas de
movimentos culturais em escolas públicas; nestes casos, as estudantes sempre
foram maioria com relação aos meninos.

Se Carolina Maria de Jesus se encontrava isolada e solitária em seu


ofício de escritora periférica, hoje, mais de 50 anos depois, as mulheres da literatura
marginal/periférica têm umas às outras, com seus coletivos, coletâneas e
publicações próprias; Balbino (2016) elege a figura de Elizandra Souza para
aproximá-la de Carolina de Jesus e apontar as continuidades entre as duas
escritoras negras e periféricas, mas também as descontinuidades do processo
social, histórico e literário, agora com um protagonismo coletivo feminino (e negro e
periférico) inédito. Duas autoras com grande destaque em eventos literários e nas
redes sociais são Luz Ribeiro e Mel Duarte.

Com relação a todos os espaços de sociabilidade relevantes para a


gênese destes coletivos feministas, certamente são os movimentos culturais
periféricos que consistem na sua principal base de formação e solo a partir do qual
eles emergem; é predominantemente nestes movimentos artístico-culturais que se
desenvolve aquela sociabilidade básica, densa e significativa da qual falava Magnani
(2003 [1984], p. 113), a “intrincada rede de relações” a partir da qual se atribuem
identidades às diferentes quebradas nas periferias. Contudo, buscarei mostrar, com
os dados coletados por meio das entrevistas a complexidade e ambiguidade dos
processos no seio destes movimentos que constituem a pré-história dos coletivos
auto-organizados por mulheres.

Nas entrevistas, as militantes dos coletivos também revelam como o


machismo perpassa os movimentos culturais periféricos. Inicialmente, é visível como
tais movimentos, principalmente o Hip Hop e o crescente circuito de saraus
periféricos na cidade de São Paulo representam, como já foi dito, espaços de
sociabilidade fundamentais de encontro, descoberta e articulação entre as jovens do
“Feminismo Periférico”. Há relatos, por exemplo, nas entrevistas do Semente Crioula
e do Ser Vi Elas (na sua primeira colaboração à pesquisa, em 2015) e, que os
! 125

movimentos culturais, mais especificamente os saraus, seriam um espaço onde se


verificaria um machismo menor do que em outras esferas da sociedade, bem como
um lugar onde as mulheres podem se expressar e se identificar com discursos
feministas. Outros relatos contradizem, ou ao menos mostram um lado menos
libertário destes movimentos: histórias de preconceito, discriminação e machismo se
acumulam, desvelando as relações de poder nas quais os homens ocupam posição
privilegiada e opressora (cf. a análise da campanha #NãoPoetizeOMachismo na
seção 3.3).

A Cultura Hip Hop é vista como machista, tanto o rap – “extremamente


dominado por homens”, como disse uma das integrantes do Mulheriu Clã – quanto
o grafite – militantes do M.A.N.A. Crew relataram já terem sofrido discriminação,
tendo seu trabalho desvalorizado e movido para um muro de menor destaque ou
mesmo terem sofrido “olhares abusivos” por parte dos homens, uma situação
descrita como desconfortável, incômoda e, no limite, perturbadora. Mesmo quando
homens dos movimentos culturais acreditam estarem sendo solícitos, ao carregarem
equipamentos ou se disporem a manejar alguma tecnologia, estas atitudes são
vistas como paternalistas e invasivas, ameaçando a autonomia e independência das
mulheres. Em última instância, sofrer situações de violência machista, mesmo que
psicológica, culminam em decisões de mulheres de sairem de coletivos mistos e
buscarem auto-organizações apenas de mulheres. A segunda entrevista realizada
com uma outra militante do Ser Vi Elas (já em 2016, mais de um ano depois da
primeira) explicitou que o coletivo rompeu com o M.A.P. por conta de vários
episódios sexistas envolvendo um poeta.

Até o momento, as situações descritas envolvem apenas conflitos de


práticas machistas de homens, mas as entrevistadas também relatam atitudes não-
solidárias da parte de outras mulheres no interior destes movimentos culturais, seja
num sentido de individualismo e competitividade de mulheres isoladas que conflita
com a proposta de constituição de um coletivo de mulheres, seja no sentido de
discordâncias ideológicas – um dos coletivos, dedicado à questão da auto-estima e
identidade da mulher negra, relatou que a gênese de suas atividades autônomas
decorre da não-aceitação de outro coletivo feminista de sua proposta, centrada na
estética e na vaidade, como oficinas de turbante e maquiagem, pois estas temáticas
seriam avaliadas como algo “secundário”.
! 126

A presença crescente de mulheres nos movimentos culturais periféricos


também permite uma solidariedade que fortalece e retroalimenta a ocupação
feminina de cada vez mais espaços, com coletivos já consolidados abrindo portas
para as mais jovens e menos articuladas, seja indicando caminhos de financiamento
de projetos culturais via editais (foi um coletivo chamado Manifesto Crespo, com
base na Zona Norte da cidade de São Paulo, que compartilhou a informação relativa
ao Programa VAI da Prefeitura para que o Fayola Odara conseguisse estruturar
suas atividades com algum financiamento), seja apoiando organizacional e
emocionalmente as que chegam na cena cultural mais tardiamente (o Mulheriu Clã e
A’s Trinca no Hip Hop abrindo espaço para o M.A.N.A. Crew realizar seus grafites
em seus eventos), seja inspirando a adoção de repertórios até então desconhecidos
ou inconcebíveis, a partir de seu exemplo cotidiano (foi tendo em vista o Sarau
Feminista do Juntas na Luta que o Coletivo Fayola Odara pensou em realizar o seu
Sarau das Odaras).

Nesta linha, as mulheres periféricas avançam na ocupação de esferas


públicas já existentes – tanto as físicas, como os saraus, quanto as virtuais, como o
Facebook – e também na criação de sua própria esfera pública literária – nos
dizeres de Habermas (2014), mas um fenômeno que também poder ser
conceitualizado alternativamente como criação de contrapúblicos subalternos
(FRASER, 1992).

A crítica de Fraser a Habermas é útil para os propósitos desta tese a fim


de avançar uma atualização do quadro teórico de Sader – refiro-me aqui às esferas
públicas enquanto matrizes discursivas – tendo em vista as especificidades do
feminismo em geral e dos coletivos feministas periféricos em particular. A princípio,
Fraser reconhece a importância da categoria habermasiana da esfera pública para
uma teoria crítica dos “limites da democracia em sociedades do capitalismo tardio”
(FRASER, 1992, p. 109); a ideia da “esfera pública” no sentido de Habermas

[...] designa um teatro nas sociedades modernas em que a


participação política é performada [enacted] através do meio da fala.
É o espaço em que cidadãos deliberam acerca dos seus assuntos
comuns e, portanto, uma arena institucionalizada de interação
discursiva. Esta arena é conceitualmente distinta do Estado; é um
local [site] para a produção e circulação de discursos que pode, em
princípio, ser crítico do Estado. A esfera pública no sentido de
Habermas também é conceitualmente distinta da economia oficial;
! 127

não é uma arena de relações de mercado, mas sim uma arena de


relações discursivas, um teatro para debater e deliberar em vez de
comprar e vender. Portanto, este conceito da esfera pública nos
permite não perder de vista as distinções entre os aparatos estatais,
mercados econômicos e associações democráticas, distinções que
são essenciais para a teoria democrática. (FRASER, 1992, p. 110-
111)

Embora defenda que a ideia habermasiana da esfera pública seja


indispensável para a teoria social crítica e a prática política democrática, Fraser
aponta que a forma pela qual ele a elaborou não foi satisfatória. A partir de uma
historiografia revisionista acerca da participação das mulheres na esfera pública
(principalmente os trabalhos de Joan Landes e Mary Ryan, mas também de Geoff
Eley), Fraser apresenta quatro questionamentos à concepção burguesa e
masculinista da esfera pública tal como descrita por Habermas:

[1] enquanto Habermas supõe que seria possível para interlocutores na


esfera pública colocar entre parêntesis suas diferenças de status e, assim, deliberar
como se fossem iguais socialmente entre si, uma concepção adequada e crítica da
esfera pública requer a visibilização de como as desigualdades sociais corrompem a
deliberação no interior da esfera pública;

[2] a suposição de Habermas de que a proliferação de uma multiplicidade


de públicos competidores significa necessariamente menos democracia é
questionada quando Fraser propõe que esta multiplicidade de públicos é preferível a
uma esfera pública unitária. A teoria crítica deveria, então, mostrar como a
desigualdade afeta as relações entre públicos (sendo alguns empoderados e outros
subordinados);

[3] Habermas supõe que a aparição de interesses e questões privados


seja sempre indesejável, ao passo que Fraser defende que o conceito de esfera
pública deve incluir temas que a ideologia burguesa e masculinista rotula como
“privados” uma vez que esta rotulação tem um efeito de limitar o espectro de
problemas sociais que podem ser debatidos publicamente;

[4] a suposição de que uma esfera pública democrática sempre requer


uma separação rígida entre sociedade civil e Estado é contraposta por Fraser ao
afirmar que é necessário teorizar criticamente as relações entre públicos fortes e
públicos fracos a fim de mostrar que o caráter excessivamente fraco de algumas
! 128

esferas públicas despoja a “opinião pública” de força prática (no sentido de passar
da opinião e da vontade para a deliberação) junto ao Estado.

Tendo em vista estes quatro pontos e aquela historiografia revisionista


das esferas públicas, Fraser propõe o conceito de contrapúblicos subalternos79:

Esta historiografia registra que os membros de grupos sociais


subordinados – mulheres, trabalhadores, pessoas de cor e gays e
lésbicas – tem considerado repetidamente vantajoso constituir
públicos alternativos. Eu proponho chamá-los de contrapúblicos
subalternos para assinalar que eles são arenas discursivas paralelas
nas quais membros de grupos sociais subordinados inventam e
circulam contradiscursos para formular interpretações oposicionais
de suas identidades, interesses e necessidades. Talvez o exemplo
mais notável seja o contrapúblico subalterno feminista nos Estados
Unidos no final do século XX, com seu arranjo variado de jornais,
livrarias, editoras, redes de distribuição de filmes e vídeos, séries de
palestras, centros de pesquisa, programas acadêmicos,
conferências, convenções, festivais e pontos de encontro locais.
Nesta esfera pública, mulheres feministas inventaram novos termos
para descrever a realidade social, incluindo “sexismo”, “a dupla
jornada”, “assédio sexual” e “estupro marital”. Armadas com esta
linguagem, nós reformulamos nossas necessidades e identidades,
desta forma reduzindo, embora não eliminando, o alcance de nossa
desvantagem nas esferas públicas oficiais. (FRASER, 1992, p. 123)

Tais “públicos alternativos” ou “arenas discursivas paralelas” por meio das


quais “contradiscursos” e “interpretações oposicionais” são produzidas e depois
circulam são conceitualizações muito próximas do que Sader chamou de matrizes
discursivas pois tanto estas quanto os contrapúblicos subalternos têm como função
inventar uma nova linguagem e “novos termos para descrever a realidade social” a
fim de reformular – Sader diria: reelaborar simbolicamente – “necessidades e
identidades”. Os movimentos culturais periféricos certamente são tanto
contrapúblicos subalternos em geral quanto uma das matrizes discursivas do
“Feminismo Periférico” em específico, considerando seus discos, produtoras,
gravadoras, livros, editoras independentes e alternativas, zines, eventos, saraus,
festas, pontos de encontro, sites, blogs, páginas de Facebook, etc. Existe uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
79
Fraser cunhou a categoria combinando os termos “subalterno” e “contrapúblico”, respectivamente
das teóricas literárias Gayatri Spivak e Rita Felski.
! 129

quantidade crescente de livros 80 da literatura periférica/marginal e CDs 81 de rap


produzidos por mulheres e cada vez mais as autoras, compositoras, leitoras e
ouvintes compartilham espaços sociais e referências artísticas, culturais e
discursivas, formando um verdadeiro público: um solo a partir do qual emergem os
coletivos feministas periféricos.

3.2.2 Os feminismos nas esferas públicas digitais

A internet é central para se compreender as mobilizações sociais


contemporâneas. O tema desta seção é a apropriação das novas Tecnologias de
Informação e Comunicação (TICs) pelos coletivos feministas periféricos da Zona
Leste. Trabalho com a hipótese de que as esferas públicas digitais ou virtuais em
torno do feminismo (ou, melhor dizendo: feminismos, no plural), possibilitadas pelas
redes sociais da internet são fundamentais para a compreensão da gênese do
“Feminismo Periférico”.

Enquanto o ciclo político do “Feminismo Popular” foi marcado pela


mediação de uma assessoria técnica feminista “externa” (no formato de
Organizações Não-Governamentais, em geral com sedes fora da Zona Leste), uma
característica específica deste novo ciclo político é o papel crucial que a internet
agora desempenha para democratizar o acesso direto e imediato à produção,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
80
Alguns dos livros que adquiri nas andanças pelos saraus periféricos são estes (em ordem
cronológica):
- SOUZA, Elizandra. Águas da cabaça. São Paulo: Edição do Autor, 2012.
- FAUSTINO, Carmen; SOUZA, Elizandra (Org.). Pretextos de Mulheres Negras. São Paulo:
Mjiba/VAI/SMC-SP, 2013.
- GARCIA, Débora. Coroações: aurora de poemas. São Paulo: Edição do Autor, 2014.
- NASCIMENTO, Jenyffer. Terra fértil. São Paulo: Edição do Autor, 2014.
- ALVES, Thayaneddy. Em reticências. São Paulo: Academia Periférica de Letras, 2015.
- DUARTE, Mel. Negra nua crua. São Paulo: Ijumaa, 2016.
- FELIX, Mariana. Mania. São Paulo: Conecta Brasil, 2016.
- FELIX, Mariana. Só se for uma rapidinha!. São Paulo: Zinelândia, 2016.
- ARAUJO, Pam. Buraco. São Paulo: [editora?], 2017.
81
Os CD’s que mapeei durante a pesquisa de campo (em ordem alfabética pelos nomes das artistas):
- A’S TRINCA. Trinca de A’s. [São Paulo]: [gravadora?], [2014]. 1 CD.
- BE Ô [Bia Doxum]. Máquina Que Gira. [São Paulo]: [gravadora?], 2015. 1 CD.
- HERDEIRAS DE AQUALTUNE. Feminina, Periferia um Pedaço da África. São Paulo: VAI, 2015.
Disponível no SoundCloud.
- MULHERIU CLÃ. Volume 01. São Paulo: VAI, 2014. 1 CD.
- MULHERIU CLÃ. Volume 02. São Paulo: VAI, 2015. 1 CD.
- ODISSEIA DAS FLORES. As Palavras Voam. [São Paulo]: [gravadora?], [2013]. 1 CD.
- PRETA RARA. Audácia. [São Paulo]: [gravadora?], [2015]. Disponível no Youtube.
- YZALÚ. Minha Bossa É Treta. [São Paulo]: [gravadora?], 2016. Disponível no Youtube.
! 130

circulação e recepção de debates e textos feministas. 82 Em menor medida, há


também a democratização do acesso à universidade, embora, mesmo com a maioria
das militantes dos coletivos frequentando o Ensino Superior, as sociabilidades e os
discursos cruciais para a construção de seu feminismo passam muito mais pelas
redes sociais do que pelo ambiente universitário em si mesmo.83 De qualquer modo,
parece bem evidente a ausência de uma mediação institucional e organizada como
havia anteriormente na forma do que eu chamei de “ONGs feministas centrais”.

Em entrevistas realizadas com militantes destes coletivos, a internet


surgiu como um tópico relevante sem que elas tivessem sido instadas diretamente a
tematizá-la:

O que que você acha que explica essa explosão do feminismo


periférico? É tudo meio assim, 2012, 13, né?
[...] Eu acho que, é tipo... Porque é foda assim, de tudo o que...
tudo é mais difícil de chegar [na periferia], né? E aí você tem,
tipo, uma coisa entalada e aí chega pra você essa informação de
que tem um movimento que é só de mulheres que pensam e
querem as mesmas coisas que você. [...] E... eu acho que é isso
que faz assim, tipo, crescer tanto porque a gente não tem tanto
espaço, né? Então, quando se cria um espaço, o negócio faz
“puf”... né? E eu acho que é isso, porque na periferia, as... as...
os jovens assim, né? A gente tem acesso à internet, e com o
acesso à internet a gente percebe o quanto a gente é restrito de
tantas coisas, né? E aí... com isso... mas, as mulheres se
encontraram pra não serem ou não querem mais aquelas
coisas....
Mas é a internet, né? Internet é uma revolução.
É, a internet é foda! É, porque, é isso, né? [...] Foi o... o
fenômeno que veio pela internet pra gente [...].
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
82
Esta oposição entre agências de mediação e acesso imediato talvez também possa ser encontrada
no caso dos movimentos culturais periféricos. Enquanto que no “Feminismo Popular” (e dos
movimentos populares do ciclo político da redemocratização, de modo mais amplo), a Igreja Católica
(com seus padres, freiras e mesmo os leigos iniciados e participantes das CEB’s) foi fundamental
para a constituição de uma identidade coletiva enquanto “povo”, quando considerado o papel
desempenhado pelos movimentos culturais no “Feminismo Periférico”, é possível encontrar a
centralidade de uma noção de autorrepresentação (como ressaltado por Balbino, 2016): a periferia,
ao gerar produtores e consumidores culturais no circuito do Hip Hop e da literatura
marginal/periférica, passa a reivindicar a negação da necessidade de agentes mediadores na
constituição de sua identidade coletiva enquanto “sujeitos periféricos”.
83
Em oposição ao intenso crescimento de coletivos feministas com um perfil mais de classe média
criados em universidades públicas federais e estaduais, mas também em instituições de ensino
superior privadas mais elitistas (como PUC-SP, Mackenzie, FGV-SP e Cásper Líbero, considerando a
cidade de São Paulo). Acerca dos coletivos feministas universitários, cf. a linha de pesquisa recém-
iniciada no Núcleo Direito e Democracia (NDD) no Cebrap, desenvolvida por Fabiola Fanti, Gabriela
Biazi, Natália Neris e Mariana Valente (2017).
! 131

(SER VI ELAS, entrevista, 17 jun. 2016)

[...] esse feminismo periférico, esse boom do feminismo


periférico, sabe? Da mulher poder aprender sobre transfobia no
grupo de debate do Facebook, independente se ela já pisou
numa universidade ou não. Também acho que isso é um
avanço, sabe? O fato do tema tá sendo discutido mais
largamente, sabe? Isso foi resultado do movimento feminista.
(JUNTAS NA LUTA, entrevista, 26 mai. 2015)

Partindo deste reconhecimento pelas próprias militantes da importância


da internet (e de suas redes sociais, principalmente o Facebook), passarei para a
análise complementar de dois materiais empíricos: uma análise quantitativa de rede,
acerca da rede discursiva que informa o “Feminismo Periférico” (esta subseção
3.2.2); e uma análise qualitativa de conteúdo de uma campanha virtual
protagonizada por feministas periféricas (seção 3.3).

Ainda há pouca bibliografia sobre o que se está chamando


provisoriamente de “feminismo digital”, “ciberfeminismo” ou “feminismo
comunicacional”. Do que consegui mapear, alguns objetos estão mais visados –
como no caso do uso da internet por diferentes Marchas das Vadias (GARCIA;
SOUSA, 2014; MARTINS, 2013; TOMAZETTI, 2015) ou do site “Blogueiras
Feministas” (ALENCAR, 2013; FERREIRA, 2015; LIMA, 2013) –, considerando que
84
muitos destes textos são frutos de pesquisas em andamento. Já outras
problemáticas recebem menos atenção dos e das investigadoras, como parece ser o
caso dos blogs, páginas de Facebook, canais do Youtube e outros espaços virtuais
que são centrais seja para o feminismo negro, seja para o “Feminismo Periférico”.

Uma exceção é o mestrado de Modelli (2016), que compara dois blogs


coletivos feministas: o Blogueiras Feministas e o Blogueiras Negras (duas iniciativas
pioneiras, criadas em 2010 e 2012, respectivamente). Neste sentido, a autora busca
incorporar a temática racial na reflexão sobre o feminismo na “era das redes sociais
virtuais”, evitando a invisibilização do feminismo negro, o que ocorre inúmeras vezes
sob um falso universalismo. Os blogs são interpretados pela autora como
“ferramentas comunicacionais” (e, em outros momentos, como “espaços de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
Cf., por exemplo, a Iniciação Científica em andamento de Fernanda Polidoro Paiva nas Ciências
Sociais da Unicamp e orientada por Luciana Tatagiba, sobre o que ela chama de “as redes
submersas da Primavera Feminista” (sua principal metodologia é etnografar grupos feministas
secretos na rede social Facebook).
! 132

conversação”) e a internet como possibilitando a emergência de um novo “espaço


comunicacional”. Segundo Modelli, se a grande mídia tradicional trabalha na direção
do silenciamento e aprisionamento das mulheres em imagens estereotipadas e
discursos patriarcalistas, a “popularização das redes sociais virtuais” oferece às
mulheres “uma possibilidade de se expressarem e se fazerem visíveis” (MODELLI,
2016, p. 46). Contudo, a pesquisadora ressalta que a internet tem um “caráter
ambíguo”, apontando que ela pode tanto reforçar as desigualdades e violências de
gênero quanto potencializar novas ações coletivas feministas.

Uma das razões pelas quais os feminismos das esferas públicas digitais
podem ser interpretados como uma matriz discursiva é o modo como o
compartilhamento de narrativas pessoais auxilia na construção de uma identidade
coletiva:

Além de possibilitar a expressão de vozes marginalizadas, a internet


oportuniza os processos de construção de identidade. Ao exprimirem
seus pontos de vista e suas histórias autobiográficas, aqueles
outrora desvalorizados podem alçar posicionamentos semelhantes e
assim configurarem processos de identificação, adquirirem uma
maior certeza sobre as próprias escolhas e a motivação para se
autoafirmarem no mundo. (GARCEZ apud MODELLI, 2016, p. 87)

Neste sentido, partilhar “histórias autobiográficas” permite a reelaboração simbólica


da vida cotidiana e o reconhecimento de padrões de opressão, dominação e
exploração contra os quais é possível lutar, no lugar de vivências que se apresentam
como isoladas, localizadas e puramente individualizadas, o que tende a esconder os
processos sociais que produzem tais situações.

Além disso, as redes sociais também exercem um papel de ampliar


exponencialmente a sociabilidade das jovens. Vale destacar que a internet é espaço
de encontro, de início de amizades que viabilizam a fundação de coletivos. Da
mesma forma que foi a universidade pública que criou pontes no Coletivo Mulheres
de Orí entre distritos muito distantes da cidade paulistana, no caso do M.A.N.A.
Crew foi a internet, mais especificamente a rede social Instagram, que permitiu que
duas das grafiteiras que são suas lideranças se conhecessem e passassem a tocar
o coletivo, o que de outro modo provavelmente não aconteceria, já que uma delas é
moradora da Cidade Tiradentes e a outra no distrito de Ermelino Matarazzo
! 133

(localizado a quase 20 km de distância). Esta potencialização pela internet da


sociabilidade é inclusive condizente com teses desenvolvidas por Castells (2003;
2015) acerca de um “individualismo conectado”.

Já de acordo com Modelli, mídias sociais (como blogs e até o Orkut e o


Facebook) “permitem que indivíduos de grupos marginalizados se encontrem na
rede, promovam a conversação, se organizem e se engajem em torno de suas
pautas e temas sensíveis” (MODELLI, 2016, p. 44; meus grifos); nos termos da
minha pesquisa, isto implicaria apreender o feminismo digital como uma esfera
pública85 bem como uma rede de sociabilidade. As redes sociais virtuais ou digitais
favoreceriam a construção de “laços sociais”, os quais “são formados a partir de
interesses, temas e valores compartilhados, mas sem a força das instituições e com
uma dinâmica de interação específica” (MARTINO apud MODELLI, 2016, p. 79).
Duas características da construção de laços sociais são: a dinâmica – “a forma de
interação entre os participantes, assim como o fluxo de pessoas que entra e sai
dessa rede e a quantidade de conexões estabelecidas” – e a flexibilidade – os
“vínculos fluídos e rápidos que são formados e desmanchados entre os
participantes” (MODELLI, 2016, p. 79).86

Como dito, a internet é central para se compreender as mobilizações


sociais contemporâneas como um todo. Gohn (2014, p. 43-45) aglutina “os
movimentos sociais brasileiros contemporâneos em três grandes categorias”: (1)
“movimentos identitários”; (2) “movimentos de luta por melhores condições de vida e
de trabalho nos âmbitos urbano e rural”; e (3) “os movimentos globais, globalizantes
ou transnacionais”. Esta terceira categoria – “a grande novidade do novo milênio”
(GOHN, 2014, p. 45) – abarca, por exemplo, a chamada Primavera Árabe e os
movimentos dos Indignados (na Espanha) e Occupy Wall Street (nos EUA). Estas
mobilizações sociais e políticas se apropriam “das transformações tecnológicas para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
85
Esta interpretação do feminismo digital como esfera pública não é estranha à investigação de
Modelli: “Em conformidade com a ideia de ciberespaço como um ambiente propício para o
desenvolvimento da inteligência coletiva, podemos afirmar que os blogs coletivos feministas
funcionam como uma arena democrática por conceder às mulheres, grupo historicamente excluído e
marginalizado das arenas democráticas públicas e institucionais (Fraser [...]), um espaço para
encontro, diálogo, engajamento, empoderamento, mobilização e ação” (MODELLI, 2016, p. 91-92;
meus grifos). A autora também aproxima os blogs coletivos feministas à noção tocquevilliana de
“associações voluntárias” (MODELLI, 2016, p. 94).
86
Ainda é preciso que a pesquisa social aprofunde a reflexão sobre as interações entre a flexibilidade
destes laços sociais mediados pela internet e a emergência da forma-coletivo nos novos
associativismos do século XXI.
! 134

alavancar suas performances, utilizando o desenvolvimento de meios de


informações, a Internet e a ampliação das redes de comunicações” (GOHN, 2014, p.
45). Mais detalhadamente:

A maioria desses movimentos é composta por jovens e a forma de


comunicação predominante é on-line, que ganhou status de
ferramenta principal para articular ações coletivas. Por isso, os
recursos analíticos têm de incorporar essa importante alteração nas
relações que se estabeleceram e estruturaram os movimentos. A
transnacionalização advém dessas mudanças. A comunicação não
ocorre só via os computadores e a Internet. Celulares e diferentes
dispositivos de mídia móvel passaram a ser o meio de comunicação
básico e o registro instantâneo de ações transformou-se em arma de
luta, gerando outras ações como resposta. Twitter, Facebook,
YouTube, LinkedIn e outras redes sociais passaram a ser acionados
principalmente via aparelhos móveis, como Blackberrys e iPhones,
alçados a ferramentas do ciberativismo que se incorporaram ao perfil
do ativista. (GOHN, 2014, p. 45-46)

Como a própria autora frisa, “as categorias anteriores [de movimentos


sociais] também [entraram] nesse circuito tecnológico, em diferentes escalas”
(GOHN, 2014, p. 45). Investigarei nesta seção alguns dos elementos das novas
TICs apropriadas pelos coletivos feministas periféricos, mais especificamente as
esferas públicas digitais feministas.

Celikates (2015) aborda, por sua vez, o processo de “digitalização da


esfera pública” a fim de entender até que ponto se trataria de uma mudança
estrutural da esfera pública, tal qual a apontada por Habermas, considerando os
séculos XVIII a XX. Este processo consiste no

[...] papel crescentemente proeminente da internet em geral e da


Web 2.0 e das redes sociais [social media] em particular como
ferramentas para produzir publicidade, participar em debates
públicos que transcendem os limites tradicionais (linguísticos,
culturais, espaciais, etc.) da esfera pública, disseminar informações,
organizar mobilização e arrecadação de recursos, sustentar
movimentos e coordenar a ação política coletiva. (CELIKATES, 2015,
p. 166-167)

Para o autor, seria um equívoco superestimar a mudança na interação


comunicativa das formas offline para as online; não apenas as formas offline de
participação e mobilização políticas permanecem importantes para sustentar
! 135

protestos, como há uma nova intersecção entre formas online e offline. Isto, contudo,
não anula a relevância da transformação ocorrida, que permite às pessoas se
comunicarem diretamente, fora do alcance da grande mídia tradicional e dos
sistemas econômico e político uma vez que “as novas formas de comunicação digital
e interação possibilitadas por novas mídias” são estruturalmente comparáveis “à
lógica estrutural destas mídias no sentido de serem horizontais, descentralizadas,
transnacionais, sem líderes, inclusivas, dinâmicas e organizadas em rede”
(CELIKATES, 2015, p. 167). Na “imprensa mainstream” e na “esfera pública
tradicional” há uma clara diferenciação entre, de um lado, uma “elite relativamente
fechada de jornalistas e ‘formadores de opinião’ com acesso aos políticos e aos
meios de comunicação” e, de outro, uma “audiência relativamente passiva, anônima
e silenciosa” (CELIKATES, 2015, p. 168). Já na esfera pública digital a inovação
reside em um “modo de comunicação de muitos-para-muitos”, combinando, pela
primeira vez, tanto o caráter massivo da mídia quanto um aspecto interativo; nesta
configuração, quem decide o que é ou não relevante não é uma minoria que detém
os meios de comunicação antes da sua publicação e sim os próprios usuários
depois da publicação (CELIKATES, 2015, p. 168 e 167).

Como defenderei ao final desta subseção, os conceitos de contrapoder,


autocomunicação de massa, audiência criativa, cultura da autonomia e espaço
público híbrido de Castells (2013; 2015) podem ser úteis para compreender a
singularidade histórica do “Feminismo Periférico”. A recepção e a apropriação das
teorias feministas deixaram de se dar por meio de agências de mediação e
passaram a ser realizadas de forma autônoma pelas militantes e ativistas periféricas,
de modo individuado87 e bastante fragmentado: nem mesmo no interior de cada
coletivo é possível dizer que a apropriação dos feminismos se dê de forma
homogênea – cada timeline do Facebook é única.

A seguir, buscarei apresentar como parti da singularidade dos perfis


pessoais das militantes para analisar como se estrutura a rede discursiva que
alimenta digitalmente a formação do “Feminismo Periférico”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
87
Parto aqui do conceito desenvolvido por Castells: “Individuação é a tendência cultural que enfatiza
os projetos do indivíduo como supremo princípio orientador de seu comportamento. Individuação não
é individualismo, pois o projeto do indivíduo pode ser adaptado à ação coletiva e a ideais comuns,
como preservar o meio ambiente ou criar uma comunidade, enquanto o individualismo faz do bem-
estar do indivíduo o principal objetivo de seu projeto particular” (CASTELLS, 2013, p. 172).
! 136

Realizei um mapeamento das páginas de Facebook que as militantes e


ativistas jovens dos sete coletivos entrevistados seguem para se informar e se
formar no tocante a debates feministas – ou, dito de modo mais amplo, acerca dos
direitos das mulheres. A amplitude dos conteúdos e temáticas destas páginas não é
algo simples de ser delimitado inequivocamente. Foram incluídas páginas que não
tematizam explicitamente o feminismo ou mesmo outras que não o reivindicam
claramente. Também foi um processo complexo decidir quais páginas cujo conteúdo
principal são a beleza e a estética negras (estou trabalhando com a hipótese de que
sejam partes integrantes do feminismo negro digital) deveriam ou não entrar na
análise. Meu critério foi verificar se havia alguma postagem que tematizasse, mesmo
que de forma humorística ou imagética (por exemplo: por meio de memes), questões
sociais como a discriminação racial de mulheres negras, muito embora o grosso do
conteúdo postado pudesse ser voltado para dicas de cuidados com cabelos crespos
e/ou cacheados, maquiagem para peles negras ou então vestimentas africanas e
afro-brasileiras.

O procedimento consistiu em entrar no perfil pessoal de Facebook das


militantes dos coletivos entrevistados, com as quais tenho amizade, e coletar todas
as páginas que elas “curtem” (“seguem”) que tivessem alguma relação com a
temática (lato sensu) dos direitos das mulheres. Verificando no final de julho de 2016
os perfis de apenas 24 militantes, de 7 coletivos diferentes (os mesmos que constam
na Tabela 1), foram listadas 828 páginas88 diferentes que poderiam contribuir de
alguma forma para a sociabilidade e os debates públicos que participam da gênese
do feminismo periférico. O grau de diversidade, heterogeneidade e fragmentação do
processo de formação da opinião na esfera pública digital é surpreendente. É muito
comum que páginas que poderiam ser do interesse de várias ativistas tenham a
curtida de apenas uma delas, revelando o caráter extremamente descentralizado
das discussões na internet.

Realizado o mapeamento, o ponto de partida da análise quantitativa de


redes foram estas mais de 800 páginas. Algumas delas estavam inativas durante a
amostragem selecionada no decorrer do 1º semestre de 2016 e, portanto, não foram
processadas. O processamento considerou 606 páginas, porém quase 300 delas
acabaram isoladas no grafo e foram, por isto, descartadas; sobraram 319 páginas a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
88
Cf. a lista completa destas páginas no Apêndice 2.
! 137

serem analisadas. A análise de rede89, por meio da aplicação de um algoritmo pelo


software Gephi, identificou cinco clusters (“agrupamentos”), os quais podem ser
interpretados como constituindo públicos de leitores comuns, envolvendo todas as
pessoas que seguem estas páginas de Facebook (e não apenas as militantes dos
coletivos que são minhas amigas nesta rede social). Os cinco grupos podem ser
sinteticamente descritos da seguinte maneira (as cores são escolhidas
aleatoriamente pelo software):

- agrupamento vermelho (48 páginas): “feminismo digital”;

- agrupamento rosa (99 páginas): “mulheres nos movimentos


culturais”;

- agrupamento laranja (3 páginas): “sagrado feminino”;

- agrupamento azul (71 páginas): “feminismo mais institucionalizado”;

- agrupamento verde (98 páginas): “mulheres negras”.

No grafo a seguir estão indicados os nomes das 6 maiores páginas de


cada agrupamento:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
89
Agradeço a Márcio Moretto Ribeiro tanto pelo trabalho de processamento e análise quanto pela
seguinte explicação metodológica: “O tamanho dos nós é proporcional ao número de usuários que
curtiram alguma das postagens na amostragem selecionada. Para cada duas páginas A e B foi criada
uma aresta cujo peso é o número de usuários que curtiram postagens das duas ao mesmo tempo
(intersecção de A e B) dividido pelo número de usuários que curtiram pelo menos uma delas (união
de A e B). A disposição dos nós nas figuras é construída pelo software Gephi da seguinte maneira: os
nós possuem uma força de repulsão entre si (como imãs de mesma polaridade) e as arestas os
aproximam proporcionalmente ao peso delas. Esse processo de repulsa e reaproximação é repetido
várias vezes até chegar em um ponto de equilíbrio. As cores indicam clusters, os quais são gerados
pelo Gephi tentando minimizar a razão entre o peso das arestas que cruzam os agrupamentos pelo
número que cruzaria se o grafo tivesse o mesmo número de arestas dispostas de maneira aleatória.
Assim, o agrupamento indica, de certa forma, que há mais arestas intra do que inter-agrupamentos.
Neste caso, o agrupamento das páginas indica grupos de leitores comuns”.
! 140

[1.1] “núcleo interno”90 do feminismo digital (páginas como: Empodere


Duas Mulheres; Moça, você é mais poesia que mulher; Moça, você é machista;
Feminismo Sem Demagogia – Original; Geledés Instituto da Mulher Negra; Não Me
Kahlo; Vamos juntas?; Acidez Feminina; As Mina na História; Jout Jout Prazer; Think
Olga; e Chega de Fiu Fiu);

[1.2] “núcleo externo” do feminismo digital (páginas como: Arquivos


Feministas; Diários de uma feminista; Ventre Feminista; etc.);

[1.3] núcleo LGBT do feminismo digital (páginas como: Cartazes &


Tirinhas LGBT; Não sou preconceituoso, mas; Mães pela Diversidade; etc.).

Tenho a impressão de que a maioria dos trabalhos sobre feminismo nas


redes sociais da internet tem se detido nas páginas que formam este cluster, se
ocupando muito menos dos outros universos virtuais relacionados aos
agrupamentos a seguir.

[2] O agrupamento rosa – “mulheres nos movimentos culturais” – é o


maior cluster em termos de número de páginas (não de usuários que curtiram algo –
se for considerado o número de usuários é, paradoxalmente, o menor de todos, com
exceção do “sagrado feminino”, que reúne apenas 3 páginas). Também se trata do
cluster mais disperso e o que é mais heterogêneo internamente, contando com 9
sub-agrupamentos:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Refiro-me a “núcleo interno” e “núcleo externo” apenas com o intuito de diferenciar o sub-
agrupamento com mais curtidas e conexões internas mais intensas do sub-agrupamento com menos
curtidas e menos conectado, respectivamente.
! 142

[2.2] mulheres no Hip Hop e no rap (Rap Feminino; FNMH2; Rima Mina;
Por um Hip Hop mais igualitário; Issa Paz; e Sharylaine);

[2.3] de longe o subcluster mais heterogêneo dos 9, reunindo “feminismo


digital” (Siririca; Vulva Revolução; Xotanás; Santa Vulva; Lugar de Fala; e
Feminismo pra quê?); “mulheres produtoras culturais” (3 coletivos universitários, 2
grupos de teatro, 2 grupos de música, 1 grupo de pesquisa acadêmica); feminismos
negro, popular e periférico; e temática LGBT.

[2.4] movimentos sociais (LGBT, movimento negro, anarquismo e


trotskismo);

[2.5] “mulheres produtoras culturais” (aparentemente não periféricas:


hacktivismo, audiovisual, fotografia, jornalismo, publicidade e universidade);

[2.6] “mulheres no rap e na poesia” (Tati Botelho; Dory de Oliveira; Hip


Hop Feminino; Mulheriu Clã; GGF A Família; Mel Duarte; palavrapreta; Slam das
Minas; Lua Rodrigues);

[2.7] feminismos periférico e negro e cultura popular (Aparelha Luzia;


Grupo de Coco Semente Crioula; Débora Garcia Poetisa; ComunaDeusa; Periferia
Trans; Juntas na Luta; etc.);

[2.8] MC Cacau Rocha e outros (PCB, antirracismo e LGBT);

[2.9] antirracismo e mulheres negras (Zulmira somos nós; Aqualtune


Associação; Mulher Sagrada - Corpo, Mente e Espírito; Em Negritto).

Em minha interpretação, os subclusters 2.1, 2.2, 2.6 e 2.7 representam


melhor a singularidade deste agrupamento como um todo: a presença das mulheres
nos movimentos culturais periféricos (a construção do seu protagonismo por meio da
ocupação de espaços físicos e virtuais enquanto produtoras culturais em circuitos
ainda dominados por homens). É curioso notar que todas as páginas dos coletivos
feministas periféricos entrevistados da Zona Leste que surgiram como ativas no
processamento da análise de rede se encontram neste agrupamento (tais como: Ser
Vi Elas; Mulheriu Clã; Grupo de Coco Semente Crioula; e Juntas na Luta – páginas
do feminismo periférico fora da Zona Leste também foram incluídas neste cluster:
Fala Guerreira, da Zona Sul de São Paulo; Coletiva Maria Sem Vergonha, da Zona
Norte; Coletivo DiadeNega, de Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo; e
! 143

Slam das Minas – SP, um coletivo feminista periférico itinerante). Minha hipótese é
que este cluster virtual representa a rede online mais próxima e similar à rede offline
dos coletivos, sua base “física”, “real”, “material”, ou seja: justamente os movimentos
culturais.

[3] O agrupamento laranja – “sagrado feminino” – é o menor cluster em


termos de páginas, apenas 3: Feminino Sagrado; Filhas da Terra - Escola de
Saberes Femininos; e Pachamama "Ciclos do Sagrado Feminino". Darei menos
atenção a este cluster tendo em vista o objetivo de identificar matrizes discursivas
fundamentais para explicar como a questão racial adquiriu centralidade no
“Feminismo Periférico”.92

[4] O agrupamento azul – “feminismo mais institucionalizado” – tem


algumas características similares ao cluster vermelho, mas o que o singulariza é a
concentração da enorme maioria de páginas de Facebook do movimento feminista
mais institucionalizado. Há no seu interior 3 subclusters:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
92
Pude observar a presença de uma ativista identificada com esta vertente do sagrado feminino em
duas atividades que etnografei durante minha pesquisa de campo, mas ela não militava em nenhum
dos coletivos feministas periféricos mapeados e entrevistados, e sua proposta de dança circular foi
realizada em ambas as ocasiões como forma de encerrar os eventos em questão.
! 145

[4.2.1] ONG’s (Católicas Direito de Decidir; ELAS Fundo de


Investimento Social; Agência Patrícia Galvão; Odara - Instituto da Mulher
Negra; e SOF Sempreviva Organização Feminista);

[4.2.2] movimentos sociais tradicionais (Marcha Mundial das


Mulheres; Articulação de Mulheres Brasileiras; Frente Nacional Pela
Legalização do Aborto; 2015 - Marcha das Mulheres Negras; GERI - IPJ-
(Grupo de Estudos por Relações Igualitárias [do Instituto Paulista de
Juventude]);

[4.2.3] o Estado, seja a ex-Secretaria de Políticas para as


Mulheres da Presidência da República (SPMulheres; Observa Gênero; e
Conferência Nacional de Polí-ticas para as Mulheres) ou a Secretaria
Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo; e, por fim,

[4.2.4] a ONU (ONU Mulheres Brasil; e ElesPorElas -


HeForShe Brasil);

[4.3] “temática LGBT” (Para Tudo; Nome Social É Direito; e Canal das
Bee).

Aqui é interessante notar a presença das páginas de Facebook de ONGs


feministas “centrais”, como a Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) e a SOF, que
contribuíram nas décadas de 1980 a 2000 como integrantes de uma das três
matrizes discursivas para o ciclo político anterior, o “Feminismo Popular”.

[5] Por fim, o agrupamento verde – “mulheres negras” – tem uma


pluralidade de abordagens e temáticas que priorizam as mulheres negras, com 4
sub-agrupamentos:
! 147

maquiagem, pele, moda, turbantes, jóias, vestuário, lifestyle, unhas, “noiva negra”,
cuidados com o corpo, sendo alguma destas páginas lojas que vendem produtos,
outras trazendo apenas dicas e fotos (como: Beleza Natural; Boutique de Krioula;
Belocrespo ( By Amanda Gil ); Blog das Cabeludas - Crespas e Cacheadas; Soul
Vaidosa; Débora Ninja; Negras Plus Size; Prapreta; Eva Lima; Gata Crespa
Cacheada por Aline Silva; Negra Rosa; Encrespa Geral; Criloura; Negra Vaidosa;
Divas & Crespas - tipo 4; Canal Patrícia Avelino; e Soul Negra);

[5.3] “protagonismo das mulheres negras” (A mãe preta; Anastácia


Contemporânea; Grupo Cultural Balé Das Iyabas; Lélia Gonzalez; Leia Mulheres
Negras; Cidinha da Silva; Negras em Movimento; Nós do Cabelo; Doutora Josefina
Serra; Livraria Africanidades; Mulheres Negras Capixabas; A Negra; e Capulanas
Cia de Arte Negra);

[5.4] rap (Dina Di Eterna Rainha Do Rap; e A's Trinca).

É interessante notar dois deslocamentos: um pequeno subcluster de


mulheres rappers aqui (curiosamente em vez destas páginas estarem no cluster
rosa, das “mulheres nos movimentos culturais”) e a ausência do Geledés, importante
ONG feminista negra, que está mais próxima do “núcleo duro” do “feminismo digital”
(o maior subcluster do agrupamento vermelho) do que das outras páginas do
feminismo negro (digital ou não), talvez revelando sua maior amplitude de público-
alvo atualmente na internet. 93

Iniciei minha investigação sobre a apropriação das novas TIC’s pelos


coletivos feministas periféricos com a hipótese de que o feminismo nas redes sociais
da internet – ou, melhor: os feminismos das esferas públicas digitais – constituiriam
uma matriz discursiva (no sentido dado por Sader) fundamental para a gênese do
“Feminismo Periférico”. A análise de rede aqui brevemente apresentada revelou a
complexidade deste fenômeno. Talvez não seja possível tratar diretamente o

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
Sobre a inserção digital do Geledés, cf. SANTANA, Bianca. Dia da mulher negra no Facebook: uma
análise de rede social, a partir da página do Geledés. Seminário FESPSP “Cidades conectadas: os
desafios sociais na era das redes”, São Paulo, 18-20 out. 2016.
! 148

feminismo nas redes sociais digitais como uma única matriz discursiva (na
suposição de que seria um “centro de elaboração discursiva” homogêneo) e sim a
internet como uma rede discursiva (ou dito de modo talvez mais rigoroso: uma rede
de redes discursivas). E no interior desta rede discursiva foi possível identificar
alguns agrupamentos [clusters] que poderiam ser interpretados como matrizes
discursivas do “Feminismo Periférico” (porém não necessariamente todos os
grupos).

O material empírico analisado e interpretado indicou, dito de forma


simplificada, a existência de cinco públicos distintos: (1) o feminismo digital
(composto por muitas páginas de Facebook e blogs sem existência física ou material
organizada fora da realidade virtual); (2) os movimentos culturais periféricos; (3) o
sagrado feminino; (4) o feminismo institucional (ONGs, movimentos sociais
tradicionais, feminismo estatal e organismos internacionais); e, por fim, (5) o
feminismo negro (entendido de modo bastante amplo, pois conectado internamente
à valorização antirracista da beleza e da estética das mulheres negras).

A importância do cluster “mulheres negras” pode ser compreendida pelo


fato de que, no atual ciclo político do feminismo periférico, a questão racial ganhou
centralidade no ativismo das mulheres jovens (como insistirei na seção 4.1). Mas
também é preciso ressaltar que, mesmo que se formule a hipótese de que o
feminismo negro (digital) passou a ser uma matriz/rede discursiva para os coletivos
feministas periféricos, o fenômeno é complexo e precisa ser apreendido com
nuances. Em primeiro lugar não seria possível entendê-lo somente por uma via
teórico-conceitual (representada, por exemplo, pelas páginas Sueli Carneiro e Lélia
Gonzalez – importantes feministas negras brasileiras – sem contar o Blogueiras
Negras94) mas é necessário também explorar a contribuição de uma via estético-
expressiva, por assim dizer: todas as páginas dedicadas às temáticas da beleza da
mulher negra, como um meio de combater a intersecção entre racismo e machismo,
por meio da valorização da sua identidade, sua estética e sua autoestima. Em
segundo lugar, mesmo em termos de vertentes teóricas, não há uma unidade
necessária; como será visto no Capítulo 4, no interior do “Feminismo Periférico”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
94
Sobre as redes de sociabilidade em torno do Blogueiras Negras, cf. a pesquisa de doutorado em
andamento de Dulcilei da Conceição Lima no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e
Sociais da UFABC. Já uma comparação entre o Blogueiras Negras e o Blogueiras Feministas se
encontra, como já apontado, em Modelli (2016).
! 149

convivem enquadramentos diversos, nomeadamente o feminismo negro95 (muitas


vezes o termo feminismo interseccional 96 é utilizado como seu sinônimo) e o
mulherismo africana97.

Já os movimentos culturais (como os saraus periféricos e o Hip Hop)


surgirem como um cluster na análise de redes discursivas corrobora a hipótese
(apresentada e desenvolvida na sub-seção 3.2.1) que eles próprios já constituem
por si sós, uma matriz discursiva central para o “Feminismo Periférico”, haja visto
que as jovens que fundam estes coletivos se conhecem, se encontram e se
articulam principalmente no seio destes movimentos – eles propiciam uma rede de
sociabilidade fundamental para estas mulheres, assim como uma esfera pública
informal onde se tematizam as desigualdades de classe e de gênero, sem contar a
discriminação racial.

Busquei nesta subseção contribuir para a expansão do conhecimento


acerca dos feminismos nas esferas públicas digitais no sentido de abarcar terrenos
ainda pouco explorados, como a ocupação offline e online que mulheres jovens
estão protagonizando nos movimentos culturais periféricos, o feminismo negro digital
e sua afinidade com a valorização da beleza das mulheres negras (além do que será
visto a seguir, na seção 3.3: as campanhas virtuais organizadas por fora do circuito
mainstream do “feminismo digital”).

Da mesma forma como os movimentos culturais periféricos foram


interpretados não apenas como uma matriz discursiva mas também como uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
95
Algumas referências históricas da construção contemporânea do feminismo negro enquanto
vertente teórica são: Davis (2016 [1981]), hooks (1981; 1984), Lorde (1984) e Hill Collins (2009
[2000]). Para além destas autoras, todas estadunidenses, é preciso também considerar autoras
brasileiras, como Gonzalez (1983; 1988a; 1988b), Nascimento (2006 [1990]) e Carneiro (2003a;
2003b); biografias de Lelia Gonzalez e Beatriz Nascimento podem ser encontradas, respectivamente,
em Ratts e Rios (2010) e Ratts (2006).
96
As referências clássicas para o conceito de interseccionalidade são Crenshaw (1989; 1991). Para
um panorama que inclusive problematiza a adoção ahistórica deste marco inaugural do conceito e
insere a sua gênese (histórica) em um contexto de lutas sociais em curso desde a década de 1960,
cf. Hill Collins e Bilge (2016). Uma recepção do conceito na tradição da teoria crítica encontra-se em
Kerner (2012). Por fim, Kergoat (2010) critica o conceito, propondo a superação do que ela considera
algumas de suas limitações a partir da adoção da categoria de “consubstancialidade”.
97
A primeira autora a defender o mulherismo africana – não confundir com o mulherismo, sem
adjetivação, proposto pela escritora Alice Walker em In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist
Prose,– como alternativa ao feminismo negro é Hudson-Weems (1993; 2003). Já Dove (1998; 2003)
busca contribuir na construção desta vertente teórica relacionando-a explicitamente ao paradigma
mais amplo da afrocentricidade. No Brasil não há tantas publicações como no caso do feminismo
negro; cf. o artigo de Vallim (2015) e o blog “Pensamentos Mulheristas”
(https://pensamentosmulheristas.wordpress.com/).
! 150

esfera pública literária – reconceitualizada, logo em seguida, a partir de Fraser,


como um contrapúblico subalterno –, no caso da matriz/rede discursiva dos
feminismos das esferas públicas digitais o autor ao qual recorrerei para atualizar o
quadro teórico de Sader é Manuel Castells, uma vez que, como dito anteriormente,
alguns de seus conceitos (CASTELLS, 2013; 2015) podem ser úteis para
compreender a singularidade histórica do “Feminismo Periférico”.

Para Castells, a internet e a comunicação sem fio são “meios de


comunicação interativa”; a rede mundial de computadores permite a circulação de
qualquer documento – “textos, áudios, vídeos, programas de software” (CASTELLS,
2015, p. 111) – que possa ser digitalizado. Deste modo, e com o desenvolvimento
da chamada Web 2.0, surge uma nova forma de comunicação. Castells a chama de
autocomunicação de massa e aponta três elementos que a caracterizam: (1) ela é
comunicação de massa pois alcança uma audiência potencialmente global graças às
redes de computadores; (2) ela é multimodal pois a digitalização de conteúdo e
softwares “permite a reformatação de quase qualquer conteúdo em quase qualquer
forma, cada vez mais distribuído pelas redes sem fio” (CASTELLS, 2015, p. 118); e
(3) ela congrega “conteúdo autogerado, emissão autodirecionada e recepção
autosselecionada por muitos que se comunicam com muitos” (CASTELLS, 2015, p.
118; grifos do autor). Essa nova esfera de comunicação seria um meio
“revolucionário”, articulando redes de computadores, uma linguagem digital e
emissores distribuídos e interagindo em escala global. Com “o desenvolvimento de
redes horizontais de comunicação interativa”, os usuários constroem “seus próprios
sistemas de comunicação de massa”, já que se tornou possível “a circulação, a
mixagem e a reformatação de qualquer conteúdo digital” (CASTELLS, 2015, p. 113).
Este processo não anula as redes verticais de comunicação; o que existe, segundo
o autor, é uma interação crescente entre as redes verticais (conceitualizadas como
poderes por Castells) e as redes horizontais (conceitualizadas como contrapoderes),
em um processo simultâneo de complementaridade e de luta política e social.

Entretanto, a emergência da autocomunicação de massa aumentou


substancialmente o “potencial para que a audiência controle suas práticas
comunicativas” (CASTELLS, 2015, p. 183). Não apenas as pessoas (em especial a
juventude) afirmam sua autonomia com relação a instituições sociais e a mídia
tradicional como a internet fortalece suas “práticas de autonomia”: os sujeitos
! 151

passam a ser simultaneamente emissores e receptores de mensagens, produzindo


seu próprio conteúdo e fazendo-o circular na internet. Este novo “processo de
comunicação” precisa ser entendido como “uma rede multidirecional compartilhada,
[na qual] todos os emissores são receptores e vice-versa” (CASTELLS, 2015, p.
183).

Uma complexidade adicional reside na interpretação das mensagens, que


não se dá com indivíduos isolados e sim num processo amplamente dinâmico entre
sujeitos comunicativos e diferentes modos de comunicação (televisão, internet, etc.)
e canais de comunicação (como de notícias internacionais, esportivos, religiosos,
etc.); a negociação de significados se dá no interior de “redes de comunicação que
produzem significado compartilhado” (CASTELLS, 2015, p. 184). A produção de
significado é, portanto interativa: em vez de “comunicação de massa direcionada a
uma audiência” passa-se a ter uma audiência criativa, “a fonte da cultura da
remixagem que caracteriza o mundo de autocomunicação de massa” (CASTELLS,
2015, p. 184).

A “autocomunicação de massa” é, portanto, uma revolução tecnológica na


base material das formas de comunicação, que possibilitou a produção, a circulação
e a recepção de discursos de modo horizontal, extremamente descentralizado e
potencialmente transnacional, fomentando uma “audiência criativa” e uma “cultura
da autonomia”, nas quais a formação e a informação – neste caso, de discursos
feministas – passa a ocorrer de maneira imediata (isto é, sem mediadores),
heterogênea e singular.

Por fim, o “espaço público híbrido” é uma categoria bastante produtiva


para compreender como o online e o offline estão imbricados. 98 Os saraus
periféricos são atualmente uma forma privilegiada de ocupação do espaço urbano
(praças, parques, bibliotecas e outros equipamentos públicos). Certas experiências
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
98
Modelli também aponta para a necessidade de se investigar a transposição das barreiras do online
e do offline: “Estas manifestações feministas na internet organizadas em rede [...] têm criado uma
nova geração de mulheres que se informam por meios alternativos e dentro de uma rede de
conexões tecidas com outras mulheres que militam na internet, sem deixar de comparecer às
marchas de rua” (MODELLI, 2016, p. 99-100). As manifestações de rua às quais a autora se refere
concretamente são a Marcha Mundial das Mulheres e a Marcha das Vadias; eu acrescentaria os atos
de rua que ocorreram em outubro e novembro de 2015 (contra o Projeto de Lei 5069, proposto por
Eduardo Cunha – estes atos ficaram conhecidos como “a Primavera Feminista”), em junho de 2016
(protestos contra a cultura do estupro, motivado por caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro –
campanha que ficou conhecida pela hashtag #PorTodasElas) e, por fim, em outubro de 2016 (em
solidariedade ao movimento argentino #NiUnaMenos, decorrente de um brutal feminicídio).
! 152

negativas de sofrimento, desrespeito, injustiça, preconceito e discriminação tanto na


vida cotidiana quanto no interior deste circuito cultural podem ser reelaboradas
simbolicamente, com o auxílio de redes discursivas proporcionadas pela internet. E
a articulação da indignação individual pode se converter em ações coletivas, sejam
elas virtuais ou presenciais, o que me leva a interpretar o “Feminismo Periférico”
como um “movimento social em rede”.

3.3 Exemplo de hibridismo online/offline: a campanha


#NãoPoetizeOMachismo

A separação vista no decorrer da seção 3.2 como um todo, entre os


movimentos culturais periféricos e os feminismos nas esferas públicas digitais como
duas matrizes discursivas (ou agora reconceitualizadas como redes discursivas) do
“Feminismo Periférico”, é um recurso meramente analítico para iluminar suas
contribuições específicas para a gênese dos coletivos, haja visto que, na vida
cotidiana, o online e o offline não estão apartados. Como afirma Castells, a nossa
sociedade não é “puramente virtual”, há uma conexão íntima entre as redes virtuais
e as redes na vida social:

O mundo real em nossa época é um mundo híbrido, não um mundo


virtual nem um mundo segregado que separaria a conexão on-line da
interação off-line. E é nesse mundo que os movimentos sociais em
rede vieram à luz, numa transição – natural, para muitos indivíduos –
do compartilhamento de sua sociabilidade para o compartilhamento
de sua indignação, de sua esperança e de sua luta. (CASTELLS,
2013, p. 173-174; meu grifo)

As militantes feministas periféricas são plenamente conscientes destas


interfaces e articulações. Em um debate que pude observar, promovido pela
Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres na Biblioteca Mário de Andrade (em
março de 2016), uma integrante do coletivo Nós, Mulheres da Periferia compartilhou
uma discussão permanente que estas midiativistas cultivam, acerca da necessidade
de equilibrar as militâncias online e offline. Mesmo reconhecendo que “a gente
nasceu online”, elas debatem a todo momento: “tamo pisando no chão?” e “a
gente tem que voltar pra nóis”, ou seja, para a vida cotidiana das mulheres
periféricas. O grupo não tem uma sede fixa própria; elas sempre trabalham
! 153

coletivamente por meio do uso das novas TIC’s: GoogleDocs, Skype, Facebook,
WhatsApp.99 A reflexão da militante no debate avançou para uma ponte com a obra
e o pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman: “Somos fluídas demais, somos…
como fala? Líquidas…! […] A internet faz a gente ser líquida, esses bagulho
todo…”. Por este motivo o coletivo buscou se inscrever no Programa VAI para
dialogar “com quem tá com o pé no chão”; foram realizadas durante o ano de
2015 oficinas com mulheres das mais diferentes idades acerca das representações
da mulher periférica na grande mídia e uma exposição (“fixa e física”) com a
produção colaborativa do coletivo com as participantes foi realizada no Centro
Cultural da Juventude. Foi um “desafio para a geração online”; e elas continuam
debatendo internamente o risco de “não estar pisando no chão”.100

Exemplar do hibridismo online/offline e da conexão entre os feminismos


nas redes sociais da internet e os movimentos culturais é a campanha
#NãoPoetizeOMachismo. O contexto desta campanha no Facebook é o mesmo do
que ficou conhecido como “Primavera Feminista”: os atos de rua que ocorreram em
outubro e novembro de 2015 contra um Projeto de Lei apresentado pelo deputado
Eduardo Cunha, de modo simultâneo a diversas campanhas com hashtags nas
101 102
redes sociais. As mais conhecidas foram: #MeuPrimeiroAssédio ,
#AgoraÉQueSãoElas103 e #MeuAmigoSecreto104. Cada uma destas hashtags teve

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
Uma das duas entrevistas que realizei com uma jornalista do coletivo foi por meio do Skype, a
pedido dela (tarde da noite, depois dela chegar em casa do trabalho); foi um caso único em toda a
minha pesquisa de campo.
100
Todas as falas encontram-se anotadas em meu caderno de campo. Um desdobramento posterior
à exposição foi a renovação do Programa VAI pelo Nós, Mulheres da Periferia, o qual resultou em um
documentário chamado “Nós, Carolinas” – Carolina, aqui é tanto referência a uma senhora
entrevistada pelo coletivo quanto uma alusão à Carolina Maria de Jesus – lançado em 8 de março de
2017, na Galeria Olido.
101
Um terceiro elemento da “Primavera Feminista” pode ser apontado como as oficinas de gênero e
feminismo nas escolas ocupadas por estudantes secundaristas paulistas contra o projeto da
“reorganização” escolar em novembro e dezembro de 2015, de modo quase simultâneo aos atos de
rua e às campanhas virtuais; estas oficinas foram identificadas como as mais comuns entre as
atividades que foram doadas às ocupações, tendo sido oferecidas principalmente por coletivos
feministas universitários (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016).
102
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/22/politica/1445529917_555272.html
103
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1701406-colunistas-abrem-espaco-para-que-
mulheres-falem-de-seus-direitos.shtml
104
http://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2015/11/meuamigosecreto-nova-
campanha-na-internet-denuncia-o-machismo-nosso-de-cada-dia.html e
http://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2015/11/20-relatos-da-hashtag-meuamigosecreto-
que-precisam-ser-lidos.html
! 154

ressonâncias díspares no interior do “Feminismo Periférico”; minha amostragem não


tem caráter rigoroso, mas conforme várias militantes destes coletivos
(principalmente da Zona Leste, mas de outras regiões também) são minhas amigas
na rede social Facebook, foi possível averiguar que: apenas uma fez uma postagem
sobre o primeiro assédio sofrido (e vários dias depois que o ápice da campanha já
havia passado); e o único compartilhamento de um artigo no âmbito da campanha
#AgoraÉQueSãoElas foi relativo à ocupação da filósofa (e colunista da Carta Capital
e, ex-secretária adjunta de Direitos Humanos na Prefeitura de São Paulo) Djamila
Ribeiro no blog de Rodrigo Sakamoto – uma militante do Mulheres de Orí
comemorou o artigo com uma breve expressão “Aí sim hein!”, certamente se
referindo ao fato de ela ser uma das poucas mulheres negras a ser convidada a
participar da campanha. Já a terceira campanha teve muito mais participação de
feministas periféricas – minha hipótese consiste em que a campanha sobre não
poetizar o machismo teve um papel intermediário, mobilizador e inclusor pois
ocorreu logo antes (penúltima semana de novembro) da #MeuAmigoSecreto viralizar
(última semana de novembro).

A campanha #NãoPoetizeOMachismo105 teve menos visibilidade do que


as demais, embora ela também tenha se nacionalizado. Foi uma iniciativa de
mulheres que constroem os movimentos culturais periféricos, em reação a um caso
de assédio que ocorreu em um sarau no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo.
Depois deste episódio ter sido publicizado, várias histórias similares começaram
rapidamente a surgir e no dia 18 de novembro de 2015 elas começam a ser
compartilhadas, assim como a hashtag. No dia seguinte, é criada uma página no
Facebook, que centraliza os relatos, em geral de forma anônima (contabilizei mais
de 30 histórias compartilhadas em um único dia: em 19/11/2015). A ideia era romper
o silêncio e o silenciamento das mulheres, questionar privilégios dos homens e
denunciar violências machistas no interior dos movimentos culturais periféricos.
Além dos relatos, a página “Nãopoetizeomachismo” também veiculou fotografias em
preto e branco, nas quais mulheres – algumas delas entrevistadas para esta
pesquisa – traziam frases escritas em seus corpos: todas iguais, com a hashtag da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
105
http://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/mulheres-criam-campanha-contra-machismo-na-
cena-cultural-periferica/
! 155

campanha, olhares sóbrios, às vezes sombrios, outras vezes tristes; de qualquer


forma eram olhares de denúncia.

A seguir apresentarei uma análise de conteúdo (cf. BARDIN, 1977) das


denúncias postadas no primeiro dia da página do Facebook, excluindo apenas
postagens que explicavam do que se tratava a campanha e outras que traziam só
poesias. Por meio da leitura sistemática dos posts, cheguei a uma classificação
exaustiva de seus conteúdos em quatro categorias descritivas.

Uma primeira categoria das postagens da página poderia ser chamada de


crítica à liberdade poética. As frequentadoras dos saraus denunciam que alguns
homens poetas mascaram “violência”, “silenciamento” e “objetificação” como
supostas “homenagens às mulheres” ou então “liberdade de expressão”. Como
sintetiza um outro post: “O meio artístico é machista e elitista também, a
diferença é que os artistas se escondem atrás de um escudo de subjetividade
e liberdade poética” (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015).

Três exemplos106 desta crítica à liberdade poética:

(1) Estava em um slam quando um dos slammers falou a


seguinte frase "poética"
Gosto de gozar com as branquinhas na cama às neguinhas
quero ser macho sem ser chamado de machista
~algo assim~
Isso não é poético é patético colar na cena ouvir as mina gritar
por respeito e igualdade e vocês homens do mais alto privilégio
cuspir em nós
NUNCA MAIS SEREMOS SILÊNCIO! (“Nãopoetizeomachismo”,
FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(2) Eu estava em um sarau quando um cara começou a cantar


um funk que dizia em uma das partes que a novinha desceu até
o chão, roçou e engravidou, poderia ter pego um dst e que ela
precisava mexer a massa cinzenta
Não diz nada sobre o cara que fez a mesma coisa

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Mantive os posts exatamente como foram escritos e publicados, sem quaisquer correções,
partindo de um pressuposto epistemológico de investigações qualitativas de que o mais importante é
a fidelidade à fala dos sujeitos sociais tal como ela se apresenta e não aspectos formais que iriam
requerer intervenções nos textos para adaptá-los à norma padrão do português.
! 156

Diante de tanta coisa acontecendo, você mulher não pode


descer até o chão mas o homem pode fazer um filho que
[sequer] será citado
Quem deve mexer a massa cinzenta mesmo?
(“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(3) Uma vez vi 2 homens vestidos de mulher improvisando no


tema onde um deles gritava "eu quero ser assediadaaaa". Não é
poético, não é engraçado.
Já fui obrigada ver macho cinquentão defendendo machismo
em defesa da subjetividade e estética da obra. Machismo não é
subjetivo, não é poético, não é bonito. […]
(“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

Uma segunda categoria que resultou da leitura sistemática se relaciona


diretamente com a dinâmica do sarau: sua organização, os padrões de competição e
de desigualdade. Segue uma postagem que sintetiza esta temática:

Ganhei o slam e ouvi do cara que ficou em segundo lugar que


ele mACHA que se ele fosse mais bonitA ele tinha conseguido
ficar em primeiro, ele falou isso para mim, na brincadeira, é
claro, para os amigos, para os jurados, para a galera que tava
ouvindo, na brincadeira, é claro, para o organizador, sabe como
é né, porque eu realmente me olhei no espelho antes de sair de
casa e falei é, com esse batom eu ganho o slam. Eu saí de casa
pensando que com aquela roupa até as juradas
momentaneamente virariam lésbicas para votar em mim e saí,
sobretudo pensando que essa era a minha grande e única
chance porque, como minha poesia não é boa, se eu não me
garantisse no corpo, eu nunca ia ganhar nada.
VAI SE ACOSTUMANDO MACHO que a gente tá é forte na cena.
Vamos arregaçar sua carcaça opressora e vamos sim
conquistar um espaço que é nosso por direito. Aliás, já estamos
aqui, cê já perdeu o slam e nem se tocou. E é daqui para frente.
Quero mais o seu respeito do que o seu amor até que todAs nós
realmente possamos caminhar juntAs.
ps: vai se acostumando com palavras plurais no feminino
também. (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

A “brincadeira” feita pelo poeta que perdeu o slam – uma forma de


competição muito comum nos saraus periféricos – é, na realidade, uma reação,
beirando o desespero, à perda dos privilégios e do monopólio que antes os homens
detiam no circuito dos movimentos culturais. Com a entrada em cena de novas
personagens – as mulheres –, isto implica que o grau de competitividade dos slams
! 157

é muito maior. A tentativa de piada esconde seu desconforto e mal-estar com esta
nova situação no cenário cultural periférico.

Em outra circunstância, o padrão de tratamento desigual também é


denunciado pelas jovens: em uma poesia irônica, a poetisa inverteu “os papeis” e
disse “palavras ditas de baixo calão”. Ela percebeu “muitos caras incomodados
e em pleno desconforto” mas no seu relato ela escancara a injustiça: os homens
podem falar de sexo, que “mulher tem que mexer a massa cinzenta” ou então
fazer trocadilhos com TPM. E arremata: “homem pode coisa pra valer né? E A
GENTE TAMBÉM!!!!” (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015).

A ocupação das esferas públicas dos saraus por mulheres incomoda


muitos homens. Em uma ocasião, uma poetisa sugeriu para o coletivo que ela
integra a realização de um sarau que declamasse “apenas poesias de mulheres,
na intenção de dar voz e visibilidade ao assunto”, devido à aproximação do 8 de
Março e os muitos casos de feminicídio na região onde ela mora. A resposta dos
demais integrantes homens foi que “assim iríamos restringir o público e que
seria segregar a poesia”. Apenas com a eclosão da campanha
#NãoPoetizeOMachismo, a ativista cultural parou “pra pensar” e percebeu que a
negativa da proposta “foi um silenciamento”.

Mesmo se não se trata de algo maior, como um sarau inteiro que


contenha apenas poesias de mulheres, uma única poesia lida e declamada pode ser
alvo de questionamento de um homem: “depois de uma menina recitar uma
poesia feminista em um sarau”, um poeta fez o seguinte comentário “em voz
alta”: “o sarau é feminista, agora?” (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19
nov. 2015).

Uma terceira categoria – em termos quantitativos, a que mais reuniu


casos – se refere à temática de assédios e abusos nos saraus. Os assédios
começam pelos “olhares direcionados exclusivamente ao nosso corpo” e
abraços “desconfortáveis”, “para tirar casquinhas”, apertos na cintura,
encostando ou então “passando a mão” na bunda. As jovens ficam surpresas por
passar por estas experiências no interior de uma atividade de um movimento
cultural: “Sofri meu primeiro assédio dentro de um sarau onde achei que seria
respeitada por ser humana e mulher…” (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK,
19 nov. 2015).
! 158

As seguintes postagens exemplificam com mais detalhes alguns


episódios de machismo e assédio:107

(1) Estava no sarau e um cara se deslocou do lugar onde estava,


passou a mão na minha bunda sem meu consentimento e disse
"ela deixa" referindo-se a pessoa que ele estava ficando no dia.
Me desrespeitou e desrespeitou a outra pessoa.
Não vamos mais nos silenciar. Meu corpo, minhas regras.
(“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(2) Estava apresentando o sarau, no dia 8 de Março e o tema era


a mulher. Um cara veio por trás puxou a minha mini saia
encostando na minha bunda e disse q tava mto curta. Após me
manifestar fui apoiada por alguns e tbm censurada por mtos,
inclusive tive que ouvir de um cara que eu ñ era profissional e
que com o tempo iria me "ACOSTUMAR COM O ASSÉDIO DO
PÚBLICO "! Houve quem dissesse que se sentiu mal por eu ter
feito um "escândalo". Fui ameaçada de morte! E tantas
perguntas estranhas e dúvidas me permearam que eu cheguei a
pensar que talvez eu tivesse exagerado...
(“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(3) Estava no sarau a um tempão e o mesmo moço que assediou


a minha amiga ao passar a mão em seu corpo sem o seus
consentimento, me disse um dia "nossa não chega perto de mim
com esse decote".
E este mesmo moço, neste mesmo dia recitou uma poesia que
diz "não use aquele vestido perto de mim se não estiver
comigo". (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(4) Estava num sarau que frequento desde de sempre, um dos


caras que organiza esse sarau tinhabebido bastante e veio me
abraçar pegando na minha cintura, sem eu dar nenhuma
ousadia, fui super grossa e o cara saiu falando que eu era
ignorante
Algum tempo depois vi ele beijando o pescoço de uma mina e
ela se esquivando e me aproximei dos dois fiquei conversando
com ela e ele saiu fora..
Já vi o mesmo cara aproveitar da bebida pra tentar beijar minas,
romantizar ficar com às meninas novas ~de idade~ nos saraus
Já vi ele discutindo por que a mina não quis ficar com ele,
porque a mina ficou com outro cara...
Não tenho palavras pro nojo que eu sinto.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
107
A abundância de citações se justifica, ao meu ver, para enfatizar a quantidade de casos, o que
revelaria um padrão nas relações de gênero e não situações isoladas.
! 159

Lembrando que pedofilia é crime tbm, aaaah assédio tbm.


e toma vergonha nessa sua cara (“Nãopoetizeomachismo”,
FACEBOOK, 19 nov. 2015)

Eventualmente, o assédio ou a abordagem de homens encontra


resistência das mulheres e a reação masculina é a agressão verbal:

(1) Uma vez a gente se trombou numa festa. Vc xavecou uma


amiga minha, mas ela não tava a fim. Vc encheu o saco, mesmo
assim ela não quis. Daí, parecia que tinha fogo no teu olhar:
SUA FILHA DA PUTA! […] (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK,
19 nov. 2015)

(2) Oi manas, ontem quando fiquei sabendo o ocorrido, me veio


uma retrospectiva de tudo o que já passei.
Quando eu comecei a frequentar esse círculo de saraus, ha
aproximadamente seis anos, um homem X, de minha
convivência, queria a qualquer custo "me comer" e eu nunca
havia cogitado essa possibilidade. Mas como ele se achava
muito irresistível, não aceitou a minha recusa e passou a me
difamar no círculo que nós frequentávamos. Quando eu chegava
nos lugares achava que todos me olhavam diferente, que todos
já sabiam dos absurdos que ele inventara a meu respeito. Como
isso foi dolorido! E tive que enfrentar sozinha e calada enquanto
ele posava de comedor.
Mas, esse tipo de conduta é criminosa e é tipificada pela Lei
Maria da Penha como Violência Moral e Psicológica!
Ele ainda está no nosso meio. Ele é super considerado. Ele tem
vários seguidores e seguidoras. Ele é um abusador e eu fiquei
calada. (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

E, por último, o assédio pode se exacerbar e se tornar abuso sexual.


Quem lê o seguinte relato fica apreensivo se a história terminará em um estupro ou
não:

Eu estava assistindo a um show, com uma amiga, fora da minha


cidade. Ela precisou ir embora mais cedo, e eu continuei no
local, assistindo ao show ao lado de um amigo dela, que eu há
havia cruzado em outros espaços. Troquei um pouco de ideia
com ele, mas, por amar muito a banda, estava mais curtindo
uma vibe própria.
Encerrado o show, ele me ofereceu carona. Rejeitei, afinal,
estava muito perto "de casa". Ele insistiu. Estava chovendo..
Aceitei. Não diferente de muitos homens, ele entendeu isso
! 160

como um sim, para algo que ele ainda nem havia me pedido. E
que nem viria pedir depois também. Fez à força mesmo.
Quando fui me despedir para descer do carro, ele me agarrou e
me beijou. Só ele beijou. Babando no meu rosto, enquanto eu
mantinha a boca fechada e o empurrava para ele me soltar.
Quando ele soltou, eu ~que sempre jurei que estouraria a cara
do primeiro palhaço que cometesse qualquer tipo de abuso
contra mim~ fiquei paralisada. Pelo choque e pelo medo. Eu não
esperava aquilo, ele era o dobro do meu tamanho, meu
empurrão não tinha surtido efeito algum diante da força dele, era
de madrugada, a rua estava deserta e eu dormiria sozinha no
local em que eu estava hospedada. E ele sabia disso. Se eu não
consegui impedir o beijo, imagina o que mais eu não
conseguiria impedir.
Por medo de entrar em conflito com ele, sorri sem graça e o
lembrei de que ele era casado. Ao responder "meu casamento é
aberto", ele me agarrou novamente. E, diante de mais uma
negação, me agarrou pela terceira e última vez, quando eu
finalmente consegui ter coragem de sair do carro. Repito... eu de
boca fechada e empurrando ele.
Ao me despedir, mantive um ar amigável, ignorando o tremor
das pernas e os pensamentos tenebrosos. Eu só queria que ele
fosse embora pra eu ter a certeza de que nada pior aconteceria.
Assim que me vi dentro de casa, com a porta trancada, caí no
choro e corri para lavar o rosto, porque tava com muito nojo do
cheiro da saliva dele no meu rosto e com raiva de mim mesma,
porque queria ter conseguido reagir de outra forma.
Ele se despediu sorrindo. Talvez até sem desconfiar de que
tinha acabado de abusar de mim. Ele foi criado em uma
sociedade que acha que o homem não deve conter seus
"instintos". Contei pra pouquíssimas pessoas e ouvi de duas
delas que eu deveria ter sido mais firme no meu "não". Que eu
deveria ter deixado mais claro que não queria. Que eu não
deveria ter pego carona.... Que eu.. Que eu.... Eu..
ELE NÃO DEVERIA TER FEITO O QUE FEZ.
E ponto.
Engoli isso e guardei comigo porque, depois dos
questionamentos, também fiquei achando que a culpa era
minha. Hoje, fortalecida por um grupo lindo de mulheres-caos-
amor, senti força o suficiente pra somar no movimento.
O #naopoetizeomachismo é nosso grito ( e vários vêm
acompanhados de vômito) pra avisar às mulheres que elas não
estão sozinhas e pra avisar aos homens que NÃO VAI MAIS TER
SILÊNCIO. (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

A última categoria que construí a partir do material empírico coletado no


Facebook foi acerca de relacionamentos amorosos com artistas. Muitas vezes há a
proposta (geralmente masculina) de que os relacionamentos sejam “abertos”, mas
! 161

como diz uma postagem: “[…] os valores machistas estão enraizados e esse
tipo de relação não é vivenciada de maneira igualitária”. Outras vezes, os
relacionamentos vêm acompanhados de traições:

(1) Tive um relacionamento com um poeta muito conhecido nos


saraus paulistanos. Um cara tido como boa praça, entusiasta da
cultura nordestina, da literatura de cordel. Nos encontros de
poesia, fazia questão que as pessoas vissem que estávamos
juntos. Na vida, era cheio de segredos e sumiços. Depois de
outro desaparecimento sem explicação, num momento difícil da
minha vida em que precisava de apoio, resolvi terminar. Ele
respondeu minhas mensagens com seis dias de delay, dando
mais uma desculpa esfarrapada.
Cerca de seis meses depois do fim da relação, descobri o
motivo dos sumiços: ele tinha uma família, mulher e filhas.
Enganava a mim e a ela. Era acobertado por alguns amigos
homens, que também se intitulavam poetas.
Fiquei mal durante muito tempo, sem frequentar muitos lugares,
tentando digerir uma vergonha que nunca deveria ter sido
minha. Eu, que sempre tomei tanto cuidado pra não me envolver
com homem comprometido, me senti a mulher mais burra do
universo. E ele, posando por todos os lados como um cara
apaixonado, que escrevia versos lindos, que sabia sobre amor e
compaixão, enquanto brincava com a vida de várias mulheres,
gozando dos largos privilégios que sua condição de macho lhe
proporcionava e ainda proporciona. (“Nãopoetizeomachismo”,
FACEBOOK, 19 nov. 2015)

(2) Eu o conheci em um sarau e depois de um tempo acabamos


ficando e eu me apaixonando por ele, no total ficamos juntos
quase um ano.
Durante esse tempo mesmo que a gente sempre ficasse e que
eu frequentasse a casa dele, nunca ele me abraço ou beijou em
algum lugar onde a galera do sarau estava.
Viajamos juntos e varias coisas aconteceram, até que eu
comecei a me incomodar com tudo isso, por não saber se podia
ou não beija-lo
Uma vez quando estava na sua casa vi umas mensagens em seu
celular que me deixaram mal, fui pra casa e pensei em não ficar
mais com ele, porém como eu gostava acabei voltando.
Algumas amigas começaram a me dizer que ele também ficava
ou que uma mina que colava no sarau queria ficar com ele, fui
perguntar e ele negou a parte dele e disse que ela sim corria
atras dele
Varias coisas passaram e um dia eu falei sobre namoro e ele me
respondeu:
Você não é o tipo de garota que eu namoraria.
! 162

Eu fiquei péssima, mesmo, chorei e fui embora da casa dele


(quase um ano que nos relacionávamos)
Depois de algum tempo fui conversar com essa mina que
colava, porque nunca tinha me dado a oportunidade de falar
com ela, bem ele nunca falou pra ela que ficava comigo e ao
contrario disso, encontrava com ela e os dois até chegaram a
ficar
Hoje agradeço muito por ter ido falar com ela e ter me dado a
oportunidade de conhecer uma mina maravilhosa que é minha
irmã de luta.
Não mintam pras mulheres
Não nos engane
Não faça dos nossos sentimentos tapete
(“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

O machismo também pode vir acompanhado de “jogos psicológicos”:

Eu também namorei um fotografo que recentemente lançou um


livro de poesia, e está sendo ovacionado pelos Saraus da vida...
Enfim, a relação durou três meses, mas foram três meses de
jogos psicológicos: para alimentar ciúmes entre nós dois, com a
desculpa de que era muito carente e precisava de atenção. Com
tempo, veio os sumiços, o fato de não querer estar presente nos
saraus que antes frequentávamos juntos, quando eu
questionava suas atitudes eu que era a louca do rolê..
Isso se transformou em brigas e por fim no termino. Enfim, hoje
ele anda por aí se dizendo super feminista, aparece de saias nos
saraus, mas nas relações pessoais provavelmente continua
sendo machista.... (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov.
2015)

E provavelmente o relato mais impactante seja este último:

Fiquei com o ele por 8 meses. A primeira vez que ele tentou ficar
comigo eu não quis. Ele insistiu bastante, mas depois parou.
Combinamos outro dia e assim que cheguei no rolê, já veio me
beijar. Me senti desconfortável de início, mas depois rolaram
outros e outros encontros até a primeira vez que fui na casa
dele.
Quando chegamos, a primeira coisa que ele fez foi me beijar e
tirar minha roupa.
Fazia 1 ano que eu não transava com um homem. Tinha 18 anos,
estava nervosa e só tinha transado com um garoto na minha
vida (um namoro de 3 anos).
! 163

Eu pedi para a ele que colocasse a camisinha, depois de ter


demorado muito - precisei pedir novamente- ele pegou, fingiu
que abriu o pacote e que colocou, mas não.
Eu só percebi que ele tinha gozado dentro de mim, depois que
terminamos. Me senti muito mal, achei aquela atitude totalmente
infantil. Não parecia que estava me relacionando com um
homem de 29.
Fui pra minha casa, frustrada e preocupada , pois eu tinha que
fazer alguma coisa, poderia engravidar, contrair uma DST,
nunca se sabe. Ele não disse nada. Não pediu desculpa.
Nenhuma iniciativa.
Fui procurá-lo para conversar e só depois que eu iniciei a
conversa, saíram as seguintes palavras de sua boca:
– Desculpe foi o que senti.
E mais nada.
Todos os dias lembro disso. E ainda não entendo porque passei
tanto tempo calada.
Eles estão por aí. Na maioria das movimentações culturais
independentes, gritando palavras de luta no mic, as pessoas os
apoiam e até os endeusam na rede. São referências. Têm livros
publicados. Eles estão por aí. Usando o amor livre para abusar
de garotas. Silenciando essas meninas. E não, não querem
desconstruir nada.
E eles precisam saber:
NÃO VAMOS MAIS FICAR CALADAS. VOCÊS NÃO VÃO MAIS
PASSAR! (“Nãopoetizeomachismo”, FACEBOOK, 19 nov. 2015)

A campanha #NãoPoetizeOMachismo foi muito bem sucedida. De um


lado, houve a afirmação do protagonismo das feministas periféricas na internet.
Como aludi no início desta seção, a ressonância das campanhas virtuais feministas
é diferencial, isto é, não é homogênea nem universal. Na campanha aqui analisada,
as feministas periféricas criaram a oportunidade de publicizar uma questão de seu
interesse, tendo em vista que os movimentos culturais periféricos são uma das
principais formas de sociabilidade a partir das quais sua mobilização emerge. De
outro, a esfera pública digital foi fundamental para articular a indignação individual e
convertê-la em ação coletiva: denúncias públicas dos casos de machismo nos
saraus tanto nas redes online quanto nas offline.

De outro lado, as poetas avançaram na tematização pública do fenômeno


nos saraus e em outras cenas culturais – o que elas se referem como romper ou
superar o “silenciamento”, seja por meio da “voz” ou do “grito”: “NUNCA MAIS
SEREMOS SILÊNCIO!”. Muitos posts narram como foi somente após a campanha
! 164

se iniciar que ou elas tiveram coragem de compartilhar suas vivências ou então


foram capazes de reelaborar simbolicamente experiências pessoais passadas, às
quais elas antes não atribuíam um significado de crítica feminista ao machismo.

As quatro categorias descritivas às quais cheguei pela análise de


conteúdo – crítica à liberdade poética; dinâmica do sarau; assédios e abusos nos
saraus; relacionamentos amorosos com artistas – podem ser produtivamente
reinterpretadas por meio de duas categorias analíticas fundantes da teorização
feminista: o questionamento das distinções entre o “público” e o “privado”.108

Em primeiro lugar, há uma tentativa incessante dos homens em


monopolizar o público para si, excluindo ou subordinando as mulheres, como é
possível verificar em diversos momentos, como no caso da reivindicação da
“liberdade de expressão” para justificar poesias machistas. Outro exemplo:
quando uma mulher sugere uma temática feminista para o sarau no 8 de março –
para “dar voz” às poetas mulheres e “visibilidade” à questão dos feminicídios que
ocorrem no seu bairro –, a resposta dos homens que protagonizam a organização
do evento foi vetar a proposta pois isto iria “restringir” o público; o pressuposto
desta justificativa é tanto excluir a temática tendo em vista que ela não seria do
interesse “de todos” quanto masculinizar o “público em geral”.

Esta masculinização do “público” está intimamente relacionada à


explicação dos inúmeros casos de assédio e abuso nos saraus pelo padrão
consistente de relações desiguais de gênero, o qual naturaliza a percepção dos
homens de que o corpo das mulheres, ao estar presente na esfera pública do sarau,
estaria à disposição de seus olhares e de suas ações. O cúmulo desta naturalização
e justificação da desigualdade é o momento no qual uma mulher, reclama de um
homem ter puxado sua mini-saia e encostado em sua bunda; ele então retruca que
“com o tempo” ela iria se “acostumar com o assédio do público”. Nesta fala, “o
público” é igualado de modo implícito e desavergonhado a “homens assediadores”.
A resposta das poetas é a frase “meu corpo, minhas regras”.

Por fim, um último privilégio dos homens que é criticado é a possibilidade


de dissociar a vida pública – na qual eles são “ovacionados” e “endeusados” –

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
108
Devo a indicação da necessidade desta passagem – das categorias descritivas para as analíticas
– a uma observação da profa. Flávia Rios no meu exame de qualificação.
! 165

destes artistas da sua vida privada – na qual eles perpetram abusos, assédios e
violências (psicológicos, físicos e sexuais). Esta dissociação denunciada implica que
não importa o que estes artistas façam privadamente, seu prestígio público tem
permanecido inabalável; a campanha de publicização da vida privada é uma
tentativa das feministas periféricas de questionar o machismo e fortalecer a
solidariedade entre as mulheres.

A contribuição de Fraser (1992) acerca de uma teorização feminista da


esfera pública é muito produtiva aqui. Ela problematiza as fronteiras entre
publicidade e privacidade, ou seja, o que conta como um assunto público ou então
um assunto privado. Não há uma fronteira delimitada a priori e dada naturalmente:
apenas os participantes de um debate público poderiam decidir, eles próprios, o que
é um assunto comum a eles e elas. A decisão se um tema é ou não “um assunto de
preocupação comum e, assim, um tópico legítimo do discurso público” (FRASER,
1992, p. 129) é um processo dinâmico, histórico e conflitivo. Fraser dá o exemplo da
temática da violência doméstica contra as mulheres: até muito recentemente, a
maioria das pessoas consideravam-na um assunto privado entre casais e a
problematização feminista estava restrita a uma minoria. Foi por meio da formação
de um contrapúblico subalterno (e o que Fraser chamou de “contestação discursiva
contínua”) que as feministas transformaram este tema como de preocupação comum
da sociedade.

Os termos “público” e “privado” não seriam meramente “designações de


esferas societais; eles são classificações culturais e rótulos retóricos” (FRASER,
1992, p. 131). A autora aponta para uma retórica da privacidade – a qual a identifica
como “pertencendo à vida íntima e doméstica ou pessoal, incluindo a vida sexual”109
– que é “utilizada historicamente para restringir o universo da contestação pública
legítima”:

A retórica da privacidade doméstica excluiria alguns temas e


interesses do debate público por meio da sua personalização e/ou
sua familização; ela os apreende como assuntos privados e
domésticos ou pessoais e familiares, em contradistinção a assuntos
públicos e políticos. (FRASER, 1992, p. 131)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
A autora aponta uma segunda retórica da privacidade, a qual pertenceria à “propriedade privada
em uma economia de mercado”; seu efeito seria prejudicar grupos sociais subordinados como os
trabalhadores frente aos empresários e proprietários (FRASER, 1992, p. 131-132).
! 166

O resultado é beneficiar grupos sociais dominantes e prejudicar grupos


sociais subordinados. Esta concepção de privacidade doméstica delimita o espectro
de temas que podem ser debatidos na esfera pública e dificulta as mulheres a, por
exemplo, contestar discursiva e publicamente a violência doméstica, rotulando-a
como um tema não-público, o que “serve para reproduzir dominação e subordinação
de gênero” (FRASER, 1992, p. 132).

A entrada cada vez maior de mulheres no circuito cultural de saraus


periféricos está levando a transformações profundas neste cenário público. E a
campanha #NãoPoetizeOMachismo foi uma das suas tentativas de questionar a
masculinização desta esfera pública – ou seja a sua monopolização por homens, o
que exclui e subordina as mulheres –, bem como de questionar as fronteiras entre
vida pública e vida privada neste contexto social específico.
! 167

4
Coletivos feministas periféricos

Depois de uma apresentação breve e descritiva do “Feminismo Periférico”


no Capítulo 1, tentei no Capítulo 3 responder a duas questões referentes à gênese
daqueles sete coletivos feministas periféricos entrevistados: [a] quais são as
experiências socializadoras que conformam o modo de vida a partir do qual
emergem ações coletivas feministas de jovens moradoras de bairros periféricos
(seção 3.1); e, principalmente, [b] quais são as formas de sociabilidade específicas
que se constituem enquanto matrizes discursivas que permitem a reelaboração de
experiências práticas cotidianas destas jovens (os movimentos culturais periféricos e
os feminismos das esferas públicas digitais, analisados, respectivamente, nas
subseções 3.2.1 e 3.2.2).

Agora, neste Capítulo 4, buscarei responder a duas outras questões: [a]


quais são os discursos, potencialmente heterogêneos e divergentes, que orientam
as ações coletivas deste novo ciclo político (seção 4.1); e [b] quais são os
contrapúblicos (considerados enquanto redes de sociabilidade) que determinadas
práticas destes coletivos instauram (seção 4.2).

4.1 Discursos: a questão racial no “Feminismo Periférico”

O objetivo desta seção será apresentar o “Feminismo Periférico” a partir


de seus diagnósticos (acerca da problematização da situação social de mulheres
periféricas e, mais especificamente, das mulheres negras) e prognósticos (como
efetivar impulsões igualitárias de combate ao machismo por meio do feminismo
negro ou do mulherismo africana). Também buscarei investigar a questão da
“interseccionalidade”, não do ponto de vista teórico-conceitual – ou seja, das teorias
da interseccionalidade (HILL COLLINS; BILGE, 2016) ou da consubstancialidade
(KERGOAT, 2010) – mas sim da perspectiva das próprias integrantes do
“Feminismo Periférico”: como elas concebem e interpretam, em seus próprios
! 168

termos, suas experiências e os processos sociais que articulam gênero, raça e


classe.

4.1.1 A problemática das mulheres negras

É possível dizer que muitos dos coletivos feministas periféricos têm como
primeira motivação para sua formação a temática ou a questão da mulher negra –
uma mudança significativa com relação ao “Feminismo Popular”: se neste primeiro
ciclo a tematização da questão racial era bastante minoritária, no ciclo político mais
recente as jovens periféricas lhe atribuem um significado central. Segundo a
militante entrevistada do coletivo Mulheres de Orí, o primeiro telefonema que ela fez
convidando as outras integrantes para constituir um “grupo de mulheres” foi para
“falar da nossa dor”:

Foi o quê [a motivação]? Eu vi outros coletivos de mulheres que


falavam sobre o cabelo da mulher negra, sobre turbante, oficina
de turbante. E aí eu vi: “Não, as mulheres tão se juntando pra
falar de nós, só que não é isso exatamente”, sabe? Eu quero
falar da nossa dor exatamente. Por que que nós somos
agredidas pelos nossos companheiros? Por que que nós
ganhamos menos? Por que que nós trabalhamos mais? Por que
que nós não conseguimos estudar? Foi essa a motivação.
(MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)

O ponto de partida e a matéria-prima da ação coletiva são as suas


próprias condições de existência e a sua vida cotidiana. Compreender a
especificidade da situação social das mulheres negras é um primeiro passo para
buscar superar o racismo, o machismo e a exploração de classe que elas sofrem.

Dois dos grandes problemas sociais que as mulheres negras vivem e que
foram destacados nas entrevistas foram: a violência e o racismo no mercado de
trabalho.

É interessante observar que no ciclo político anterior do associativismo de


mulheres na Zona Leste, embora o combate à violência doméstica fosse central para
as práticas de várias associações e movimentos de mulheres, a violência contra a
mulher negra teve uma atenção muito minoritária: apenas o Espaço Lilás do Oriashé
havia elegido as mulheres negras como as destinatárias privilegiadas de suas
! 169

ações. Já neste novo ciclo político, o foco na violência específica (isto é, racista) que
as mulheres negras sofrem é um ponto de partida de seus discursos e suas práticas:

Olha, fizemos em 2013 o primeiro workshop de turbantes, e a


roda de conversa sobre a identidade, a mulher negra e a sua
identidade. Aí, depois em julho, 26 de julho [de 2014], teve
nosso sarau, o Sarau das Odaras, onde nós discutimos a
questão da violência contra a mulher negra, não só a violência
física, mas a psicológica, a afetiva… Por quê? Porque as
mulheres negras sofrem. A questão da saúde também, que
infelizmente o SUS, os hospitais públicos ainda tem aquela
mente que a mulher negra não sente tanta dor, eles diminuem as
dosagens da anestesia, infelizmente ainda existe isso. É
lamentável, né? […] Depois eu te mando a pesquisa. A mina que
participou ela fez pra nós, ficamos horrorizadas, horrorizadas.
Pela questão de falciforme, também foi falada, o público não
conhece essa doença, nem os médicos tão preparados pra
receber o pessoal com essa doença. (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015)

O coletivo é um meio de descoberta destas questões: “Nunca imaginava


o quanto a mulher [negra] sofre, nunca imaginava. […] [Esta descoberta] foi
[no Fayola], escrevendo o projeto e pesquisando. No índice de violência, quem
mais sofre, são as mulheres negras” (FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015).

O mercado de trabalho é outra esfera apontada como um locus de


sofrimento e opressão, devido ao preconceito e à discriminação raciais. Por um lado,
“as mulheres pretas” têm menos dinheiro e menos tempo. Quando perguntada
sobre as dificuldades em mobilizar outras mulheres para as atividades de seu
coletivo, a militante do Mulheres de Orí afirma que a principal se refere ao
“trabalho”: “É muito difícil, porque a carga de trabalho que uma mulher preta
moradora de periferia tem não permite que ela pense, que ela veja, que ela leia,
que ela estude. Não permite. É muito difícil” (MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13
abr. 2015). Mesmo para as próprias militantes, suas ocupações também são
elementos que dificultam a continuidade do coletivo:

Então é isso, assim, sabe? O que nos dispersa fora disso, sabe?
Eu acho que o que dispersa muito é o dinheiro, porque falando
de mulher preta, as nossas condições de vida são bem piores
comparada às outras… às outras pessoas. Então é mais difícil.
Então é mais difícil. (MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)
! 170

Mas, por outro lado, mesmo as mulheres negras que acessam o ensino
superior encontram o racismo quando tentam se inserir no mercado de trabalho em
posições melhores devido à qualificação de sua força de trabalho. A integrante
entrevistada pelo coletivo Fayola Odara, por exemplo, é auxiliar jurídica (tendo
passado na prova da OAB uns poucos meses depois da entrevista ser realizada):

[…] porque a pessoa desde pequena ela ouve dizendo que o que
é bonito é o cabelo liso: “Abaixa esse cabelo, e começa a
subir”… Ou no trabalho, então, houve essa resistência: “Será
que o emprego vai me aceitar? Será que eu estou no padrão do
emprego?” Eu mesma, como estudante de bacharel em Direito,
eu já ouvi muitas vezes que eu não era o padrão de advogada…
por ser negra, aí, eu falei assim: “Então eu acho que eu nunca
vou fazer padrão nenhum!” Porque sou negra, sou gorda, sou
mãe solteira, e vou continuar usando meu cabelo crespo! Eles
vão ter que me aceitar, eu estudei! Entendeu? Então, é essa
resistência que nós sofremos, e que tentamos transpassar pra
elas e mostrar que dá pra conseguir reverter isso daí.
[…]
Vou te contar uma situação, né, nossa! Eu, nesse escritório que
eu tô, ele é de grande porte, tem em vários lugares de São
Paulo, fora do Brasil, e quando eu fui fazer a entrevista, eu tava
de trança. “Ah, em uma semana eu te ligo…” Deu uma semana,
não ligaram, eu falei: “Ah, não passei”. Aí, quando foi à tarde
“Não, você passou, tal, tal, tal”. E [eu] tinha tirado as tranças,
meu cabelo tava bem maior. A primeira coisa que a gestora
falou foi: “Cadê o seu cabelo?!”, eu falei: “Ah, tá na minha
cabeça”. / “Não, mas você não veio assim na entrevista…” Aí,
eu respirei fundo… No primeiro dia, nem bom dia ela falou! Ai eu
falei: “Ah, não tem negros no escritório?” Ela ficou vermelha
[risos]. […] “Não tem negros não? Porque eu não vou cortar
meu cabelo, eu não vou alisar meu cabelo. Eu sou assim”. / “É
verdade, né? Você é assim”. Me apresentou pra equipe, quando
eu olhei em volta, quantos negros tinham? Eu, a única. E até
hoje tem piadinhas racistas, sou obrigada a ouvir, tenho que
trabalhar, eu não posso ficar rebatendo toda hora. E aí, eles vão
falar: “Ah, você é vítima”. Não é questão de vítima, é questão até
de respeito, né? E isso que elas [as mulheres negras] não
querem sofrer no trabalho. Evitar esses tipos de situações,
entendeu? (FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015)

Considerando estes e outros problemas sociais que as mulheres negras


vivem, eu convidava as militantes a formular nas entrevistas explicações acerca de
suas causas.110 A integrante do Mulheres de Orí atribui a causa ou a origem daquela

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
Cf. o guia das entrevistas semi-estruturadas no Apêndice A, no final desta tese.
! 171

“questão econômica” – a posição subordinada que restringe o tempo e o dinheiro


que as mulheres negras têm – à historia (colonial e escravagista) da sociedade
brasileira:

É o… meu, a sociedade patriarcal que a gente vive! – patriarcal e


machista – todo o sistema! Todo o sistema ela foi feito pra isso,
pra que a gente ocupe essa posição mesmo, de servir. Então
como que eu faço, nos dias de hoje, pra sair dessa posição de
servir, que foi desde a época colonial até hoje? Como é que eu
faço? Então, essa, pra mim, é a principal causa. E é o efeito que
a gente vem colhendo até hoje. Então é o… são anos e anos
dessa construção, né? Que a mulher… ainda mais a mulher
negra, a mulher preta – ela tem que servir, ela tem que servir!
Então acho que essa é a principal causa. (MULHERES DE ORÍ,
entrevista, 13 abr. 2015)

Outras duas causas apontadas pelas entrevistadas são as esferas da


família e da mídia:

Ah… As causas… Eu acredito que a mídia influencia, estrutura


familiar, porque a família acredita que… vai, pra dá certo o
relacionamento, não… Eu vejo pelo meu pai. O meu pai diz:
“Não, você é muito… Você namora homens negros, mas eles
não te valorizam. Você tem que namorar com branco, que aí
sim…” Por que não, eu não posso formar uma família preta?
Não entende que eu sou… que eu tô sendo preconceituosa,
entendeu? A forma como o menino negro ele é criado, de não
querer valorizar a menina negra. Tudo… é essas questões que
têm que ser trabalhada, desde a infância… porque desde… é
desde pequeno que você vai aprendendo tudo, né? Você só vai
reproduzir aquilo que você aprendeu. (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015)

A questão da valorização das mulheres negras vai reaparecer em outras


falas e momentos (junto com a sua identidade e auto-estima). Já o papel da mídia e
da publicidade na produção de imagens e estereótipos foi frisada em diferentes
entrevistas:

[…] A mulher negra, infelizmente, ela é vista apenas como


objeto sexual. Se você vê o índice de mulheres negras solteiras
é bem maior que o das mulheres brancas – e a mídia só reforça
esse estereótipo, infelizmente. Carnaval então, mais ainda! Ou
ela é essa… passista ou ela é escrava. Por que que a mulher…
não pode mostrar um comercial de uma mulher negra bem-
! 172

sucedida, de uma mulher negra com família? Não se tem! Não


se tem! É uma propaganda ou outra. Como que ela vai se vê
desse jeito, vai se sentir representada? Como é que pode?
(FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015)
Então o nosso foco são essas mulheres assim, exatamente,
aquelas que estão lá em casa, que quando elas ligam a televisão
no programa de culinária não é uma mulher preta que aparece,
aparece a Ana Maria Braga, e ali, coadjuvante, uma mulher que
só auxilia, né? Mas que na verdade é essa mulher que prepara
tudo pra que quem represente seja a Ana Maria Braga. Então é
isso. É mostrar pra ela que ela pode ocupar certos espaços, e
que a situação de vida que ela vive não é assim, por acaso.
(MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)

Este caso de como apenas a apresentadora branca aparece no programa


televisivo, ocultando o trabalho culinário da “mulher preta”, traz de forma sintética e
paradigmática o que uma militante de um outro coletivo chamou de “a invisibilidade
da mulher negra” (JUNTAS NA LUTA, entrevista, 26 mai. 2015). Junto com esta
“invisibilidade” vem uma espécie de “hiper-visibilidade” das mulheres brancas, o
que marca formas de desigualdade entre mulheres brancas e negras, as quais são
tematizadas em praticamente todas as entrevistas. As entrevistadas pelo coletivo de
grafiteiras narraram dois casos de artistas brancas com privilégios:

T: […] As cinco [integrantes da Crew] são todas negras. Tem


uma [outra] menina que ela faz uma letra, mas ela é branca e ela
é bonita, mas a letra dela é horrível, ela não grafita, sei lá, é feio,
mas ela tem aquela visibilidade porque ela tira foto, tipo, pelada,
praticamente, na rede social, tá ligado.
L: Não que seja errado.
T: Ela tira foto pelada.
L: Não que seja errado.
T: Eu não vou citar nomes, jamais. Ela tipo, tira uma foto pelada,
ela tem aquela coisa, nossa, a Adidas patrocina ela. Então, o
trabalho dela como grafiteira não é… Primeiro ela se dá e depois
vem o trabalho dela, aí as pessoas começam a considerar o
trabalho dela. Nóis, não, nóis não quer se mostrar corpo, nós
quer nosso trabalho, ganha visibilidade, não nosso corpo,
entendeu? Então essa menina é totalmente ao contrária.
L: Eu vou falar de uma das pessoas que começaram comigo… A
gente vive na meritocracia, beleza, então quer dizer que se… a
pessoa começou junto comigo, junto comigo, ela já alcançou
patamares que eu não consegui, mas essa pessoa… tem
dinheiro… e essa pessoa… é branca.
T: Já até sei…
! 173

[Risos]
L: Então, ela já está avançada, mas por quê?
T: Por causa que ela já tem tudo isso.
L: Porque ela tem dinheiro, não é porque ela tem estudo, não é
porque ela trabalhe melhor ou pior que eu, mas ela tem essa
visibilidade, porque ela tem… dinheiro e ela é branca! E essa
parte do branca, não conta muito pra gente porque está dentro
da cultura [hip hop], mas pra um contato… conta. Para estar em
um evento social… conta!
(M.A.N.A. CREW, entrevista, 11 jul. 2015)

As formas de desigualdade entre mulheres brancas e negras também foi


sintetizada mais de uma vez pela imagem de uma pirâmide:

[…] Houve uns avanços, mas que tá igual ao do homem, não. E


da mulher negra também não está… nunca vai estar igual ao da
mulher branca. Se você reparar naquela pirâmide – é que eu não
sei qual é o nome dessa pirâmide – que primeiro vem o homem
branco, a mulher branca, o homem negro e nós [mulheres
negras] somos a base de tudo! Então nós que… que
carregamos as piores situações. (FAYOLA ODARA, entrevista, 08
jul. 2015)

E é importante considerar que mesmo as mulheres brancas periféricas


que militam nestes coletivos reconhecem e enfatizam estas desigualdades. Quando
perguntada sobre a causa ou a origem do principal problema social que as mulheres
(em geral) vivem – no caso, a entrevistada apontou como problema central a
ausência da liberdade e do direito de ir e vir – no decorrer de sua resposta, ela
insere a questão racial sem ter sido perguntada a respeito:

Ah, o machismo implantado nessa sociedade tanto homens


quanto mulheres, né? […] Acho que se a gente conseguisse
ver… igualmente todas as pessoas… todas as pessoas mesmo,
né? Independente se ela é homem ou mulher, se ela é branca ou
negra, falo em você respeitar todas as pessoas. Acho que esse
é o ponto, assim… né, da causa. Porque, tipo, eu… sou… uma
mulher branca… nem imagino o que uma mulher negra passa!
Tipo, meu… Você é louco! Meu, qualquer um é… pesado assim,
você… como sempre, é hiper-sexualizada por você ser mulher.
Você é hiper, hiper, hiper-sexualizada por ser uma mulher negra.
Você é hiper-sexualizada e aumentada por ser uma mulher
periférica, sabe? Acho que é… Foda… E aí pra… só educação
mesmo, né? (SER VI ELAS [2], entrevista, 17 jun. 2016)
! 174

Está no cerne das práticas dos coletivos entrevistados o combate a estas


formas de desigualdade e também à “questão da invisibilidade da mulher negra”
(JUNTAS NA LUTA, entrevista, 26 mai. 2015). É nesta chave que se torna
compreensível a centralidade para as suas atividades das temáticas da estética, da
beleza e da identidade da mulher negra – conteúdos que já tinham se mostrado
relevantes na análise de rede das páginas de Facebook (na subseção 3.2.2) e que
reforçam a tese dos feminismos das esferas públicas digitais enquanto uma
matriz/rede discursiva (desde a rede discursiva mais ampla dos direitos das
mulheres até as redes mais específicas do feminismo negro e das mulheres negras).
Quando perguntada sobre a razão do nome do coletivo ser Fayola Odara, a
entrevistada respondeu:

Fayola Odara, na verdade, se você olhar o significado, não tem


muito a ver, né? Mas nós queríamos dois nomes africanos,
Fayola significa riqueza, e Odara beleza. Aí, nós criamos então
um ressignificado dizendo que é: a beleza da mulher negra tem
a sua riqueza, tem a sua valorização, pra gente se gostar do jeito
que ela é, não cair nesse padrão eurocêntrico que o cabelo liso
é o bonito, a pele clara, os olhos claros. (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015)

O nome do coletivo aponta a centralidade da questão racial, da luta


antirracista e da identidade negra para o ciclo político atual. Inicialmente, é preciso
dizer que isto também se conecta à questão do declínio da influência católica que,
além de ser sociorreligioso, é também nominal. Se no exemplo da Casa da Mulher
Lilith (uma entidade paradigmática do “Feminismo Popular”) é patente a tentativa de
disputar simbolicamente o lugar da mulher no interior da Igreja Católica e de uma
leitura feminista da Bíblia 111 , os nomes reivindicados pelos novos coletivos têm
origem afro-brasileira: além de “Fayola Odara”, “Orí” também vem do yorubá,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
111
Lilith é uma figura polêmica, já no interior do judaísmo; teria sido a primeira mulher criada por
Deus, antes mesmo de Eva, não a partir da costela adâmica, mas da mesma substância de Adão;
deste modo, ela seria uma igual a ele, daí a apropriação feminista que passa a ser feita para
reivindicar a igualdade entre mulheres e homens. As entrevistadas pela Casa Lilith relatam seu
primeiro contato com Lilith: uma das suas integrantes trouxe um texto em espanhol – provavelmente
a tradução do Livro de Lilith, de Barbara Black Koltuv – e se maravilharam com a história de Lilith,
que, no seu entender, simboliza a rebeldia. Ao folhear o livro, recheado de ilustrações, elas
concluíram: “estávamos mais parecidas com a Lilith do que com a Eva!”. Em seguida, as
entrevistadas, uma católica, a outra espírita, me explicaram: “A gente sabe que são mitos [Eva e
Lilith]. Mas quem cria os mitos pra ser oprimido e opressor? Essa sociedade que tá aí! Criaram
esse mito [da Lilith] pra dizer: ‘eu não aceito!’ [...] Lilith veio pra dizer não à desigualdade, à
inferioridade” (CASA DA MULHER LILITH, entrevista, 16 abr. 2015).
! 175

significando “cabeça”, “Abayomi” (que significa em yorubá “encontro precioso”,


podendo ser também uma boneca negra artesanal), “Ashanti” (nome de um povo e
império, localizados no que hoje é o país de Gana e cujo nome significa, em sua
própria língua, “por causa da guerra”, daí decorrendo a descrição do Projeto Ashanti,
criado por duas poetisas que faziam parte do coletivo Ser Vi Elas: “Ashanti: Mulher
Guerreira Africana”) e “Anastácia” (nome de escrava que viveu no século XVIII que
se recusou a ir para a cama com seu senhor, tendo sido sentenciada a usar uma
máscara de ferro pelo resto de sua vida).112

Voltando ao Fayola Odara, o coletivo realizou, além de um sarau – o


Sarau das Odaras, no qual procuravam “trazer poesias de mulheres negras que
valorizavam a beleza, autoestima” – outros eventos: um “workshop de
turbante”, outro “workshop de maquiagem”; e faziam “umas dinâmicas sobre o
espelho, o que que elas conseguiam se enxergar no espelho, passamos vídeos
falando o que é autoestima, o que é ter identidade, se assumir como negra”. E
um último evento foi uma exposição com fotos de todos os outros eventos para falar
“das mulheres negras que compõem a periferia” e “mostrar a beleza da mulher
negra, a importância de se assumir” (FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015).
Como a principal conquista do coletivo em seu mais de um ano de existência, a
militante entrevistada apontou a questão da identidade da mulher negra:

Ver as mulheres se identificando. É isso que é a nossa melhor


conquista! Saber que… que conseguimos alcançar o objetivo, e
ela ser reconhe… não terem vergonha de serem negras, de…
Ver duas mulheres se “encrespando” foi a melhor coisa […] Se
“encrespando”. Foi a melhor coisa! E militantes! Muitas usavam
apliques e tinham vergonha de seu cabelo. E isso foi um motivo
assim, que… [Risos] Motivo de orgulho! De orgulho de ver que
foi… que nós conseguimos atingir o objetivo. (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015)

As grafiteiras do coletivo M.A.N.A. Crew fazem questão de frisar sua


preocupação em trabalhar com “temas sociais”, como a “questão racial”. Todas
as suas atividades têm, segundo as entrevistadas, uma questão de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
112
Como apontado anteriormente, o Espaço Lilás do Oriashé e o Grupo Cultural Dandara seriam
precursores de algumas características do “Feminismo Periférico”, porém ainda pertencentes ao ciclo
anterior, do “Feminismo Popular”. Mesmo em seus nomes verifica-se a originalidade. “Dandara” foi
esposa de Zumbi dos Palmares e mãe de seus três filhos enquanto que “Oriashé” é uma composição:
orí, como visto, significa “cabeça”, enquanto que axé é “força”.
! 176

“conscientização”. No momento da entrevista elas estavam planejando o projeto


de uma revista com textos e fotos de grafites:

L: […] Eu tive a oportunidade e eu posso proporcionar esta


oportunidade para você, então eu vou proporcionar, porque
assim, a gente não quer que as pessoas pensem igual a gente, a
gente quer que as pessoas pensem, que as mulheres pensem!
Entendeu?
T: Começa a pensar o que está fazendo, porque as vezes,
assim… pessoa chega, muita grafiteira chega faz um urso na
parede. Eu não tenho nada contra a um urso, mas às vezes
aquele urso, fica aquela coisa… É um urso! [Risos] […] Então,
nóis tem que ter as grafiteiras, as metades das grafiteiras, tem
que entender isso, que fazer um urso, um sapo, as vezes não
está no contexto, entendeu? E mudando, mudando, e mudando.
Mas o M.A.N.A. sempre quer algo temático.
(M.A.N.A. CREW, entrevista, 11 jul. 2015)

Para elas, tratar de “temas sociais” passa por grafitar “mulheres


negras” (realizando uma distinção entre a “mulher negra” e a “mulher africana” e
compondo também com “mulheres indígenas”):

L: É porque assim, querendo ou não, cada um tem uma


identificação que quer passar! Querendo ou não, é uma forma
de… é uma plataforma de exposição. Eu já trabalhei um pouco,
com grafite um pouco do Surrealismo, só que eu identifiquei
tanto na… mais na questão, quanto na… na transmissão de
mensagens mesmo… a parte da figura indígena. E eu sempre,
tipo, a gente agora está começando a fazer o conjunto, porque
ela faz as africanas e eu faço as indígenas… e eu faço uma
metade do rosto e ela faz a outra metade do rosto. Porque
assim, a… como eu comecei a fazer primeiro as indígenas, a
questão é a seguinte, a gente luta muito pela parte afro, só que a
gente se esquece da… das outras partes, da outra origem,
entendeu? A gente luta muito por uma questão e se esquece da
outra. Por mais que você não veja no espelho, não seja tão
acentuada essa questão da origem indígena, ela não quer dizer
que ela não exista, a gente acaba esquecendo. E ela faz a parte
das africanas que é para mostrar que querendo ou não, as
nossas origens, principalmente, as nossas origens afro,
indígenas, brasileiras, elas se formam dentro disso. Porque
querendo ou não as nossas características com a miscigenação,
ela vai se suavizando de certa forma. Mas, não é porque você
não consegue ver no espelho que não deve ser questionado,
que não deve ser ressaltado, que não deve ter importância,
entendeu? Então, a gente busca esta questão.
! 178

L: Mas ela… ela tenta se transmitir, entendeu? Através do


grafite.
T: É!
L: A forma como ela se enxerga ela tenta passar para a parede,
ela se retrata na verdade.
T: Ela gosta de caveira! No último rolê nosso, ela fez uma
caveira de “black”!
L: Com “black”.
T: Então, ela tenta se transmitir mais. Eu e a L. sempre nas
índias e sempre nas negras, porque nóis gosta. […] Nas
africanas, né? Que é muito difícil você ver desenho africano
grafitado. Muito difícil! Tem um cara… um grafiteiro só, o
Alexandre que ele faz, mas é muito difícil você ver. A
importância do desenho afro, não tem. Poucas pessoas faz.
L: Por mais que seja uma cultura negra, né?
T: Por mais que seja uma cultura negra, que é o Hip Hop.
(M.A.N.A. CREW, entrevista, 11 jul. 2015)

Há uma valorização antirracista da identidade das mulheres negras –


tornar a sua estética e a sua beleza um valor – tanto nas práticas dos coletivos
voltados para mulheres sem contato prévio com estas temáticas quanto na própria
vivência compartilhada entre as militantes no interior do coletivo e pessoas muito
próximas delas:

Então, nós estamos nesse processo agora. O processo agora


é… tornar o coletivo Mulheres de Ori uma associação, e que não
fique exatamente nós quatro, porque nós não somos a voz das
mulheres, nós representamos, mas a gente tá tendo agora a
necessidade de ouvir outras pessoas… que outras pessoas
participem. Senão fica um coletivo muito restrito. Então nós
estamos nesse processo. Não tem ainda definido ainda cargos
exatamente. Nós estamos ainda no processo de construir uma
assembleia, um estatuto… pra que venha a ser uma associação
exatamente. Mas a gente está conseguindo mobilizar algumas
mulheres já – nossas mães… nossas irmãs… – pra que elas
venham fazer parte também do coletivo, porque elas começaram
a ver toda a movimentação, e ou… só ouviam falar “mulher
negra”, “mulher negra”, “mulher negra”. “Poxa vida! Eu sou
uma mulher negra, né? O que que tá acontecendo? Que tanto
vocês falam de mulher negra?” (MULHERES DE ORÍ, entrevista,
13 abr. 2015)
! 179

Mesmo quando a questão racial não é diretamente tematizada, a


convivência entre pessoas diversas no interior do coletivo pode proporcionar
aprendizagens inesperadas:

N: Uma coisa legal também, pra complementar, é que a gente,


quando a gente estava dentro da igreja113, a gente tinha aquela
visão meio fechada: “Só a nossa religião é a correta”, que todas
– a maioria das religiões – pregam isso. E hoje em dia a gente já
não vê dessa forma, tanto que a gente tinha muito preconceito
com pessoas de outras religiões. E, se a gente permanecesse
dessa forma, hoje, a gente, o Mulheriu Clã, por exemplo, não
seria construído, porque a gente não iria aceitar outras
mulheres que são de outras religiões. E no rap, querendo ou
não, o que predomina é a religião afro-brasileira, afro,
independente, a religião negra. Então a maioria das pessoas são
do candomblé, são de religiões negras. E é uma coisa que
naquela época a gente não aceitaria. E hoje em dia a gente vê
como uma coisa normal, a gente não tem preconceito com isso,
entendeu?
[…]
D: […] Então… é… o bom da gente conhecer e ter essa
bagagem, ser conhecedora da palavra em si, porque a gente… é
amor ao próximo, sabe? É… a salvação é única, o… o… o
pecado é único, eu cometo os meus, ela comete os dela, é cada
um com os seus. E o bom da religião afro, no caso, ele só vem a
agregar, porque nós somos negros, né? E a gente, com ela, a
gente acaba aprendendo bastante coisa sobre a nossa própria
cultura, que dentro da igreja a gente não aprende, né?
N: Sobre a nossa descendência.
D: Sobre a nossa descendência, sobre a nossa própria
identidade. Isso, a única identidade que a gente conhece é a
identidade ligada com Cristo, mas a identidade nossa, a nossa
etnia mesmo, a gente não conhece dentro da igreja, não
conhece dentro da escola. Então a gente conhece mesmo em
contato com essas pessoas, na troca de ideias. E o bom é que
isso só veio ajudar a gente a abrir ainda mais os nossos olhos,
os nossos ouvidos, o nosso horizonte, e vemos todos como um
só, né?
(MULHERIU CLÃ, entrevista, 06 mai. 2015)

Tanto as entrevistadas do Mulheriu Clã quanto as do M.A.N.A. Crew


ressaltaram a característica do Hip Hop como uma cultura negra. Assim, da mesma
forma como o material empírico sobre os movimentos culturais periféricos me levou
à incorporação da obra de Fraser (1992) para atualizar os conceitos de “esfera
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
Igreja Renascer em Cristo (evangélica pentecostal).
! 180

pública” (HABERMAS, 2014) e “matrizes discursivas” (SADER, 1988) enquanto


“contrapúblicos subalternos”, aqui o material empírico das entrevistas com as
feministas periféricas, ao se referirem à centralidade da questão racial, me
impulsionaram a dialogar com novos autores, para dar continuidade a este trabalho
de atualização e aprofundamento conceitual. Um dossiê publicado pela revista
estadunidense Public Culture, acerca da categoria “esfera pública negra” foi um
achado na reta final do meu doutorado. Do que pude averiguar, a academia
brasileira ainda não se apropriou destas múltiplas e ricas abordagens críticas, que
conectam o conceito de esfera(s) pública(s) e a questão racial (com foco nos EUA,
mas ao menos um dos artigos aborda o Brasil).

Brown (1994, p. 113) aponta, por exemplo, as igrejas negras como “a


base para construir um discurso sobre liberdade e organizar protestos de massa de
larga escala” ou, dito sinteticamente, “um espaço social para a discussão de
preocupações públicas” (HIGGINBOTHAM apud BROWN, 1994, p. 110, n. 4). Em
seu estudo de caso comparando dois momentos históricos da esfera pública negra
na cidade de Richmond (estado da Virgínia), a autora afirma, acerca da Primeira
Igreja Batista Africana: !

!
Como um espaço político ocupado por homens, mulheres e crianças,
letrados e não-letrados, ex-escravos e [pessoas] formalmente livres,
membros da Igreja e não-membros, a disponibilidade e uso da
Primeira Africana para encontros de massas permitiu a construção
de preocupações políticas em um espaço democrático.
[…] A igreja providenciou mais do que espaço físico, recursos
financeiros e uma rede de comunicação; ela também providenciou
uma base cultural que validou a emoção e a experiência como
modos de conhecimento e aspirou a um chamado e a uma resposta
coletivos, encorajando a participação ativa de todos. (BROWN, 1994,
p. 110 e 117)!
!
Como apontam as entrevistadas do Mulheriu Clã, o campo religioso brasileiro é
diferente do estadunidense: as igrejas cristãs não são uma base para a formação de
uma identidade racial da mesma forma como ocorre na conexão entre as igrejas
batistas negras e a ação coletiva antirracista nos EUA.

Dawson (1994, p. 206-207), por sua vez, acrescenta que uma


multiplicidade de instituições negras formam a base material de um contrapúblico
negro na história dos Estados Unidos: “uma imprensa negra independente, a
! 181

produção e circulação da música popular negra social e políticamente afiada, e a


igreja negra”. As igrejas foram importantes em todos os períodos históricos, mas não
se poderia ignorar as organizações seculares.

Por fim, Gregory buscou dar ao conceito de “esfera pública negra” um


caráter mais abstrato, definindo a “esfera pública da vida comunitária negra” como
“as múltiplas arenas sociais nas quais as pessoas deliberam sobre as necessidades
da vizinhança e formulam estratégias para a ação política” (GREGORY, 1994, p.
149). Explicitamente se baseando na crítica de Fraser a Habermas, Gregory afirma
que:!

!
A ideia de uma esfera pública subalterna enfatiza o problema de
compreender como arranjos específicos de poder configuram e
reconfiguram os espaços discursivos nos quais grupos sociais
interpretam suas necessidades, inventam suas identidades e
formulam coletivamente seus compromissos políticos. Dito de outra
forma, a presença de um contrapúblico pode dirigir a atenção para as
arenas públicas onde interações discursivas no nível micro são
moldadas por discursos e arranjos institucionais de poder mais
amplos, e localiza o processo de politização e a formação de
identidades oposicionais nas relações sociais e práticas que
engendra ou incita deliberação e debate públicos. (GREGORY, 1994,
p. 153; meus grifos)!
!
Hanchard é o único autor no dossiê da Public Culture que se ocupa da
esfera pública negra brasileira. De início, ele aponta uma suposta singularidade
latino-americana (considerando Brasil, México, Cuba, Venezuela, Colômbia e outros
países) com relação à questão racial nos Estados Unidos ou no Caribe: “o colapso
retórico da diferença racial sob a bandeira da identidade nacional” (HANCHARD,
1994, p. 181). A ausência das formas de segregação racial comuns nos Estados
Unidos ou na África do Sul tornam, segundo o autor, a pergunta “o que é a cultura
afro-brasileira?” mais complexa no caso do nosso país. Historicamente, “A cultura
nacional brasileira sempre traduziu e transformou práticas culturais afro-brasileiras
como práticas culturais nacionais, tornando-as, deste modo, mercadorias na cultura
popular a serem consumidas por todos” (HANCHARD, 1994, p. 182). Esta operação
cultural passou a ser questionada com a emergência do movimento negro brasileiro
contemporâneo, em meados da década de 1970, e os espaços de sociabilidade que
constituíram sua gênese, como os bailes Black Soul e os blocos afro (como Olodum
e Illê Aiyê), “que produzem letras e músicas que utilizam a identidade afro-brasileira
! 182

e a discriminação racial como seu principal tema” (HANCHARD, 1994, p. 181).


Reivindicando práticas culturais que antes eram “desracializadas” como “cultura
nacional”, estas iniciativas foram essenciais para criar uma esfera pública
alternativa, que possibilitasse o uso da “identidade racial como um princípio para
organizar a ação coletiva” (HANCHARD, 1994, p. 182).

Tanto as escolas de samba e os blocos afro – que apontei como uma das
matrizes discursivas do “Feminismo Popular” – quanto o Movimento Hip Hop e os
saraus periféricos – movimentos culturais periféricos os quais eu interpretei como
uma matriz discursiva do “Feminismo Periférico” – podem ser considerados como
esferas públicas negras, uma vez que mobilizam uma identidade negra, tematizam a
discriminação racial e podem fomentar ações coletivas antirracistas. Porém ainda
será preciso, em pesquisas futuras, se apropriar mais detidamente desta literatura
estadunidense e investigar comparativamente realidades sociais distintas para dar
conta das especificidades da questão racial brasileira.

Retomarei, na Conclusão, o forte caráter de esfera pública negra dos


movimentos culturais periféricos (mas também do feminismo negro digital) para
poder interpretar porque o fato destes serem uma matriz discursiva do “Feminismo
Periférico” contribui decisivamente para a alteração do lugar das relações raciais
com relação ao que se passava no ciclo político anterior.!

Até o momento abordei nesta subseção diagnósticos (tematizações e


problematizações) relativamente convergentes entre os coletivos entrevistados
acerca do que caracteriza especificamente a situação social das mulheres negras.
Na sub-seção seguinte, apresentarei dois prognósticos divergentes acerca de como
superar estes problemas sociais que as mulheres negras vivem: por meio de
práticas referenciadas discursivamente ou pelo feminismo negro ou pelo mulherismo
africana.

4.1.2 Feminismo negro e mulherismo africana

Novamente meu ponto de partida é uma fala da integrante do coletivo


Mulheres de Orí. Ela pontua como as mulheres negras podem estar deslocadas
tanto no interior do movimento feminista quanto do movimento negro:
! 183

Porque as mulheres [negras] não se reuniam, não se reuniam


pra falar delas. Se reunia o movimento negro, só que dentro do
movimento as mulheres [negras] elas não tinham vozes
também. Então elas não estavam ali falando delas. O
feminismo… Tem o feminismo, mas não falavam exatamente da
mulher negra, falava da mulher no geral, e eu não tenho a
mesma vida que uma estudante do Mackenzie. Não tenho!
(MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)

É interessante (e sintomático) que ela se refira à Universidade


Presbiteriana Mackenzie – uma instituição de ensino superior particular na cidade de
São Paulo voltada às classes médias e altas – tendo em vista que, simultaneamente
à emergência dos coletivos feministas periféricos, também está em curso um amplo
processo de surgimento de coletivos feministas universitários em instituições
públicas (universidades federais e estaduais) e privadas (como Mackenzie, PUC-SP,
FGV-SP e Cásper Líbero). Também é muito significativo a sutil denúncia que a
militante realiza: quando o movimento feminista fala na “mulher no geral”, estaria
se referindo à “estudante do Mackenzie” – uma falsa universalização das
experiências de uma jovem branca de classe média ou alta.

Em primeiro plano, existe esta constatação de que a situação social de


mulheres brancas e mulheres negras não é a mesma, logo os feminismos que
respondem aos seus problemas e desafios são – ou devem ser – diferentes. Para
além disso, decorre uma constatação de que, dependendo da corrente feminista em
questão, as entrevistadas não se sentem contempladas ou representadas:

Já pra ir encerrando a nossa entrevista… É uma pergunta individual.


Queria que vocês respondessem cada uma assim…
T: De grafite, né?
Não!
[Risos]
T: Vamos lá!
… Se vocês se consideram feministas.
T: Tava falando isso esses dias… [Risos] Então, é difícil, né?
[Risos]. Caramba, por que essa pergunta?
L: Nóis tava falando disso ontem.
T: Nóis tava falando disso ontem. Eu defendo muito o feminismo
negro… a resistência da mulher negra. Eu gosto. Eu não
consigo… defender… o feminismo… branco. Tem umas
meninas que brisa, e o feminismo radical, então eu não me
! 184

considero feminista, eu tô me reeducando nesta parte… de ser,


de virar feminista. “Ô, T. feminista”, não. Eu defendo muito o
feminismo negro. A resistência da mulher negra, a saúde da
mulher negra, então isso é muito importante pra… porque eu
sou uma mulher negra, então eu defendo isso. Agora, os outros
feminismos que colocam aí, eu não me…
L: Alguns sem fundamento.
T: … alguns sem fundamento. Não me completa… a mulher sair
pelada, essas coisas aí, não me completa, que a mulher, beleza,
ela é dona de seu próprio corpo. isso eu assino embaixo, ela é
dona de seu próprio corpo, ela faz o que ela quer! Mas esse
respeito que elas estão pedindo agora de mostrar tudo isso na
internet, sabendo que a internet é um lugar, louco, tá ligado, de
mostrar o peito, não conquistar o espaço, tipo grafitando, que
nóis faz, espaço, grafitando. Tipo, isso, não me cons… não, isso
não me completa.
Você consegue identificar tipo um momento de sua trajetória de vida
que você passa a se identificar como feminista negra? Passa a ter
essa identificação, em algum momento?
T: Já, já tive um momento que… no dia que nóis sofreu
machismo. [Risos] Que nóis teve que usar a ferramenta do
feminismo pra falar lá, falar pro cara como que era, que nóis
tinha um espaço e o espaço era nosso, então nóis considerou
feminista aquela hora. Mas feminista negra, como mulher negra,
resistência da mulher negra de querer falar, entendeu? Uma
coisa que tá sendo conquistada ainda, então, feminismo branco,
esses feminismos, sei lá, não me enquadro.
Entendi.
T: Esses não me representa. Mas você vai colocar isso, lá? “T.
não representa!”
[Risos]
Vai tá lá.
[Risos]
T: Sem problema.
L: Vai ser o título, vai ser o título: “T. não representa”.
(M.A.N.A. CREW, entrevista, 11 jul. 2015)

Além deste sentimento de que determinadas vertentes feministas não


representam as mulheres negras, também há críticas mais fortes ao “feminismo
branco” (e “burguês”), com relação às suas práticas e concepções, que estariam
afastadas das mulheres que vivem nas periferias:

[…] Porque tem muitas particularidades, igual a Q. falou né?


Que é das mulheres negras, né? E com o tempo eu fui
percebendo isso. A maioria daquelas mulheres elas eram
! 185

negras, né? E a mulher negra, na periferia, que vive nessa


situação de vulnerabilidade, assim, o movimento feminista ele
não faz nada por elas, porque não adianta você ficar citando
vários nomes sendo que aquelas mulheres precisam sentir
necessidades básicas. Básicas que elas não têm. E isso, assim,
fez eu me afastar muito do movimento feminista. […] E comecei
a frequentar esses espaços, assim, do sarau. Então eu acho que
isso sim é muito mais… Acho que fortalece muito mais na luta,
né? Na minha luta, no meu dia a dia condiz muito mais com a
minha realidade do que ficar participando do movimento
feminista. Eu fico muito indignada com aquelas mulheres
burguesas falando, não sabe nem o que que acontece lá nas
quebradas também né. […] (SEMENTE CRIOULA, entrevista, 05
jul. 2015)

E como forma de concluir esta apresentação de críticas que as


entrevistadas realizaram ao “feminismo branco”, a fala provavelmente mais
enfática aponta para a conexão contraditória entre a ação coletiva das mulheres
brancas e a exploração das mulheres negras. Uma militante, ao afirmar que antes
de participar do coletivo ela não se entendia como feminista, continua, dizendo:

[…] E mesmo depois do coletivo, surgiu aquilo: “Ah, eu não


quero…” Aquele medo: “Não, eu não sou… feminista. Eu não
sou… militante. Eu não sou isso, eu não sou aquilo”, né? E aí
surgiu várias questões: “Mas o que é o feminismo? É um
movimento social que surgiu, e tal”. Mas e aquelas mulheres
pretas bem de antes dessas? Elas não falavam que eram
feministas e já estavam na luta! Então começou a surgir várias
questões assim, sabe? Poxa vida, eu não, não… Como é que eu
vou levantar a bandeira de um movimento que oprimiu a mulher
preta pra existir? Porque enquanto as mulheres brancas saíram
na rua, quem estava dentro de casa servindo era as mulheres
pretas. Então como que agora então…? Que tipo de feministas
nós somos? Começa a vir essas questões. (MULHERES DE ORÍ,
entrevista, 13 abr. 2015)

A autora que talvez tenha desenvolvido a reflexão mais profunda acerca


de como as noções de esfera pública e esfera privada são atravessadas de modo
constitutivo por raça, gênero e classe é Patricia Hill Collins. Esta teórica social
estadunidense avança ainda mais do que as críticas que as teóricas feministas
formularam à categoria habermasiana clássica de esfera pública (tal como esbocei
ao final da subseção 3.2.1), ao demonstrar que os significados de público e privado
não são os mesmos, dependendo da situação social dos sujeitos: homens brancos,
mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. A seguinte passagem dialoga
! 186

diretamente com o trecho acima citado da entrevista com a integrante do Mulheres


de Orí: !

!
Ao contrário do trabalho de mulheres brancas de classe média, o
trabalho de mulheres negras como trabalhadoras domésticas as
levou, por meio da esfera pública branca e controlada por homens,
para dentro da esfera privada da família branca gerida pela mulher.
Contudo, o que era público para homens brancos e privado para
mulheres brancas era altamente público para mulheres afro-
americanas – dentro era verdadeiramente fora. (HILL COLLINS,
1998, p. 21)!
!
A base para o ativismo político das mulheres negras (e para o desenvolvimento de
um pensamento feminista negro) nos EUA não seria, portanto, o mesmo do que a
das mulheres brancas. A experiência vivida a partir de sua situação social
ressignifica as noções de público e privado de um modo singular:

De modo geral, mulheres negras se moviam de suas casas privadas,


através do espaço da sociedade civil negra, através do espaço
público controlado por homens brancos, até o espaço familiar gerido
por mulheres brancas e viajava de volta mais uma vez. (HILL
COLLINS, 1998, p. 22)

Ainda está para ser formulado e desenvolvido um paradigma teórico-


social que dê conta de tais especificidades para o caso das mulheres negras no
Brasil (considerando que as relações de classe, de gênero e raciais não são
idênticas ao contexto estadunidense). Aqui, basta apontar como as feministas
periféricas (a maioria negras) estão conscientes de suas diferenças com as
feministas oriundas da classe média (a maioria brancas), de modo similar ao que Hill
Collins apontou para o pensamento feminista negro nos EUA.

Existiria, então, alguma relação positiva que estas militantes que moram
nas periferias urbanas da Zona Leste de São Paulo estabelecem com o feminismo?
Há, na realidade, diversas formulações. Na avaliação da entrevistada pelo Juntas na
Luta, por exemplo, uma das dificuldades dos “coletivos de feminismo periférico”,
termos dela, junto com a falta de dinheiro e problemas de relacionamento pessoal
decorrentes da intensa convivência entre as mulheres, é a falta de “base teórica”;
ela relata debates no interior do coletivo: “Homem pode participar? Vamos ser
contra os homens? Homem é feminista?”. Sem uma “bagagem [teórica] de
! 187

gênero”, não teria sido possível chegar a respostas consensuais entre as ativistas,
assim como não teria sido suficiente que as jovens vivessem sistematicamente
experiências de machismo no contato com homens de movimentos culturais
periféricos dos quais elas participavam ou com os quais estavam em contato; a
ausência do referencial teórico feminista teria bloqueado a sua conceitualização e
reconhecimento enquanto machismo, levando-as a discordarem entre si quanto à
avaliação e interpretação de ocorridos. Ao mesmo tempo que ela afirma que a base
teórica ajuda a entender estas questões (“a percepção só a partir da prática não
rola”), ela deixa em aberto uma outra possibilidade: quando perguntada sobre a
evolução da situação social das mulheres nas últimas décadas, além de apontar
avanços em termos institucionais (Lei Maria da Penha, Delegacias de Defesa da
Mulher), ela aponta o “boom de um feminismo periférico”; por conta da internet,
“tem muita gente falando” e as mulheres agora podem aprender sobre, por
exemplo, transfobia em debates do Facebook, independente de já terem pisado na
universidade (trecho que já citei na subseção 3.2.2). Anteriormente, ela havia
afirmado que “estamos construindo do nosso jeito” o que ela chamou de
“feminismo de quebrada”; as ativistas podem não se reportar aos “clássicos” do
pensamento feminista, mas “é o que se tem para hoje” (JUNTAS NA LUTA,
entrevista, 26 mai. 2015).

Encontrei uma outra formulação, baseada tanto num recorte racial – o


feminismo negro – quanto no que poderia ser chamado de “primado da experiência”
(não seria preciso haver nem uma organização formal nem uma reivindicação
consciente para que uma mulher seja feminista, enfatizando situações da vida
cotidiana):

C. pegou num ponto que era o que eu tava pensando assim, né?
Eu acho que de alguma maneira a gente… O feminismo ganha o
nome de feminismo enquanto movimento organizado, mas com
certeza a maioria de nós já tinha pensamento e atitudes
feministas anteriores né? E acho que comigo não foi diferente
né. Vindo de uma família que eu fui criada só pela minha mãe
né, justamente por motivo de separação de violência, por parte
do meu pai, então é impossível você conviver com isso e não ter
nenhum tipo de reação, né? Cada um de um modo, mas algum
tipo de reação. Então acho que nesse sentido, acho que a gente
sempre foi feminista sem ter esse tipo de organização feminista,
né. Mas pensando em se assumir mesmo “Eu sou feminista e
participo de ações com esse cunho”, pra mim foi a partir do
! 188

momento que eu comecei a participar do movimento de saraus e


que eu vi outras mulheres falando a respeito disso. Através das
suas poesias. Então é como se acontecesse uma identificação
pelo que ela tá dizendo e você começa a perceber que as
situações que você vive também dentro dos movimentos
sociais, que tem uma militância por alguma causa, você acaba
sofrendo também violência, machismo e aí também como você
começa a se colocar, né? Então acho que assumir, me assumir
feminista é a partir do momento em que eu começo a me colocar
e a combater isso de forma consciente. Porque a gente já
combatia inconscientemente, mas combater de forma
consciente. E aí eu preciso fazer um recorte também, que é o
feminismo negro, né? Que o feminismo ele é amplo e ele tem as
suas correntes. Eu me considero feminista negra, porque eu
acredito na interseccionalidade, não é só uma questão de classe
e não é só uma questão de gênero. É também uma questão de
gênero e etnia, né. A mulher negra passa por questões que nem
todas as mulheres passam. E o feminismo negro vem depois…
Vem depois como movimento organizado, mas também vem
antes nas situações do cotidiano e também precisa fazer
enfrentamento dentro do próprio movimento feminista que não
considera essas questões, né? Então, eu acho que é isso. Às
vezes as pessoas pensam que arte é só tipo, né, folclore e
estética, mas é política também e às vezes é por meio de uma
poesia que você vai perceber a violência que você tá sofrendo e
vai refletir, enfim. (SEMENTE CRIOULA, entrevista, 05 jul. 2015)

Quando a integrante do Semente Crioula diz que ela “acredita na


interseccionalidade” ela está trazendo a tona a necessidade de não hierarquizar
as opressões e sim de concebê-las articuladamente. A entrevistada pelo Juntas na
Luta também tocou neste ponto; ao ser perguntada sobre qual seria a causa ou a
origem do problema da “invisibilidade da mulher negra”, ela respondeu: “Ah, o
racismo né? O recorte de gênero, classe… Eu não sei nem se tem ordem pra
falar isso né? Classe, raça, gênero. Não sei! [risos] […] Cada vez que eu vou
falar, eu falo de um jeito! Eu não sei se tem ordem! [risos]” (JUNTAS NA LUTA,
entrevista, 26 mai. 2015).

Uma das grafiteiras entrevistadas já havia frisado sua discordância com o


“feminismo branco” porém também a sua defesa do “feminismo negro”,
entendido como “resistência da mulher negra”. Também é interessante outras
formas de defesa do feminismo negro, que podem ser mais sutis e menos explícitas.
A integrante do Mulheres de Orí, como visto, denuncia a base material racista do
protesto das “mulheres brancas”, de modo que poderia dar a entender que sua
crítica abarca o movimento feminista em geral, o que levaria à recusa do termo
! 189

“feminismo” como um todo, mas, em outros momentos da entrevista, a descoberta


do pensamento de autoras feministas negras brasileiras114 como Lélia Gonzalez e
Beatriz Nascimento é uma confirmação muito satisfatória de intuições que ela já
tinha antes mesmo do coletivo se consolidar:

É. Porque eu vi esse coletivo [Capulanas – Cia. de Arte Negra],


aí daí depois conheci… eu comecei a pesquisar, coloquei, ah:
“mulheres negras” e algumas figuras: Beatriz Nascimento, Lélia
Gonzalez. Aí fiquei absurdada! Falei: “Nossa! Isso já existe há
algum tempo”, sabe? E, realmente, eu só vou continuando a
história, meu! Sabe? “Você não tá vendo! Eu tava certa do que
eu tô… Eu tinha certeza que tinha alguma coisa de errado
acontecendo com a gente, porque não é possível! Não é
possível que a gente viva assim desse jeito e seja normal, e que
as história seja bem parecidas e repetidas!” E aí quando eu
conheci essas mulheres – foram as primeiras: Beatriz
Nascimento e Lélia Gonzalez. E aí eu falei: “Não! Existe essa
mulher aqui, que desde não sei quando ela faz isso, isso e
aquilo! Olha aqui! Ela já falava que isso acontecia com a gente!
Tá vendo por que que acontece isso com a gente?” Foi mais ou
menos assim! (MULHERES DE ORÍ, entrevista, 13 abr. 2015)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
114
Outra indicação do diálogo deste coletivo com o feminismo negro brasileiro é o convite para Sueli
Carneiro republicar um texto seu de 1993 em seu livro (que contou com apoio do Programa VAI):
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto aos orixás. In: NOVAES, Priscila
(Org.). Ajeum: o sabor das deusas. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2017. p. 45-72. Para um
panorama das referências teóricas e bibliográficas do coletivo Mulheres de Orí, vale a pena
reproduzir aqui uma lista dos livros que o coletivo propunha a serem lidos em seu grupo de estudos e
que tive a oportunidade de registrar em meu caderno de campo, quando realizei observação
participante na 1ª Mostra da Mulher Afro Latino-Americana Caribenha (no CFCCT, em julho de 2015):
BENISTE, José. Dicionário yorubá-português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011; BERNARDO,
Teresinha; CLEMENTE, Claudelir Corrêa (Org.). Diásporas, redes e guetos: conceitos e
configurações no contexto transnacional. São Paulo: CAPES/EDUC, 2008; CASCUDO, Luís da
Câmara. História da alimentação no Brasil. Sâo Paulo: Global, 2011; FARELLI, Maria Helena.
Comida de santo. Rio de Janeiro: Pallas, 2005; FONSECA, Dagoberto José. Você conhece
aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira. São Paulo: Summus, 2012; GARCIA, Antonia dos
Santos. Mulheres da cidade d’Oxum: relações de gênero, raça, classe e organização espacial do
movimento de bairros em Salvador. Salvador: EDUFBA, 2006; LODY, Raul. Cabelos de axé:
identidade e resistência. São Paulo: Senac Nacional, 2004; LODY, Raul. Dendê: símbolo e sabor da
Bahia. São Paulo: Senac, 2009; LODY, Raul. Santo também come: estudo sócio-cultural da
alimentação cerimonial em terreiros afro-brasileiros. Rio de Janeiro/Recife: Artenova/Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979; MAURÍCIO, George; OXALÁ, Vera de. O candomblé bem
explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon. Rio de Janeiro: Pallas, 2009; NASCIMENTO, Elisa Larkin
(Org.). Afrocentricidade: um abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009;
PORTUGAL FILHO, Fernandez. Guia prático da língua yorubá. São Paulo: Madras, 2002; PRANDI,
Reginaldo. Mitologias do orixá. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; PSIQUE & Negritude: os
efeitos psicossociais do racismo. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Amma Psique e Negritude,
2008; RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010; SANTOS,
Gevanilda. Relações raciais e desigualdade no Brasil. São Paulo: Summus, 2009; THEODORO,
Helena. Iansã: rainha dos ventos e das tempestades. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
! 190

Como já foi mencionado, mesmo as feministas periféricas que são


mulheres brancas reconhecem e pautam a necessidade do feminismo negro. Além
da militante do Ser Vi Elas – que ressaltou nem imaginar “o que uma mulher negra
passa” por ser “hiper, hiper, hiper-sexualizada” –, uma integrante do Grupo de
Coco Semente Crioula, que não é negra115, também pontuou como, hoje, o coletivo

[…] carrega a bandeira das questões de gênero mesmo, né?


Então a gente carrega a bandeira contra a violência contra a
mulher, a gente carrega a bandeira feminista, né? A bandeira
LGBT, a bandeira da mulher negra, a bandeira da mulher
indígena, né, então a gente tem toda essa bagagem e toda essa
carga mesmo. Até pelo coco ser um… O coco é de origem
indígena, de origem africana, então a gente traz muito essas
origens. (SEMENTE CRIOULA, entrevista, 05 jul. 2015)

Se a entrevistada pelo Mulheres de Orí já havia apontado a contradição


entre o protesto das mulheres brancas e o trabalho das mulheres negras, a ex-
integrante do Fayola Odara vai partir exatamente do mesmo diagnóstico, mas para
formular um prognóstico divergente:

E [...] você se considera feminista?


Não.
Não? Por quê?
Não, porque o feminismo, eu acho que ele é branco, ele abrange
as mulheres brancas, enquanto a mulher branca tava
protestando, a mulher negra tava cuidando do filho dela, e ai
cadê os direitos iguais? Eu não vejo! Através também do Fayola
eu também conheci o mulherismo [africana] 116 , que é um
trabalho que a mulher tem… Não vê o homem como opressor…
é uma forma de trazer o homem pra lutar junto com ela, contra o
machismo, contra o racismo. Eu vejo… não tem como… nós
temos que trazer aquela unidade africana, que é de ter a família,
de ter o cuidado um com o outro, eu consigo ver dessa forma,
feminista não.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
Infelizmente, não inclui no pedido de apresentação das militantes dos coletivos, o qual abria as
entrevistas (cf. o Apêndice 1), uma pergunta sobre auto-declaração de cor/raça (uma vez que a
questão racial não constava no planejamento original da pesquisa e foi incluída apenas com o
desenrolar do trabalho de campo). A caracterização acima é uma atribuição minha.
116
Conforme mencionado em nota no final da subseção 3.2.2, “mulherismo” e “mulherismo africana”
são abordagens intelectuais e políticas diferentes (Alice Walker é uma representante da primeira,
enquanto Clenora Hudson-Weems e Nah Dove são representantes da segunda). Como a
entrevistada está indubitavelmente se referindo à segunda vertente, optei por incluir a adjetivação
entre chaves em todas as suas falas (o que esclarece a especificidade da sua referência, mas
também destaca a minha intervenção).
! 191

E o feminismo negro?
Eu acho que não existe. Eu acho que existe o mulherismo
[africana], o feminismo negro não. Eu acho que é só uma
vertente que colocaram pra chamar as mulheres negras pra luta.
(FAYOLA ODARA, entrevista, 08 jul. 2015)

Além de considerar o feminismo como essencialmente “branco”, a ex-


integrante do Fayola Odara apontou, quando indagada, que “as feministas” foram
as maiores “opositoras” ou “adversárias” das atividades do coletivo enquanto ele
existiu. Segundo ela “As meninas brancas são privilegiadas. Até porque desde
que a… É uma questão histórica. A mulher negra, infelizmente, ela é vista
apenas como objeto sexual”. O privilégio das mulheres brancas se transformaria,
segundo ela, em oposição às reivindicações e desejos das mulheres negras:

Porque a gente brinca: enquanto as mulheres brancas lutam pra


não usar maquiagem, nós lutamos pra que tenha maquiagem
para nós. Entendeu? […] Então a gente quer brigar pelos
mesmos valores que as feministas têm. “Ah, [não] quero usar
sutiã”. Não! Eu quero que tenha sutiã pra mulheres negras
diferenciado. O corpo da mulher negra é diferente da mulher
branca. Eu quero ter o mesmo tratamento que a mulher branca
tem – a um ginecologista, que a mulher negra não tem.
Queremos ter esses privilégios também. (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015)

Porém, a entrevistada também oscila entre afirmações conflituosas com


relação ao seu posicionamento frente às mulheres negras no feminismo: ora o
feminismo negro “não existe”, ora é uma vertente “parecida” com o mulherismo
africana. Quando perguntei sobre as ONGs Geledés e Fala Preta! (pioneiras do
feminismo negro e integrantes da parcela minoritária que tematizava a questão racial
no interior da matriz discursiva feminista do ciclo político anterior), ela disse gostar
“muito das reportagens” publicadas nos seus sites; mas quando confrontada com
o fato de que estas associações se auto-reivindicam feministas negras, ela afirma:
“É, elas defendem [o feminismo negro]. Mas aí eu acho que… É que eu
acredito que ainda há uma boa confusão entre feminismo negro e o
mulherismo [africana]. Tem muitas vertentes ali que são parecidas” (FAYOLA
ODARA, entrevista, 08 jul. 2015).
! 192

Foi relevante para a minha investigação detectar as convergências e


divergências discursivas no interior do novo associativismo de mulheres. Como está
ficando evidente, a própria denominação “feminismo” para descrever a ideologia dos
coletivos e de suas integrantes não é consensual sequer em termos de sua auto-
compreensão. No caso do Fayola Odara, por exemplo, há esta defesa de uma
ideologia ou filosofia política chamada “mulherismo africana”, que se posiciona
contrariamente tanto ao feminismo como ao feminismo negro; segundo uma outra
ex-integrante do mesmo coletivo, em artigo publicado no Portal da Revista Forum:

Me identifico com o mulherismo africana – [“]Ideologia criada e


projetada para todas as mulheres de ascendência africana, a
qual focaliza necessariamente experiências, lutas e desejos
singulares das mulheres africanas (presentes no continente
africano ou na diáspora)”, de Cleonora Hudson[-Weems], por
acreditar numa luta pela emancipação de um povo (coletivo) e
não apenas a minha enquanto mulher (indivíduo) como fazem as
feministas negras e brancas. Entendo o feminismo como uma
ideologia branca, burguesa e eurocêntrica que serve para as
brancas, mas gera divisão entre os pretos, promove com
sucesso a desintegração do nosso povo, o que fragmenta a luta.
(VALLIM, 2015)

Neste sentido, a prática do mulherismo africana não teria como únicas


destinatárias as mulheres negras, mas incluiria a conscientização também dos
homens negros: “No mulherismo, mulheres pretas e homens pretos lutam para
eliminação desta doença eurocêntrica chamada sexismo” (VALLIM, 2015). Por
um lado, o texto destaca as “experiências singulares das mulheres africanas”;
por outro, o mulherismo africana aponta para a necessidade de buscar uma teoria
alternativa ao feminismo, como afirma a própria autora:

O mulherismo me mostrou um outro universo! Me sinto


acolhida, é NÓS POR NÓS.
Me identificava com o feminismo por acreditar ser necessário a
luta por direitos iguais, mas minhas idas a grupos feministas,
sempre gerou inquietações, inicialmente ouvia aquelas
discussões brancas, que em nada me representavam, mas não
sabia como rebater teoricamente. (VALLIM, 2015)

A categoria “Feminismo Periférico” busca descrever, portanto, um novo


ciclo político no interior do associativismo de mulheres, como um campo de
! 193

possibilidades discursivas e práticas, que podem ser convergentes – como no caso


dos diagnósticos acerca da temática da mulher negra – ou divergentes – como na
oposição entre feminismo negro e mulherismo africana.117

4.2 Práticas: educação não formal e contrapúblicos

Já tratei de algumas experiências socializadoras e das formas de


sociabilidade pré-existentes identificadas como o locus das vivências práticas que
permitem a gênese dos coletivos. Agora, passarei a me ocupar das sociabilidades
criadas pelo seu conjunto de práticas. Mas para tal, é preciso também delimitar o
conceito de educação não formal.

Segundo Gohn, a educação não formal deve ser pensada inserida em um


modelo triádico, junto com a educação formal e a informal. Isto evita que se pense
os processos educacionais de uma forma dicotômica (ou “bipolar”) que, na
realidade, prioriza os “aparelhos escolares institucionalizados” enquanto “sistema
formal” (GOHN, 2011, p. 99) e define todos os outros processos pela ausência do
que seria intrínseco à escola: planejamento e intencionalidade. A educação informal
seria aquela “transmitida pelos pais na família, no convívio com amigos, clubes,
teatros, leituras de jornais, livros, revistas etc.” (GOHN, 2011, p. 107), enquanto que
a educação não formal teria na cidadania o seu principal objetivo intencional: “A
educação não formal é um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de
formação para a cidadania” (GOHN, 2015, p. 16). A autora (GOHN, 2011, p. 106-
107) define os seguintes campos ou dimensões da educação não formal:

[1] “aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos,


isto é, o processo que gera a conscientização dos indivíduos para a compreensão
de seus interesses e do meio social e da natureza que o cerca, por meio da
participação em atividades grupais”;

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
Algumas leituras fundamentais para complementar este panorama são textos de autoras
mulheristas africana (HUDSON-WEEMS, 1993, 2003; DOVE, 1998, 2003) e feministas negras (HILL
COLLINS, 1998; 2009 [2000]; 2006). Destaco a obra de Patricia Hill Collins (dentre tantas outras
autoras do pensamento feminista negro) tanto pelo fato dela dialogar criticamente com as teorizações
sobre gênero e sexualidade no interior do nacionalismo negro, do pan-africanismo e da
afrocentricidade – muito relacionadas com a emergência do mulherismo africana – quanto por ela
desenvolver reflexões ricas e avançadas sobre as conexões entre a categoria de esfera pública
(central para minha investigação) e as experiências de mulheres negras estadunidenses.
! 194

[2] “capacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da


aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades”;

[3] “aprendizagem e exercício de práticas que capacitem os indivíduos a


se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas
coletivos cotidianos”;

[4] “aprendizagem dos conteúdos da escolarização formal, escolar, em


formas e espaços diferenciados”;

[5] “educação desenvolvida na e pela mídia, em especial a eletrônica”;

[6] “campo da educação para a vida ou a arte de bem viver. […] como
viver ou conviver com o stress”.

Para os meus propósitos, interessa-me principalmente as dimensões [1],


[3] e [5]. Gohn considera que na educação não formal “a aprendizagem se dá por
meio da prática social”, “da vivência de certas situações-problema” e de ações
sociais interativas, “no plano da comunicação verbal, oral”. A autora ainda ressalta
que “Habermas é um dos autores que mais se debruçou no estudo dos processos
das ações comunicativas entre os indivíduos e grupos sociais organizados” (GOHN,
2011, p. 111). Neste sentido é possível pensar a educação não formal junto com a
categoria habermasiana da “esfera pública” bem como com a reconceitualização
proposta por Nancy Fraser pela noção de “contrapúblico”. Mais do que ressaltar o
plano conceitual, interessa-me avançar na sua operacionalização empírica, na
mesma linha de Gohn (2011, p. 112): “Há necessidade de estudos aprofundados
sobre as metodologias de trabalho utilizadas na área da educação não formal”. O
desafio destas investigações está justamente na correlação entre o caráter não-
formal deste processo educativo e a sua distância com relação às práticas
formalizadas da educação escolar:!

!
Os procedimentos metodológicos utilizados nos processos da
educação não formal estão pouco codificados na palavra escrita e
bastante organizados ao redor da fala. A voz ou vozes, que entoam
ou ecoam de seus participantes são carregadas de emoções,
pensamentos, desejos, etc. São falas que estiveram caladas e
passaram a se expressar por algum motivo impulsionador (carência
socioeconômica, direito individual ou coletivo usurpado ou negado,
projeto de mudança, demanda não atendida). Ao se expressar, os
atores/sujeitos dos processos de aprendizagem articulam o universo
de saberes disponíveis, passados e presente, no esforço de
! 195

pensar/elaborar/reelaborar sobre a realidade em que vivem. Os


códigos culturais são acionados, e afloram as emoções contidas na
subjetividade de cada um. (GOHN, 2011, p. 113-114)!
!
Por estas razões, me parece produtivo dialogar com a obra do
antropólogo estadunidense Clifford Geertz, o qual propõe um conceito “semiótico” de
cultura: “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a
teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias
[...]” (GEERTZ, 2008, p. 4). Além de semiótico, este conceito de cultura é
intersubjetivo e público: “A cultura é pública porque o significado o é” (GEERTZ,
2008, p. 9). Nesta abordagem, a cultura é considerada tanto “como sistemas
entrelaçados de signos interpretáveis” quanto “um contexto, algo dentro do qual eles
[os acontecimentos, os comportamentos, as instituições ou os processos – J.M.]
podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade”
(GEERTZ, 2008, p. 10). O foco são símbolos compartilhados publicamente que
permitem atribuir significados a experiências sociais e políticas.

Se a cultura é considerada como “estruturas de significado socialmente


estabelecidas” ou então “sistemas de símbolos” (GEERTZ, 2008, p. 9 e 13), como se
tem acesso a ela? Quais são os procedimentos empíricos para investigá-la? A
disciplina da antropologia é caracterizada pelo trabalho de campo na forma da
prática etnográfica, o que Geertz chama de descrição densa. Segundo o
antropólogo, “começamos com as nossas próprias interpretações do que pretendem
nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a
sistematizá-las” (GEERTZ, 2008, p. 11). Os textos antropológicos seriam ficções (no
sentido específico de “construção” ou “fabricação”) pois eles são “interpretações […]
de segunda e terceira mão (por definição, somente um 'nativo' faz a interpretação
em primeira mão; é a sua cultura” (GEERTZ, 2008, p. 11). Ao contrário das “hard
sciences”, não se poderia falar em “verificação” (de hipóteses, por exemplo) ou de
“teste de validade” e sim apenas de “avaliação”: diferenciar um relato etnográfico
melhor de outro pior gira em torno da densidade da descrição (ou seja, da
capacidade de escrevê-la da forma mais minuciosa possível). As descrições são
produzidas por um trabalho de campo “principalmente (mas não exclusivamente)
qualitativo” e realizado em “contextos confinados” (GEERTZ, 2008, p. 16; meu grifo).
Geertz conecta seu conceito semiótico de cultura com uma abordagem interpretativa
! 196

da antropologia pois ela auxiliaria “a ganhar acesso ao mundo conceitual no qual


vivem os nossos sujeitos” (GEERTZ, 2008, p. 17), isto é, a tarefa da descrição
densa é “descobrir as estruturas conceituais que informam os atos dos nossos
sujeitos” (GEERTZ, 2008, p. 19).

Assim, acredito ser necessário etnografar os contrapúblicos instaurados


pelas feministas periféricas. Vou me basear não apenas nas entrevistas semi-
estruturadas, mas principalmente em observações participantes que realizei em
eventos de todos os sete coletivos analisados (com exceção de um). Espero que as
cenas etnográficas a seguir auxiliem a compreensão da dimensão educativa das
práticas dos coletivos.

Observei o Sarau do M.A.P. no qual foi comemorado o seu segundo


aniversário e seria neste dia que seu Núcleo Feminista, ainda sem nome
(posteriormente assumindo a denominação “Ser Vi Elas”), realizaria sua primeira
apresentação. Mais de 100 pessoas passaram pelo sarau e pela Praça do Forró em
São Miguel durante aquele domingo chuvoso (que também coincidiu com duas
semifinais clássicas pelo Campeonato Paulista de futebol), principalmente jovens,
entre 15 e 30 anos, mulheres e homens, com algumas crianças e poucos adultos
mais velhos. As seis integrantes do coletivo feminista declamaram um poema, cujo
refrão, repetido por elas, dizia: “sou objetiva / nunca mais objeto”. Havia um clima
ritualístico e até mesmo catártico (sendo um momento de clímax, a apresentação do
rapper Neto, do grupo Síntese, registrada na foto118 abaixo). A persistência dos
jovens ali presentes, em não arredar o pé em momentos de chuva torrencial,
demonstra a importância daquele espaço de lazer e sociabilidade para eles, sendo o
sarau realizado um domingo por mês. Tal sociabilidade é marcada por uma
tematização ampla das desigualdades sociais: as poesias declamadas
invariavelmente se referiam à questão racial, às mulheres, aos indígenas, à pobreza,
à desigualdade de classe, à crítica à grande mídia tradicional, à redução da
maioridade penal; a tolerância com relação à orientação sexual e os direitos LGBT
não foram tematizados explicitamente, mas referências contidas em poesias e
músicas e, principalmente na demonstração pública de afeto comprovam sua
contribuição para a sociabilidade deste sarau periférico. Além do aspecto da
sociabilidade, salta aos olhos seu caráter de ressocialização: uma poeta, ao ganhar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
118
Não encontrei registro fotográfico da apresentação do Núcleo Feminista.
! 198

acesso de jovens vindas de bairros periféricos de diferentes regiões da cidade). O


evento, realizado no Dia das Bruxas, conteve vários momentos que preencheram a
tarde inteira e adentraram a noite: a abertura consistiu na declamação de várias
poesias pelas integrantes do coletivo; depois ocorreu uma roda de conversa; shows
de três rappers (Luana Hansen, Tati Botelho e Bê O119); a exibição do documentário
“Mucamas” realizado pelo coletivo “Nós, Madalenas”; um sarau com o microfone
aberto para as mulheres; e, por fim, uma festa de encerramento. Havia um varal de
poesias que as pessoas podiam ler e apreciar durante o dia inteiro, além de uma
exposição de fotografias.

A roda de conversa, nomeada “Mulher e arte na periferia”, reuniu cerca de


40 pessoas, sentadas no chão em círculo no meio da praça. As organizadoras do
evento propuseram como questão para iniciar o debate como cada mulher ali
presente tinha conhecido o feminismo. A internet foi ressaltada por ao menos três
pessoas que se pronunciaram: uma integrante do coletivo parceiro “Nós Madalenas”,
moradora da Zona Sul da cidade, disse que entrou em contato com o feminismo não
pela faculdade mas pela internet: ela percebeu que ela “era feminista a vida toda”
devido a atitudes que ela sempre teve; uma militante do Ser Vi Elas conheceu a
página de Facebook “Feminismo Poético” por meio de uma colega de classe na
faculdade particular que ela frequentava, mas também admitiu que “Desde mais
nova eu tinha pensamentos mais feministas”; por fim, uma ex-moradora de uma
cidade no interior de São Paulo que veio para a capital para fazer faculdade por
meio do Prouni afirmou que o “interior é foda”: há muitos casos de agressão às
mulheres e “pais abusando das filhas” mas as denúncias feministas são
minimizadas pois taxadas de “balelas” ou de “ladainha”. Conforme “não tem
movimento” feminista no interior ela ressalta justamente a importância das páginas
feministas na internet. Estas falas reforçam a tese de que os feminismos das esferas
públicas digitais são uma das matrizes/redes discursivas do “Feminismo Periférico”.

Antes do machismo em cidades do interior ter sido apontado, as poetas


do Ser Vi Elas já haviam enfatizado que “a periferia é uma concentração de
machismo” e denunciado que o sarau do qual elas tinham acabado de romper e se
autonomizar, seria “uma concentração de machismo a mais”. Como visto na

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
119
A rapper Beatriz Oliveira era conhecida como Bê O, mas depois passou a adotar Bia D’Oxum
como seu nome artístico.
! 199

Imagem 15 – Roda de conversa “Mulher e arte na periferia”


(Praça Horácio Sabino, Zona Oeste de São Paulo-SP, 31 out. 2015)

créditos da foto: Renata de Oliveira Armelin

subseção 3.2.1, trata-se de uma reinterpretação da vivência no interior daquele


movimento cultural, antes apresentado, na entrevista a mim concedida alguns
meses antes por uma outra integrante, como um espaço social no qual o machismo
seria menor do que no restante da sociedade. O limite daquele processo educativo
referido anteriormente é aqui escancarado: a poesia, a arte e o rap não fogem do
machismo e das agressões pois “os caras têm informação e continuam
propagando o machismo”. Segundo outra integrante, o coletivo Ser Vi Elas
“ajudou a detectar, a enxergar o que eu não via antes. Quem vive, sabe que é
tudo meio camuflado”. Ela diz não querer “expor a pessoa”, mas relata que “a
gente meio que arrumou umas confusões” devido a “comportamentos
explicitamente machistas” no sarau em São Miguel. As denúncias feministas são
então recebidas pelos homens poetas como uma “guerra” para a qual as feministas
estariam “recrutando gente para o ‘seu lado’”. Uma terceira integrante
! 200

complementa que os homens passaram a lhes chamar de “extremistas”,


“feminazi” e “feministóides”, mas elas estavam apenas buscando denunciar
abusos psicológicos e sexuais.

Um dos principais resultados da autonomização do coletivo com relação


ao sarau periférico é que sua atividade instaura um contrapúblico majoritariamente
feminino (em contraposição à ocupação da Praça do Forró, com um público maior e
misto): poucos homens foram ao evento e mesmo que tenham comparecido, uma
quantidade menor ainda participou como ouvinte da roda de conversa. Um ganho
positivo para as participantes é se sentir a vontade para relatar histórias e episódios
que, do contrário, dificilmente seriam compartilhadas, como no caso de uma jovem
mãe que narrou um caso de violência obstétrica que ela sofreu. É a sociabilidade
entre as mulheres que permitiu a sua partilha, seu choro e seu acolhimento. Luana
Hansen, DJ e rapper feminista já com uma longa carreira, não apenas corroborou as
críticas das poetas mais jovens ao machismo dos movimentos culturais
(compartilhando episódios que ela própria viveu no movimento Hip Hop), como ela
também prometeu fazer um adendo na sua próxima música para incluir o caso de
violência obstétrica anteriormente relatado.

Também presenciei uma das atividades do Mulheriu Clã dentro de seu


projeto apresentado ao Programa VAI da Prefeitura: o seu 1º “Circuito” do ano. Era
um domingo a noite na Biblioteca Comunitária Solano Trindade, na Cidade
Tiradentes; até o momento em que pude observar houve um pico de 50 pessoas
presentes. Em relação à faixa etária, tratava-se de um público um pouco mais velho
do que o Sarau do M.A.P., com uma presença maior de crianças, filhos e filhas de
adultos a partir dos seus 30 anos. O público era bastante misto (homens e
mulheres), inclusive no palco: em geral, as mulheres não são DJ’s e algumas
participam de grupos mistos. Duas apresentações que observei foram marcantes. A
dupla “PretoNuBranco”, que cantou “não sou feminista, só falo a verdade”; e a
rapper Bê O, que abriu sua apresentação “à capela”, narrando sua experiência de ler
seu primeiro poema em um sarau – a ansiedade; a sensação de que seu coração
estava exposto em uma folha de papel; seu treino num quarto apertado, sussurrando
para não acordar ninguém; e quando o leu para a sua mãe, as duas não paravam de
chorar:
! 202

Agora eu quero ver quem segura! (BÊ O, 2015, “B.O. pra


eternidade”)

A minha sensação de que as mulheres podem não ser protagonistas


absolutas mesmo nos eventos realizados por coletivos de mulheres se repetiu no
Cartel da Tinta, organizado pelo M.A.N.A. Crew em um longo domingo ensolarado,
que começou pela manhã e adentrou a tarde inteira. As jovens conseguiram
reservar muitos muros, um quarteirão gigantesco inteiro e ainda por cima muros de
outras casas adjacentes; a sociabilidade instaurada não é apenas entre grafiteiros –
homens e mulheres –, pois a vizinhança acompanha os trabalhos ao ar livre,
observando, conversando com os artistas e pedindo permissão para tirar fotos com
seus celulares. Com relação à sociabilidade específica dos grafiteiros, pude
observar que a imensa maioria eram homens, muitos dos quais de fora da Zona
Leste. Além das integrantes do coletivo de grafiteiras, havia duas jovens auxiliando
seus namorados “preenchendo lacunas” de seus grafites com pincéis e apenas uma
grafiteira mulher que não pertencia ao grupo organizador, moradora da Cidade
Tiradentes. Conversando com ela, foi tematizada uma tensão de gênero: ela disse
que “ainda não se acostumou” com a abordagem de alguns homens, sem saber
“ainda como reagir”: muitos não sabem “separar as coisas”, firmar uma parceria
já significaria imediatamente “dar em cima” e eles ainda “ficam bravos se não
forem correspondidos”. Logo em seguida, uma fala reveladora desta tensão de
gênero: “Tem que ser muito macho pra lidar... Quero dizer, tem que ser muito
Mulher!”. Neste caso, de uma grafiteira individual, não pertencente a nenhum
coletivo, reaparece justamente a ambiguidade tratada por Caldeira (2014) de que as
mulheres estariam presas nos movimentos culturais periféricos ou a uma
masculinização ou então a uma feminilidade essencializada (cf. subseção 3.2.1).

De qualquer modo, o fato de ter sido o primeiro destes eventos que o


M.A.N.A. Crew realizou também tem um outro significado que não necessariamente
a não-efetivação de uma sociabilidade emergente de mulheres para mulheres, que é
o reconhecimento de seus pares, muito gratos pela rara oportunidade de poder
trabalhar em condições tão propícias quanto as que foram por elas proporcionadas
(na despedida das organizadoras, muitos deles repetiam várias vezes: “gratidão,
gratidão” – expressão usual na cultura periférica). Em uma outra ocasião (o 2º cir-
! 207

suas integrantes no 1º semestre de 2015, o Fayola Odara se encontrava “de


férias”, com suas “atividades paralisadas” depois do Programa VAI de 2014 ter
acabado, por isso não tive a oportunidade de realizar observação participante em
nenhum de seus eventos (já que só iniciei minha pesquisa de campo no ano
seguinte); contudo, pelo relato da militante entrevistada, o público dos workshops
realizados (de turbante, maquiagem, além de rodas de conversa), cerca de 100
pessoas por evento, era composto por mulheres “de 7 a 60 anos”, que “não eram
militantes”, “não tinham qualquer contato com o movimento negro” e para as
quais “tudo o que falávamos era novidade”. Na sua avaliação, a grande conquista
alcançada por este trabalho foram mulheres que participaram de mais de um evento
e no final do ano “se encresparam”, ou seja: assumiram seus cabelos crespos,
num processo de construção da identidade da mulher negra (FAYOLA ODARA,
entrevista, 08 jul. 2015).

Já no segundo caso, tive a oportunidade de observar uma atividade, que


abriu a 1ª Mostra Cultural da Mulher Afro-Latinoamericana e Caribenha, no Centro
de Formação Cultural de Cidade Tiradentes (CFCCT). A maioria das mulheres que
vieram participar naquela manhã de sexta-feira da atividade “Resistência ancestral”
do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Mulher Negra do Mulheres de Orí eram
adultas, mais velhas e alunas do CIEJA (Centro Integrado de Educação de Jovens e
Adultos) Iguatemi (distrito vizinho da Cidade Tiradentes), mobilizadas por duas de
suas professoras, que chegaram a alugar um ônibus para trazê-las. Após uma
dinâmica com pequenos grupos, de cerca de 5 pessoas, passou-se a compartilhar
no grupo maior (com mais de 50 pessoas) as reflexões sobre “o que é ser mulher
negra”. Professoras e alunas relataram suas discussões em termos do papel da
mídia que ensina as mulheres negras a não se gostarem ou então relatos de
depressão crônica relacionada à não-aceitação de sua estética. Enquanto isso, as
integrantes do coletivo fizeram questão, em todos os momentos, em conectar as
experiências pessoais com a problemática histórica da escravidão e do lugar da
mulher negra, tanto no sentido de sofrer “estupro colonial” quanto na sua
centralidade na articulação de resistências e lutas pela liberdade, de mulheres mas
também de homens (como nos casos de quitandeiras, que trabalhavam para
comprar alforrias de familiares).
! 209

expectativa com relação à filha e, de outro, sua prática de não assumir sua própria
identidade, uma das militantes do coletivo, muito pacientemente, buscava
problematizar que o principal modelo da criança é a mãe (“ou seja: você!”), por
isso ela própria precisaria se fortalecer enquanto mulher negra, seja para “bancar”
a manutenção do cabelo liso, seja para “encrespá-lo”.

Pelo que pôde ser visto nas últimas páginas, diferentes linguagens
artísticas – como a poesia e a literatura periféricas, a música (essencialmente o rap,
eventualmente o funk, mas também uma vertente da cultura popular como é o
samba de coco), o grafite como arte visual urbana e mesmo a expressão da
identidade negra por meio da valorização do cabelo, da beleza e da estética das
“mulheres pretas” – estão estruturando este novo associativismo de jovens
periféricas. Como afirma Gohn (2015), é preciso analisar a presença das linguagens
artísticas no campo da educação não formal, uma vez que (referindo-se
especificamente às manifestações de rua de Junho de 2013): “A arte de fazer
política renovou-se com o auxílio da própria arte, que utilizou diferentes linguagens
para fixar a memória e desenvolver o aprendizado dos saberes desenvolvidos,
especialmente em espaços e meios culturais” (GOHN, 2015, p. 40). Junho de 2013
foi um marco na política brasileira, com a “entrada em cena de novíssimos
personagens” (MORAES; TIBLE, 2015) e o “surgimento de uma nova geração
política” (NUNES, 2014). O “Feminismo Periférico” participa deste novo momento
histórico e espero que esta investigação tenha contribuído para a compreensão das
profundas alterações que estamos todos nós vivendo, na rica chave da educação
não formal e da contínua constituição de uma cultura política democrática e de lutas
por direitos. !
! 210

CONCLUSÃO:
continuidades e descontinuidades entre os ciclos

Minha conclusão nesta tese é pela complexidade das relações entre os


dois ciclos políticos identificados no associativismo de mulheres da Zona Leste de
São Paulo; vou analisá-las, buscando distinguir aparências secundárias de núcleos
que considero primários, em três diferentes dimensões: (i) societal; (ii) discursiva; e
(iii) político-institucional. 120 Aquela noção de campo discursivo, apresentada na
seção 1.3 e desenvolvida por Alvarez (2014), se torna ainda mais útil, pois permite
interpretar simultaneamente continuidades e descontinuidades entre os momentos
históricos, além de permitir a articulação de muitos dos conceitos que mobilizei no
decorrer da tese: ciclos políticos, matrizes discursivas e esferas públicas.

Na primeira dimensão, a societal, há uma aparente continuidade entre os


ciclos/momentos. Aqui e ali pude identificar, na pesquisa de campo, ligações,
mesmo que pontuais, entre os dois ciclos. Enquanto o Coletivo Juntas na Luta
esteve mais ativo, suas integrantes publicaram em um site do Terceiro Setor um
anúncio pedindo auxílio para seu grupo de estudos de feminismo; quem primeiro
responde é a psicóloga do CDCM Casa Cidinha Kopcak, mas quem realmente
realiza esta “assessoria informal” é a assistente social que lá trabalhava neste
momento.121 Com esta aproximação, o coletivo passa a entrar em contato com a
Marcha Mundial das Mulheres (o que, pelo que pude averiguar, foi o único caso
entre os coletivos jovens – algo que era a regra nas associações e movimentos de
mulheres do ciclo anterior). Mais recentemente, duas de suas integrantes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
Agradeço imensamente às observações da profa. Flávia Rios em meu exame de qualificação. Até
aquele momento, minha ênfase recaía demasiadamente no plano das descontinuidades e, no caso
daquelas considerações finais, apenas na dimensão societal (ou seja: as experiências socializadoras,
formas de sociabilidade, esferas públicas e, por fim, as matrizes discursivas). Seus comentários
críticos foram cruciais para complexificar meu argumento, ao apontar que, no decorrer do meu próprio
texto, eu já indicava para continuidades igualmente relevantes, porém em dimensões diferenciadas.
Segui suas sugestões para estruturar esta nova conclusão, tendo alterado, contudo, a terminologia:
ela havia chamado as duas outras dimensões de “simbólica” (a continuidade do feminismo negro) e
“política” (o ambiente institucional das políticas públicas), enquanto eu as renomeei, respectivamente,
de dimensões “discursiva” e “político-institucional”.
121
Um impacto intergeracional interessante foi como o convívio com as jovens, além do hábito de
frequentar os saraus que o coletivo organizava, foram o estopim para esta assistente social, alguns
anos mais velha, compartilhar seus escritos, a ponto dela lançar em 2016 um livro que reunia seus
poemas.
! 211

participaram como educadoras pela SOF na formação política que a SMPM


contratou esta ONG para dar às delegadas eleitas nas Plenárias Deliberativas
regionais. No caso do Grupo de Coco Semente Crioula, já foi dito que a maioria das
suas integrantes se conheceu na esfera católica progressista do GERI-IPJ; além
disso, uma das sambistas de coco afirmou ter participado da pesquisa realizada pelo
Movimento Abra os Olhos Companheira em Guaianases, com o auxílio da paróquia
local, iniciativa que desembocou na criação do CDCM Casa Viviane dos Santos.
Outro encontro entre gerações foi a breve colaboração entre o Coletivo Mulheres de
Orí e a fundadora do Oriashé, no âmbito da mobilização local na Cidade Tiradentes,
em direção à primeira Marcha das Mulheres Negras, realizada em Brasília em 18 de
novembro de 2015. Vários meses depois de entrevistada, a integrante do Mulheres
de Orí passou a trabalhar no CDCM MulherAção. Além de uma das integrantes do
Coletivo Nós, Mulheres da Periferia frequentar, coincidentemente, a mesma
paróquia onde se originou o Movimento de Saúde da Zona Leste, o coletivo
“interperiférico” formado por jornalistas realizou uma de suas oficinas previstas em
seu projeto aprovado pelo VAI na Casa Viviane; aqui vê-se, como nos exemplos do
Juntas na Luta e Semente Crioula, como a questão da institucionalização é mais
complexa do que aparenta, pois alguns dos serviços conveniados podem
eventualmente funcionar como pontes entre mulheres da periferia e o movimento
feminista mais amplo.122

Por último, um caso esclarecedor da desconexão entre os ciclos resultou


de minha observação participante de um sarau organizado pelo Movimento de
Mulheres de São Miguel em comemoração ao mês das mulheres no CDC (Clube da
Comunidade) Tide Setubal, em março de 2015; foi lá que conheci o Sarau do M.A.P.
e fiquei sabendo da existência de um núcleo feminista que depois assumiria o nome
Ser Vi Elas. As jovens do coletivo do ciclo do “Feminismo Periférico” com quem
conversei não sabiam que quem estava por trás do sarau para o qual elas foram
convidadas para declamar suas poesias era um movimento do ciclo do “Feminismo
Popular”...

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
Não foi incomum, por exemplo, que entrevistadas de diferentes gerações indicassem algumas
casas conveniadas para que eu realizasse novas entrevistas, em especial as Casas Viviane e
Anastácia, encarando-as mais como organizações da sociedade civil do que como braços do Estado
que executam uma política pública. Outro exemplo do caráter de sociedade civil organizada destas
duas casas conveniadas são os atos de rua – passeatas pelas ruas da Cidade Tiradentes – que elas
convocam anualmente, em julho, para protestar contra a violência contra a mulher.
! 212

Defendo que as continuidades na dimensão societal são secundárias


frente às descontinuidades. Apesar dos exemplos acima listados, o seu conjunto não
consegue comprovar uma conexão entre os ciclos políticos. Na realidade, todos têm
um caráter pontual, o que, para mim, comprova uma hipótese inicial de que a
gênese do ciclo atual não tem relação direta com o desenvolvimento do ciclo político
anterior. Ou seja, pelo que foi possível averiguar em minha pesquisa de campo, os
processos societais (formas de sociabilidade, matrizes discursivas, práticas políticas)
envolvidos no 1º ciclo não tem potencial explicativo para a compreensão da
emergência – também societal – do 2º ciclo. O que explicaria então tal
descontinuidade? Assim como na análise do declínio das entidades Lilith e Amzol
(presente ao final do Capítulo 2), aqui também pude identificar mais de um fator
atuando.

Um primeiro processo é o afastamento das ONGs feministas “centrais” do


trabalho de base na Zona Leste de São Paulo. No “Feminismo Popular” elas foram
uma das três matrizes discursivas identificadas, e até mesmo propiciando espaços
de sociabilidade cruciais, como a casa da SOF em São Miguel Paulista até meados
da década de 1990 ou as formações de PLPs da UMSP (cujo primeiro curso foi
frequentado por integrantes da Amzol) ou do Geledés (em parceria com o Espaço
Lilás do Oriashé). Como visto, algumas das entrevistadas pelas associações e
movimentos de mulheres chegam a formular sua atuação como “prática” e os
ensinamentos destas ONGs como “teóricos”, indicando a importância atribuída a
esta agência de mediação “externa”. No “Feminismo Periférico”, a relação
teoria/prática ou teoria/experiência também é central para as ativistas. Mesmo que
esta relação seja percebida e conceitualizada de formas diversas, em nenhum caso
há uma atuação semelhante de assessorias técnicas, que foram estruturantes do
ciclo político anterior. Tratei na subseção 3.2.2 da relevância da internet e das redes
sociais no acesso imediato (não mais mediado por aquelas ONGs ou outras
instituições) a discursos, teorias e debates feministas. Curiosamente, nem as ONGs
feministas cujas práticas e discursos são pioneiros em termos do feminismo negro,
como Geledés e Fala Preta, exercem um papel de assessoria aos coletivos recém-
criados (no máximo, há a leitura de textos divulgados pelo Geledés em seu site ou
página de Facebook). E, embora eu tenha enfatizado na subseção 3.2.1, a partir da
pesquisa de Ramos (2016), a contribuição do Geledés na década de 1990 com os
! 213

Projetos Rappers e Femini Rappers, não acredito ser possível atribuir à ONG o
incremento nos últimos anos da participação feminina nos movimentos culturais
periféricos, o qual é, em grande parte, autoconstruído pelas artistas, individual ou
coletivamente.123

Um segundo processo social relevante para explicar a descontinuidade


societal entre os ciclos são as profundas transformações pelas quais passou o
campo religioso (seja ele considerado em uma escala nacional – o Brasil como um
todo – ou regional – o lugar da Zona Leste na dinâmica religiosa da cidade de São
Paulo ou de sua Região Metropolitana). De um lado, há a desconstrução da vertente
progressista da Igreja Católica, aqui considerada em termos de matriz discursiva
determinante para o “Feminismo Popular” (a Teologia da Libertação) bem como em
termos de espaço de sociabilidade (as CEBs). A intervenção conservadora do
Vaticano na Arquidiocese de São Paulo e, mais especificamente, na Zona Leste da
cidade teve consequências não apenas no desmantelamento da atuação política de
organizações e movimentos a partir de paróquias e comunidades, mas também nas
vivências políticas, espirituais e cotidianas das mulheres militantes. De outro lado,
não se pode ignorar o processo de pluralização e diversificação religiosa, ainda mais
intenso na Zona Leste de São Paulo do que em outras regiões da cidade,
principalmente em termos do crescimento de igrejas evangélicas (pentecostais e
neopentecostais).

É importante, contudo, perceber dois fatores. Em primeiro lugar, a


religiosidade não é nem de longe o espaço de sociabilidade estruturante da gênese
do novo associativismo de mulheres, como foi a Igreja Católica nas décadas de
1970 e 80 e, portanto, deixou de se constituir enquanto uma matriz discursiva
incontornável de ações coletivas feministas. Hoje, são os movimentos culturais
periféricos os maiores responsáveis por ampliar a sociabilidade destas mulheres
para além do seu núcleo familiar e a partir dos quais emergem seus coletivos,
embora, eventualmente, algumas jovens tenham efetivamente se conhecido em
espaços religiosos. E, em segundo lugar, é equivocado pressupor que determinadas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
123
O “Feminismo Periférico” está sendo “inventado” a partir de suas próprias referências – como as
experiências práticas vividas pelas militantes e também as redes sociais – mas fundamentalmente
mobilizando e aprofundando estruturas de sentimento (WILLIAMS, 1977) difundidas em poesias e
letras de rap nas quais a questão racial é central de um modo que não estava presente no ciclo
anterior.
! 214

experiências religiosas sejam intrinsecamente bloqueadoras de ações coletivas em


prol dos direitos das mulheres, como pude atestar a partir da origem evangélica de
algumas das entrevistadas.

Em terceiro lugar, é muito evidente um contraste entre os ciclos com


relação ao lugar ocupado pelo sistema partidário. Havia no “Feminismo Popular”
uma forte presença do Partido dos Trabalhadores; como busquei apontar no final do
Capítulo 2, o declínio das entidades identificadas pode ser ligado à crise do PT, em
termos do seu enraizamento na vida cotidiana nas periferias urbanas, antes
garantido pelo trabalho de base facilitado por certas organizações e movimentos
populares urbanos. Já no “Feminismo Periférico”, a hegemonia da forma-coletivo
(auto-organizações horizontais) se alia a um certo apartidarismo, o que não significa
uma postura anti-partidária, mas somente que não há qualquer estruturação
partidária similar ao papel central assumido pelo PT anteriormente. Neste sentido, o
novo ciclo político pode ser beneficiado por políticas públicas oriundas de governos
petistas – diretamente, como no caso do Programa VAI124, principal financiador de
atividades dos movimentos culturais periféricos e dos coletivos feministas em
questão; ou indiretamente, como na democratização do acesso de mulheres jovens
periféricas ao Ensino Superior por meio do Prouni – porém não é devedor de
nenhum espaço de sociabilidade propiciado imediatamente pelo PT, enquanto
partido político atuando na sociedade civil e não como governo ou gestor.

As descontinuidades entre os ciclos com relação à dimensão societal


acima apresentadas – menor presença das ONGs feministas, pluralização do campo
religioso e ausência estruturante de partidos políticos – podem ser interpretadas
como “mudanças estruturais” nos contrapúblicos da Zona Leste de São Paulo: a
autocomunicação de massa e a digitalização de esferas públicas substituíram, de
certa maneira, a rede articuladora de ONGs feministas localizadas no centro-oeste
da capital; um campo religioso mais diversificado e a intervenção conservadora na
Igreja Católica local implicaram na quase anulação das CEBs como contrapúblicos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
124
Foi sancionada no final da gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) a Lei de Fomento à Periferia,
lei nº 16.496/2016, que incrementa o financiamento público municipal aos movimentos culturais
periféricos. Embora seja inegável que o VAI e, agora, esta nova lei são importantes para a
reprodução material das práticas dos coletivos feministas em questão, não é possível reduzir a
explicação sociológica do movimento à sua relação com a política pública; na realidade, muitas das
atividades dos coletivos são auto-financiadas ou realizadas voluntariamente. Não nego, contudo, que
a entrada em 2017 da gestão de João Dória (PSDB) será um duro teste “empírico” e político para a
interação que tem sido produtiva entre política pública cultural e movimentos periféricos.
! 215

enraizados na vida cotidiana das periferias urbanas; e a burocratização do PT,


abandonando o trabalho de base e se orientando para eleições, gabinetes e a
gestão pública, também alterou estruturalmente as possibilidades das classes
populares entrarem na cena pública por meio do sistema partidário.

Uma dimensão importante do conceito de “campo discursivo de ação” de


Alvarez (2014) é apontar a existência de uma hierarquia interna ao campo
(feminista): atoras que são mais ou menos visíveis, hegemônicas ou marginalizadas,
além da existência de nós articuladores. Com relação ao subcampo feminista na
Zona Leste, o arranjo hegemônico no primeiro ciclo/momento (do “Feminismo
Popular”) era a aliança entre mulheres migrantes do Nordeste e de Minas Gerais, as
Comunidades Eclesiais de Base e ONGs feministas (como CDD, CFSS, RME,
SOF/MMM e UMSP), enquanto que o arranjo minoritário – com menor visibilidade e
até mesmo com certa marginalização – era a aliança entre ONGs pioneiras do
feminismo negro (Fala Preta! e Geledés) e mulheres negras que construíram sua
identidade racial no movimento negro e, principalmente, em escolas de samba e
blocos afro – o que uma das entrevistadas chamou de “o mundo do samba”.
Havia, portanto, neste ciclo/momento, uma rede articuladora de ONGs feministas
com sedes na região centro-oeste da capital paulista. Um outro ponto articulador,
como já visto, foi o PT (assim como no segundo momento apontado por Alvarez,
caracterizado pelo descentramento e pluralização dos feminismos, além dos fluxos
verticais do gênero).

Já no segundo ciclo/momento (do “Feminismo Periférico”), a hegemonia é


indeterminada (como no terceiro momento de Alvarez, caracterizado pela
multiplicação de campos feministas e fluxos horizontais no interior destes
feminismos plurais). Acredito que isto se relacione com a inexistência de “nós
articuladores” ou “pontos nodais” comparáveis às ONGs feministas ou ao PT. Se há
alguma rede articuladora do subcampo feminista periférico, esta rede é digital:
seriam as esferas públicas proporcionadas pelas redes sociais da internet (e não
organizações muito menos partidos políticos). Como foi visto no decorrer da tese, o
ciclo dos coletivos feministas periféricos é muito mais orientado pela noção de
autorrepresentação – tanto inspirado pela produção cultural autônoma das periferias
! 216

quanto potencializada pelo caráter de autocomunicação de massa das redes sociais


digitais – do que por uma aliança entre classes125 .

Se há alguma hegemonia no segundo ciclo/momento, ela não se dá em


um plano organizacional e sim na dimensão discursiva, o que me leva da primeira
para a segunda dimensão que eu havia me proposto a analisar quanto às
(des)continuidades entre os feminismos “popular” e “periférico”. Assim como Alvarez
(2014, p. 35 e 37) detectou em suas entrevistas que até mesmo as mulheres jovens
brancas enfatizam a centralidade da questão racial e reconhecem privilégios e
desigualdades raciais, o mesmo aconteceu em minhas entrevistas com os coletivos
feministas periféricos. Eu já havia afirmado, na subseção 4.1.1, que a especificidade
da situação social das mulheres negras que moram nas periferias urbanas é
sistematicamente ressaltada por todas as jovens feministas entrevistadas. Neste
sentido é que talvez se esteja superando a “timidez” quanto à questão racial
identificada por Correia com relação ao que estou me referindo como o “Feminismo
Popular” na Zona Leste de São Paulo:

Neste trabalho percebemos o quanto a temática racial se insere de


forma tímida, inclusive no contexto do movimento de mulheres na
periferia. Embora este seja formado por maioria de mulheres negras,
elas também são influenciadas pela sociedade brasileira que
mascara o racismo. No segundo capítulo deste trabalho, quando
falamos da emergência de vozes das mulheres na periferia da Zona
Leste, isto entre os anos de 1980 e 1990, elas126 não falavam de
raça. Apesar de se autodeclararem negras, em sua maioria, o debate
racial ainda não era priorizado. (CORREIA, 2015, p. 48)

Da mesma forma, o que Santos (2015) identifica como sendo uma


novidade trazida pelo CDCM Casa Anastácia127 (uma “abordagem interseccional de
gênero, raça e classe”) é, na realidade, fruto de mudanças mais profundas, na base
da sociedade: no seio do associativismo da sociedade civil e dos contrapúblicos nas
periferias urbanas (inclusive com antecedentes que não podem ser invisibilizados –
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
125
O que poderia levar, nos termos de Alvarez, a um questionamento se o “Feminismo Periférico”
seria um subcampo ou então estaria se constituindo paulatinamente como um campo discursivo
autônomo, algo que só poderá ser respondido nos próximos anos.
126
A referência empírica da autora é a Associação de Mulheres da Zona Leste (Amzol).
127
Relembrando: trata-se de um serviço conveniado da assistência social municipal que atende
mulheres em situação de violência e que se localiza na Cidade Tiradentes, extremo leste de Sâo
Paulo, mesmo território no qual atuava o Espaço Lilás do Oriashé, no início dos anos 2000.
! 217

como costuma acontecer –, no pioneirismo do Oriashé e do Dandara, como busquei


apontar no Capítulo 2).

Se no “Feminismo Popular” a questão racial aparecia timidamente, agora


no “Feminismo Periférico”, ela alcançou uma certa hegemonia interna, graças, no
meu entender, às suas matrizes/redes discursivas (os movimentos culturais
periféricos e os feminismos nas esferas públicas digitais) e aos seus discursos
(feminismo negro – majoritário – e mulherismo africana – minoritário). Nas décadas
de 1980 e 90 várias mulheres negras trabalhadoras não priorizavam um recorte
racial em seus discursos e práticas, mas na década de 2010, até as mulheres
brancas periféricas afirmam a importância da questão racial para o seu ativismo.

Defendo que a centralidade da questão racial nos diagnósticos do


“Feminismo Periférico” pode ser explicada por uma relevância muito maior da cultura
negra e de esferas públicas negras128 com relação ao que ocorria no ciclo político
anterior. De um lado, a matriz discursiva dos movimentos culturais, com o
Movimento Hip Hop e os saraus periféricos tematizando a discriminação racial e
elaborando uma crítica antirracista de modo central em seus discursos. De outro
lado, a convivência de prognósticos divergentes – o feminismo negro e o mulherismo
africana – acessados de forma imediata por jovens mulheres periféricas por meio
das esferas públicas digitais: é nas comunidades – abertas ou fechadas – do
Facebook e em blogs que circulam informações e formações acerca do mulherismo
africana, assim como múltiplas páginas (também no Facebook) difundem o
feminismo negro, sem esquecer todas as páginas, sites, blogs e canais do Youtube
dedicados à estética e à beleza das mulheres negras em geral, que também
contribuem para a valorização da identidade e da cultura negras, como visto na
subseção 3.2.2.

Minha análise das entrevistas com os coletivos de jovens no Capítulo 4


evidenciou como seus discursos e práticas concebem ou conceitualizam a conexão
entre gênero, raça e classe: seja na recusa teórica do feminismo em prol do
mulherismo africana, seja na defesa de um feminismo negro com fundamentos
teóricos (como a interseccionalidade), seja na reivindicação de um feminismo negro

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
128
Além dos autores já mencionados na subseção 4.1.1 (BROWN, 1994; DAWSON, 1994;
GREGORY, 1994; HANCHARD, 1994), cf. para o conceito de “esfera pública negra”: Squires (2002) e
Pough (2004).
! 218

com base nas experiências e vivências cotidianas das próprias mulheres negras, ou
até mesmo na formulação ampla de um feminismo periférico que, mesmo sem
buscar rupturas com o movimento feminista tradicional, já não repete de modo
algum a invisibilização da questão racial no interior da situação social das mulheres
periféricas.

Se há uma aparência de descontinuidade entre os dois ciclos/momentos


no plano discursivo (o lugar secundário da questão racial no primeiro e sua
centralidade no segundo), argumento que a continuidade é, no fundo, seu núcleo
primário: o feminismo negro já era presente e atuante no “Feminismo Popular”, mas
de modo minoritário, depois passando da margem para o centro – para utilizar a
expressão título do livro de bell hooks (1984) – no momento em que emerge o
“Feminismo Periférico” e se constituindo na sua referência discursiva majoritária.

Passando da dimensão discursiva para a político-institucional (a terceira


dimensão que me propus aqui a analisar) retomo o processo de institucionalização
do primeiro ciclo/momento via CDCMs. Se for considerado o conjunto dos processos
sociais que foram tratados anteriormente, posso dizer que esta bem-sucedida
institucionalização também é devedora das características comuns e unificadoras do
ciclo político anterior: a existência de um partido político que canalizasse demandas
e reivindicações quando, eventualmente, estivesse no poder (municipal, no caso); e
a homogeneidade, de um lado, religiosa (em termos relativos: embora houvesse
outras religiosidades sendo praticadas, como o candomblé no caso das militantes
envolvidas com a temática das mulheres negras, havia uma clara hegemonia do
catolicismo progressista) e, de outro lado, discursiva (se for considerado o
compartilhamento da assessoria técnica externa de ONGs feministas “centrais”).

As associações e movimentos de mulheres do ciclo do “Feminismo


Popular” tinham sua atuação voltada principalmente para o atendimento direto a
mulheres em situação de violência, enquanto que os coletivos do ciclo do
“Feminismo Periférico” buscam lidar com linguagens artístico-culturais, inclusive por
conta da sua emergência a partir dos movimentos culturais periféricos, como
busquei demonstrar nos Capítulos 1 e 3. Parece-me que esta desconexão temática
– bem como a passagem da política pública de assistência social para a política
cultural enquanto principal interlocução com o Estado – se relaciona diretamente
com o processo de institucionalização do principal repertório de ação coletiva do
! 219

ciclo anterior – o atendimento jurídico e psicológico de mulheres que sofrem


violência – sob o formato de serviços conveniados.

Ao constatar a descontinuidade temática, não quero com isso dizer que a


questão da violência contra a mulher desapareceu no “Feminismo Periférico”, muito
pelo contrário: trata-se de um fenômeno estruturante, ainda hoje, da vida cotidiana
das mulheres periféricas. Contudo, há um deslocamento significativo que precisa ser
abordado, pois ela deixa de estar no centro da práxis dos movimentos de mulheres
periféricas – como estava no “Feminismo Popular” – e passa a ser mais um
elemento que pode ser abordado pelas diferentes linguagens artísticas mobilizadas
pelos coletivos das jovens. O seguinte episódio é emblemático do que estou me
referindo. Observei a inauguração do CRM São Miguel (cuja gestão foi, como já dito,
responsabilidade da Amzol) e, em determinado momento da programação, uma
jovem (neta da ex-integrante da Amzol que dá o nome para o CRM: Onóris Ferreira
Dias) declamou um poema de Elizandra Souza, bastante famoso no circuito feminino
e feminista dos saraus periféricos, chamado “Em Legítima Defesa”:

Só estou avisando, vai mudar o placar...


Já estou vendo nos varais os testículos dos homens, que não
sabem se comportar
Lembra da Cabeleira que mataram, outro dia?
E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade...

Só estou avisando, vai mudar o placar...


A manchete de amanhã terá uma mulher, de cabeça erguida,
dizendo:
– Matei! E não me arrependo!
Quando o apresentador questioná-la ela simplesmente retocará
a maquiagem.
Não quer estar feia quando a câmera retornar e focar em seus
olhos, em seus lábios...

Só estou avisando, vai mudar o placar...


Se a justiça é cega, o rasgo na retina pode ser acidental
Afinal, jogar um carro na represa deve ser normal...
! 220

Jogar a carne para os cachorros procedimento casual...

Só estou avisando, vai mudar o placar...


Dizem, que a mulher sabe vingar
Talvez ela não mate com as mãos, mas mande trucidar...
Talvez ela não atire, mas sabe como envenenar...
Talvez ela não arranque os olhos, mas sabe como cegar...

Só estou avisando, vai mudar o placar... (SOUZA, 2012, p. 48-49)

Pouco tempo depois da jovem terminar de declamar a poesia, uma


integrante da SOF, que também estava presente, pegou o microfone e fez questão
de fazer uma fala que se contrapusesse ao poema: no lugar da vingança com as
próprias mãos, ela defendeu que as mulheres têm que lutar para institucionalizar
serviços como o próprio CRM, para evitar que a situação chegasse a este ponto.

Como explica Balbino (2016, p. 163), o poema de Elizandra Souza tem


um “tom provocador, [para] chamar a atenção da sociedade para a violência sofrida
pelas mulheres”. Além de ter inspirado outras ações políticas e culturais (como o
movimento Mordaça, de 2011, que antecede e, de certa forma, antecipa a
campanha de 2015 #NãoPoetizeOMachismo, analisada na seção 3.3, com uma
temática similar), este poema foi o responsável pelo lançamento do primeiro livro da
poeta: “[...] eu mandei para algumas antologias, mas acabaram escolhendo poemas
que davam para todo mundo ler, porque é uma poesia que incomoda, não é
agradável nem para quem escreve nem para quem lê, né?” (TENINA apud
BALBINO, 2016, p. 164). Para que o poema fosse publicado, seria preciso que ela
própria se responsabilizasse por ele. A militante da ONG tratou o poema – incômodo
– de forma literal, como se a sua única interpretação possível fosse a convocação
pública de assassinatos vingativos dos homens agressores pelas mulheres. Deste
modo, contrapôs rigidamente à prática da linguagem artística (aberta à criação de
símbolos e imagens como forma de provocar choques e reflexões), a sua própria
prática institucionalizada, sem reconhecer a existência de um ativismo no plano do
simbólico. Este me parece ser, portanto, um desencontro emblemático entre os dois
ciclos políticos.
! 221

Alvarez utiliza as expressões mainstreaming e sidestreaming para


conceitualizar os “fluxos verticais” (em direção ao Estado) e os “fluxos horizontais”
(heterogeneidade interna aos campos e subcampos feministas), o que dialoga
diretamente com o que estou chamando de dimensão político-institucional. Os
CDCMs são exemplos paradigmáticos de um fluxo vertical: trata-se de um
reposionamento de atoras do campo feminista “para além da sociedade civil”, no
qual “associações da sociedade civil” são conclamadas a serem parceiras do Estado
(e de instituições internacionais) para “administrar projetos direcionados às mulheres
pobres e/ou de grupos raciais subalternizados” (ALVAREZ, 2014, p. 31). Em outro
momento, a autora afirma que “os coletivos feministas autônomos de antanho
pareciam dar lugar a ONGs especializadas e profissionalizadas” (ALVAREZ, 2014,
p. 26), o que, em parte, dá conta da passagem do Coletivo de Mulheres de São
Mateus ao CDCM Casa Cidinha (um convênio mantido pela ONG Associação Padre
Moreira em São Mateus) e do Movimento Abra os Olhos Companheira ao CDCM
Casa Viviane (um convênio mantido pela ONG AVIB em Guaianases/Lajeado).

Contudo, a noção de “fluxos verticais” não esgota o significado dos


CDCMs; outra rica categoria de Alvarez é, como mencionado no Capítulo 1, a de
“paradoxos transformadores”: conforme várias associações, movimentos e coletivos
de mulheres do primeiro ciclo/momento do “Feminismo Popular” se institucionalizam
por meio dos convênios com a SMADS (“fluxo vertical”), isto permite, de certa forma,
que as atividades das mulheres jovens se orientem para o campo cultural e
simbólico, menos institucionalizado. O processo de institucionalização alteraria a
“estrutura de oportunidades políticas” (TARROW, 1998), no sentido de que o
atendimento direto de mulheres violentadas não precisa mais ser um encargo da
auto-organização das mulheres, pois já há uma rede de serviços que realize esta
prática. Por mais que existam questões a serem debatidas – a violência permanece
um problema social central no cotidiano das mulheres das mais diversas idades nas
periferias urbanas, a tal ponto que a Rede Leste de Enfrentamento à Violência,
segundo me informaram as entrevistadas pelos CDCMs, não consegue dar conta da
“demanda” de atendimentos – a situação definitivamente se alterou com relação às
décadas de 1980 e 90.

Neste sentido, podemos interpretar a relação entre os dois ciclos na


dimensão político-institucional não como descontinuidade, mas como uma conexão,
! 222

a qual é possível enxergar com o auxílio da noção de “paradoxo transformador”: o


impulso institucionalizador do primeiro ciclo/momento permite o impulso não-
institucionalista do segundo ciclo/momento ao mudar estruturalmente o ambiente
político-institucional.

Resta saber o que acontecerá nos próximos anos, frente ao que está se
passando no momento em que termino de redigir esta tese. Uma série de medidas e
de viradas nas políticas públicas dos governos Michel Temer (federal) e João Dória
(municipal) podem ser interpretadas como constituindo um processo de
desinstitucionalização de conquistas históricas de vários movimentos sociais desde
o período da redemocratização. Vejo este processo principalmente a partir do
impeachment de Dilma Rousseff em 2016, mas com elementos que antecedem este
evento tais como: o recrudescimento da repressão ao direito de protesto desde
2013, o ajuste fiscal logo após as eleições de 2014 e a retirada do status de
ministério da SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres) e da Seppir (Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), já em outubro de 2015, sendo elas
fundidas, junto com a Secretaria de Direitos Humanos, em um Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. O governo Temer montou
seu primeiro ministério sem uma única mulher e radicalizou o enfraquecimento da
SPM, subordinando-a ao Ministério da Justiça.

Quando minha pesquisa de campo já havia sido encerrada, descubro, em


um ato de rua convocado em agosto de 2017 pelo movimento feminista
(principalmente pela MMM), que o encerramento abrupto do convênio para que a
Amzol gerisse o CRM São Miguel Paulista foi uma das primeiras ações do novo
prefeito. Uma outra pauta desta manifestação era a denúncia de que os CDCMs se
encontram em uma situação financeira precarizada, fruto de cortes de gastos, e que
seus contratos estão sendo renovados temporariamente mês após mês, gerando
instabilidade e incerteza, tanto para as funcionárias quanto para as mulheres
atendidas. O “fluxo vertical” do campo feminista, que consolidou a Rede Leste (e
outros CDCMs em todas as regiões da cidade de São Paulo), havia sobrevivido, até
agora, à alternância de gestões na Prefeitura: de Marta (PT) a Serra (PSDB) e
Kassab (PFL/DEM e PSD) até Haddad (PT). Mas a volta do PSDB ao poder
municipal com Dória pode ter um significado histórico de ruptura. Se a nova gestão
aprofundar esta desinstitucionalização, este processo terá impactos relevantes no
! 223

“Feminismo Periférico”, no associativismo de mulheres e na sociedade civil, da Zona


Leste e da cidade como um todo. Resta acompanhar nos próximos anos o sentido
deste desenvolvimento.

* * *

Retomando a! Introdução, chega o momento de confrontar duas falas de


militantes do “Feminismo Popular”. Afinal de contas, há uma continuidade geracional
na luta pelos direitos das mulheres (como poetiza a única integrante ainda viva do
Grupo Cultural Dandara) ou, como alerta a liderança do Movimento de Mulheres de
São Miguel, as mulheres que construíram o ciclo do “Feminismo Popular” estão se
aproximando da aposentadoria de suas militâncias políticas sem ter para quem
“passar o bastão”? No meu entender, ambas estão, em parte, com a razão. Se,
como busquei demonstrar no decorrer da tese, há efetivamente uma desconexão
societal entre os dois ciclos políticos e os processos sociais que os estruturam, nem
por isso as militantes mais antigas deixaram de quebrar “paralelepípedos”
(inclusive considerando a construção político-institucional dos CDCMs, o “fluxo
vertical” ao final do primeiro ciclo político na Zona Leste) ou as ativistas que
chegaram depois deixaram de receber “cascalho” como legado, mesmo que não
haja completa consciência desta herança histórica pelas últimas, nem uma
percepção abrangente da emergência do novo pelas primeiras. No caso das
pioneiras do feminismo negro no interior do “Feminismo Popular” ainda há este
legado discursivo indireto: mesmo que sua percepção subjetiva no tempo presente
seja muito mais melancólica do que vitoriosa, o recente adensamento das esferas
públicas negras permitiu que seus discursos saíssem de uma posição minoritária e
que fosse construída, hoje, uma hegemonia do antirracismo no interior dos coletivos
feministas periféricos.

O “Feminismo Periférico” surge em novos contextos societal (o que


chamei de “mudanças estruturais” dos contrapúblicos na Zona Leste) e político-
institucional (o que gerou um “paradoxo transformador”), para bater neste cascalho
“com o livro do discernimento e da sabedoria” – encontrei em minha análise
algumas dessas ferramentas, que minha interlocutora chamou de “a caneta”: a
! 224

escolarização, as redes sociais da internet, a arte, a poesia, a cultura – “e


transformar isso em pó”, para que as mulheres não fiquem “com o pé rachado”
nem “sangrem os pés” e possam, cada vez mais, andar em uma “terra bem
suave”, “mais suave do que a areia do mar”. O bastão não está sendo “passado”,
mas sim tomado: mulheres jovens estão, de maneira autônoma, reinventando e
reelaborando, a partir de suas próprias experiências e referências, os significados da
luta pelos direitos das mulheres – ser feminista periférica, ser feminista negra, ser
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! 236

ENTREVISTAS ANALISADAS

ASSOCIAÇÃO DE MULHERES DA ZONA LESTE (AMZOL). Depoimento.


Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo: residencial, 18 abr. 2015. 1 arquivo .wma
(4h 23min 53s).
ASSOCIAÇÃO FALA NEGÃO/FALA MULHER!. Depoimento. Entrevistador: Jonas
Medeiros. São Paulo: Associação Fala Negão/Fala Mulher!, 25 abr. 2015. 2 arquivo
.wma (1h 53min 26s).
CASA DA MULHER LILITH. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São
Paulo: residencial, 16 abr. 2015. 2 arquivos .wma (3h 21min 57s).
COLETIVO DE MULHERES DE SÃO MATEUS. Depoimento. Entrevistador: Jonas
Medeiros. São Paulo: residencial, 22 abr. 2015. 1 arquivo .wma (1h 41min 50s).
ESPAÇO LILÁS DO ORIASHÉ. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São
Paulo: residencial, 16 jun. 2015. 3 arquivos .wma (3h 16min 54s).
FAYOLA ODARA. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo:
Shopping Light, 08 jul. 2015. 3 arquivos .wma (1h 02min 21s).
GRUPO CULTURAL DANDARA. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São
Paulo: residencial, 10 e 17 jul. 2015. 8 arquivos .wma (6h 27min 48s).
JUNTAS NA LUTA. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo:
Biblioteca Cora Coralina, 26 mai. 2015. 1 arquivo .wma (2h 06min 31s).
M.A.N.A. CREW. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo:
Biblioteca Comunitária Solano Trindade, 11 jul. 2015. 1 arquivo .wma (2h 00min
05s).
MOVIMENTO DE MULHERES DE SÃO MIGUEL. Depoimento. Entrevistador:
Jonas Medeiros. São Paulo: Câmara dos Vereadores, 19 mar. 2015. 3 arquivos
.wma (1h 34min 35s).
MULHERIU CLÃ. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo: Centro
de Formação Cultural de Cidade Tiradentes, 06 mai. 2015. 1 arquivo .wma (2h
14min 51s).
MULHERES DE ORÍ. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo:
Galeria Olido, 13 abr. 2015. 1 arquivo .wma (1h 19min 07s).
SEMENTE CRIOULA. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo:
Centro Cultural da Juventude, 05 jul. 2015. 1 arquivo .wma (2h 10min 53s).
SER VI ELAS I. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo: Praça do
Forró, 09 abr. 2015. 1 arquivo .wma (1h 09min 26s).
SER VI ELAS II. Depoimento. Entrevistador: Jonas Medeiros. São Paulo: Terminal
da Lapa, 17 jun. 2016. 2 arquivos .wma (1h 31min 13s).
! 237

APÊNDICE 1
Guia para entrevistas semi-estruturadas em associações de mulheres

[0] Explicar a pesquisa: mapeamento do associativismo de mulheres na Zona Leste


de São Paulo

[1] Histórico
[1.1] Vamos começar conversando sobre o histórico da associação [do movimento,
do coletivo, etc.], mas antes: você poderia se apresentar para ficar registrado na gravação?
- Nome completo
- Data e local de nascimento [Se não nasceu em São Paulo, quando veio?]
- Bairro em que mora [Desde quando?]
- Ocupação
- Pratica alguma religião? [Onde é a igreja [etc.] que você frequenta?]

[1.2] Bom, você pode contar a história da associação [etc.]? [deixar correr de forma
mais ou menos livre, mas seguem perguntas de tópicos que não podem deixar de ser
tratados:]
- Qual foi a data de fundação?
- Como surgiu a ideia de fundar uma associação [etc.]?
- Quem eram os membros fundadores?
- A associação [etc.] passou por outras sedes além desta em que estamos? É
(eram) sede(s) própria(s)?
- Houve relação da associação [etc.] com alguma igreja ou religião em algum
momento?

[2] Organização interna


Agora eu queria entender como a associação [etc.] se organiza hoje em dia.
[2.1] Quantas pessoas são membros permanentes da associação [etc.]?
[2.2] Há cargos na associação [etc.]?
[2.3] Qual é a ocupação e a formação destas pessoas? Onde elas moram?
[2.4] Como os membros da equipe passaram a fazer parte da associação [etc.]?
[2.5] Vocês têm colaboradores que não são permanentes?

[3] Atividades, práticas e repertórios


[3.1] Quais são as atividades realizadas pela associação [etc.]?
[3.2] Quais são os bairros de atuação da associação [etc.]?
[3.3.] Vocês consideram alguma destas atividades como educativas?
[3.4] E como é o financiamento destas atividades?
! 238

[4] Base demandatária


[4.1] E quem é o público-alvo da associação [etc.]? Quem são estas mulheres? Qual é
a sua ocupação? Onde elas moram? Qual é a sua faixa etária?
[4.2] Como começa a relação com estas mulheres? Quem procura quem?
[4.3] Como vocês se comunicam e mantém contato com estas mulheres?
[4.4] E vocês encontram alguma dificuldade em motivar a participação destas
mulheres nas atividades da associação [etc.]? SIM: Qual é a maior? NÃO: Por quê?

[5] Conjuntura e ideologia


[5.1] Nestes X anos da associação [etc.] quais foram as principais conquistas que
vocês alcançaram?
[5.2] Vocês já tiveram alguma dificuldade ou obstáculo que vocês chegam a considerar
como uma derrota?
[5.3] Quem foram seus principais parceiros e aliados nesta caminhada?
[5.4] E quem foram seus principais opositores ou adversários?
[5.5] Para vocês da associação [etc.], qual é o principal problema que as mulheres
vivem na nossa sociedade?
[5.6] Qual é a causa ou origem deste problema social?
[5.7] Quais são as principais formas de combater este problema social?
[5.8] E como tudo isto se relaciona com as atividades que a associação [etc.] mantém
no seu dia a dia?
[5.9] Segundo os ideais compartilhados na associação [etc.], como seria uma sociedade
melhor para as mulheres?
[5.9] Considerando as últimas décadas, vocês consideram que a situação social das
mulheres melhorou, piorou ou permaneceu igual? Por quê?
[5.9] Você se considera pessoalmente feminista? Se sim, você consegue identificar em
qual momento da sua trajetória de vida isto passou a ocorrer?

[6] Indicações
Para ir encerrando a nossa entrevista...
[6.1] Vocês conhecem alguma pesquisa acadêmica que já foi feita sobre a associação
[etc.]?
[6.2] Por acaso vocês teriam textos, documentos ou outros materiais escritos produzidos
pela própria associação [etc.] ou sobre a associação [etc.] que poderiam ser disponibilizados
para a minha pesquisa?
[6.3] Para finalizar, vocês teriam sugestões de outras associações [etc.] que lutam pelos
direitos das mulheres na Zona Leste que eu possa conversar? Vocês têm os contatos destas
associações [etc.]?

Agradecer pela entrevista e oferecer a apresentação daqui a alguns meses de dos


resultados parciais da pesquisa caso a associação [etc.] tiver interesse.
! 239

APÊNDICE 2
Lista de páginas do Facebook

Este é um levantamento, realizado em julho de 2016, de todas as páginas


de Facebook curtidas por 24 integrantes de 7 coletivos feministas periféricos. O
critério de escolha foi a relevância das páginas para a formação e informação das
militantes no amplo campo dos direitos das mulheres, dos debates feministas, em
especial o feminismo negro, e temáticas relacionadas à estética e beleza da mulher
negra:

1 1º Vale Histeria
2 21º Parada do Orgulho LGBT SÃO PAULO 2017
3 25 de Julho - Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha
4 25 de novembro
5 33 Dias Sem Machismo
6 2015 - Marcha das Mulheres Negras
7 Á Africa em Nós.
8 A COR ERA VIOLETA
9 A Favor da Despenalização do Aborto
10 A liberdade ainda que tardia
11 A mãe preta
12 A Menina Do Vestido Vermelho
13 A Mulher negra e o Feminismo
14 A Negra
15 A Paixão de Claudia
16 A Poderosa Beleza
17 A Revolta da Lâmpada
18 A Vadia Que Sua Mãe Sonhou
19 A Voz do Povo Negro
20 A voz não tem cor
21 A's Trinca
22 Abayomi Cabeleireiras
23 Aborto Seguro - Brasil
24 Abuso e violência "NÃO"
25 Acampamento de Feminismo Interseccional
26 Aceitação Afro
27 Acidez Feminina
28 Acontece Comigo
29 Activistas de Angola Pelo Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas
30 Adelinas - Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas
31 Advogadas Feministas
! 240

32 Africa Fashion Week Brasil - AFWBR


33 Africaness
34 Africanidades
35 Afrika - Associação Frida Kahlo
36 Afro Tranças
37 Afrobella
38 Afrocentricitude
39 Afrodescendentes
40 AfroGrafiteiras
41 Afroguerrilha
42 Afronta
43 Afrontando acessórios e beleza
44 Agência Patrícia Galvão
45 Águas da cabaça
46 Ajude uma Mulher
47 Alana Tamira
48 Aline Soares Negríndia e sua escrita
49 Alma Preta
50 Alexandra Loras
51 Amanda Negrasim
52 Amanda Pina
53 Amber Rose
54 AMNB-Articulacão
55 Amor Afrocentrado
56 Amor Entre Mulheres
57 Amor Negro Amor.
58 Anabela Gonçalves
59 Anarcomacho desnecessário
60 Anarcodepressão
61 Anastácia Contemporânea
62 Ancestralidade Africana
63 Angela Davis
64 Annie Gonzaga Lorde's
65 Aparelha Luzia
66 Aqualtune Associação
67 Arde Patriarcado
68 Ariane Molina | Maquiagem
69 Arpilleras: bordando a resistência
70 Arquivos Feministas
71 Arte das Mina
72 Arte das Pretas
73 Artemis
74 Articulação de Mulheres Brasileiras
75 As guerreiras do rap
76 As Marias Do Brasil
77 As Mina na História
! 241

78 As Negαs Do Ziriguidum.
79 As Rosas Falam - Sarau das Rosas
80 As Tavares
81 As Trapeiras
82 As Vantagens de se Enrolar
83 Ashanti
84 Assata Shakur em Português
85 Assistência Jurídica para as Minas
86 Assistindo Mais Mulheres
87 Assoc. Nacional de Mídia Afro - ANMA
88 Associação de Mulheres da Zona Leste
89 Associação de Mulheres de Ação e Reação
90 Associação de Mulheres do Grajaú
91 Assuma Sua Negritude
92 Atitude Feminina
93 Ato do Oito de Março - SP
94 Atóxico / Renata Nolasco
95 Audácia
96 Audre Lorde
97 Autoestima- GG
98 Autonomia à Margem
99 Bailando & Brindando
100 Banda A Mulherada
101 Barbie sem Ken
102 Bastet QUEEN
103 Beauvoir comenta
104 Beleza afro
105 Beleza Natural
106 Belezas de Kianda
107 Bell Hooks
108 Bella Fernandes
109 Belocrespo ( By Amanda Gil )
110 Beneditas - dos terreiros aos bailes blacks
111 Bi yourself
112 Bi: Notes for a Bisexual Revolution
113 Bi-sides
114 Bia Doxum
115 Bicha Nagô
116 Bicudas
117 Binóculos
118 Bitraduzido
119 Bissexual
120 Bissexualizando
121 Bixa, Preta e Pobre
122 Black Brasil
123 Black Dondocas
! 242

124 Black Girls Libertárias


125 Black is power
126 Black Love Feelings
127 Black women
128 Bloco das Pretas
129 Blog das Cabeludas - Crespas e Cacheadas
130 Blogagem Coletiva Mulher Negra
131 Blogueiras feministas
132 Blogueiras Negras
133 Blogueiras Negras Teen
134 Boutique de Krioula
135 Brechó das Pretas
136 Bruna de Paula
137 C.A.F Coletivo de Ação Feminista
138 cabeleira crespa
139 Cabelo - Ruim é o Seu Preconceito
140 Cabelo enroladinho
141 Cabelos Afronaturais/style Black
142 Cabelos Crespos e Cacheados por Gêdeane Ferreira
143 Cacheadas de Salvador pro Mundo.
144 Cachos & Contos
145 Cachos eh Trasição
146 Cachos liberte-os
147 Cadê nossa boneca?
148 Café, Tesão, Feminismo e Revolução
149 Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo
150 Campanha Chega de FIU FIU / Olga
151 Canal das Bee
152 Canal Patrícia Avelino
153 Candaces Moda Afro
154 Candaces: Identidade e Beleza
155 Capitolina
156 Capulanas Cia de Arte Negra
157 Carolina em HQ
158 Carolina Maria de Jesus
159 Cartazes & Tirinhas LGBT
160 Cartilha LGBT Eleições 2012/2014
161 Casa Anastácia
162 Casa das Crioulas
163 Casa Laudelina de Campos Mello
164 Católicas Direito de Decidir
165 Católicas por el Derecho a Decidir - España
166 CCM Itaquera - Centro de Cidadania da Mulher
167 Chat GLS
168 Chega de assédio
169 Chega de Fiu Fiu
! 243

170 Chimamanda Ngozi Adichie


171 Cidade das Mulheres
172 Cidadania LGBT - Embu das Artes
173 Cidinha da Silva
174 Círculo Palmarino
175 Clara Averbuck
176 Claudias Eu Negra
177 Clube das Rainhas
178 Coco de Mulheres
179 Coerência feminina.
180 Col. Feminista Classista Ana Montenegro SP
181 Cola com a Mãe
182 Coletiva Catirina
183 Coletiva Trajetórias Feministas
184 Coletiva Vulva da Vovó
185 Coletive Friccional
186 Coletivo Abisogun
187 Coletivo Audre Lorde de Lésbicas e Bissexuais Negras e Afrodescendentes
188 Coletivo Bichx Soltx - Homens de Saia
189 Coletivo Cabelo Duro
190 Coletivo Claudia Silva
191 Coletivo Contra Maré
192 Coletivo Cultural Esperança Garcia
193 Coletivo de Estudantes Negrxs da UFF
194 Coletivo de Mulheres da Psicologia UFES - Filhas de Gaia
195 Coletivo de Mulheres Matilde Magrassi
196 Coletivo de Mulheres Negras Aqualtune
197 Coletivo de Mulheres PUC-Rio
198 Coletivo de Negras e Negros - EACH
199 Coletivo DiadeNega
200 Coletivo Encrespa
201 Coletivo Fayola Odara
202 Coletivo Feminista - FMU
203 Coletivo Feminista Atena
204 Coletivo Feminista Candaces FGV
205 Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro - Estado de São Paulo
206 Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro Minas Gerais
207 Coletivo Feminista Claudia Maria
208 Coletivo Feminista GENI
209 Coletiva Feminista Lilitu
210 Coletivo Feminista Maria Bonita - História e Geografia USP
211 Coletivo Feminista Maria Dos Pimentas
212 Coletiva Feminista Non Gratas
213 Coletivo Feminista Rosa Viva
214 Coletivo Flor de Íris
215 Coletivo Frida Kahlo Ufmg
! 244

216 Coletivo Jandira


217 Coletivo Juntas na Luta
218 Coletivo Leila Diniz
219 Coletivo LGBT Comunista - SP
220 Coletivo Libertas
221 Coletivo Marias & Amélias de Mulheres Analistas do Comportamento
222 Coletiva Maria Sem Vergonha
223 Coletivo Na Raça
224 Coletivo NADA Frágil
225 Coletivo Negrada
226 Coletivo NegraSô
227 Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira - FND/UFRJ
228 Coletivo Negro Dandara UNESP/Assis
229 Coletivo Negro Kimpa
230 Coletivo Obá
231 Coletiva Otim
232 Coletivo Pensar Negro
233 Coletivo PretáPretô
234 Coletivo Rainhas Negras Artepoliticafeministanegra
235 Coletivo Resistência Cultural
236 Coletivo Rua das Vadias
237 Coletiva Soelas
238 Coletivo Vermelha
239 Coletivo Voe
240 Coletivo Yalodê de Mulheres Negras do Maranhão
241 Coletivo Yalodê-badá
242 Comboio
243 Comitê Impulsionador Sergipe Marcha Mulheres Negras
244 Comitê pela Abolição da Prostituição
245 Como assim "não é feminista"?
246 ComunaDeusa
247 Comunicadoras Negras
248 Conceição Evaristo
249 Conceição Evaristo
250 Conexão África
251 Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
252 Congresso Internacional sobre o Pensamento das Mulheres Negras
253 Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo
254 Contra o Machismo na Esquerda
255 Contra o Racismo nas Telenovelas
256 Crespas Divando por Raquel de Souza
257 Crespas.com
258 Criloura
259 Crusp/Usp: Pesadelo das Mulheres
260 Curso de formação e gênero e politicas publicas Guaianases e Cid Tiradentes
261 Customizações Dandara. Por: Ingrith Shabazz
! 245

262 Cynd Moda Praia Plus Size.Valorizando suas Curvas.


263 Dandara - Mulher Guerreira
264 Dandara Moda Preta
265 Danilo Jequitili
266 Débora Garcia Poetisa
267 Débora Ninja
268 Dedilhadas Vlog
269 Defesa pessoal pras minas
270 Desamélia
271 Desenhos de Carvalho
272 Desintoxicação do Romantismo
273 Diário de uma mãe solteira
274 Diário Feminista
275 Diários de uma feminista
276 Dibujos de Capucha
277 Dicionário Subversivo
278 Dina Di Eterna Rainha Do Rap
279 Divas & Crespas - tipo 4
280 Divas Parideiras
281 DiversaS - Feminismo, Arte e Resistência
282 DJ Luana Hansen
283 DNA - África - Diásporas das Nações Africanas
284 Dominatrix
285 Dona Fodona
286 DoryDeOliveira
287 Doutora Josefina Serra
288 Dr. Clenora Hudson - Weems
289 É amor, só que não
290 É pela vida das mulheres
291 Ei Mana
292 Efêmmera
293 ElaCrua
294 Elas contam
295 ELAS Fundo de Investimento Social
296 ElesPorElas - HeForShe Brasil
297 Elizandra Souza
298 ELLA
299 Elo Delas
300 Elogie uma irmã negra
301 Em alto e bom tom
302 Em construção
303 Em Negritto
304 EmilyCottonTop
305 Empoderar-te
306 Empoderadas
307 Empodere Duas Mulheres
! 246

308 Empodere suas raízes


309 Encrespa Geral
310 Encrespalhando
311 Encrespando
312 Enegrecer - Coletivo Nacional de Juventude Negra
313 Enesso Feminista
314 Entre Irmãs
315 Entre Luma e Frida
316 Eparrei
317 Era de cisperar
318 Escreva Preta, escreva.
319 Esquerdogata Felinazi
320 Espelho de Vênus
321 Espertirina Martins.
322 Eta mídia machista
323 EU AMO Homens Negros
324 Eu Amo Meu Cabelo
325 Eu Empregada Doméstica
326 Eu não mereço ser estuprada
327 Eu vejo flores em você
328 Eu sou Neguinha
329 Eva Lima
330 Faça amor, não faça chapinha
331 Fala Guerreira
332 Fala, Mulher Preta
333 FalaNegao/FalaMulher
334 Fanfarrônicas
335 Favela: Quilombo Urbano - B.C. Negras Raízes
336 Feira Cultural Preta
337 Felinismo
338 Femicídio no Brasil
339 Feminart
340 Feminiciantes
341 Feminicidade
342 Feminino Cangaço
343 Feminino Quântico
344 Feminino Sagrado
345 Feminismo às raízes
346 Feminismo de 3/4
347 Feminismo Deboista
348 Feminismo Laverniano
349 Feminismo lésbico
350 Feminismo Materno
351 Feminismo Negro Interseccional Campinas - Coletivo Lélia Gonzalez
352 Feminismo Periférico
353 Feminismo Poético
! 247

354 Feminismo pra quê?


355 Feminismo Radical
356 Feminismo Radical Didático
357 Feminismo Sem Demagogia - Original
358 Feminista Cansada
359 Feministas da Leste
360 Feministas do brasil
361 Feministas Grelo Duro
362 Feministas Revolucionárias
363 Festival Nosotras Estamos en la Calle
364 Filmes Feministas
365 Flora-se
366 Florescer
367 For Harriet
368 Fórum Estadual de Mulheres Negras/SP
369 Frases Jout Jout
370 Frente de Mídias Negras
371 Frente de Mulheres Pela Democracia
372 Frente Feminista Casperiana Lisandra
373 Frente Feminista da Puc-Sp
374 Frente Nac. de Mulheres no Hip Hop FNMH2 SUL
375 Frente Nacional Mulheres no Hip Hop - BR
376 Frente Nacional Pela Legalização do Aborto
377 Fulô Brasil
378 G.E. de Relações Étnico Raciais
379 Gabriela Moura
380 Gabrielle Costa
381 GADVS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual
382 Gata Crespa Cacheada por Aline Silva
383 Gayzistas, Feminazis e Travessuras com Capiroto contra a Família
384 Geledés Instituto da Mulher Negra
385 Gênero e Materialismo
386 Gênero, Raça e Etnia
387 Gente Cacheada
388 GERI - IPJ- (Grupo de Estudos por Relações Igualitárias)
389 GGF A Família
390 Ginecologia Natural
391 Ginga Movimento de Mulheres
392 Gordinhas e Suas Curvas
393 GOZA
394 Graffiti and girls
395 Grafites Feministas
396 Grandes Mulheres
397 Griotagem Encontros
398 Grito da Sereia
399 Grupo Banto - Negros e Negras da UFRJ
! 248

400 Grupo Cultural Balé Das Iyabas


401 Grupo de Coco Semente Crioula
402 Grupo De Estudos Interdisciplinares Carolina Maria De Jesus Puc-Rio
403 Grupo Mulher Maravilha
404 GT Pesquisa Saúde LGBT - Estação São Paulo
405 Guia Lgbts (Glbts)
406 Herdeiras de Aqualtune Produções
407 Heróis na Luta Contra o Racismo
408 HIP HOP Feminino
409 HIP HOP Mulher - Ponto de Cultura
410 HiphopFeminino Portugal
411 Histórias cotidianas de uma negra.
412 Histórias de Todas as Cores
413 Hoje eu quero voltar sozinha
414 Hollaback São Paulo
415 Homem Feminista de Verdade
416 Homens contra o machismo
417 I Love Being A Black Woman
418 Ibrat - Instituto Brasileiro De Transmasculinidades
419 II Seminário Nacional de Lésbicas Negras e Bissexuais
420 ILGA World
421 Imprensa Feminista
422 Inanna
423 Indiretas Crespas
424 Indiretas Feministas
425 Inegra
426 Inimiga da Palavra
427 Instituto AMMA Psique e Negritude
428 Instituto Búzios
429 InterseccionArte
430 Isa Penna
431 Issa Paz
432 Janete Pieta
433 Jenyffer Nascimento
434 Jéssica Balbino
435 Jô Freitas- Artista
436 Jornal Mulier
437 Jornalismo de Mulher
438 Jornalista Sandrah Sagrado
439 Jout Jout Prazer
440 Juntas Na Luta
441 Jurema Batista
442 Juventude Negra Feminina de Santa Maria - RS
443 Kaol Porfírio
444 Kwanzaa Brasil
445 Ladies Graff
! 249

446 Lado M
447 Latinidades Afrolatinas
448 LBL-SP
449 Legaliza O Aborto 28 De Setembro
450 Lei Maria da Penha. Pelo fim da Violência contra a Mulher.
451 Leia Mulheres Negras
452 Lelê Paes
453 Lélia Gonzalez
454 Lésbicas Negras
455 Letícia fez um blog
456 Letra Machista
457 Levante Mulher
458 Levante Negro
459 LGBT Brasil
460 Liga Feminina de Mc's
461 Liga Feminina de Mc's - São Paulo
462 Liniker
463 Livraria Africanidades
464 Livre de Abuso
465 Lovelove6
466 Lua Rodrigues
467 Lugar de Fala
468 Lugar de Negra
469 Luta que pariu
470 Luz Ribeiro
471 M'Ana - Mulher conserta pra Mulher
472 Machismo chato de cada dia
473 Madame Sartori
474 Mães pela Diversidade
475 Mães pela Igualdade 
476 Magá Moura
477 Mais uma mulher morta
478 Makeda Cultural
479 Malkia Tranças
480 MAMA
481 Mamatraca
482 MAMU - mapa de coletivos de mulheres
483 MANA Crew
484 Manas e Monas
485 Manas na luta - ML
486 Manifesto Crespo
487 Manifesto Grrrl Power
488 Maquiagem para Negras
489 Maquiagem para negras por Josi Helena
490 Marcha das vadias - Aracaju, Sergipe.
491 Marcha das Vadias Rio de Janeiro
! 250

492 Marcha das Vadias Sampa


493 Marcha do Orgulho Crespo Brasil
494 Marcha Mundial das Mulheres
495 Margens
496 Marcia Tiburi
497 Mari Pretas de Verdade.
498 Maria, vem com as outras
499 Maria Lacerda - uma zine feminista
500 MariaLab
501 Marias Mahin
502 Mariana Felix
503 Maternidade e o Feminismo
504 MC Cacau Rocha
505 MC Soffia
506 Mel Duarte
507 Memória Feminista
508 Menina Cachos
509 Menina Negra Linda do Cabelo Rosa.
510 Meninas Black Chique
511 Meninas Black Power
512 Meninas de cabelos crespos
513 Meu Professor Abusador
514 Meu turbante Minha coroa
515 Minha Beleza é ÚNICA
516 Mjiba em Ação
517 MML- Movimento Mulheres em Luta Oeste do Paraná
518 Moça, a culpa não é sua.
519 Moça, você é machista
520 Moça, você é mais poesia que mulher
521 Moça, você é maneira
522 Moçe, Você É Racista
523 Moço, você é machista
524 Moda de Negona
525 Movimento de Mulheres Olga Benário - SP
526 Movimento Mulheres em Luta DF
527 Movimento Negro Unificado Brasil- MNU
528 Mujeres Creando
529 Mulher-Cerveja & Machismo
530 Mulher Em Movimento - O Lado Forte do Hip Hop
531 Mulher Macho, Sim, Senhor
532 Mulher Negra
533 Mulher Negra - Voz
534 Mulher Negra e Cia
535 Mulher Sagrada - Corpo, Mente e Espírito
536 Mulher, negra e candomblecista. O que é conviver numa sociedade tão.
537 Mulheres Contra Cunha
! 251

538 Mulheres contra o Islam


539 Mulheres da História
540 Mulheres de Odun
541 Mulheres de ORÍ
542 Mulheres de Pedra
543 Mulheres de Verdade
544 Mulheres Empoderadas
545 Mulheres Empoderadas - Revelando Doulas
546 Mulheres Escritoras
547 Mulheres fazendo coisas
548 Mulheres Guerreiras
549 Mulheres Livres
550 Mulheres na História
551 Mulheres na Luta
552 Mulheres Negra na Mídia
553 Mulheres Negras
554 Mulheres Negras - Cultura e Protagonismo
555 Mulheres Negras Capixabas
556 Mulheres Negras em Pauta - Formação Política e Advocacy
557 Mulheres Negras Guarulhos
558 Mulheres nos Quadrinhos
559 Mulheres que escrevem
560 Mulheres Quilombolas do Espírito Santo "Constância d'Angola"
561 Mulheriu CLÃ
562 Museu do Negro-RJ
563 Música Feminista Brasileira
564 Na Algibeira
565 Não Me Kahlo
566 Não sou preconceituoso, mas
567 Não Tem Conversa
568 Não Troca A Receita Cacheadas
569 Não, não é machismo. É só minha opinião.
570 Nãopoetizeomachismo
571 Negahamburguer
572 Negra e Lésbica
573 Negra Mulher Bela
574 Negra Rosa
575 Negra Vaidosa
576 Negração Negração
577 Negras
578 Negras CRiativas
579 Negras em Movimento
580 Negras Plus Size
581 Negras Raízes
582 Negrita Gordiva
583 Negro é lindo
! 252

584 Negro, Construindo Memórias


585 Negros perfeccionistas
586 Nenhuma Mulher Merece Ser Estuprada
587 Nerdivinas
588 NETEG - Núcleo de Estudos do Trabalho e Gênero
589 Ni Una Más
590 Ni una menos
591 NIAH
592 NinFemme
593 No Shave Forever
594 Nofluxo. Sabe o que ela quer?
595 Nome Social é Direito
596 NÓS
597 Nós, Madalenas
598 Nós, mulheres da periferia
599 Nós da Diáspora
600 Nosso Coletivo Negro
601 Novas Regras da Internet das Minas
602 Nu Real
603 Núcleo de Consciência Negra
604 Núcleo de Consciência Negra - Teresa de Benguela
605 Núcleo de Consciência Negra de Alfenas
606 Núcleo Feminista de RI da USP
607 Núcleo Feminista Mulheres Contestam
608 Núcleo Impulsor do Estado de São Paulo da Marcha das Mulheres Negras 2015
609 Núcleo Negra Zeferina
610 NUMAS - Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença
611 O Clã das Amoras
612 O Diário de uma Cacheada
613 O Grelo Falante
614 o lado bi
615 O machismo nosso de cada dia
616 O mundo no Black Power de Tayó
617 O Transviado
618 Observa Gênero
619 Ocupação Preta
620 Odara - Instituto da Mulher Negra
621 Odisseia das Flores
622 Ofensiva Negritude
623 OMNI
624 ONU Mulheres Brasil
625 Ori Odara
626 Oxente Preta
627 Pachamama "Ciclos do Sagrado Feminino"
628 Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero / Cadernos Pagu
629 Pagufunk
! 253

630 Palavra Feminina


631 Palavrapreta
632 Pan-Africana
633 Panmela Castro
634 Pão e Rosas Brasil
635 Pão e Rosas Caxias do Sul
636 PAOLA AFRO HAIR
637 Papo das Mina
638 Papopoetico
639 Para Tudo
640 PARATODAS Brasil
641 Pelo Fim Do Machismo Na Ufpr
642 Pendurado no firmamento
643 Pensamento Feminista
644 Perifeminas
645 Periferia Trans
646 Pérolas Negras
647 Phamela Godoy
648 Pipa Azul
649 Plataforma PRETA Brasil
650 PLC 122/06
651 Plus Size Depressão
652 PoAme-se Mulher
653 Por um Hip Hop mais Igualitário
654 Por uma cerveja Feminista
655 Porra Sapatão
656 Portal Mulheres no Hip Hop
657 Prapreta
658 Precisamos falar de gordofobia
659 Presos Que Menstruam
660 Preta-Rara
661 Preta,você é Linda.
662 Preta e Acadêmica
663 Preta é Cor de Pele
664 Preta Flor
665 Preta Pariu
666 Preta Portê Filmes
667 Pretas Candangas
668 Pretas Peri
669 Pretas Unidas
670 Pretas.
671 PretoNuBranco
672 Professora Feminista
673 Professora Luiza Coppieters
674 Promotoras Legais Populares de São Carlos
675 Promotoras Legais Populares de São Paulo
! 254

676 Provoc_rte Arte Feminista de Latinoamérica


677 Proyecto Kahlo
678 Psicologa Lucila Faustino - Negritude Psicologia e Afins
679 Psique Feminina
680 Psiqué Vulva
681 Putinhas Aborteiras - Anarcafunk e Anarcarap
682 Que nega é essa?
683 Questionamentos Femininos
684 Quilombhoje Literatura
685 Quilombo Das Guerreiras
686 Quilombo Mulheres Negras
687 R.T.F" Reconoce TU Fortaleza"
688 RadFem Resiste
689 Radmaravilha
690 Rainha Nzinga
691 Rap Di Mina
692 Rap Feminino
693 Red Feminista Antimilitarista
694 Rede Afro LGBT
695 Rede de Mulheres Negras da Bahia
696 Rede de Mulheres Negras Empreendedoras de SFConde - Remesfc
697 REDE GRUMIN DE MULHERES INDÍGENAS
698 Rede Mulheres Negras - PR
699 Rede Relações Livres - Núcleo São Paulo
700 Rede Rosa De Mulheres Violeta
701 Regina Navarro Lins
702 Representativid'arte
703 Resistência Anti-Lesbofobia
704 Resistência Feminista
705 Respeito se aprende na Escola
706 Revista Afirmativa
707 Revista Geni
708 Rima Mina
709 Rizka
710 Rosa Shokei
711 Rosa Negrais Afro Shop
712 Rubia Fraga RPW
713 Samba das Mina
714 Samba das pretas
715 Samba para Marcha das Mulheres Negras - SP
716 Sambadas
717 Sampa LGBT
718 SANTA VULVA
719 Sapabonde
720 Sapatomica
721 Sarará Crioula
! 255

722 Sarau das Mina


723 Sarau das Pretas - SP
724 Sarau DasPrê
725 Sarau Vermelho - Arte Independente
726 Se a bíblia fosse feminista
727 Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres
728 Semana de Sexualidade e Gênero "Heleieth Saffioti"
729 Sementeiras de Direitos
730 Seminário Gênero em Questão - Enesso Região VII
731 Seminário Gênero, Raça e Pobreza
732 Seminário Internacional Cultura da Violência Contra as Mulheres
733 Senhoras Obscenas
734 Ser Mulher no Mundo
735 Ser Outra
736 Ser vi elas
737 Ser.tão Feminista
738 Sernegra IFB
739 SevenGirl's Crew - Desativada.
740 Sexo Ágil
741 Sexo e as negas, não me representa
742 Sharylaine
743 She-Ra Feminista
744 Sheruba Goferay Trança e Penteado Afro
745 Simone de Beauvoir
746 Simpósio NEIM
747 Sinhá Rad
748 Siririca
749 Slam das Minas
750 Slam das Minas - SP
751 Só Preta Sem Preconceito
752 Sobre Mulheres e Gênero
753 SOF Sempreviva Organização Feminista
754 Somos Todas Verônica
755 Sou Dandara
756 SOU Gordinha SIM
757 Sou negro,sim.
758 Soul Black, Soul Power
759 Soul Negra
760 Soul Vaidosa
761 SPMulheres
762 Spotted das Sapatão
763 Sra. Delícia
764 Subvertidas
765 Sueli Carneiro
766 Suicide Girls
767 T de Revolução
! 256

768 T.Braids Africanize Identidade é seu Estilo


769 Tá, mas e ozomi?
770 Tambores de Safo
771 Taren916
772 Tássia Reis
773 Tata Nzinga
774 TATI BOTELHO
775 Tayla Fernandes - da lua à luta
776 TEDx Parque das Nações Women
777 Textos de Mulheres negras para Claudia Silva Ferreira.
778 Thata Alves
779 The Anarcho-Feminist
780 The Black Marriage Movement
781 Think Olga
782 Tia Má
783 TODO BLACK É POWER
784 TOMN - Teatro da Oprimida Mulheres Negras
785 Top Plus Size Afro'Brasil
786 Traduzindo Empoderamento
787 Transativismo ou masculinismo?
788 Transempregos
789 Transfeminismo
790 Transição Capilar - Pra ser bonito tem que ser natural
791 Travesti Reflexiva
792 Trepadeiras Não Calarão
793 tudo sobre minha mãe
794 Turbante.se
795 Twerk Das Minas
796 Um Grito contra o Estupro Silencioso
797 Um poema para Helena
798 Uma mãe lésbica
799 UNEGRO - São Paulo
800 União de Mulheres de São Paulo
801 União Popular de Mulheres UPM
802 Universidade Livre Feminista
803 Urgir
804 Útero em Pauta
805 Vai ter volume sim
806 Vamos falar sobre violência obstétrica?
807 Vamos juntas?
808 Velcro
809 Ventre Feminista
810 Veta Mais - Unidas contra o PL117
811 VisiBi
812 Vítimas de anticoncepcionais. Unidas a favor da Vida
813 Viviane Mosé
! 257

814 Você é Livre?


815 Vote numa feminista
816 Vulva Revolução
817 Women Help Women
818 Xamanismo para Mulheres - Escola de Saberes e Práticas Ancestrais Feminina
819 Xênia França
820 xereca
821 XIII ENUDSG
822 Xotanás
823 Yalodê
824 Ysani Kalapalo
825 Yzalú
826 Zine dos Omi
827 Zine Feminista - Kólica Social
828 Zulmira somos nós

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