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cena n.

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Tempo Vibrado e Dialética da Duração:


provocações imagéticas para a composição rítmica

Andreia Aparecida Paris


Universidade Regional do Cariri
E-mail: andreia.paris@urca.br

Resumo Abstract
Este artigo aborda alguns conceitos This work is about rhythm’s composi-
fundamentais quando se trata de percepção tion in the theater. For this composition is
e composição do ritmo no trabalho do ator e necessary the discussion about time, tempo
da atriz: Tempo, tempo e duração. Para am- and duration in the musical, philosophical
pliar a discussão e promover provocações, and theater theories. The main philosopher
serão apresentados os conceitos de Tempo in this article is Gaston Bachelard who dis-
Vibrado e a proposta de pensa a duração cusses “vibrating time” and “the dialectic of
a partir da dialética que Gaston Bachelard duration” in his book “The Dialectic of Du-
trata em seu livro A Dialética da Duração. ration” (1936). This paper presents too the
Conceitos que Bachelard disserta a partir philosopher Lucio Alberto Pinheiro dos San-
do livro La Rythmanalise de Lucio Alberto tos and his book “La Rythmanalise” (1931)
Pinheiro dos Santos, filósofo português des- that inspired Bachelard to write about the
conhecido, cuja história também é aborda- rhythm, time and duration.
da neste trabalho.
Palavras-chave Keywords
Tempo. Tempo. Duração. Tempo Vibrado. Time. Tempo. Duration. Vibrating time. Dia-
Dialética da Duração. lectic of Duration.
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Tempo, tempo, pulsação e duração fluir apresenta descontinuidades. Exemplos:


emissão de sons de duração desigual; de-
O ritmo é um elemento difícil de definir terminado movimento de braços; acidentes
e compreender. Quem resolve se aventurar numa corrente de água”. (Kiefer, 1984, p.
por seus segredos, encontra diversas defi- 23). Ou seja, para estes dois pesquisadores,
nições, nas mais diferentes áreas do conhe- o ritmo se torna um dos elementos expres-
cimento que tentam explicar, aplicar e se sivos mais potentes e reveladores quando
aproximarem cada vez mais deste fenôme- mobiliza a sensibilidade do público a partir
no. A partir desta constatação, a pesquisa do jogo entre ordenar e fluir, medir e soltar.
iniciada em 20081 escolheu investigar, além Por isso, sugerem explorar tanto a capaci-
do teatro – esta é uma pesquisa na área te- dade do ritmo de medir, quantificar e aritmi-
atral – a área da música, de modo a com- zar um fenômeno, quanto fazer com que ele
preendê-lo melhor nas artes. flua, escorra ou dinamize algum evento.
Desde então, o conceito de ritmo que Nesta pesquisa percebeu-se ainda que,
vem sendo defendido desde o início da para mobilizar as questões métricas e flui-
pesquisa abarca tanto a raiz grega rhéo das do ritmo, ele não poderia ser explorado
(rio) que significa fluir (Bueno, 1974), assim isoladamente. Aliás, o ritmo não é um ele-
como também ry que significa puxar, pren- mento que pode ser tratado solitariamente.
der (The new grove, 1980, p. 805). Ou seja, Ele é um orquestrador, um maestro de uma
nesta pesquisa o ritmo é entendido como série de elementos que organiza, ordena e
um elemento paradoxal que preserva em agrega. Como explica Andrade, o ritmo é um
sua estrutura tanto a capacidade de orde- fenômeno que acontece no tempo, o que
nar quanto de fluir. Optou-se por manter as implica em outro elemento também impor-
duas possibilidades por causa das infinitas tante: a duração. Ao acontecer no tempo, o
possibilidades expressivas que explorar ele- ritmo dura, permanece e se prolonga por um
mentos métricos e fluidos, do ritmo, podem determinado momento temporal. Tempo en-
proporcionar. A partir do diálogo entre medir tendido como sucessão dos anos, dos dias,
e fluir, acredita-se que a composição rítmica das horas, etc., que envolve, para o homem,
proporciona transformar, revelar, agrupar, a noção do presente, passado e futuro (Fer-
surpreender, transformar e metamorfose- reira, 2004). Mário de Andrade tem um ter-
ar sons e movimentos na criação artística. mo interessante para denominar este tem-
Este pensamento é defendido também por po: “Tempo Intelectual”.
Jacyan Castilho de Oliveira e Bruno Kiefer De acordo ainda com Mário de Andra-
que abordam o ritmo como um elemento de, além de “Tempo Intelectual”, para perce-
ordenador e que, devido a esta função de ber ou compor o ritmo nas artes, são neces-
organizar, permite que os elementos fluam sárias outras duas unidades fundamentais:
e se tornem muito mais expressivos: “Fala- a “Unidade fisiológica fundamental”, cujo
mos em ritmo a partir do momento em que o parâmetro de medida são os eventos fisio-
lógicos do corpo como os batimentos cardí-
1 Período em que a autora iniciou no Programa de Pós-gradu-
acos e respiratórios; e, a segunda, “Unidade
ação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina artística”, que é artificial, incerta e perma-
– PPGT/UDESC. Esta pesquisa resultou na dissertação A Es- nece somente enquanto durar o evento ar-
cuta do Sussurro: percepção e composição do ritmo no trabalho
do ator, defendida em 2010, pelo Programa de Pós-Graduação tístico (Andrade, 1995). Neste estudo es-
– Mestrado em Teatro – UDESC (Universidade do Estado de pecificamente, Andrade está se referindo à
Santa Catarina).

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arte musical e por isso, “Unidade fisiológica ator, assunto abordado no seu livro póstu-
fundamental” é o equivalente ao termo An- mo A Construção da Personagem5, ele usa
damento2 ou tempo3 da música. Andamento o termo Tempo-ritmo6. Em todo o texto, são
é o elemento que designa a velocidade na poucos os momentos em que ritmo e tempo
qual a música será executada, geralmente são tratados separadamente. O modo como
sugerida pelo compositor da obra. A “Unida- organiza a sua pesquisa sobre o tempo¬-rit-
de artística” é a pulsação4 ou pulso, marca- mo, em suas produções, denota uma aproxi-
ção constante que pode ser executada por mação muito clara dos conceitos musicais,
meio do metrônomo, do maestro ou algum aplicados às particularidades cênicas de
instrumento que faça a base na música. A suas criações.
sua constância ajuda o músico a se orientar
para não variar a velocidade e, ao mesmo Tempo é a rapidez ou a lentidão do an-
damento de qualquer das unidades pre-
tempo, o ajuda na medição das notas, dos viamente estabelecidas, de igual valor,
compassos e de cada trecho da música. En- em qualquer compasso determinado.
tão, para compor ou perceber o ritmo, há a Ritmo é a relação quantitativa das uni-
dades – de movimento, de som – com
necessidade de manipular “Tempo Intelectu- o compasso determinado como unidade
al” (tempo cronológico), “Unidade Fisiológica de extensão para certo tempo7 e com-
Fundamental” (andamento/tempo musical), passo. (Stanislavki, 2005, p. 251- 252).
“unidade artística” (pulsação) e duração.
Estes conceitos, oriundos do universo Aproximando estes conceitos musicais
musical, também transitam no meio tea- da linguagem teatral, para Stanislavski, a
tral. Como exemplo, pode-se citar Constan- ação e o texto do ator são realizados no
tin Stanislavski (1863-1938), diretor russo tempo; o ritmo é a soma das infinitas com-
que, quando fala de ritmo no trabalho do binações de velocidades e pausas, criadas
pelo ator para realizar sua ação e dizer o
2 Andamento: “Índice do grau de velocidade ou então lentidão seu texto. Estas combinações de velocida-
que se imprimi à execução de um trecho de música. O anda- des e pausas são organizadas no tempo,
mento é indicado por instruções escritas conhecidas como mar-
cações de andamento (por exemplo, adágio, andante, allegro) por meio do tempo (andamento). Sem ele,
ou por batidas de metrônomo, as quais fornecem uma indicação o ritmo ficaria extremamente desorganizado
matematicamente mais exata do andamento correto. A palavra
tempo (que designa em italiano o andamento e é tradicional-
e, deste modo, a ação e a fala perderiam
mente us da em partituras nessa acepção) também é usada em
conjunto com outras palavras para indicar marcações mais pre-
cisas de velocidade; por exemplo, tempo primo (no andamen- 5 O livro, publicado no Brasil, A construção da Personagem é
to original), tempo giusto (no andamento exato) e tempo di tradução da versão inglesa Building a Character, publicada em
minuetto (em andamento de minueto). Apesar de todas as in- 1949. A versão russa Rabota Aktiora Nad Saboi: rabota nad
dicações, o andamento permanece sempre uma questão de in- saboi vtvorcheskom protzesse voploshenie (O trabalho do ator
terpretação do executante e não existe realmente o andamento sobre si mesmo: o trabalho sobre si mesmo no processo criador
“correto” para uma peça musical, dado que a acústica e outras da encarnação) é de 1948.
influências externas exercem grande efeito sobre a velocidade
a que uma composição se torna mais expressiva”. (Dicionário 6 Tempo, do termo Tempo-ritmo de Stanislavski se refere ao
zahar, 1985, p. 13). tempo musical. É possível perceber isto na edição inglesa Buil-
ding a Character (2001) e espanhola El Trabajo Del Actor Sobre
3 Para diferenciar tempo (andamento) de tempo (sucessão de Sí Mismo: El Trabajo Sobre Sí Mismo en el Proceso Creador
horas, minutos e dias), será usado o itálico. Na teoria musical, de la Encarnación. (1983). Quando o autor se refere a tempo
de acordo com a sua convenção, não importa a língua, alguns - sucessões de horas e dias - nestas línguas, traduz-se pelos
termos musicais são mantidos a grafia latina, como no caso de termos equivalentes, time e tiempo. Em português, para os dois
tempo. termos a grafia é a mesma, fato gerador de certa confusão na
leitura do texto de Stanislavski, em nossa língua.
4 “Pulsação é o efeito de pulsar, bater ritmadamente. Sentido
de constância e unidade de ritmo (variação: pulso)”. (Dourado, 7 O itálico não é do texto de Stanislavski, foi usado para mostrar
2004, p. 265). que o autor se refere ao termo musical.

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sua força, sua expressão e seu valor artísti- organizações no tempo. Embora a lista de
co. Instalarse-ia o caos (Stanislavski, 2005). elementos tão fundamentais e importantes
Já Pulsação, pode ser o recurso que Stanis- que compreendem o universo da composi-
lavski denomina de “tarareo”. “Tarareo” é o ção rítmica, não finda aqui. Ainda pode- se
cantarolar de uma melodia ou uma canção citar: 1. Acento - um ponto mais forte, intenso
que o ator mantém internamente nos mo- ou algum ponto que marca uma mudança,
mentos de silêncio, imobilidade e sempre uma quebra e, por isso, pode ser escolhido
que for necessário ativar sua ação e fala. pelo artista como ponto de referência e de-
O “tarareo” é um mecanismo para ajudar o senvolvimento de composições rítmicas. 2.
ator/atriz sustentar todo o período da pausa Esforço “impulsos internos a partir dos quais
ou na transposição de um tempo-ritmo a ou- se origina o movimento” (Laban, 1978, p.
tro (Stanislavski, 2005). 32). É originado de impulsos intencionais ou
Nesta mesma perspectiva, para sus- não. Qualquer movimento realizado apre-
tentar e despertar a espontaneidade do senta certo esforço que lhe é destinado, as-
ator/atriz, outro encenador russo, Vsévolod sim como qualquer som emitido apresenta
Meyerhold (1874-1940), usava a contagem determinada intensidade que lhe será carac-
(“i, ras, dva”: e um, e dois) e músicas execu- terística. No universo sonoro, este processo
tadas ao vivo enquanto os atores realizavam é denominado de “Intensidade”8 e no teatro,
suas movimentações. Com isso, objetivava- pode ser esforço. 3. Energia, equivalente
se que os atores tivessem autonomia na sua a Dinâmica na música - que se caracteriza
criação rítmica, amparada na contagem (“i, como a distribuição e organização da força
ras, dva”: e um, e dois) e também dialogas- na realização de movimentos, qualificando
sem com todos os elementos cênicos, crian- os como leves, pesados, delicados, bruscos
do os estímulos rítmicos das ações. Tanto a e diversas outras qualidades responsáveis
contagem, quanto a música têm a função de pelas qualidades expressivas que tanto o
ser uma pulsação que orientasse o ator e a som como os movimentos apresentam (La-
atriz (Cappiello, 2006). ban, 1978). Contudo, este artigo se concen-
Já na nossa pesquisa, além destas tra nos elementos tempo (Tempo Intelectual)
sugestões dos encenadores, tanto tempo e duração. Em outra oportunidade, os de-
quanto pulsação, podem ser organizados a mais elementos serão melhor examinados.
partir da própria respiração, de imagens pro- Nos estudos práticos e exercícios cê-
pulsoras, músicas pessoais e algum outro nicos experimentados na pesquisa, os ele-
elemento criado pelo ator e pela atriz para a mentos pulsação e tempo (andamento/
sua criação. Estes elementos, potencializa-
dores da criação, também podem ser usa- 8 Variação de impulso e repouso. É o quão forte ou fraco um
som é tocado e reverbera no espaço e no tempo. Pode ser uma
dos na estruturação e organização da ação intensidade com variações naturais ou intencionais. A variação
e da fala na cena. Assim como também po- natural se caracteriza pela perda gradativa da força do som ou
do gesto enquanto é executado. A variação intencional é aquela
dem ser usadas questões externas ao corpo que a música chama de dinâmica, fator que ajuda a desenhar
e ao trabalho do ator e da atriz, como a mú- e criar a atmosfera da melodia, compreendendo, tanto as varia-
sica da cena, a relação com outros atores ou ções de intensidade (forte, piano, pianíssimo), quanto a transi-
ção de uma intensidade a outra (crescendo, diminuendo, sfor-
mesmo a iluminação. O importante é o ator zando). Assim, intensidades desiguais (piano-forte, forte-piano),
e a atriz encontrarem mecanismos que con- variações de relaxamento e esforço geram uma série de des-
continuidades de sons e gestos que vão se transformando e
tribuam na composição e percepção de rit- originando infinitas possibilidades de qualidades de expressões.
mos em seus trabalhos e entenderem suas Neste processo descontínuo, surge o acento. (Paris, 2010, p.
27-29).

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tempo musical) foram imprescindíveis e na que, nossa percepção compreende a maté-


verdade, ocuparam quase que a totalidade ria de vibração constante e igual, com con-
dos trabalhos, pois um fato que ficou cla- sistência de objeto. Portanto, a vibração “as-
ro nos experimentos é que, o ator e a atriz sume” aspectos materiais a partir de ritmos
compreendem melhor o universo da compo- regulares e constantes. Por isso, Bachelard
sição rítmica se eles manipulam consciente- chama a atenção para o fato de que, a for-
mente Tempo e pulsação (além dos outros ma material é um “aspecto confuso” porque
já citados acima). Paralelamente, iniciou-se não é a forma real do objeto, é a forma que
um estudo, do conceito de tempo e ritmo no a nossa percepção é capaz de percebê-lo,
campo da filosofia, esbarrando em acepções já que a matéria continua vibrando, mesmo
de Gaston Bachelard (1884- 1962), filósofo que de modo estável e constante. Nossa
francês, no livro A Dialética da Duração, que percepção não é capaz de perceber seus
pôde contribuir para esta pesquisa9, suge- movimentos estáveis, embora a agitação
rindo novas imagens para estes elementos continue existindo. A partir desta constata-
que contribuem muito na composição rítmi- ção, Bachelard conclui que a matéria deixa
ca. Dentre os conceitos que o filósofo estu- de ser interessante para a nossa percepção
da cita-se tempo (tempo cronológico, Ba- quando ela tem um ritmo estável, pois não
chelard não cita o tempo musical) duração acarreta mais surpresa. Assim, o ritmo inte-
e ritmo, mas pelo viés da percepção e das ressante não é aquele que se cristaliza, que
ciências químicas e biológicas. Para melhor se torna constante, mas aquele que desen-
explicar seu ponto de vista, Bachelard inicia cadeia formas, qualidades e características
seu pensamento abordando que as maté- às matérias, possibilitando a transformação
rias são constituídas de moléculas e que, de partículas em outros estados, caracte-
por sua vez, são compostas por componen- rísticas e qualidades a partir da agitação.
tes como elétrons, prótons e nêutrons (e Portanto, não é o estacionar do ritmo que
atualmente há teorias que versam sobre os interessa ao filósofo, mas a sua permanente
quarks – partículas elementares de prótons vibração e infinitas possibilidades de trans-
e nêutrons – léptons e finalmente, as teorias formações. Com isso, o autor abre possibi-
das cordas). Elementos que são pequenas lidades para repensar a nossa própria rela-
partículas que vibram, se movimentam, se ção não apenas com os objetos, mas com
desenvolvem, expandem, encolhem e inte- todos os eventos que nos atravessam e com
ragem também de forma rítmica. Portanto, a os quais interagimos, como o espaço, o tem-
matéria e seus componentes (elétrons, pró- po, as ações e as nossas relações.
tons, núcleos, etc.) vibram num determina- A observação de Bachelard de que a
do espaço e tempo. A vibração é ininterrup- matéria é formada por vibrações que nos-
ta e tem dinâmicas diferenciadas. Quando sa percepção não é capaz de captar, o faz
a vibração se estabiliza numa frequência, a repensar conceitos como tempo e duração,
nossa percepção lhe dá uma consistência, propondo uma abordagem que nomeia de
um aspecto de objeto, ou como Bachelard “psicologia da duração”. Inicia a discussão
nomeia: “tributo material determinado”. Isto defendendo um ponto de vista que se con-
trapõe à “teoria da continuidade” de Hen-
9 Toda a relação com esta temática está melhor descrita na tese ri Bergson (1859-1941). Para Bergson, o
intitulada: O Ritmo no Teatro e na Euritmia: estudos para o tra-
balho do ator, defendida em 2016. Realizada no Programa de tempo psíquico não tem tempo negativo
Pós-graduação em Teatro-Doutorado (PPGT) da Universidade nem lacunas na sua duração. A proposta de
do Estado de Santa Catarina (UDESC).

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Bachelard é que o tempo psíquico possui ação, mas não significa que ela será realiza-
ações negativas e positivas em sua estrutu- da. O tempo pensado (formado pelo instante
ra, pois o tempo psíquico não é um fenôme- decisivo e consentimento) não é abstrato, é
no que simplesmente passa, escorre, “não possível ser, inclusive, cronometrado (Ba-
há nenhum sincronismo entre a passagem chelard, 1988). contudo, ele não fica retido
das coisas e a fuga abstrata do tempo”. (Ba- na memória como fazendo parte do tempo
chelard, 1988, p. 7). Por isso, é necessário do gesto10.
“estudar os fenômenos temporais cada qual Quando Bachelard torna mais importan-
segundo um ritmo apropriado, um ponto de te o momento do “consentimento”, está hie-
vista particular”. (Bachelard, 1988, p. 7). rarquizando os instantes. Com esta propos-
Para explicar a “teoria da descontinui- ta, quebra a noção de continuidade temporal
dade temporal”, Bachelard descreve que a de Bergson. Bachelard acredita que, “a co-
nossa consciência, o nosso “Eu” está funda- esão de nossa duração é feita da coerência
mentado na realidade temporal que é perce- de nossas escolhas, do sistema que coorde-
bida e compreendida por nós mesmos e, por na nossas preferências” (Bachelard, 1988,
isso, podemos acessá-la sempre que que- p. 25). O início do “consentimento”, que é
remos. O tempo que não é percebido é ig- o que interessa a Bachelard, está ligado ao
norado pela nossa consciência e, portanto, verbo pela dialética do sim e do não. Decidir
não fica registrado no cerne do nosso ser. entre o sim e não precede um julgamento,
O tempo que não é percebido, Bachelard ou seja, outra ação “que prepara, que mede
chama de tempo negativo. Assim, ao reali- a justa causalidade psicológica e biológica.
zar uma ação qualquer, há dois momentos A decisão excepcional dirige a evolução do
distintos: o que acontece no âmbito do pen- ser pensante” (Bachelard, 1988, p. 25). Este
samento e o que se desenvolve no espaço. momento é uma conquista sobre o medo e
Estes dois momentos não têm sincronia en- o erro, precede um juízo de valor, uma de-
tre si e acontecem em momentos diferentes. cisão, portanto, tem-se neste processo, um
O que acontece no pensamento é esque- acréscimo temporal secundário, que fica im-
cido, não é computado pelo cérebro como perceptível, incalculável na nossa memória.
parte da ação. Para nós, o tempo é pre- Devido a este tempo que é acrescentado,
enchido somente pela ação realizada. Por que na maioria das vezes nem lembramos
isso, Bachelard se concentra no que acon- que existiu, que Bachelard afirma que a nos-
tece no pensamento para explicar o “tempo sa percepção de tempo não é constante. A
negativo”. Nesta etapa, antes da realização constância dos fatos guardados na memória
de um gesto, o ponto culminante, para o fi- é uma construção. Os detalhes esquecidos
lósofo, está no ato da decisão. O instante formam as lacunas, os buracos do tempo,
em que se decide fazer o gesto (instante de- marcam as descontinuidades, os atrasos,
cisivo) é tanto a unidade quanto o absoluto ou adiantamentos de ações que parecem
da ação: “para o comportamento temporal o que não fazem parte do tempo vivido. O que
que importa é começar o gesto”, permitir-lhe fica registrado é uma sequência de fatos que
acontecer porque é esta decisão que singu- gera a sensação de continuidade, mas que
lariza o gesto como meu. O consentimento exclui a descontinuidade. O tempo, também
(reflexo de ação) é concebido como a rea-
lização de uma possibilidade, já que ainda 10 Alain Berthoz, neurofisiologista francês, descreve de forma
não aconteceu, ou seja, consente-se da mais sucinta como acontece este fenômeno em seu livro, La
Décision. Paris: Odile Jacob, 2003.

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composto de tempo esquecido, cheio de la- Para Bachelard, deve-se pensar a du-
cunas, dúvidas, descontinuidades, decisão ração pela dialética, ou seja, também con-
e julgamento, o filósofo chama de “tempo siderar que ela é descontínua, complexa,
vibrado”. Portanto, estudar um fenômeno com questões contraditórias. Para explicar
no tempo, não é esquematizar uma linha como as lacunas e descontinuidades acon-
reta, o “percurso mais rápido”, e estabelecer tecem na duração, cita duas questões fun-
ações ao logo dela. Ao invés disso, é enten- damentais: “riqueza” e “densidade”. Nossa
der que existem ondas que, até podem ter noção de duração está diretamente vincula-
uma direção específica, mas apresentam da com o grau de “riqueza” e “densidade” à
lacunas, descontinuidades, buracos e es- qual nossa percepção está envolvida. Quan-
quecimentos. Isto também deve ser consi- to mais nossa percepção está imersa numa
derado quando se pensa em temporalidade, ação, significa que, para nós, ela é rica e
mas apenas conseguimos pensar tempo, densa, portanto, a duração parecerá curta,
temporalidade e duração a partir de nossas rápida, mesmo que temporalmente ela não
próprias vivências, estabelecendo e orde- seja. Quanto menos rica e densa uma ação
nando-as no tempo, formando com isso, o nos parece, mais desinteressados estare-
“fenômeno psicológico temporal”. Portanto, mos, logo, a duração parecerá inacabável,
analisar uma ação é também ordenar no mesmo que dure apenas alguns instantes.
tempo as decisões que a constituiu, esta- Definir se uma duração é lenta ou rápida é
belecer e hierarquizar pontos de referên- um processo individual que implica numa
cias e com isso, consolidar a consciência, série de fatores culturais, sociais, históricos
encontrar um modo de entender como ela e comportamentais. O grau de interesse de
se organiza no tempo. Contudo, na prática cada um será motivado por níveis diferentes
cotidiana, falar de tempo é, invariavelmen- de atenção das pessoas que participam do
te, analisar instantes que foram totalmente processo de escolha. Diante disso, o filósofo
preenchidos por determinada ação. Instan- define a duração como uma criação indivi-
tes que têm durações, portanto, ao falar de dual, uma obra única que cada pessoa cria.
tempo, se está sempre trabalhando sobre as Com tudo isso, Bachelard quer de-
durações. Durações que significaram, afinal, monstrar que a nossa percepção de tempo
foram lembradas e se tornaram marcas do e duração não pode ser considerada como
tempo. Portanto, para estudar a nossa per- algo linear, constante, com começo meio e
cepção de tempo, implica falar de duração: fim. Não somos capazes de enumerar to-
da duração de uma ação, de um momento, dos os eventos, sempre esquecemos algo.
de uma experiência, de um trabalho11. De alguma forma, o tempo que é lembra-
do também é um tempo escolhido. A nossa
11 Bachelard não está criando uma teoria de que o Tempo é consciência faz escolhas de momentos e
descontínuo. Atualmente existem algumas teorias, que não se- os organiza de um modo que parece linear.
rão tratadas aqui, que procuram explicar o Tempo não de forma
linear e constante, o que abre as possibilidades para as teorias
Ela não percebe que há superposições de
de universos paralelos e viagens no tempo. Bachelard está fa- tempos e durações, que há acontecimentos
lando estritamente de nossa percepção, que nos dá a impres-
são de que o tempo é linear e constante e todo preenchido de
concomitantes, que há ausências, buracos,
ações, movimentos e acontecimentos. Com isso, ele quer dis- “brancos”. Assim como a matéria parece li-
cutir que a lacuna, a pausa e o repouso também fazem parte near e imóvel, o tempo e a duração, também
de nosso tempo, embora não sejam percebidos. A partir deste
raciocínio, ele quer demonstrar que o repouso também faz parte parecem lineares e constantes. Portanto, é
de nosso ser e que precisa ser valorizado como ritmo natural e necessário dilatar a percepção e interagir
necessário em nossa vida.

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com estes elementos de modo que todas lar de lacunas, brancos, descontinuidades,
as suas formas, contínuas ou descontínuas, Bachelard chama a atenção para detalhes
sejam preservadas e valorizadas. que faltam, como os silêncios, as pausas, as
Bachelard não está tratando de arte repetições, os estranhamentos, as dúvidas
e, mesmo para ele, uma matéria viva, inte- que também complementam o tempo e as
ressante e com energia é aquela que vibra, durações da narrativa, de um personagem.
cujos ritmos de seus elementos não estão Pensar os descontínuos, as suas rupturas,
estacionados. Esta imagem de que a maté- as lacunas nas ações e inações é propor no-
ria vibra e nesta vibração gera energia que vas inserções dramatúrgicas, leituras, apro-
se estende às outras matérias e contami- fundamentos rítmicos, outras durações não
nam o espaço, é uma imagem muito inte- apenas no trabalho interno do intérprete,
ressante que contribui para o artista pensar mas na dramaturgia da cena, da ação cêni-
que, um ritmo que não vibra, que não permi- ca, da movimentação ou da composição da
te contaminação, cristaliza a ação, não pos- luz.
sibilitando imagens, transformações, contri- Outro tema interessante que Bachelard
buindo para a perda de interesse. Portanto, aborda são os graus diferentes de densi-
a proposta de vibração pode contribuir mui- dade e riqueza. Temática interessante para
to como uma imagem de sustentação das explorar a percepção tanto do ator quanto
pulsações internas, das contagens mentais do espectador, de forma que as noções de
para transformar fluidamente as tensões, tempo e duração sejam difíceis de mesurar,
energias, dinâmicas, respiração, qualida- proporcionando, assim, uma experiência
des, impulsos de cada uma das minúsculas temporal num presente também vibrante
partes que cada evento é subdividido. Os para todos que participam do evento tea-
tempos devem fazer vibrar o corpo e a ima- tral. Pode-se eleger ao longo de uma ação,
ginação, aquecendo e contaminando o es- graus diferentes de densidade, riqueza, ten-
paço, o tempo e o público. são, relaxamento e esforço, convocando,
Compreender tempo e duração não despertando e atraindo todos os sentidos
apenas como algo que escorre e se esvai, do espectador, assim como a percepção do
mas que se opõe, que se prolonga ou que próprio artista. Explorar silêncios, lacunas,
adianta, é perceber que há uma infinidade esquecimentos, vazios é, de fato, compor,
de possibilidades rítmicas. Pensar em dura- criar uma duração, como sugere o filósofo.
ções à partir da dialética (que se prolongam, Assumir o tempo vibrado como integrante da
atrasam, são adiadas ou adiantadas) e em percepção e explorar as suas descontinui-
“tempos vibrados” (que têm lacunas, super- dades, lacunas, superposições, dilatações
posições e regressões) faz surgir novas pos- e diminuições para criar marcas temporais
sibilidades de composições rítmicas no tra- que possam ser reconhecidas e outras que
balho do ator e da atriz, novas provocações possam ser quebradas, estabelecendo as
dramatúrgicas, novas formas de discutir a surpresas. Fragmentar o tempo para dilatar,
unidade de tempo, inúmeras formas de pen- diminuir, avançar, deslocá-lo e compor dife-
sar os tempos no teatro e o próprio espaço. rentes dinâmicas.
Tais proposições interferem diretamente na Como é possível perceber é preciso
estrutura composicional da obra e de sua ampliar o tempo de composição não apenas
preparação, além de influir de modo efetivo com ações, mas com todas as possibilida-
nos processos de formação do ator. Ao fa- des de lacunas e pausas no tempo e nas

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suas durações, dilatando-as ao extremo da entendimento da dinâmica da própria movi-


criação. Unindo todas estas possibilidades, mentação e ação), posteriormente aos que
é possível imaginar a composição rítmica o circundam (sonoridades, luminosidades,
partindo da fragmentação das ações, movi- texturas e cores), ao espaço em que está in-
mentos, relações entre atores, sons, vozes, serido (cenários, luz), e aos demais artistas,
público, objetos, iluminação, em pequenas dramaturgia e tudo que possa explorar a sua
partes e, seguindo na exploração de cada sensibilidade. A partir das relações e diálo-
uma delas até transformá-las em radiação gos que surgem com todos estes elemen-
ondulatória. Cada pequena célula vibrante tos, que se inicia a composição do ritmo no
em contato com outra célula vibrante em trabalho, nesta perspectiva de dilatar tem-
“tempos vibrados” e “durações vibradas”. po e duração para explorar tempo, esforço,
Desta forma, as composições se ampliariam energia e distribuir acentos. Portanto, todo
porque a composição não seria mais entre o trabalho de composição de ritmos no tem-
matérias, fricção de corpos, embate de su- po e no espaço é no campo da imaginação.
perfícies, mas entre vibrações, ritmos e on- A imaginação é um dos terrenos, se não o
dulações diferentes que, possivelmente, se mais importante, para a composição rítmi-
contaminariam e vibrariam juntas. Seria um ca. Tão fundamental que merece um espa-
constante ir e vir esconder e revelar, conti- ço de discussão apenas para esta temática.
nuar e descontinuar de durações. Portanto, No momento, ainda envolvendo todas estas
o movimento entre estes elementos numa questões que Bachelard trata, gostaria de
encenação aconteceria no nível imagético, revelar a sua fonte de inspiração, a Ritma-
sugerindo, desta forma, outra forma de rela- nálise. A fonte de inspiração do filósofo fran-
ção, mais profunda, mais densa e mais rít- cês é um português que viveu no Brasil, cuja
mica. Para isso, a percepção precisaria ser obra fez Bachelard refletir sobre todos estes
desenvolvida pelos atores, diretores, ilumi- conceitos aqui expostos.
nadores, cenógrafos porque todos estariam
trabalhando com matérias vibrantes e vivas.
Assim, o que interessaria, principalmente, A filosofia portuguesa do ritmo
para a composição, seria o vivificar com la-
cunas e vazios, ações, tensões e energia a A reflexão de Bachelard sobre tempo
duração de cada partícula de movimento, de “vibrado e duração dialética” foi idealizada
voz, de luz, de cenário, explorando o entre para dialogar com a Ritmanálise, a terapia
uma e outra, sem estacionar o ritmo, focan- corporal a partir do ritmo, criada por Lúcio
do na sua transformação de um em outro. Alberto Pinheiro dos Santos. Bachelard, na
Com isso, vivificaria a duração e transfor- introdução do livro, conta que recebeu uma
má-la-ia em potência de ser, em devir, em obra com um título “luminoso e sugestivo”,
estado pulsante, em ebulição com o tempo, La Rythmanalise, publicada pela Sociedade
com o espaço, em deslocamento, em com- de Filosofia e Psicologia do Rio de Janei-
binação, em sintonia e em diálogos rítmicos. ro, cujo autor era professor de filosofia na
Bachelard tem contribuído para esta Universidade do Porto, Brasil (Bachelard,
pesquisa provocando a imaginação e cria- 1988). Percebe-se uma confusão por parte
ção de imagens poéticas que inicia com a de Bachelard sobre a procedência do livro e
exploração da percepção do artista, primei- do autor, já que confunde a cidade do Porto,
ramente aos eventos pessoais (respiração, em Portugal, como sendo no Brasil. Apenas

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na década de oitenta, com as publicações Por volta de 1931, enviou dois volumes dati-
das obras de Bachelard, no Brasil, pela cole- lografados e em francês de La Rythmanalise
ção Os Pensadores, com tradução de Mar- a Bachelard, textos que nunca foram publi-
celo Coelho da La Dialectique de la Durée cados e, a notícia que se tem é que foram
(A Dialética da Duração, 1988) que a comu- queimados após sua morte, na década em
nidade filosófica brasileira soube da famo- 1950, no Rio de Janeiro. Nem na biblioteca
sa obra publicada no Brasil e então, surgiu de Bachelard o livro foi encontrado. Ainda
interesse em pesquisa-la. Mas quem seria assim, devido a ela, seu autor se inscreve
Lucio Alberto Pinheiro dos Santos? Em que como o primeiro filósofo português (Cunha,
biblioteca estaria a obra? 2008).
Ainda em 1997 o mistério não havia Segundo Bachelard, o que Lucio Alberto
sido elucidado pois, neste ano é lançado o Pinheiro dos Santos propunha era uma “filo-
volume dois de História da Filosofia no Bra- sofia do repouso”, o que não significa que
sil, escrito por Jorge Jaime (1925-2013), no seja uma filosofia repousante, quieta, tran-
qual há um artigo intitulado “Lucio Alberto quila ou que disserte sobre como ter uma
Pinheiro dos Santos: Um filósofo ‘brasileiro’ vida sossegada. Seu objetivo real é a busca
fantasma”. (Jaime, 1997, p. 424), onde faz metafísica para provar que o repouso é um
estas mesmas questões e por não ter res- direito do pensamento, o “repouso é um dos
postas para elas, traz no título brasileiro en- elementos do devir”, inscrito no âmago do
tre aspas, afinal, tinha-se dúvida de que o ser. Ao viver o repouso e ao senti-lo, de acor-
autor fosse mesmo brasileiro e se fosse, era do com o filósofo, se percebe que se está
um fantasma, já que ninguém tinha notícias mesclado ao devir compartilhado do ser, ins-
dele. Devido aos esforços de alguns filóso- crito no próprio nível da realidade temporal
fos portugueses empenhados em recuperar que fundamenta a consciência e a pessoa.
e elucidar estas questões, como o filósofo “É na parte impessoal da pessoa que um
português Prof. Dr. Rodrigo Sobral Cunha, filósofo deve descobrir zonas de repouso,
autor de duas obras dedicadas a esta temá- razões de repouso, com as quais fará um
tica, que atualmente sabe-se mais sobre es- sistema filosófico do repouso”. (Bachelard,
tes fatos. 1988, p. 5-6). Por meio da reflexão, do exer-
Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos foi cício filosófico que o ser cria lazeres e se for-
filósofo, matemático, físico, psicólogo, pro- talece. “A consciência pura irá aparecer-nos
fessor e político bracarense12 e se conside- como uma potência de espera e de guarda,
rava luso-brasileiro por ter vivido no Brasil. como uma liberdade e uma vontade de nada
Por volta de 1914 a 1917 foi professor no Li- fazer”. (Bachelard, 1988, p. 5-6). Bachelard
ceu Gil Vicente, em Lisboa, onde conheceu relata que ele mesmo praticou a “filosofia do
o filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), o repouso” e segundo ele, é possível encon-
primeiro a pensar uma teoria do ritmo, ainda trar ritmos saudáveis, naturais, mais sim-
em 1916, de quem empresta fundamentos ples e tranquilos em momentos de repouso
para pensar a Ritmanálise. No final da déca- e de alegria. Afirma que saiu das sessões de
da de vinte, vem ao Brasil, ficando no Rio de ritmanálise serenado e que por isso, acre-
Janeiro, onde lecionou psicologia e filosofia. dita que é possível uma ritmanálise, assim
como há uma psicanálise, já que ela “cum-
12 Bracarense é natural de Braga, cidade que fica no Noroeste pre curar a alma sofredora – em particular a
de Portugal. Também conhecida como Bracara Augusta, funda- alma que sofre com o tempo, que sofre de
da pelos romanos entre 300 a 400 a. C.

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spleen13 – através de uma vida rítmica, de A ação externa é necessariamente uma


um pensamento rítmico de uma atenção e ação vibrada. A partir deste ponto, é de
ritmo a ritmo, mais do que de coisa a
um repouso rítmicos. E antes de mais, de- coisa, que se devem apreciar as ações
sembaraçar a alma das falsas permanên- terapêuticas. De que vibrações temos
cias, das durações malfeitas, desorganizá-la normalmente necessidade? Eis a ques-
tão propriamente vital. Quais são as
temporalmente”. (Bachelard, 1988, p. 9). vibrações que se extinguem ou se ex-
Para cumprir o objetivo de amenizar a citam? Quais as vibrações a moderar
alma que sofre com o tempo e/ou com a me- ou reanimar? Eis a questão terapêutica
(Bachelard, 1988, p. 123).
lancolia a partir de uma vida, de um pensa-
mento e de repousos rítmicos é necessário Resumindo, Lucio Alberto Pinheiro dos
compreender como os processos rítmicos Santos procurou mostrar o caráter verdadei-
agem sobre a matéria. De acordo com Ba- ro e primordial da vibração na própria base
chelard, Lucio Alberto Pinheiro dos Santos da vida e concluiu que “se a matéria entra já
acreditava que “a matéria e a radiação só em composição com os ritmos, é certo que
existem no ritmo e pelos ritmos” (Bachelard, por sua base material, a vida deve ter pro-
1988, p. 120), ou seja, há uma dinâmica es- priedades fundamentalmente rítmicas”. (Ba-
treita entre estes dois elementos, matéria chelard, 1988, p. 125), a vida é, deste modo,
e radiação, que precisa ser compreendida, ondulação. Contudo, é quando um processo
o que Bachelard denomina de “durações não está bem que precisa passar pelas ba-
dialéticas” e “tempo vibrado”. Então, é Lucio ses da ritmanálise:
Alberto Pinheiro dos Santos quem propõe
uma “biologia ondulatória”, que visa explicar A vida, em seus sucessos, é feita com
a “ação substancial” de uma matéria, ou me- tempos bem ordenados; é feita, ver-
lhor, a radiação particular por meio da home- ticalmente, de instantes superpostos
ricamente orquestrados; liga-se a si
opatia. Para ele, a assimilação de uma subs- mesma, horizontalmente, pela justa ca-
tância (remédio ou alimento) por parte de dência dos instantes sucessivos unifica-
uma pessoa, é primeiramente uma troca de dos numa função. Sentiremos melhor,
de resto, o andamento rítmico da vida
energia e não somente uma troca de subs- tomando-a em seu ápice, estudando,
tâncias. Neste processo de assimilação, há como iremos fazer agora, a atividade
um sistema de irradiação entre a substância ritmanalítica do espírito, este mestre de
arpejos. (Bachelard, 1988, p. 126).
absorvida (alimento, remédio) e a substância
assimilada (o teor que realmente é absorvido Ou seja, há na vida uma necessidade
pelo corpo) e quando a substância é proces- de que ela seja ondulatória, vibrante e rítmi-
sada que se deve perceber a sua ação. Nes- ca. Assim como as relações entre matérias
tas ações ela se transforma e se propaga de (células, fenômenos naturais, combinações
modo ondulatório, entrando em contato com dos mais diversos elementos) tanto no uni-
o organismo, fazendo-o ondular também e verso micro quanto no macroscópico, são
quando ambos estão na mesma vibração, a rítmicas, a nossa vida consciente também
substância reage juntamente com o organis- deve ser rítmica, em todos os âmbitos: rela-
mo e seu efeito sanador é realizado. cional, alimentício, social e também da pró-
pria consciência que cada um deve ter de si,
13 Spleen em francês significa melancolia sem causa precisa. de seu espírito, de seu Eu. Para Bachelard
(Consulta ao dicionário online http://www.larousse.fr/dictionnai- é fundamental que o ser humano encontre a
res/francais/spleen/74273?q=spleen#73440, às 06/12/2013 às
19h50). sua “vida consciente”, e para isso, sugere si-

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tuações de isolamento, de desligamento, de ção ondulatória do ritmo, buscando regulari-


pouca energia envolvida pois, são nestas si- zar os ritmos naturais do corpo, a respiração,
tuações de baixa atividade e de baixa ener- o coração, a circulação, assim como propõe
gia que a forma ondulatória das trocas ener- grande parte dos métodos de meditação
géticas se tornam mais nítidas. “É aquela orientais. O filósofo sugere viver no ritmo do
para quem a continuidade e a uniformidade campo, seguir o calendário das frutas; asse-
são as mais excepcionais, mais artificiais, gurar o ritmo respiratório sobre uma cadên-
mais trabalhadas. Quanto mais o psiquismo cia vocal mais lenta, já que, o ritmo grave,
ascende, mais ondula”. (Bachelard, 1988, p. feito de lentas pulsações, pode sustentar e
126). Para a realização deste processo rit- condicionar o ritmo agudo, de frequências
manalítico da consciência são necessários, maiores; mediar a perturbação de um ritmo
além de isolamento e repouso, uma dialéti- vital rápido por meio de um ritmo mais len-
ca sistemática da recordação e do esqueci- to que é mais fácil de vigiar e de se impor;
mento. Como o ritmo escolar, assim como o permitir que “o espírito impõe seu domínio
ritmo do trabalho de cada um é, na maioria sobre a vida através de ações pouco nume-
das vezes, ordenado por ritmos outros que rosas e bem escolhidas, e é por essa razão
não são os naturais, impostos do externo que uma arte do repouso pode fundamen-
para o interno, não é possível esperar ape- tar-se na segurança de algumas referências
nas os momentos de férias para repousar e bem distribuídas”. (Bachelard, 1988, p. 132),
esquecer. Assim, é durante o trabalho que Mas Bachelard reconhece que nem todos se
se deve encontrar momentos de oscilações. enquadram nestas possibilidades, como por
Para Lúcio Pinheiro, o homem pode ser víti- exemplo, os intelectuais. Estes irão preferir
ma de ritmos inconscientes e confusos, as- um repouso ativo ao invés do repouso total
sim como pode sofrer “com a consciência de com os ritmos naturais. O repouso ativo se-
sua infidelidade aos ritmos espirituais eleva- ria um repouso vibrante, como o estado líri-
dos” (Bachelard, 1988, p. 127), já que ten- co de um poeta ou de um filósofo, um estado
ta ir além de seus limites, se sobrepor, não criativo prazeroso, “na forma de um encanto
respeitar o seu ritmo biológico. Com isso, o totalmente físico, de um mito que acalenta,
ritmo mais próximo da matéria se instala de de um complexo que nos reconduz ao pas-
modo a tornar cada vez mais difícil sair dele. sado, aos nossos ímpetos de juventude”
E é então que Lúcio Pinheiro propõe: (Bachelard, 1988, p. 133), que Bachelard
nomeia de rejuvenescimento perpétuo, um
Que cada um faça dentro de si mesmo a método de deslumbramento para com a
psicologia de uma tentativa criadora, de
um ensaio inovador, por mais modesto vida, a busca por um estado lírico que pro-
que seja esse ensaio, ou mesmo sobre- cura basear-se no conhecimento entusias-
tudo se esse ensaio criador for modes- ta, como uma criança. “A infância é fonte de
to: a justeza da psicologia criacionista
ondulatória aparecerá. O erro não pode
nossos ritmos. É na infância que os ritmos
ser contínuo sem prejuízo. O sucesso são criadores e formadores. É preciso ritma-
não pode ser contínuo sem risco e sem nalisar o adulto para devolvê-lo à disciplina
fragilidade. Em seu detalhe, a evolução da atividade rítmica à qual ele deve o flo-
do indivíduo é ondulante (Bachelard,
1988, p. 128). rescimento de sua juventude”. (Bachelard,
1988, p. 134).
Assim, segundo Bachelard, a ritmanáli- Como é possível observar, Gaston Ba-
se se preocupa, principalmente, com a dura- chelard e Lucio Alberto Pinheiro dos Santos

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estão tratando de um assunto que é mui- lósofo francês, Henri Lefebvre (1901-1991)
to discutido nos dias atuais: o respeito ao – estudioso do espaço cotidiano e urbano
próprio ritmo e a busca por viver uma vida – a escrever seu último livro Éléments de
mais próxima de nossos próprios ideais. Re- Rythmanalyse: introduction à la connaissan-
pousar com mais frequência para equilibrar ce des rythmes (Elementos da Ritmanáli-
pensamentos, os ritmos corporais e as rela- se: introdução ao conhecimento dos ritmos,
ções. Executar tarefas com mais consciên- 1992), que propõe a Ritmanálise e o ritmo
cia e intensidade, saindo do automático e do como elementos de análise do cotidiano.
mecânico. Nossa sociedade padece de mui- Este trabalho de Lefebvre provocou o poeta
tos males, transtornos de ordem psicológi- e linguista Henri Meschonnic (1932-2009) a
ca, comportamental e social, cujos estudos repensar o papel e a importância do ritmo
apontam a falta de respeito ao descanso, ao na linguagem, na literatura e na sociedade.
sono, ao tempo da criatividade, exatamente Sua dedicação a este tema gerou diversos
porque os ritmos pessoais e corporais não estudos, entre eles, os livros Politique du
são respeitados. Os sentidos e os ritmos Rythme: politique du sujet (Política do Rit-
pessoais estão sujeitos à ordem das cida- mo: política do sujeito, 1995) e Critque du
des, à produção frenética que todos, não Rythme: antropologie historique du langage
importa o trabalho, são obrigados a realizar. (Crítica do Ritmo: antropologia histórica da
Uma vida ritmanalítica propõe um olhar sen- linguagem, 1982). Considerando que a obra
sível, buscando entender a si, observando de Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos nunca
pulsões, rotinas, produção e estudar meios foi encontrada, é significativo saber que seu
de introduzir pausas e de se relacionar rit- pensamento atravessou gerações. Um pen-
micamente com as pessoas, com si mesmo samento que mobiliza e influencia muitos
e com a própria produção. Assim, viver em outros, provocando e desenvolvendo diálo-
“tempos vibrados” e em “durações dialéti- gos e pesquisas em todas as áreas, ritman-
cas” é não negar a natureza do tempo, da do muitas pesquisas e imaginações.
duração, da vida e de si mesmo. É meditar
sobre si na sociedade e no mundo.
Este artigo não quer julgar os levanta- Referências
mentos de Bachelard e Lúcio Pinheiro, nem
“atualizar” suas proposições a partir de teo- ANDRADE, Mário. Introdução à estética mu-
rias mais atuais. Sobre a teoria da Ritmaná- sical. São Paulo: HUCITEC, 1995.
lise é possível cruzar com pesquisas sobre
a meditação, artes marciais e mesmo pen- BACHELARD, Gaston. A dialética da dura-
samento oriental como o taoísmo. As pro- ção. São Paulo: Ática, 1988.
posições de Bachelard são próximas do tra-
balho de Alain Berthoz (1939) que também BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicio-
estuda percepção. O objetivo era descrever nário etimológico prosódico da língua portu-
como as provocações destes autores têm guesa: vocábulos, expressões da língua ge-
influenciado imageticamente a composição ral e científica, sinônimos contribuições do
rítmica nesta pesquisa. É incrível como um tupi guarani. São Paulo: Ed. Brasília, 1974.
pensamento pode influenciar tantos pesqui-
sadores. Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos
inspirou Bachelard que mobilizou outro fi-

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