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Curso 80

Aula 06– data 15/04/80


Nirvana e Sansara
Huberto Rohden

...Aliás, nós estamos de parabéns porque os grandes homens de projeção mundial estão
indo à mesma direção em que nós vamos, à mesmíssima direção. Se vocês pegarem bem o
espírito de Albert Einstein, de Mahatma Gandhi, de Albert Schweitzer - e ultimamente de
Victor Frankl – é a mesma direção. Todos eles afirmam que nós devemos ir além dos nossos
invólucros externos e descobrir o nosso conteúdo interno. Todos dizem isto. Eles não dizem
essas palavras, mas dizem a mesmíssima coisa. Ninguém se contenta com as periferias do
ego. Isso cria neuroses, como diz Victor Frankl, uma grande frustração existencial, e tudo
isso. Mas se nós chegarmos ao nosso centro, ao nosso Logos, ele chama isso Logos, que é
uma palavra grega - o Logos é o nosso Eu, para ele; tudo que está no livro dele identifica o
Logos com o Eu. O Logos não é nenhuma coisa fora de nós. Nós, no mundo cristão estamos
habituados a identificar o Logos como Cristo porque o 4o Evangelho começa assim: no
princípio era o Logos e o Logos estava com Deus - mas os outros não falam do Cristo
externo, do Cristo histórico. Falam só do nosso Eu interno, que eles chamam Logos. Também
dizemos do Cristo interno, mas nós no cristianismo sempre entendemos que o Cristo é
qualquer coisa fora de nós.
É claro, historicamente ele existiu perfeitamente na pessoa humana de Jesus, se
manifestou tão brilhantemente através da pessoa humana de Jesus e por isso nós temos a
impressão de que ele só existia naquela pessoa. Mas não é verdade, ele existe em cada um de
nós. O Logos – que os gregos chamavam - é o Deus interno. Mas nós não temos consciência
dele. Toda nossa meta é ter plena consciência do nosso centro Eu, que é o nosso Logos.
E esses grandes pensadores: Einstein, Mahatma Gandhi, Schweitzer e outros
concordam conosco. Devemos encontrar o nosso centro que nós chamamos o Eu – e não
devemos nos contentarmos com a superfície do nosso ego, porque as superfícies nos causam
problemas e neuroses de todas as coisas difíceis. As superfícies causam isto, mas não resolve.
A psicoterapia afirma que nós podemos resolver pelo ego os problemas do ego.
Victor Frankl aceita isso como caso onde a frustração existencial não é muito
profunda, a psicoterapia resolve os problemas do ego. Mas ele diz claramente em seu livro: se
as coisas são graves e a nossa frustração existencial é profana não há solução na superfície do
ego, então ele apela para a logoterapia. A logoterapia não é para todos. Ele insiste que não faz
logoterapia com os seus clientes lá na Policlínica de Viena. Ele só faz logoterapia com
pessoas excepcionais, como aquele caso da D. Marion que eu li naquele livro dele. Isto é um
caso excepcional, quando ele encontra uma abertura em uma pessoa. Uma tremenda
receptividade para o seu Logos interno, aí ele procede a logoterapia. Mas, é uma pequena
porcentagem. O grosso é mesmo psicoterapia.
O grosso da humanidade não está em condições de receptividade para uma
logoterapia. Por isso ele sempre faz a divisão da psicoterapia que pode culminar em
logoterapia em alguns casos. Ele não substitui a psicoterapia pela logoterapia, isto é
impossível na humanidade de hoje. Talvez numa futura humanidade, mas por enquanto não é
possível.
Bem, ele vai explicar isto, e vai haver muitas perguntas desencontradas, talvez
estranhas. Muitos não vão entender que ele não está substituindo a psicoterapia pela
logoterapia, mas ele está fazendo culminar a psicoterapia, em casos excepcionais, em
logoterapia. Isso seria uma cura perfeita. Terapia é cura. Cura pelo Logos seria definitiva, mas
as outras curas não são definitivas. São temporárias pela psicoterapia nós não podemos fazer

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uma cura do ego pelo ego. Mas, podíamos fazer uma cura perfeita do ego pelo Eu. Isto então
seria logoterapia.
Bem, mas não vamos falar disso que eu já falei da outra vez.
Vamos focalizar duas palavras da filosofia oriental: Sansara e Nirvana que são
palavras centrais em toda filosofia oriental. Estas duas palavras se referem ao nosso estágio de
evolução humana. Não são coisas fora de nós. Nós ou estamos no Sansara, ou estamos no
Nirvana. São estágios de consciência evolutiva. O que os orientais entendem por Sansara? E o
que eles entendem por Nirvana? A palavra é tomada da natureza. É um símbolo. Eles
imaginam um lago no meio das montanhas lá do Himalaia. Um lago cercado de montanhas -
se há muito vento as ondas das águas ficam encrespadas e não se vê nada no fundo quando as
águas estão agitadas pelo vento. Também não se espelha nada no lago. Não se espelham as
árvores da beira do lago, não se espelham as nuvens do céu, não se espelham as estrelas da
noite. Nada se espelha no lago enquanto ele está agitado.
Isto é estado de Sansara aplicado às leis humanas, quando o nosso interior está
agitado, revoltado, sem sossego; então estamos em estado de Sansara. Sansara – até a palavra
já parece dizer – Sansara é qualquer coisa de bagunça. Tudo agitado, Sansara, Sansara,
Sansara...
Isto é estado do homem muito primitivo e muito profano. E o grosso da humanidade
vive infelizmente num eterno Sansara. 24 horas de Sansara. Não tem sossego, não tem
tranquilidade nem por um momento da sua vida. É um Sansara permanente. É horrível, uma
vida inteira de Sansara, sobretudo aqui no ocidente, nas grandes cidades.
Agora, outro estado é do mesmo lago em estado de absoluto repouso... Sem nenhum
vento, sem nenhuma agitação. Se o lago está plácido, completamente imóvel então ele é
Nirvana. Nir quer dizer não e vana, sopro - quando não há sopro. Sem sopro, sem vento.
Então nós estaríamos num estado de perfeita tranquilidade. E quem é que causa esta
tranquilidade? O nosso Eu profundo, o nosso Eu central. Quando não temos consciência do
nosso Eu. Falamos em Eu, mas não sabemos nada, não temos a experiência do nosso centro,
da nossa profundeza, então nós estamos em Sansara. E não sabemos nada de Nirvana.
Quando alguém está consciente da sua existência, mas não está consciente da sua
essência – isto é estado de Sansara. E quem é que está consciente da sua essência? O grosso
da humanidade não sabe nada da sua essência, do seu Eu, do seu centro. Só sabe das suas
superfícies, das suas existencialidades. E não sabe nada do que eles são. Sabem o que eles
fazem, sabem o que eles dizem e sabem o que eles têm. Tudo isto eles sabem, isso é
existencial – mas não sabem nada daquilo que eles são. E acham que é perda de tempo
investigar O QUE SOU EU. Eles pensam que nós sabemos perfeitamente o que nós somos.
Eles se identificam com o corpo que eles têm, mas que eles não são, e se identificam com a
mente que nós temos, mas que nós somos; identificam-se com os seus desejos emocionais que
cada um tem, mas que ninguém é.
Quer dizer, fazem uma confusão entre ter e ser. Ultimamente um grande escritor, Erich
Fromm escreveu um livro. Ser e Ter. Eu esperava uma solução melhor de Erich Fromm do
que encontrei. Ele não vai ao fundo das coisas - Mas é bom! É um princípio, mas não vai até o
fim. Nós devíamos dar uma profunda investigação do nosso Ser e isto nós não podemos fazer
em hora de Sansara. Só podíamos fazer numa hora de quietação muito profunda. Primeiro,
uma quietação temporária, em forma de atos transitórios que nós chamamos Meditação. Na
verdadeira meditação nós entramos no Nirvana, temporário – fora da Meditação geralmente
estamos outra vez no Sansara permanente. A gente podia pouco a pouco permear o Sansara do
ego pelo Nirvana do Eu. Mas isto leva muito tempo.
A maior parte se contenta com uma hora ou meia hora de Nirvana de manhã cedo; e
durante o resto, 23 ou mais horas por dia perde o seu estado de Nirvana e vai outra vez entrar
em Sansara. Porque é difícil manter os dois estados, Nirvana e Sansara, fazer uma síntese

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entre esses dois é um grande problema e muitos dizem que é absolutamente impossível;
porque dizem que durante os trabalhos diários e profissionais ‘eu não posso estar em Nirvana,
eu não posso estar recolhido dentro do meu centro. Eu tenho que atender todas as periferias lá
fora, como é que eu vou me ensimesmar e isolar no meu centro’ Isto é do principiante, mas no
fim é possível. Quando alguém se habituou a um profundo Nirvana, mas a um verdadeiro
Nirvana, e quando está completamente alheio aos sentidos, à mente e aos desejos, durante
uma hora completa, não sabe nada do seu corpo, não sabe nada dos seus pensamentos, não
sabe nada dos seus desejos - os três elementos de Sansara – então se ele está completamente
centralizado no seu Eu, no seu Nirvana, e tem a experiência desse Nirvana, a profunda
experiência... Experiência é uma coisa muito difícil. Não é pensar em alguma coisa, isso não é
experiência, é identificar-se com aquilo. É ser aquilo. Isso é experiência. Então pouco a pouco
ele descobre que é possível estar em perfeito Nirvana interior apesar de todos os seus Sansaras
externos. Porque o seu Eu permeia pouco a pouco pela experiência do seu ego.
E quando o ego é permeado e penetrado pelo Eu, o ego muda completamente. Ele
muda completamente, ele não pode sair do Sansara do seu dever que tem que completar tal
dever e tal função. Nem deve. Não é preciso jogar fora o Sansara. Ele deve transformar o seu
ego pela força do seu Eu. Mas se seu Eu não tem muita força, se ele nunca entrou
profundamente no Nirvana da meditação, da concentração, ele não tem força para permear o
seu ego pela luz do seu Eu. Porque a luz é fraca. Agora se ele intensificasse a luz do seu
Nirvana, do seu Eu, ele não precisaria dispensar o seu ego. Ele não pode dispensar o seu ego
para os trabalhos externos. Não pode, e quem age é o ego. O Eu não age, o Eu é. Mas o ego
age, toda ação é feita pelo ego. Mas o Eu é completamente imóvel em si. É a consciência pura
do ser. Mas a consciência pura do ser não age. Fica completamente imóvel. Não tem
extensidade, mas pode ter uma tremenda intensidade.
Então, intensificar a consciência do ser, consciência do Eu nirvânico resolve o
problema, porque no Eu não há extensidade, extensão, amplitude; mas há uma tremenda
profundidade, uma intensidade. Extensão é horizontal – usamos para o nosso querido ego. Isto
é extensão.
Bem, se ele permear as suas extensidades externas pela intensidade do seu ser interno,
ele não vai abolir as atividades, nem deve, mas ele vai transformar completamente. Os seus
trabalhos externos vão continuar como sempre andaram e não vão desistir da sua profissão.
Mas, ficam muito melhorados. Não ficam prejudicados pela meditação. Ficam muito bem
beneficiados pela meditação. Mas nesse caso a meditação não é uma meditação de atos, é uma
meditação de atitude. Os atos não podem permear as nossas atividades externas. Os atos da
meditação não podem ser compatíveis com as nossas atividades externas. A atitude da
meditação é perfeitamente compatível com as nossas atividades externas.
Quer dizer, o Sansara penetrado do Nirvana, um Sansara nirvanizado, isto é possível,
mas em forma de atitude, não em forma de atos. Eu não posso estar em ato de meditação
enquanto estou trabalhando no exterior, mas eu posso estar em atitude de meditação - quando
eu estou trabalhando por fora. Que é agora atitude? Atitude é sempre do ser. Os atos são do
agir. Os atos são do ego. Atitude é do Eu. E se alguém intensificou em si a atitude do seu ser,
ele vai ver que é perfeitamente possível unir a meditação habitudinal, não meditação de atos,
mas meditação de atitude, com os seus trabalhos profissionais.
Vamos fazer uma comparação: aqui tem uma tábua opaca... Completamente escura
porque uma tábua não tem luz própria. Depois eu acendo uma luz de um lado da tábua, agora
a tábua está iluminada. Mas não está lucificada. Está iluminada parcialmente pela luz. Por um
lado ela está iluminada. Mas por detrás ela continua completamente escura. Porque a luz não
penetra na tábua opaca. Isto podemos comparar com a meditação. O ato de meditação ilumina
a nossa vida por um lado, mas por outro lado, não.

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Agora se nós transformássemos essa tábua opaca num prisma cristalino,
completamente diáfano, puséssemos a luz desse lado, do outro lado não haveria sombra. Não
haveria nenhuma sombra do outro lado. Então o prisma não estaria iluminado como a tábua,
estaria lucificado... Quer dizer, penetrado, permeado de luz. E não tem nada de sombra. Isso
seria o estado de meditação atitude, habitudinal de atitude, de hábito de atitude. Mas não
somente de ato.
Se nós conseguíssemos lucificar o nosso ego tão opaco, normalmente tão opaco,
apenas iluminado, mas não lucificado – e conseguíssemos lucificar, penetrar permeado de luz
o nosso ego, então o nosso ego podia continuar exatamente nos seus trabalhos de cada dia e
não precisava desistir nada, porque a luz não prejudica. A luz da sua experiência interior não
prejudica, mas para lucificar, a luz deveria ser muito intensa. Para lucificar completamente
um objeto que outrora era somente iluminado e não lucificado, se a luz for bastante intensa ele
pode transformar a opacidade, vamos dizer, do nosso ego numa diafania, numa transparência
diáfana e sem destruir o nosso ego.
Quer dizer que podia melhorar. O nosso ego seria grandemente melhorado pela
lucificação do nosso Eu. Essa é a comparação que pode fazer de uma tábua não iluminada ou
de uma tábua iluminada ou do objeto lucificado. Lucificado é permeado de luz. Iluminado é
só atingido pela luz por um lado.
Então seria a união entre o Nirvana da luz e o Sansara da nossa natureza ego. Isso seria
então uma autorrealização perfeita. Porque aqui não se sabe de substituir uma coisa pela
outra, como pensam os principiantes – os principiantes pensam: - eu devo ou fazer as coisas
do meu ego, ou fazer as coisas do meu Eu. Mas eu não posso fazer as duas coisas ao mesmo
tempo. Os semiexperientes, mas não os pleniexperientes dizem isto. Então eles querem umas
horas por dia para tratar das coisas espirituais, sobretudo nos domingos – eles acham que os
domingos são próprios para a gente tratar das coisas espirituais, mas que os dias de semana
não têm nada que ver com isto. Daí espera uma semana para começar de novo o outro
domingo.
Isso é um dualismo desgraçado - uma justaposição de duas coisas. Querem justapor
uma coisa pela outra. Nos domingos é isto. E na semana é isto. Isto não resolve nada. Isto não
resolve auto-realização. Eles deveriam em vez de justar, justapor mecanicamente deveriam
interpenetrar organicamente. Eu uso duas palavras: justaposição mecânica - é do principiante
de boa vontade - os que não têm nem boa vontade nem justaposição, só tratam das coisas
materiais e acabou-se. Mas, os que já têm um princípio de espiritualidade querem tratar das
coisas espirituais num dia por semana. Isso é justaposição, claro. Não é interpenetração
orgânica, mas apenas uma justaposição mecânica. Pode ser dos principiantes essa justaposição
mecânica... Mas não é dos finalizantes.
Aí eles têm que entrar numa interpenetração orgânica. Têm que fazer do seu ego, um
cristal e não uma tábua opaca. E a tábua opaca pode ser transformada pouco a pouco num
cristal diáfano. E isto depende da intensidade da sua consciência, da luz e também de termos -
se a consciência que é luz atua sobre essa tábua opaca do seu ego. Porque se eu faço
meditação só de manhã das seis até as 7 horas e durante o resto do dia eu vivo puramente na
zona do meu ego opaco, do meu ego profano, é claro, o ego não vai ser afetado pela luz
porque a luz só foi durante uma hora, mas não foi durante o dia todo.
Mas se eu conformar a minha vida de 24 horas por dia, 365 dias por ano, a vida
inteira, se eu conformar a minha ética externa com a minha mística interna então esta ética
externa que é o nosso ego, pouco a pouco se transforma de opaco em diáfano, de tábua em
cristal ou prisma. Isto é uma questão de persistência e de paciência e de muitas outras coisas.
Aí é um treino contínuo, harmonizar a sua vida externa com a sua experiência interna. Mas se
alguém só faz experiência interna durante meia hora por dia, e durante a vida ele age em
sentido contrário, não se interessa mais pelos ideais da verdade, da justiça, da fraternidade e

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da honestidade e do amor que são as coisas da luz, então o seu ego não vai ser lucificado.
Talvez continua a ser iluminado, é pouca coisa, ser iluminado – mas lucificado seria
autorrealização completa.
Então essas duas palavras vão através de toda a filosofia oriental. Os mestres do
oriente atribuem sempre o Sansara ao ego profano que tem experiência só da sua periferia, da
sua existência, mas não tem nenhuma experiência da tua essência. Alguns creem na sua
essência. Já é o 1o passo. Se alguém crê que ele não é somente a sua existência periférica, mas
que há alguma coisa nele além do corpo, além da mente e além dos desejos que são do ego,
então ele já fez um ato de boa vontade. Crer não é ter fé. Todo o mundo entende por crer, ter
fé. Mas não é verdade. Fé é outra coisa muito mais avançada. Crer é um ato de boa vontade.
Mas não é uma experiência, e todo o mundo tem que começar com boa vontade. Quem não
tem boa vontade não pode crer. Crer é aceitar a verdade, embora não tenha nenhuma
experiência. Crer é ouvir de outros ou ler um livro que tal e tal coisa é verdadeira, é boa e
deve ser aceita. Ele ouve isto ou vê isto num livro e aceita o testemunho do livro ou o
testemunho do pregador. Isto é crer. Crer é necessário como 1o passo. Mas não é ter fé.
Fé, em latim fides, de que nós fizemos fé em português – fides é o radical de
fidelidade... Alta fidelidade – quer dizer harmonia, sintonia com o infinito, isto é fé. Isto é
uma coisa muito mais avançada do que crer. A crença é dos principiantes, mas a fé é dos
avançados. Quando alguém tem fé ele sabe que ele está em alta fidelidade, em sintonia, em
harmonia mesmo imperfeita, mas uma verdadeira harmonia muito progressiva – que nós
nunca chegamos ao fim das harmonias, nós sempre somos sinfonias inacabadas, mas nunca
estamos no fim. Nem pode chegar ao fim. A evolução não tem fim. A evolução é sempre uma
sinfonia inacabada, mas se ele já está em sinfonia, em sintonia, em harmonia com a realidade
invisível então ele já está na zona da fé. Ela pode aumentar cada vez mais, é claro. Ninguém
pode chegar ao fim da sua fé, mas ela pode progredir.
Então já estamos além da crença. Isto já é superar a escola primária da crença – pois a
crença é escola primária para os principiantes, é claro, mas isto já é universidade do espírito.
Já entrou numa experiência espiritual, por mais incompleta que seja, já é uma experiência.
Quer dizer, já se nirvanizou. Quem está dentro da crença, ainda está no Sansara. Quem não
tem experiência da realidade invisível não está no Nirvana. Não está na fase profunda e
tranquila do seu centro, que eles chamam Nirvana.
Parte II

O que nos põe no Sansara são sempre os nossos sentidos, a nossa mente e as nossas
emoções. Eles andam inteiros no Sansara. Os sentidos percebem objetos externos que não é
Nirvana. A mente analisa esses objetos externos - a mente, inteligência. Isso ainda não é
Nirvana. As nossas emoções afetivas querem apoderar-se dessas coisas também objetivas. Os
três são Sansara. Os sentidos, a mente e as emoções estão no mundo do Sansara - não
entraram no Nirvana. Nada disto nos pode nirvanizar. Nada disto nos pode pacificar
definitivamente. Temos que ultrapassar estas três coisas do ego: sentidos, mentes e emoções –
fazer o quê? Entrar no Nirvana? Bem isto é um modo de dizer, mas nós não podemos entrar
no Nirvana. Já disse isso mais uma vez e nós não podemos ficar desanimados.
Nós não podemos entrar na Realidade espiritual que seria o Nirvana, mas essa
realidade pode entrar em nós. É a nossa única esperança. Nós temos a esperança de receber a
visita, a invasão do Nirvana, a invasão da paz, a invasão do espírito, a invasão de Deus, a
invasão do Logos se quiserem, mas nós não podemos propriamente invadir.
Então, pergunta-se – se eu não posso invadir Deus, então nunca posso chegar a ter
experiência de Deus. Não é verdade. Eu não posso invadir o mundo espiritual, mas o mundo
espiritual me pode invadir. É nossa única esperança. Deixar-se invadir pelas coisas espirituais
- pelo Nirvana espiritual. E nós podemos fazer. Nós, que somos menos no nosso ego e mais

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no nosso Eu – o menos nunca vai subir para o mais – mas o mais pode descer para o menos.
Isto é solidamente possível. Matematicamente certo. O menos do nosso ego nunca vai
conquistar o mais do nosso Eu - mas o mais do nosso Eu pode invadir o menos do nosso ego.
É a única esperança.
Isto então nas grandes religiões se chama a graça de Deus. Na teologia não se dá uma
definição definitiva ao que se entende por graça. Santo Agostinho lidou a vida inteira com o
problema da graça e achou que a graça é tudo e que nós não somos nada. Ele diz: a graça de
Deus me faz santo, eu não me faço santo. Se Deus quer me fazer santo ou espiritual, ele o
fará, mas se Ele não quer, eu não posso fazer. Essa é a ideologia de Santo Agostinho.
Praticamente ele nega o livre arbítrio. Pois, se eu não posso fazer nada perante o mundo
espiritual, então eu sou completamente zero ou impotente em face do mundo espiritual. E com
isso ele diz: a graça de Deus me converteu e a graça de Deus me santificou, mas eu não
tenho nada que ver com isto. Não é verdade...
A filosofia oriental vai muito mais profundamente, também fala muito de graça. Em
sânscrito, graça é prasada. Sempre afirmam que todas as coisas boas da nossa vida são graça
de Brahman. E nós dizemos, e agora? E se Brahman não me quer dar a graça? Então estou
perdido - porque a graça é um presente, eles dizem, é um presente inteiramente gratuito, não
se pode merecer um presente. Só se pode receber um presente, mas eu não posso merecer.
Merecer é causar. Eu não posso causar o mundo espiritual e se eu não posso causar o mundo
espiritual como é que eu vou espiritualizar?
Então responde a filosofia da Índia: eu não posso ser causa do mundo, da experiência
espiritual, mas eu posso ser condição. Aí eles fazem a profunda distinção entre causa e
condição.
Vamos explicar um pouco essa diferença entre causa e condição. Vamos usar outra
vez uma comparação. Vocês estão numa sala completamente às escuras em pleno meio dia. O
sol está lá no céu, mas a sua sala está em completa escuridão. Não tem nenhuma janela de
vidro, são janelas opacas, e vocês estão em completa escuridão. Agora, vocês querem luz
solar no seu quarto, não luz artificial. Vocês não podem fabricar luz solar. Ninguém pode
fabricar luz solar por meio duma técnica de laboratório. Mas ele pode ter luz solar no seu
quarto, mas não pode fabricar. Mas ele pode receber. O que é necessário para receber? Abrir a
janela. Abrir a janela não é a causa da luz solar. Evidentemente não. O abrimento da janela
não causa nenhuma luz solar. A luz solar já estava lá fora. Ele permite a luz solar entrar
dentro da sua sala. Isso é condição. Ele pode ter uma condição para que a luz solar entre no
seu quarto, abrindo uma janela. É um ato meio negativo. Abrir não é causar, mas é
condicionar. Ele permite que a luz solar que já existe lá fora entre no interior da sua sala. Isto
nós podemos entender por graça.
Na filosofia oriental se faz nítida distinção entre - as coisas espirituais não podem ser
causadas por nós. Nenhum ego mental pode causar uma coisa espiritual. Porque o ego mental
é menor e o Eu espiritual é maior. Segundo as leis da lógica uma causa menor não pode
produzir um efeito maior. É evidente! E como aqui a causa é mental e o efeito é espiritual, é
claro que o mental não pode causar o espiritual, mas ele pode pôr as condições para que o
espiritual entre nele. Isto não é causar, isto é apenas condicionar. Ele pode dar uma
oportunidade para que o espiritual entre nele – mas ele não pode fabricar o espiritual. Fabricar
é causar.
Então diz a filosofia oriental: quando o discípulo está pronto, então o mestre aparece.
Exatamente isto! Quando o discípulo está aberto rumo ao mestre, rumo ao infinito – aqui o
mestre é homem espiritual – o discípulo pode ser o corpo, pode ser a mente, pode ser as
emoções, discípulo é ego. E mestre é: Eu. Então diz a filosofia oriental: quando o discípulo
está pronto então o mestre aparece.

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Por que o mestre aparece? Ele foi obrigado a aparecer? Não, o discípulo não obrigou a
aparecer, nem sabia onde estava. E como é que ele apareceu? Ele apareceu por livre vontade
dele mesmo. Ele apareceu porque quis e não por dever. O discípulo não pode obrigá-lo a
aparecer, mas o mestre pode resolver por seu próprio livre arbítrio visitar o discípulo. Isto é a
explicação da gratuidade da graça, porque nas filosofias orientais como na teologia ocidental
sempre se fala na absoluta gratuidade da graça. Todas as coisas boas são graça e de graça.
Todas as coisas espirituais avançadas são gratuitas. Nenhuma dessas coisas são arbitrárias. Se
vocês fazem a confusão entre gratuito e arbitrário estão perdidos. No mundo cósmico não há
nada arbitrário. Tudo é regido por leis fixas. Nada acontece fora da lei cósmica. A lei cósmica
não conhece arbitrariedade, mas conhece muito bem gratuidade. Gratuito é aquilo que eu não
posso merecer ou causar. Merecer e causar são a mesma coisa. Se eu posso merecer uma coisa
então eu causei o aparecimento dessa coisa porque eu mereci. Mas isto não é possível.
Ninguém pode merecer coisa espiritual. Isto é absolutamente impossível e as teologias
que falam em merecimento, que nós possamos merecer o céu, até por toda eternidade, estão
completamente enganadas. Ninguém pode merecer uma coisa espiritual. Ninguém pode
merecer o céu. O que é que podemos fazer? Podemos abrir uma janela ou uma porta, pôr uma
oportunidade, uma condição, fazer uma abertura como diz, uma receptividade rumo ao céu,
rumo ao infinito - mas nós não obrigamos o espiritual a vir a nós.
Se nós pudéssemos obrigar o mundo espiritual a vir a nós o que aconteceria? Nós
seriamos credores e ele seria devedor. Vocês podem imaginar que o mundo espiritual seja
devedor nosso e que nós sejamos credores do mundo espiritual? O credor manda o devedor
somente obedece. Nós nunca podemos ser credores do mundo espiritual e o mundo espiritual
não pode ser devedor nosso. Deus não nos deve nada, nada. Eu não posso merecer uma graça
porque se eu mereço uma graça eu já causei essa graça. Eu já pequei contra a lei fundamental
de que uma graça não é merecível. Eu não posso causar o mundo espiritual da graça. Mas a
única coisa que eu posso fazer é tornar a mim em tais condições que segundo as leis
espirituais do cosmos isto me aconteça. Não porque eu tenha obrigado a graça a vir, mas
porque há uma lei cósmica independente de mim que diz: quando alguém abre uma janela,
então a luz solar entra por si mesma. Mas eu não obriguei a luz solar a entrar. Eu não puxei a
luz solar para dentro do meu quarto com um gancho de ferro. Puxar a luz para dentro... A luz
age espontaneamente segundo as suas próprias leis. Eu não posso mudar as leis da luz. A luz
entra onde há uma entrada. Não entra onde não há nenhuma entrada. Isso é evidente. Pura
matemática! Pura logicidade!
Vocês têm que habituar com o estudo da filosofia oriental – tem que ser campeões de
lógica. Porque a filosofia oriental é tremendamente lógica, matematicamente exata. Os gregos
chamavam isto, acribia. Precisão, quando uma coisa acontece infalivelmente. Então diz os
gregos, acontecem com acribia. Aqui quase não se usa a palavra, mas na Europa se usa muito.
Acribia é precisão absoluta. Isso é lógica infalível. Matematicidade.
Por exemplo: 2 X 2 = 4 – isso é absolutamente certo, nunca pode ser 3, nunca pode ser
5. Nunca pode ser nada a não ser 4. A matemática é de absoluta acribia, de absoluta
logicidade. Absoluta matematicidade. Einstein diz: a matemática é absolutamente certa,
contanto que ela permaneça no abstrato, se ela entra no concreto ela perde da sua certeza na
razão direta da sua concretização. Absolutamente certo. A matemática é de leis invariáveis.
São as leis cósmicas. E tudo acontece com infalível certeza.
E assim também, se eu faço uma abertura rumo ao infinito, então o infinito me
acontece. Não porque eu obrigo acontecer, eu não posso obrigar o infinito acontecer, mas
porque eu me pus em condições tais que segundo as suas próprias leis, o infinito me invadiu.
Veja a palavra maravilhosa que nós chamamos “orar”. Todo o mundo confunde orar
com rezar. É uma diferença incrível entre rezar e orar. Rezar é a obrigação de recitar. Recitar

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um versículo num livro, isto é rezar. Bem, para os principiantes dá, porque os principiantes
precisam decorar para poder repetir. Bem, isso é bom para os principiantes.
Agora, usamos a palavra orar, isso não para principiantes. O principiante não sabe
orar, só sabe rezar. Quem é que ora? Vejam a etimologia da palavra. Orar vem da palavra
latina os – quer dizer boca. Os – genitivo oris – daí nós fizemos oral, orar, oração, tudo
derivado de os oris – boca. Por que é que tem que ver com a boca esse orar? Naturalmente
não a boca do corpo. A boca do corpo não tem nada que ver com a oração. Mas, aqui se faz
um simbolismo entre a abertura da alma, a boca da alma, claro que a alma não tem boca, mas
vamos dizer: quando a alma está aberta como o que - de boca aberta rumo ao infinito. Ela está
voltada na direção do mundo espiritual. Não pensa mais no mundo material. Só se deixa
invadir pela experiência do mundo infinito e invisível, então a alma está orando, quer dizer,
abrindo a boca. Orar é abrir a boca, nada mais. Não a boca física, mas a boca metafísica.
Então a alma está em atitude de oração. Naturalmente, se a minha alma está em atitude
rumo ao infinito, rumo ao mundo espiritual, o que vai acontecer? O infinito me vai invadir
porque eu estou aberto. Eu estou aberto e quem está com a boca aberta é porque tem fome.
Então eu sou uma abertura faminta. Eu estou numa abertura rumo ao infinito, porque eu estou
abrindo a boca rumo ao infinito porque sinto muita fome de alguma coisa que ainda não está
em mim... Mas que pode entrar em mim. Isto então é a idéia de orar.
A oração não é pensar, a oração também não é falar. Isto é rezar. Mas se eu me puser
numa atitude de abrimento ou de abertura, ou de vacuidade - porque onde há uma vacuidade
faminta entra uma plenitude para plenificar essa vacuidade. Isto é lei cósmica. Se eu faço de
mim uma vacuidade, não uma vacuidade negativa, mas uma vacuidade positiva, quer dizer,
uma vacuidade desejosa de receber uma plenitude. Isto eles chamam uma vacuidade faminta
rumo ao infinito. Então a plenitude da alma do universo entra em mim porque encontrou uma
abertura, uma entrada. Isto então é orar.
Quer dizer, a oração não é propriamente um ato, a reza é um ato, mas a oração não é
um ato. A oração é uma atitude de abertura rumo ao infinito. E se eu conseguir fazer uma
abertura rumo ao infinito, rumo ao mundo espiritual, as leis cósmicas se encarregam de fazer
o resto. A plenificação não é da minha parte. Da minha parte é só o esvaziamento. O
esvaziamento, a vacuidade faminta é da minha parte. O resto acontece do outro lado para cá.
As leis cósmicas agem automaticamente quando encontram uma entrada.
Bem, lembrem-se que há duas atitudes da sua consciência... Ou vocês estão
completamente no Sansara, ou vocês de vez em quando entram no Nirvana, mas
transitoriamente – mas não ficam sempre. Ou vocês estão permanentemente no puro Nirvana
e se esqueceram de todo o Sansara. Isto se chama mística isolacionista. Quando alguém está
no puro Nirvana e se esqueceu de tudo que é Sansara do seu corpo, da sua mente, dos seus
desejos, não sobra nada de sansara... 100% no Nirvana.

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