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Resumo Abstract
Este artigo aborda alguns conceitos This work is about rhythm’s composi-
fundamentais quando se trata de percepção tion in the theater. For this composition is
e composição do ritmo no trabalho do ator e necessary the discussion about time, tempo
da atriz: Tempo, tempo e duração. Para am- and duration in the musical, philosophical
pliar a discussão e promover provocações, and theater theories. The main philosopher
serão apresentados os conceitos de Tempo in this article is Gaston Bachelard who dis-
Vibrado e a proposta de pensa a duração cusses “vibrating time” and “the dialectic of
a partir da dialética que Gaston Bachelard duration” in his book “The Dialectic of Du-
trata em seu livro A Dialética da Duração. ration” (1936). This paper presents too the
Conceitos que Bachelard disserta a partir philosopher Lucio Alberto Pinheiro dos San-
do livro La Rythmanalise de Lucio Alberto tos and his book “La Rythmanalise” (1931)
Pinheiro dos Santos, filósofo português des- that inspired Bachelard to write about the
conhecido, cuja história também é aborda- rhythm, time and duration.
da neste trabalho.
Palavras-chave Keywords
Tempo. Tempo. Duração. Tempo Vibrado. Time. Tempo. Duration. Vibrating time. Dia-
Dialética da Duração. lectic of Duration.
cena n. 23
arte musical e por isso, “Unidade fisiológica ator, assunto abordado no seu livro póstu-
fundamental” é o equivalente ao termo An- mo A Construção da Personagem5, ele usa
damento2 ou tempo3 da música. Andamento o termo Tempo-ritmo6. Em todo o texto, são
é o elemento que designa a velocidade na poucos os momentos em que ritmo e tempo
qual a música será executada, geralmente são tratados separadamente. O modo como
sugerida pelo compositor da obra. A “Unida- organiza a sua pesquisa sobre o tempo¬-rit-
de artística” é a pulsação4 ou pulso, marca- mo, em suas produções, denota uma aproxi-
ção constante que pode ser executada por mação muito clara dos conceitos musicais,
meio do metrônomo, do maestro ou algum aplicados às particularidades cênicas de
instrumento que faça a base na música. A suas criações.
sua constância ajuda o músico a se orientar
para não variar a velocidade e, ao mesmo Tempo é a rapidez ou a lentidão do an-
damento de qualquer das unidades pre-
tempo, o ajuda na medição das notas, dos viamente estabelecidas, de igual valor,
compassos e de cada trecho da música. En- em qualquer compasso determinado.
tão, para compor ou perceber o ritmo, há a Ritmo é a relação quantitativa das uni-
dades – de movimento, de som – com
necessidade de manipular “Tempo Intelectu- o compasso determinado como unidade
al” (tempo cronológico), “Unidade Fisiológica de extensão para certo tempo7 e com-
Fundamental” (andamento/tempo musical), passo. (Stanislavki, 2005, p. 251- 252).
“unidade artística” (pulsação) e duração.
Estes conceitos, oriundos do universo Aproximando estes conceitos musicais
musical, também transitam no meio tea- da linguagem teatral, para Stanislavski, a
tral. Como exemplo, pode-se citar Constan- ação e o texto do ator são realizados no
tin Stanislavski (1863-1938), diretor russo tempo; o ritmo é a soma das infinitas com-
que, quando fala de ritmo no trabalho do binações de velocidades e pausas, criadas
pelo ator para realizar sua ação e dizer o
2 Andamento: “Índice do grau de velocidade ou então lentidão seu texto. Estas combinações de velocida-
que se imprimi à execução de um trecho de música. O anda- des e pausas são organizadas no tempo,
mento é indicado por instruções escritas conhecidas como mar-
cações de andamento (por exemplo, adágio, andante, allegro) por meio do tempo (andamento). Sem ele,
ou por batidas de metrônomo, as quais fornecem uma indicação o ritmo ficaria extremamente desorganizado
matematicamente mais exata do andamento correto. A palavra
tempo (que designa em italiano o andamento e é tradicional-
e, deste modo, a ação e a fala perderiam
mente us da em partituras nessa acepção) também é usada em
conjunto com outras palavras para indicar marcações mais pre-
cisas de velocidade; por exemplo, tempo primo (no andamen- 5 O livro, publicado no Brasil, A construção da Personagem é
to original), tempo giusto (no andamento exato) e tempo di tradução da versão inglesa Building a Character, publicada em
minuetto (em andamento de minueto). Apesar de todas as in- 1949. A versão russa Rabota Aktiora Nad Saboi: rabota nad
dicações, o andamento permanece sempre uma questão de in- saboi vtvorcheskom protzesse voploshenie (O trabalho do ator
terpretação do executante e não existe realmente o andamento sobre si mesmo: o trabalho sobre si mesmo no processo criador
“correto” para uma peça musical, dado que a acústica e outras da encarnação) é de 1948.
influências externas exercem grande efeito sobre a velocidade
a que uma composição se torna mais expressiva”. (Dicionário 6 Tempo, do termo Tempo-ritmo de Stanislavski se refere ao
zahar, 1985, p. 13). tempo musical. É possível perceber isto na edição inglesa Buil-
ding a Character (2001) e espanhola El Trabajo Del Actor Sobre
3 Para diferenciar tempo (andamento) de tempo (sucessão de Sí Mismo: El Trabajo Sobre Sí Mismo en el Proceso Creador
horas, minutos e dias), será usado o itálico. Na teoria musical, de la Encarnación. (1983). Quando o autor se refere a tempo
de acordo com a sua convenção, não importa a língua, alguns - sucessões de horas e dias - nestas línguas, traduz-se pelos
termos musicais são mantidos a grafia latina, como no caso de termos equivalentes, time e tiempo. Em português, para os dois
tempo. termos a grafia é a mesma, fato gerador de certa confusão na
leitura do texto de Stanislavski, em nossa língua.
4 “Pulsação é o efeito de pulsar, bater ritmadamente. Sentido
de constância e unidade de ritmo (variação: pulso)”. (Dourado, 7 O itálico não é do texto de Stanislavski, foi usado para mostrar
2004, p. 265). que o autor se refere ao termo musical.
sua força, sua expressão e seu valor artísti- organizações no tempo. Embora a lista de
co. Instalarse-ia o caos (Stanislavski, 2005). elementos tão fundamentais e importantes
Já Pulsação, pode ser o recurso que Stanis- que compreendem o universo da composi-
lavski denomina de “tarareo”. “Tarareo” é o ção rítmica, não finda aqui. Ainda pode- se
cantarolar de uma melodia ou uma canção citar: 1. Acento - um ponto mais forte, intenso
que o ator mantém internamente nos mo- ou algum ponto que marca uma mudança,
mentos de silêncio, imobilidade e sempre uma quebra e, por isso, pode ser escolhido
que for necessário ativar sua ação e fala. pelo artista como ponto de referência e de-
O “tarareo” é um mecanismo para ajudar o senvolvimento de composições rítmicas. 2.
ator/atriz sustentar todo o período da pausa Esforço “impulsos internos a partir dos quais
ou na transposição de um tempo-ritmo a ou- se origina o movimento” (Laban, 1978, p.
tro (Stanislavski, 2005). 32). É originado de impulsos intencionais ou
Nesta mesma perspectiva, para sus- não. Qualquer movimento realizado apre-
tentar e despertar a espontaneidade do senta certo esforço que lhe é destinado, as-
ator/atriz, outro encenador russo, Vsévolod sim como qualquer som emitido apresenta
Meyerhold (1874-1940), usava a contagem determinada intensidade que lhe será carac-
(“i, ras, dva”: e um, e dois) e músicas execu- terística. No universo sonoro, este processo
tadas ao vivo enquanto os atores realizavam é denominado de “Intensidade”8 e no teatro,
suas movimentações. Com isso, objetivava- pode ser esforço. 3. Energia, equivalente
se que os atores tivessem autonomia na sua a Dinâmica na música - que se caracteriza
criação rítmica, amparada na contagem (“i, como a distribuição e organização da força
ras, dva”: e um, e dois) e também dialogas- na realização de movimentos, qualificando
sem com todos os elementos cênicos, crian- os como leves, pesados, delicados, bruscos
do os estímulos rítmicos das ações. Tanto a e diversas outras qualidades responsáveis
contagem, quanto a música têm a função de pelas qualidades expressivas que tanto o
ser uma pulsação que orientasse o ator e a som como os movimentos apresentam (La-
atriz (Cappiello, 2006). ban, 1978). Contudo, este artigo se concen-
Já na nossa pesquisa, além destas tra nos elementos tempo (Tempo Intelectual)
sugestões dos encenadores, tanto tempo e duração. Em outra oportunidade, os de-
quanto pulsação, podem ser organizados a mais elementos serão melhor examinados.
partir da própria respiração, de imagens pro- Nos estudos práticos e exercícios cê-
pulsoras, músicas pessoais e algum outro nicos experimentados na pesquisa, os ele-
elemento criado pelo ator e pela atriz para a mentos pulsação e tempo (andamento/
sua criação. Estes elementos, potencializa-
dores da criação, também podem ser usa- 8 Variação de impulso e repouso. É o quão forte ou fraco um
som é tocado e reverbera no espaço e no tempo. Pode ser uma
dos na estruturação e organização da ação intensidade com variações naturais ou intencionais. A variação
e da fala na cena. Assim como também po- natural se caracteriza pela perda gradativa da força do som ou
do gesto enquanto é executado. A variação intencional é aquela
dem ser usadas questões externas ao corpo que a música chama de dinâmica, fator que ajuda a desenhar
e ao trabalho do ator e da atriz, como a mú- e criar a atmosfera da melodia, compreendendo, tanto as varia-
sica da cena, a relação com outros atores ou ções de intensidade (forte, piano, pianíssimo), quanto a transi-
ção de uma intensidade a outra (crescendo, diminuendo, sfor-
mesmo a iluminação. O importante é o ator zando). Assim, intensidades desiguais (piano-forte, forte-piano),
e a atriz encontrarem mecanismos que con- variações de relaxamento e esforço geram uma série de des-
continuidades de sons e gestos que vão se transformando e
tribuam na composição e percepção de rit- originando infinitas possibilidades de qualidades de expressões.
mos em seus trabalhos e entenderem suas Neste processo descontínuo, surge o acento. (Paris, 2010, p.
27-29).
Bachelard é que o tempo psíquico possui ação, mas não significa que ela será realiza-
ações negativas e positivas em sua estrutu- da. O tempo pensado (formado pelo instante
ra, pois o tempo psíquico não é um fenôme- decisivo e consentimento) não é abstrato, é
no que simplesmente passa, escorre, “não possível ser, inclusive, cronometrado (Ba-
há nenhum sincronismo entre a passagem chelard, 1988). contudo, ele não fica retido
das coisas e a fuga abstrata do tempo”. (Ba- na memória como fazendo parte do tempo
chelard, 1988, p. 7). Por isso, é necessário do gesto10.
“estudar os fenômenos temporais cada qual Quando Bachelard torna mais importan-
segundo um ritmo apropriado, um ponto de te o momento do “consentimento”, está hie-
vista particular”. (Bachelard, 1988, p. 7). rarquizando os instantes. Com esta propos-
Para explicar a “teoria da descontinui- ta, quebra a noção de continuidade temporal
dade temporal”, Bachelard descreve que a de Bergson. Bachelard acredita que, “a co-
nossa consciência, o nosso “Eu” está funda- esão de nossa duração é feita da coerência
mentado na realidade temporal que é perce- de nossas escolhas, do sistema que coorde-
bida e compreendida por nós mesmos e, por na nossas preferências” (Bachelard, 1988,
isso, podemos acessá-la sempre que que- p. 25). O início do “consentimento”, que é
remos. O tempo que não é percebido é ig- o que interessa a Bachelard, está ligado ao
norado pela nossa consciência e, portanto, verbo pela dialética do sim e do não. Decidir
não fica registrado no cerne do nosso ser. entre o sim e não precede um julgamento,
O tempo que não é percebido, Bachelard ou seja, outra ação “que prepara, que mede
chama de tempo negativo. Assim, ao reali- a justa causalidade psicológica e biológica.
zar uma ação qualquer, há dois momentos A decisão excepcional dirige a evolução do
distintos: o que acontece no âmbito do pen- ser pensante” (Bachelard, 1988, p. 25). Este
samento e o que se desenvolve no espaço. momento é uma conquista sobre o medo e
Estes dois momentos não têm sincronia en- o erro, precede um juízo de valor, uma de-
tre si e acontecem em momentos diferentes. cisão, portanto, tem-se neste processo, um
O que acontece no pensamento é esque- acréscimo temporal secundário, que fica im-
cido, não é computado pelo cérebro como perceptível, incalculável na nossa memória.
parte da ação. Para nós, o tempo é pre- Devido a este tempo que é acrescentado,
enchido somente pela ação realizada. Por que na maioria das vezes nem lembramos
isso, Bachelard se concentra no que acon- que existiu, que Bachelard afirma que a nos-
tece no pensamento para explicar o “tempo sa percepção de tempo não é constante. A
negativo”. Nesta etapa, antes da realização constância dos fatos guardados na memória
de um gesto, o ponto culminante, para o fi- é uma construção. Os detalhes esquecidos
lósofo, está no ato da decisão. O instante formam as lacunas, os buracos do tempo,
em que se decide fazer o gesto (instante de- marcam as descontinuidades, os atrasos,
cisivo) é tanto a unidade quanto o absoluto ou adiantamentos de ações que parecem
da ação: “para o comportamento temporal o que não fazem parte do tempo vivido. O que
que importa é começar o gesto”, permitir-lhe fica registrado é uma sequência de fatos que
acontecer porque é esta decisão que singu- gera a sensação de continuidade, mas que
lariza o gesto como meu. O consentimento exclui a descontinuidade. O tempo, também
(reflexo de ação) é concebido como a rea-
lização de uma possibilidade, já que ainda 10 Alain Berthoz, neurofisiologista francês, descreve de forma
não aconteceu, ou seja, consente-se da mais sucinta como acontece este fenômeno em seu livro, La
Décision. Paris: Odile Jacob, 2003.
composto de tempo esquecido, cheio de la- Para Bachelard, deve-se pensar a du-
cunas, dúvidas, descontinuidades, decisão ração pela dialética, ou seja, também con-
e julgamento, o filósofo chama de “tempo siderar que ela é descontínua, complexa,
vibrado”. Portanto, estudar um fenômeno com questões contraditórias. Para explicar
no tempo, não é esquematizar uma linha como as lacunas e descontinuidades acon-
reta, o “percurso mais rápido”, e estabelecer tecem na duração, cita duas questões fun-
ações ao logo dela. Ao invés disso, é enten- damentais: “riqueza” e “densidade”. Nossa
der que existem ondas que, até podem ter noção de duração está diretamente vincula-
uma direção específica, mas apresentam da com o grau de “riqueza” e “densidade” à
lacunas, descontinuidades, buracos e es- qual nossa percepção está envolvida. Quan-
quecimentos. Isto também deve ser consi- to mais nossa percepção está imersa numa
derado quando se pensa em temporalidade, ação, significa que, para nós, ela é rica e
mas apenas conseguimos pensar tempo, densa, portanto, a duração parecerá curta,
temporalidade e duração a partir de nossas rápida, mesmo que temporalmente ela não
próprias vivências, estabelecendo e orde- seja. Quanto menos rica e densa uma ação
nando-as no tempo, formando com isso, o nos parece, mais desinteressados estare-
“fenômeno psicológico temporal”. Portanto, mos, logo, a duração parecerá inacabável,
analisar uma ação é também ordenar no mesmo que dure apenas alguns instantes.
tempo as decisões que a constituiu, esta- Definir se uma duração é lenta ou rápida é
belecer e hierarquizar pontos de referên- um processo individual que implica numa
cias e com isso, consolidar a consciência, série de fatores culturais, sociais, históricos
encontrar um modo de entender como ela e comportamentais. O grau de interesse de
se organiza no tempo. Contudo, na prática cada um será motivado por níveis diferentes
cotidiana, falar de tempo é, invariavelmen- de atenção das pessoas que participam do
te, analisar instantes que foram totalmente processo de escolha. Diante disso, o filósofo
preenchidos por determinada ação. Instan- define a duração como uma criação indivi-
tes que têm durações, portanto, ao falar de dual, uma obra única que cada pessoa cria.
tempo, se está sempre trabalhando sobre as Com tudo isso, Bachelard quer de-
durações. Durações que significaram, afinal, monstrar que a nossa percepção de tempo
foram lembradas e se tornaram marcas do e duração não pode ser considerada como
tempo. Portanto, para estudar a nossa per- algo linear, constante, com começo meio e
cepção de tempo, implica falar de duração: fim. Não somos capazes de enumerar to-
da duração de uma ação, de um momento, dos os eventos, sempre esquecemos algo.
de uma experiência, de um trabalho11. De alguma forma, o tempo que é lembra-
do também é um tempo escolhido. A nossa
11 Bachelard não está criando uma teoria de que o Tempo é consciência faz escolhas de momentos e
descontínuo. Atualmente existem algumas teorias, que não se- os organiza de um modo que parece linear.
rão tratadas aqui, que procuram explicar o Tempo não de forma
linear e constante, o que abre as possibilidades para as teorias
Ela não percebe que há superposições de
de universos paralelos e viagens no tempo. Bachelard está fa- tempos e durações, que há acontecimentos
lando estritamente de nossa percepção, que nos dá a impres-
são de que o tempo é linear e constante e todo preenchido de
concomitantes, que há ausências, buracos,
ações, movimentos e acontecimentos. Com isso, ele quer dis- “brancos”. Assim como a matéria parece li-
cutir que a lacuna, a pausa e o repouso também fazem parte near e imóvel, o tempo e a duração, também
de nosso tempo, embora não sejam percebidos. A partir deste
raciocínio, ele quer demonstrar que o repouso também faz parte parecem lineares e constantes. Portanto, é
de nosso ser e que precisa ser valorizado como ritmo natural e necessário dilatar a percepção e interagir
necessário em nossa vida.
com estes elementos de modo que todas lar de lacunas, brancos, descontinuidades,
as suas formas, contínuas ou descontínuas, Bachelard chama a atenção para detalhes
sejam preservadas e valorizadas. que faltam, como os silêncios, as pausas, as
Bachelard não está tratando de arte repetições, os estranhamentos, as dúvidas
e, mesmo para ele, uma matéria viva, inte- que também complementam o tempo e as
ressante e com energia é aquela que vibra, durações da narrativa, de um personagem.
cujos ritmos de seus elementos não estão Pensar os descontínuos, as suas rupturas,
estacionados. Esta imagem de que a maté- as lacunas nas ações e inações é propor no-
ria vibra e nesta vibração gera energia que vas inserções dramatúrgicas, leituras, apro-
se estende às outras matérias e contami- fundamentos rítmicos, outras durações não
nam o espaço, é uma imagem muito inte- apenas no trabalho interno do intérprete,
ressante que contribui para o artista pensar mas na dramaturgia da cena, da ação cêni-
que, um ritmo que não vibra, que não permi- ca, da movimentação ou da composição da
te contaminação, cristaliza a ação, não pos- luz.
sibilitando imagens, transformações, contri- Outro tema interessante que Bachelard
buindo para a perda de interesse. Portanto, aborda são os graus diferentes de densi-
a proposta de vibração pode contribuir mui- dade e riqueza. Temática interessante para
to como uma imagem de sustentação das explorar a percepção tanto do ator quanto
pulsações internas, das contagens mentais do espectador, de forma que as noções de
para transformar fluidamente as tensões, tempo e duração sejam difíceis de mesurar,
energias, dinâmicas, respiração, qualida- proporcionando, assim, uma experiência
des, impulsos de cada uma das minúsculas temporal num presente também vibrante
partes que cada evento é subdividido. Os para todos que participam do evento tea-
tempos devem fazer vibrar o corpo e a ima- tral. Pode-se eleger ao longo de uma ação,
ginação, aquecendo e contaminando o es- graus diferentes de densidade, riqueza, ten-
paço, o tempo e o público. são, relaxamento e esforço, convocando,
Compreender tempo e duração não despertando e atraindo todos os sentidos
apenas como algo que escorre e se esvai, do espectador, assim como a percepção do
mas que se opõe, que se prolonga ou que próprio artista. Explorar silêncios, lacunas,
adianta, é perceber que há uma infinidade esquecimentos, vazios é, de fato, compor,
de possibilidades rítmicas. Pensar em dura- criar uma duração, como sugere o filósofo.
ções à partir da dialética (que se prolongam, Assumir o tempo vibrado como integrante da
atrasam, são adiadas ou adiantadas) e em percepção e explorar as suas descontinui-
“tempos vibrados” (que têm lacunas, super- dades, lacunas, superposições, dilatações
posições e regressões) faz surgir novas pos- e diminuições para criar marcas temporais
sibilidades de composições rítmicas no tra- que possam ser reconhecidas e outras que
balho do ator e da atriz, novas provocações possam ser quebradas, estabelecendo as
dramatúrgicas, novas formas de discutir a surpresas. Fragmentar o tempo para dilatar,
unidade de tempo, inúmeras formas de pen- diminuir, avançar, deslocá-lo e compor dife-
sar os tempos no teatro e o próprio espaço. rentes dinâmicas.
Tais proposições interferem diretamente na Como é possível perceber é preciso
estrutura composicional da obra e de sua ampliar o tempo de composição não apenas
preparação, além de influir de modo efetivo com ações, mas com todas as possibilida-
nos processos de formação do ator. Ao fa- des de lacunas e pausas no tempo e nas
na década de oitenta, com as publicações Por volta de 1931, enviou dois volumes dati-
das obras de Bachelard, no Brasil, pela cole- lografados e em francês de La Rythmanalise
ção Os Pensadores, com tradução de Mar- a Bachelard, textos que nunca foram publi-
celo Coelho da La Dialectique de la Durée cados e, a notícia que se tem é que foram
(A Dialética da Duração, 1988) que a comu- queimados após sua morte, na década em
nidade filosófica brasileira soube da famo- 1950, no Rio de Janeiro. Nem na biblioteca
sa obra publicada no Brasil e então, surgiu de Bachelard o livro foi encontrado. Ainda
interesse em pesquisa-la. Mas quem seria assim, devido a ela, seu autor se inscreve
Lucio Alberto Pinheiro dos Santos? Em que como o primeiro filósofo português (Cunha,
biblioteca estaria a obra? 2008).
Ainda em 1997 o mistério não havia Segundo Bachelard, o que Lucio Alberto
sido elucidado pois, neste ano é lançado o Pinheiro dos Santos propunha era uma “filo-
volume dois de História da Filosofia no Bra- sofia do repouso”, o que não significa que
sil, escrito por Jorge Jaime (1925-2013), no seja uma filosofia repousante, quieta, tran-
qual há um artigo intitulado “Lucio Alberto quila ou que disserte sobre como ter uma
Pinheiro dos Santos: Um filósofo ‘brasileiro’ vida sossegada. Seu objetivo real é a busca
fantasma”. (Jaime, 1997, p. 424), onde faz metafísica para provar que o repouso é um
estas mesmas questões e por não ter res- direito do pensamento, o “repouso é um dos
postas para elas, traz no título brasileiro en- elementos do devir”, inscrito no âmago do
tre aspas, afinal, tinha-se dúvida de que o ser. Ao viver o repouso e ao senti-lo, de acor-
autor fosse mesmo brasileiro e se fosse, era do com o filósofo, se percebe que se está
um fantasma, já que ninguém tinha notícias mesclado ao devir compartilhado do ser, ins-
dele. Devido aos esforços de alguns filóso- crito no próprio nível da realidade temporal
fos portugueses empenhados em recuperar que fundamenta a consciência e a pessoa.
e elucidar estas questões, como o filósofo “É na parte impessoal da pessoa que um
português Prof. Dr. Rodrigo Sobral Cunha, filósofo deve descobrir zonas de repouso,
autor de duas obras dedicadas a esta temá- razões de repouso, com as quais fará um
tica, que atualmente sabe-se mais sobre es- sistema filosófico do repouso”. (Bachelard,
tes fatos. 1988, p. 5-6). Por meio da reflexão, do exer-
Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos foi cício filosófico que o ser cria lazeres e se for-
filósofo, matemático, físico, psicólogo, pro- talece. “A consciência pura irá aparecer-nos
fessor e político bracarense12 e se conside- como uma potência de espera e de guarda,
rava luso-brasileiro por ter vivido no Brasil. como uma liberdade e uma vontade de nada
Por volta de 1914 a 1917 foi professor no Li- fazer”. (Bachelard, 1988, p. 5-6). Bachelard
ceu Gil Vicente, em Lisboa, onde conheceu relata que ele mesmo praticou a “filosofia do
o filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), o repouso” e segundo ele, é possível encon-
primeiro a pensar uma teoria do ritmo, ainda trar ritmos saudáveis, naturais, mais sim-
em 1916, de quem empresta fundamentos ples e tranquilos em momentos de repouso
para pensar a Ritmanálise. No final da déca- e de alegria. Afirma que saiu das sessões de
da de vinte, vem ao Brasil, ficando no Rio de ritmanálise serenado e que por isso, acre-
Janeiro, onde lecionou psicologia e filosofia. dita que é possível uma ritmanálise, assim
como há uma psicanálise, já que ela “cum-
12 Bracarense é natural de Braga, cidade que fica no Noroeste pre curar a alma sofredora – em particular a
de Portugal. Também conhecida como Bracara Augusta, funda- alma que sofre com o tempo, que sofre de
da pelos romanos entre 300 a 400 a. C.
estão tratando de um assunto que é mui- lósofo francês, Henri Lefebvre (1901-1991)
to discutido nos dias atuais: o respeito ao – estudioso do espaço cotidiano e urbano
próprio ritmo e a busca por viver uma vida – a escrever seu último livro Éléments de
mais próxima de nossos próprios ideais. Re- Rythmanalyse: introduction à la connaissan-
pousar com mais frequência para equilibrar ce des rythmes (Elementos da Ritmanáli-
pensamentos, os ritmos corporais e as rela- se: introdução ao conhecimento dos ritmos,
ções. Executar tarefas com mais consciên- 1992), que propõe a Ritmanálise e o ritmo
cia e intensidade, saindo do automático e do como elementos de análise do cotidiano.
mecânico. Nossa sociedade padece de mui- Este trabalho de Lefebvre provocou o poeta
tos males, transtornos de ordem psicológi- e linguista Henri Meschonnic (1932-2009) a
ca, comportamental e social, cujos estudos repensar o papel e a importância do ritmo
apontam a falta de respeito ao descanso, ao na linguagem, na literatura e na sociedade.
sono, ao tempo da criatividade, exatamente Sua dedicação a este tema gerou diversos
porque os ritmos pessoais e corporais não estudos, entre eles, os livros Politique du
são respeitados. Os sentidos e os ritmos Rythme: politique du sujet (Política do Rit-
pessoais estão sujeitos à ordem das cida- mo: política do sujeito, 1995) e Critque du
des, à produção frenética que todos, não Rythme: antropologie historique du langage
importa o trabalho, são obrigados a realizar. (Crítica do Ritmo: antropologia histórica da
Uma vida ritmanalítica propõe um olhar sen- linguagem, 1982). Considerando que a obra
sível, buscando entender a si, observando de Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos nunca
pulsões, rotinas, produção e estudar meios foi encontrada, é significativo saber que seu
de introduzir pausas e de se relacionar rit- pensamento atravessou gerações. Um pen-
micamente com as pessoas, com si mesmo samento que mobiliza e influencia muitos
e com a própria produção. Assim, viver em outros, provocando e desenvolvendo diálo-
“tempos vibrados” e em “durações dialéti- gos e pesquisas em todas as áreas, ritman-
cas” é não negar a natureza do tempo, da do muitas pesquisas e imaginações.
duração, da vida e de si mesmo. É meditar
sobre si na sociedade e no mundo.
Este artigo não quer julgar os levanta- Referências
mentos de Bachelard e Lúcio Pinheiro, nem
“atualizar” suas proposições a partir de teo- ANDRADE, Mário. Introdução à estética mu-
rias mais atuais. Sobre a teoria da Ritmaná- sical. São Paulo: HUCITEC, 1995.
lise é possível cruzar com pesquisas sobre
a meditação, artes marciais e mesmo pen- BACHELARD, Gaston. A dialética da dura-
samento oriental como o taoísmo. As pro- ção. São Paulo: Ática, 1988.
posições de Bachelard são próximas do tra-
balho de Alain Berthoz (1939) que também BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicio-
estuda percepção. O objetivo era descrever nário etimológico prosódico da língua portu-
como as provocações destes autores têm guesa: vocábulos, expressões da língua ge-
influenciado imageticamente a composição ral e científica, sinônimos contribuições do
rítmica nesta pesquisa. É incrível como um tupi guarani. São Paulo: Ed. Brasília, 1974.
pensamento pode influenciar tantos pesqui-
sadores. Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos
inspirou Bachelard que mobilizou outro fi-
CAPPIELLO, M. Note sulla relazione tra rit- STANISLAVSKI, Constantin. El trabajo del
mo e energia. In: CIANCARELLI, R. ll ritmo actor sobre sí mismo: el trabajo sobre sí mis-
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