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Livrar-‐se
ao
Tempo
ou
o
sentido
da
psicoterapia
Alexandre
Valverde
Efêmeros!
Que
somos?
Que
não
somos?
O
homem
é
o
sonho
de
uma
sombra.
Píndaro
Há
dez
anos
submeti-‐me
a
um
processo
de
psicoterapia
que
se
estendeu
por
quatro
anos.
Na
época
iniciava
meus
estudos
de
psiquiatria.
Pouco
tempo
depois
passei
a
exercer
a
função
de
psicoterapeuta,
a
qual
me
dedico
até
o
momento.
Não
tenciono
expor
aqui
as
contingências,
fatos
e
questões
específicas
que
me
levaram
a
começá-‐la,
nem
tampouco
descrever
seus
desdobramentos,
mas
tentar
encontrar
um
sentido
geral,
um
denominador
comum,
se
me
é
permitida
essa
intrusão
matemática
no
campo
da
nossa
discussão,
que
possa
trazer
à
luz
uma
resposta
à
questão:
o
que
é
isso,
a
psicoterapia?
Esse
sentido
geral
que
busco
não
é
algo
que
possa
ser
apreendido
a
partir
da
descrição
de
um
caso,
tampouco
deve
se
revestir
dos
adereços
pomposos
de
uma
linguagem
reservada
a
iniciados.
A
ideia
de
começar
este
texto
afirmando
que
submeti-‐
me
a
uma
psicoterapia
tem
como
intento
reconhecer
o
trânsito
(que
se
pode
chamar
reflexão)
entre
as
duas
posições,
a
de
terapeuta
e
a
de
paciente.
Esse
movimento
talvez
não
seja
perceptível
(nem
precisaria
sê-‐lo):
o
fato
desse
duplo
pertencimento
é
o
que
se
quer
ressaltar.
Gostaria
de
começar
nosso
percurso
a
partir
de
um
fim,
ou
seja,
de
uma
definição,
uma
resposta
dada
a
pergunta
que
nos
move.
Faremos,
por
assim
dizer,
um
caminho
de
volta,
para
chegar
onde
já
estamos.
Essa
definição
sobre
o
que
é
a
psicoterapia
me
foi
oferecida
por
minha
irmã
Mariana,
na
época,
aluna
de
psicologia
na
PUC
em
São
Paulo.
Estava
anotada
num
1
caderno
de
apontamentos
a
seguinte
frase
exposta
por
seu
professor
de
fenomenologia,
meu
futuro
psicoterapeuta,
Nichan
Dichtchekenian:
a
psicoterapia
se
preza
a
devolver
à
pessoa
a
clareza
modesta
de
que
ela
é
responsável
pela
própria
vida1.
Essa
fórmula
soa
límpida
mas
ao
mesmo
tempo
reserva
um
mistério:
o
que
vem
a
ser
essa
clareza
modesta
sobre
a
responsabilidade
pela
própria
vida?
E
porque
isso
é
algo
que
se
devolve?
Retirado
por
quem?
Ou
pelo
quê?
O
que
se
seguirá
é
um
esforço
de
declinação
e
decantação
destas
palavras.
Assumamos
que
isso
seja
então
o
que
se
alcança
ao
fim
de
uma
psicoterapia.
Se
nos
permitirmos
brincar
com
a
definição
dada
e
inverter-‐lhe
os
sentidos
chegaríamos
a
uma
colocação
que
se
referiria
ao
modo
como
nos
encontramos
no
início
do
processo
psicoterapêutico.
Seria
algo
dessa
ordem:
ao
iniciarmos
uma
psicoterapia
temos
diante
de
nós
alguém
desprovido,
turvado
em
seu
entendimento
imodesto,
desresponsabilizado
por
uma
imprópria
morte.
Muito
já
nos
soa
aos
ouvidos.
Algo
nos
é
retirado:
encontramo-‐nos
exauridos
e
chegamos
ao
consultório
de
psicoterapia
desguarnecidos,
desprovidos,
ameaçados,
fragilizados.
Confrontando
quem
éramos
com
quem
nos
tornamos,
deparamo-‐nos
com
uma
falta
que
não
é
outra
senão
de
nós
para
conosco
mesmos.
Nossas
possibilidades
que
se
moviam
num
campo,
encontram-‐se
restringidas,
por
vezes
constritas,
até
mesmo
condicionadas
por
esse
novo
modo
lacunar
entre
nós
e
nós.
Privados,
constatamos:
foi-‐nos
restrito
nosso
próprio
ser.
Isso
que,
enquanto
se
oferecia
cotidiana
e
constantemente,
mantinha-‐se
inadvertidamente
em
silêncio.
Pois
o
silêncio
pode
levar
a
um
esquecimento,
e
o
esquecimento
a
uma
negligência.
Privados,
constatamos:
foi-‐nos
revelado
isso
que
permanecia
em
silêncio
e
que,
por
se
ausentar,
faz-‐se
ruído,
turva,
turbilhona:
nosso
próprio
ser.
Algo
nos
é
retirado:
quem
o
fez?
Quem
teria
poder
sobre
isso
que
é
o
mais
íntimo,
nosso
ser,
isso
que
oferecendo-‐se
silencia,
isso
que
se
revela
silenciando-‐se?
Quem
dá
condições
para
que
isso
aconteça?
Um
deus?
Um
demônio?
Nós
mesmos?
Não
podemos
escolher
esvaziarmo-‐nos
de
nosso
ser
por
força
disso
que
entendemos
por
nossa
vontade.
Como
também
não
podemos
recorrer
a
ela
se
quisermos
nos
preencher
dele.
Este
poder
sobre
nosso
ser,
portanto,
este
comando
(um
dos
sentidos
da
palavra
grega
arché)
sobre
suas
possibilidades,
não
é
uma
imposição
ditada
por
algo
que
lhe
é
superior,
mas
antes,
uma
disposição
fundada
por
aquilo
que
lhe
dá
1
Devo
reconhecer
que
foi
o
encanto
por
essas
palavras
que
me
levaram
a
escolhê-‐lo
meu
psicoterapeuta.
2
sustentação.
Este
comando
(arché)
é
fundamento
(outro
sentido
da
palavra
grega
arché).
Isso
que
funda
e
sustenta
nosso
ser
é
o
que
lhe
dá
condição
para
que
ele
possa
apresentando-‐se
ausentar-‐se
e
ausentando-‐se
apresentar-‐se:
o
tempo.
O
tempo
funda,
sustenta,
condiciona
e,
portanto,
comanda,
toda
e
qualquer
movimentação
do
nosso
ser.
É
ele
que
nos
oferece,
mas
também
nos
priva.
Assim
sendo,
iniciamos
a
psicoterapia
acachapados
pelos
desmandos
do
nosso
ser
que,
fundado
e
comandado
pelo
tempo,
se
ausenta.
Somos
os
algozes
de
nós
mesmos?
Somos
vítimas
de
um
capricho
do
tempo?
Nem
um,
nem
outro.
O
tempo
de
que
falamos
aqui
não
é
este,
linear,
que
assumimos
como
a
seqüência
que
caracteriza
a
cadência
dos
instantes
do
relógio,
um
tempo
impessoal
que
pertence
a
todos
e,
portanto,
a
ninguém.
Consideramos
um
tempo
circular,
mas
não
como
algo
que
se
encerra
ao
fim
de
cada
turno,
a
cada
volta
concluída,
como
o
passar
de
um
ano
no
calendário.
Falamos
de
um
tempo
que
enquanto
se
mantém
voltando-‐se
para
si,
encerra
uma
unidade
que
se
renova:
um
tempo
pessoal,
portanto,
individual,
este
que
cabe
a
cada
um.
Este
tempo
pessoal
pode
ser
entendido
como
uma
unidade
que
contém
em
si
uma
multiplicidade:
um
passado,
um
presente
e
um
futuro.
No
entanto,
esses
fatos
temporais
não
são
somente
a
somatória
de
períodos,
que
identificamos
como
sendo
o
que
veio
antes,
o
que
se
dá
agora
e
o
que
virá
depois.
Este
tempo
que
cabe
a
cada
um
é
antes
uma
história,
uma
disposição
num
agora
e
um
projeto,
que
circunscrevem
mas
também
são
circunscritos
por
essa
unidade
temporal.
São
constitutivos
do
tempo
e
constituídos
pelo
tempo,
num
movimento
circular
que
se
inicia
com
nosso
nascimento,
um
dos
modos
de
nossa
finitude
e
se
termina
com
nossa
morte,
outro
modo
de
nossa
finitude.
Vivemos
percorrendo
um
tempo
que
vai
de
uma
finitude
até
outra
finitude.
Vivemos
cumprindo
uma
vida
que
vai
de
um
estar
então
vivo
até
um
não
estar
mais
vivo.
Vivemos
cumprindo
um
morrer-‐se
que
vai
de
um
fim
a
outro
fim.
Este
cumprimento
é
nossa
finalidade
e
finitude:
o
tempo
que
nos
cabe,
o
tempo
em
que
cabemos.
Este
tempo
que
nos
finitiza,
determinando
finalidade
e
finitude,
nos
oferece,
mas
também
nos
priva.
Enquanto
acontece
no
silêncio
de
uma
cotidianidade,
esconde
o
segredo
de
ser
nosso
fundamento,
nosso
chão.
Nosso
espaço
mais
próprio
é
tempo:
somos
sendo
um
lugar.
Este
lugar
é
o
modo
mesmo
como
o
tempo
se
conjuga:
unidade
múltipla
que
encerra
em
si
uma
vida:
um
nascer,
uma
história,
um
percurso,
um
projeto,
um
morrer.
3
Se
o
tempo
nos
oferece
lugar,
também
pode
nos
retirá-‐lo.
Por
vezes
de
modo
fulgurante,
num
átimo
de
instante
do
relógio.
Excusada
a
redundância,
somos
privados
do
nosso
lugar
por
isto
que
é
o
nosso
lugar:
nosso
tempo.
Sua
ausência
evidencia
isso
que
nos
constitui,
nosso
ser.
Nosso
ser
(um
lugar:
um
tempo)
pode
se
ausentar
num
átimo.
Ora,
o
instante
do
relógio
continua
a
marcar
um
pulso.
Este
não
vai
deixar
de
ritmar
uma
cadência
inerte
a
este
outro
tempo
pessoal
inclemente
que
nos
abandona.
Esse
abandono
não
é
outra
coisa
senão
um
não
estar
mais
ali
como
tal.
Neste
átimo
em
que
estamos
à
deriva
(para
ser
mais
rigoroso:
em
que
somos
uma
deriva)
nosso
tempo
deixa
de
determinar
nossos
limites.
Essa
deriva
é
uma
suspensão
do
lugar
do
passado/história,
presente/abertura,
futuro/projeto
enquanto
tais.
Perdemo-‐nos
por
um
átimo
num
não
ser
mais
si
mesmo.
À
nossa
revelia,
conhecemos
este
não-‐lugar.
À
nossa
revelia,
não
nos
reconhecemos
mais
um
lugar.
Estrangeiros
de
nós
mesmos,
desabitamo-‐nos
até
que
a
deriva
se
abrevie
terminando-‐se
num
fôlego:
nosso
peito
saúda
a
angústia.
Resta-‐nos
uma
pergunta:
o
que
aconteceu?
que
não
é
outra
coisa
questão
senão
esta:
quem
sou
eu?
Essa
pergunta
fundante
é
o
leito
que
o
discurso
deste
que
está
diante
de
nós
traça
em
seu
caminho
numa
psicoterapia.
Este
traçado
é
ao
mesmo
tempo
resposta
à
pergunta:
fundo,
margem,
represamento,
queda-‐livre,
seca,
enchente,
riqueza,
turbulência,
velocidade,
estagnação,
pureza,
poluição.
Este
traçado
é
modo
próprio
da
responsabilização
deste
pela
sua
existência.
Não
se
confunde
com
culpa,
nem
tampouco
com
vanglória.
Pode
transitar
entre
um
e
outro,
mas
não
se
esgota
aí,
antes,
mantém-‐se
em
torvelinhos:
meandros.
Se
este
percurso
tem
a
ver
com
modéstia
é
porque
esta
é
o
justo
reconhecimento
de
que
é
pela
privação
que
se
constata
isto
que
apresentando-‐se
se
ausenta
e
que
ausentado-‐se
se
apresenta:
nosso
ser.
Das
margens
do
não
avistamos
a
terra
do
sim.
Compreendemos
que
o
ser
concretamente
se
nos
é
apresentado
abstraindo-‐se.
Nossa
indigência
revela-‐se
nossa
riqueza,
justamente
por
nos
revelar
nossa
constante
inconstância:
isso
que
deve
a
cada
instante
constituir-‐se,
rearranjar-‐se:
nós
mesmos.
Este
reconhecer
que
assume
o
rearranjo
necessário
daquilo
que
pode
constante
e
cotidianamente
afirmar-‐se
negando-‐se
é
já
um
agradecer.
Esse
agradecimento
constante
e
silencioso
que
se
recupera
através
da
palavra
é
o
modo
mesmo
disso
que
podemos
chamar
de
devoção
ao
tempo.
E
este
é
o
sentido
da
psicoterapia:
ser
o
caminhar
em
que
se
acolhe
uma
palavra
afirmadora
recolhida
num
espanto
(há
também
a
possibilidade
de
4
um
silêncio)
diante
disso
que
a
cada
vez
se
revelará
como
totalidade
de
uma
existência
e
que
se
apresenta
constituindo
um
eu.
Um
acontecer
de
si
mesmo,
surpreendido
e
não
menos
agradecido,
por
se
reconhecer
o
acontecer
de
um
lugar
e
de
um
tempo.
É
devoto
este
que
se
reconhece
habitado
pelo
divino.
Ou
ainda
este
que
se
reconhece
habitando
o
divino.
Talvez
o
melhor
modo
de
indicar
esta
concomitância
entre
habitar
e
ser
habitado
seja
dado
pela
palavra
atravessamento.
Como
a
luz
transpassa
uma
nuvem
englobando-‐a
e
produzindo
sombra
mas
também
a
penetrando
e
fazendo-‐a
radiante.
A
luz
resta
dentro
e
fora:
habita
a
nuvem
e
é
habitada
por
ela.
Esse
atravessamento
só
é
possível
se
houver
o
diáfano,
que
podemos
também
nomear
de
permeabilidade
e
por
fim
de:
clareza.
Aquilo
que
não
se
entrega
à
luz,
não
é
atravessado
por
ela.
Esse
entrega
é
um
dos
nomes
disso
que
entendemos
por
devoção.
O
modo
da
devoção
é
o
modo
de
entregar-‐se,
ou
seja,
livrar-‐se
em
algo
e
à
algo.
Devotar-‐se
ao
tempo
significa:
livrar-‐se
ao
tempo.
Atravessar
o
tempo
e
ser
atravessado
por
ele
numa
clareza
que
não
é
outra
coisa
senão
o
modesto
reconhecimento
de
que
ele
nos
constitui.
O
psicoterapeuta
é
este
que
testemunha,
sendo
ele
também
devoto,
esta
entrega,
numa
posição
que,
por
fim,
como
um
oráculo
privado
de
vaticínio,
insistentemente
repetisse:
somos
tempo:
história
e
projeto,
retração
e
expansão,
acorde
e
dissonância,
voz
e
silêncio.
Repitamos
a
palavra
de
Píndaro:
Efêmeros!
(Ephemeros:
Epi
Hemera:
em
torno
do
dia):
aquele
que
está
exposto
ao
que
os
dias
trazem.
Ou
ainda:
aquele
que
é
constituído
disto
que
é
um
dia,
ou
seja,
um
turno,
uma
volta
deste
(re)tornar-‐se
do
tempo
que
repetindo-‐se
oferece-‐nos
a
possibilidade
de
renovarmo-‐nos
mas
também
ausentando-‐se
nos
coloca
em
confrontação
com
nossa
fragilidade,
nossa
finitude,
nossa
efemeridade.
Alexandre
Valverde
é
psiquiatra
e
psicoterapeuta,
autor
do
livro
“Ruptura,
solidão
e
desordem.
Ensaio
sobre
fenomenologia
do
delírio”
pela
editora
FAP-‐Unifesp.
5