Você está na página 1de 10

Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções

Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

DOSSIER
XI ENCUENTRO DE INVESTIGADORES EN POÉTICA MUSICAL DE LOS SIGLOS XVI, XVII Y XVIII
23 AL 27 DE NOVIEMBRE DE 2020

Das proporções musicais: preceitos em Zarlino e


interpretações de Fux
Matheus Rocha Grain
UDESC, Universidade Estadual de Santa Catarina
matheus_rocha541@hotmail.com

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas


UDESC, Universidade Estadual de Santa Catarina
sergio.freitas@udesc.br

Resumen Abstract

O texto propõe uma leitura acerca de fundamentos que About musical proportions: precepts in Zarlino
balizam qualidades atribuídas aos intervalos musicais and Fux’s interpretations
no Gradus ad Parnassum (1725), de Johann Joseph
Fux. Para tanto – tocando temas como antigo e The text proposes considerations about the fundamentals
moderno, gosto e correção, regra e arte, divino e that orientate qualities attributed to musical intervals in
humano, exercício, uso e especulação –, recuperam-se Johann Joseph Fux’s Gradus ad Parnassum (1725). To do so
alguns preceitos presentes em Zarlino observando – briefly passing through themes such as ancient and
aproximações e afastamentos daquilo que, mais tarde, modern, taste and correction, rule and art, divine and
Fux levou em conta. São destacadas relações entre humane, exercise, use and speculation -, some precepts
número harmônico e a ideia de perfeição, sobre a found in Zarlino are recovered, observing approaches and
presença de um subjacente à música que não pode ser departures from what Fux, posteriorly, took into account.
acessado pelos sentidos, senão pelo pensamento. Com Relations between harmonic number and the idea of
isso, percebe-se que Fux dialoga com uma tradição perfection are highlighted, as well as the presence of an
especulativa que julga as proporções musicais a partir underlying level in music that cannot be accessed by the
das distâncias do 1, número que é compreendido, nesse senses, but by thought. Thereby, it is noticed that Fux
contexto, como representante da unidade [Unitas], do dialogues with a speculative tradition that judges the
princípio, do criador. Por fim, observa-se que, musical proportions by the distances from the number 1,
contrapondo-se ao valor da regra pela regra, esse tipo de and such number is understood, in this context, as the
leitura pode arejar nossas rotinas de ensino e representative of unit [Unitas], of principle, of the creator.
aprendizagem musical. Lastly, in opposition to the value of the rule by the rule, it is
observed that this type of reading can freshen up our
Palavras-chave: Gradus ad Parnassum; História da routines of teaching and learning music.
teoria musical; Contraponto; Consonância e Dissonância
Keywords: Gradus ad Parnassum; Musical theory
history; Counterpoint; Consonance and Dissonance

___________
Recibido: 04/12/2020
Aceptado: 18/12/2020
Cita recomendada: Rocha Grain, M. y Ribeiro de Freitas, S. P. (2020). Das proporções musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux.
Revista 4’33’’. IX (19), pp. 85-94.

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 84


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Entre os escritores do estilo estrito, foi Zarlino quem se destacou


em estabelecê-lo como estilo artístico, ao passo que
foi a Fux a quem mais se deu o crédito por instituir o método.

Ian Bent
Steps to Parnassus: contrapuntual precursors and successors
(2008: p. 597)

Com o pano de fundo da Querelle des Anciens et des Modernes (Le Goff, 1990) pode-se notar que
Fux, no Gradus ad Parnassum (1725), se posiciona a favor do antigo, posicionamento que guia seu
texto, a começar pelo próprio título que evoca a jornada até o topo da montanha sagrada “que preserva
Apolo e as Musas” (Bent, 2008: p. 555). Segue pela redação em latim, a “linguagem clássica” (Bent,
2008: p. 554), e pela solmização, qualificada por Mattheson como uma “velha escada que já não
chegava tão alto”, por isso, abolida pelas “pessoas inteligentes e esclarecidas” (Mattheson apud Lester,
1977: p. 45). Outro sinal do antigo é a escolha de Palestrina como personificação do mestre Aloys.
Personificação que, segundo Bent (2008: p. 555), “incorpora o revisitado mundo clássico da
Renascença” oferecendo uma chave para a compreensão da metonímica fala de Fux (2010: p.6): “Com
o nome de Aloys me refiro ao mestre, esse farol da música, o ilustríssimo palestrino [...] a quem devo tudo
o que dessa ciência há em mim, e cuja recordação, enquanto eu viver, nunca deixarei de honrar com as
maiores mostras de devoção”.
Sobre essa vinculação com a Renascença, Bent (2008: p. 595) conclui que, através das espécies, Fux
tomou “o que haviam sido possibilidades em Zarlino e as transformou em sistematizações inanimadas”.
Destacando uma passagem do Gradus – “[as] lições foram concebidas não para a performance (usus),
mas para exercício (exercitium), da mesma forma que pronunciar as sílabas (Syllabizzatio) é praticado
para adquirir a habilidade de leitura, e nada mais” (Fux apud Bent, 2008: p. 558) –, Bent observa que a
instrução através das espécies denotaria “uma determinação que é tanto ideológica quanto pedagógica,
pois representa a teoria conservadora da tradição de Pontio e Artusi, que remonta a Zarlino” (Bent, 2008:
p. 558). Assim, entende-se que Fux olha sobre os ombros daqueles que primavam pelo contraponto
estrito e que adotavam o conhecimento especulativo recuperado da antiguidade.
Com esse ponto de vista, Fux (2010: p. 5) afirma que a música moderna se tornou “quase arbitrária,
os compositores temem vivamente, como se da morte se tratasse, que lhes nomeiem leis e escola, pois
não desejam sentir-se sujeitos a preceitos nem doutrina alguma”. Fux considerava que os compositores
modernos estavam perdidos em uma “insanidade desenfreada” e não acreditava que poderia reverter
isso. O Gradus, portanto, visava a instrução dos jovens dentro da “cordura” e propunha uma alternativa
à “corrupção dos tempos”.

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 85


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Se preparam, com efeito, medicinas para os enfermos e para os que não gozam de boa saúde. Não
obstante, meu trabalho não aspira isso e tampouco arrogo tanta força que confie em que eu possa
deter, por assim dizer, o curso de uma torrente que se desvia precipitadamente de seu curso, e fazer
que os compositores abandonem seu licencioso sistema de escrita para retornar à cordura. Por mim
não há problema em que cada qual siga seu parecer. Meu objetivo é proporcionar ajuda aos
adolescentes que aspiram a esta arte. (Fux, 2010: p. 5)

Reiterando Zarlino e autores mais antigos, Fux mostra considerar que, no correto julgamento das
coisas, a razão não pode ser abandonada. E essa adesão não se separa de suas considerações sobre “o
gosto” (Fux, 2010: p. 291-294).
Assim, mesmo recuperando o ditado “a mim gosta o meu, a ti, o teu, e a cada um, o seu”, Fux reforça
um princípio universal: agrada aos sentidos “qualquer coisa que possua, em sua disposição, uma
harmonia proporcionada” (Fux, 2010: p. 291). Tal proporção se refere ao princípio numérico que
fundamenta noções de arte, beleza e contraponto. Então, ainda que reconheça a presunção do gosto, Fux
(2010: p. 292) declara que o sujeito “inteligente” e bem “instruído” saberá manter “a ordem das coisas e
da natureza”. Nesta perspectiva, desaprova aqueles que abdicam da natureza em nome da novidade, pois
se apoderam da ideia de criação afrontando o dogma de que o único criador é Deus, autor de toda gênese,
enquanto, ao compositor, cabe a limitada capacidade de engenho.
Alguns modernos compositores que, apartando-se do acostumado uso das consonâncias e
dissonâncias a partir da ideia do gosto e da novidade, violam todas as normas e leis da arte e,
adulando a si mesmos, pensam que se converteram em criadores (o que está somente ao alcance
de Deus Onipotente). Ainda que a realidade é que a capacidade de inovar de nosso limitado
engenho não consiste em outra coisa que uma disposição sempre cambiante, estabelecida com bom
critério, das mesmas consonâncias e dissonâncias. (Fux, 2010: p. 292)

Fux está entre aqueles que atribuem ao número um papel ordenador que permite vislumbrar a mente
do Criador, e esta compreensão é encontrada, também, em Zarlino:
Desde o início do mundo [...] todas as coisas criadas por Deus foram ordenadas por Ele pelo
número; antes de tudo, o número era o principal exemplar da mente do Criador. Portanto, é
necessário que todas as coisas [...] sejam compreendidas e sujeitas ao número, porque [o número]
é tão necessário que, se fosse retirado, primeiro tudo se destruiria e então (como acredita Platão) o
homem perderia toda a prudência e conhecimento, de modo que ele não seria mais capaz de dar
sentido a qualquer coisa que o intelecto ou a memória possam possuir, e as artes seriam perdidas.
Não seria mais necessário falar ou escrever nada sobre música, porque sua razão de ser
desapareceria por completo [se a música] não tivesse outra base firme senão a numérica. O número
aguça a engenhosidade, confirma a memória, atrai o intelecto para a especulação e contém todas
as coisas em si. (Zarlino, 2008: p. 259)

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 86


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Se o antigo se ancora na natureza criada por Deus, e se “Deus encarna a perfeição suma” (Fux, 2010:
295), conceitos de criação e seus correlatos, como as noções de gosto, defendidos pelos modernos, são
incongruentes com a perfeição, pois o que é perfeito não evolui nem regride, o perfeito é o que é. Vale, então,
recorrer a dicionários da época: perfeição “tem todas as perfeições que se podem desejar [...] o que a nada
se acrescenta tem toda a sua perfeição” (Bluteau, 1728: p. 419); é “perfeito, completo; ao qual nada se exige,
ou que possui todos os requisitos” (Bailey, 1730: p. 525). Então, o compositor deve se orientar pela natureza
que, criada por Deus, é perfeita, completa. Com isso, Fux defende tanto o conhecimento especulativo
quanto o conhecimento prático e poético. A especulação revela as proporções subjacentes e as regras da
arte, e o prático e o poético conduzem o emprego convencional dessas regras. Em conjunto, tais
conhecimentos possibilitam que o “músico perfeito” desenvolva sua capacidade de julgamento, sem a qual,
para Fux, não se pode compreender a qualificação dos intervalos musicais expressa pelo número.
A expressão “músico perfeito” vem de Zarlino: o músico perfeito deve ser conhecedor de aritmética
para tratar e determinar as proporções numéricas; instruído sobre geometria a fim de manusear
instrumentos, como compasso e régua, para o auxílio na divisão de qualquer quantidade sonora; deve
saber manipular o monocórdio ou o cravo, ainda que não perfeitamente, para enriquecer o conhecimento
sobre consonâncias e dissonâncias e investigar efeitos dos números sonoros; para afinar instrumentos
perfeitamente, deve aperfeiçoar o ouvido, e tal capacidade aprimorada, junto ao conhecimento
especulativo, possibilitará o julgamento perfeito. Deve, também, ser instruído na arte do canto e na arte
do contraponto, “a fim de saber realizar tudo o que ocorre na música e julgar se ela pode ou não ter
sucesso” (Zarlino, 1983: p. 103).
Nesse sentido, Lemos (2017: p. 205) ressalta que, a definição das qualidades dos intervalos parte da
“dimensão gnosiológica da música que, como modelização e materialização da harmonia, permite
compreendê-la intelectualmente”. Assim, entre estesia e natureza, o que possui simetria, proporção,
agrada aos sentidos, pois esses encontram deleite nos “objetos proporcionados” (Zarlino, 1968: p. 283).
Logo, o não proporcionado é incapaz de satisfazer os sentidos. Com isso, a organização numérica das
proporções, expressa nas versadas razões da tetraktys ou do senario, revela as consonâncias e, logo, as
dissonâncias.
Visando a compreensão das qualidades dos intervalos, interpreta-se que a realização musical está
contida, em potência, no contraponto regido pelo número. Dessa forma, diz Zarlino (1983: p. 104), a
audição refinada “não pode ser facilmente enganada pelo som”, e aquele que foi privado do conhecimento
necessário ao músico perfeito, ignorando as razões das coisas que coloca em prática, será “gravemente
traído”. Então, a realização musical ancorada na razão aproxima-se dos modelos da pintura e da
arquitetura, que partem da geometria e da proporção. Zarlino observa:

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 87


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Músico é aquele que na música é perito e que tem a faculdade de julgar, não pelo som, mas pela razão,
aquilo que em tal ciência está contido; e se puser em obra as coisas pertencentes à prática, fará a sua
ciência ainda mais perfeita, e músico perfeito poderá chamar-se. Mas o prático [...], diremos que é
aquele que aprende os preceitos do músico com longo exercício [...], de modo que todo compositor
pode ser chamado de prático, o qual, não por meio da razão e da ciência, mas pelo longo uso, sabe
compor todas as cantilenas musicais (Zarlino apud Callegari, 2019: p. 71).

Os preceitos vão se revelando: o “saber compor” respeita leis e limites do contraponto, e a inovação
injustificada é compreendida como corrupção, assim, “não vamos imitar aqueles que violam
descaradamente as boas tradições e os bons preceitos de uma arte e ciência sem oferecer razões para
fazê-lo” (Zarlino, 1968: p. 61). O julgamento correto, aquele que harmoniza razão e sentidos, exige do
músico “que ele seja especialista em coisas da ciência, isto é, da especulação; e [...] que ele seja
especialista nas coisas da arte, que consistem na prática” (Zarlino, 1983: p. 106).
O julgamento depende, então, daquilo que Bromberg sublinha como o caráter propedêutico das
ciências do Quadrivium, caráter que, ainda para Boécio, é apontado como instrumento de alcance
filosófico. Entretanto, em Boécio, tal instrumento deveria estar livre “de um comprometimento com a
percepção sensorial” (Bromberg, 2014: p. 11-12), enquanto, para pensadores como Zarlino e Fux,
experiência e prática são convalidadas pela razão e fazem parte da formação: “a música, além de alegrar
o espírito, conduz verdadeiramente à contemplação dos assuntos celestes e aperfeiçoa tudo o que toca”
(Zarlino, 2008: p. 151).
Com Zarlino e outros autores do antigo, Fux defende que o bom compositor deve se ater a princípios e
condicionar sua prática aos “limites da natureza, da ordem e das leis, para chegar a alcançar com toda a
justiça a consideração do gosto equilibrado” (Fux, 2010: p. 293). Quando o aprendiz Joseph questiona
como enfrentar “vícios da época” e “modas de gosto duvidoso”, Aloys cita: “se mantém em sua posição e,
quando acontecer, acomode à sua maneira de ver as coisas” (Sêneca apud Fux, 2010: p. 294). Esse
conservadorismo insiste no argumento: aqueles que, em favor do estésico, transpassam os limites da
natureza, “não penetram nunca na alma, mas sim, na realidade, ficam aderidos aos ouvidos” (Fux, 2010:
p. 293).
Já na introdução do Gradus ad Parnassum, Fux (2010: p. 11) anuncia que tratará da música
“artificial”, dividindo-a em “especulativa” e “prática”. No primeiro livro do Gradus, que trata da música
especulativa visando “uma aquisição mais plena da prática”, encontram-se definições de “proporção” e
“proporção musical”: “Euclides e outros a definem [a proporção] como ‘a correspondência, uma a outra,
entre duas quantidades dentro de um mesmo gênero análogo’ [...] Proporção musical é a correspondência
ou relação entre um número sonoro e outro número sonoro” (Fux, 2010: p. 12-13). Sendo assim, como
descrever e interpretar as qualidades dos intervalos musicais através dos números?

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA


88
Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Fux extrai critérios para o julgamento das qualidades dos intervalos partindo da proporção subjacente
ao intervalo de oitava, diapason, e daquilo que, em sentido amplo, essa proporção representa. Tal
intervalo é compreendido como o mais perfeito, pois comporta a “totalidade dos intervalos possíveis: os
simples de fato e, ainda mais, os compostos em potência” (Fux, 2010: p. 37). A intelecção dessa perfeição
observa os termos da oitava: com proporção 2:1, “seu primeiro termo é o próprio princípio, ou seja, a
unidade, e o segundo, o número 2, é imediato à unidade” (Fux, 2010: p. 38). Fux reitera que tal ordem é
análoga à criação divina, pois os anjos, que mais próximo estão do princípio, superam em perfeição todas
as demais criações. Detentores da faculdade racional, os homens seguem os anjos na hierarquia das
criações, sucedidos pelos animais e pelos objetos inanimados. Portanto, a hierarquização decorre da
proximidade ao princípio. Sendo a proporção subjacente à oitava a totalidade, por analogia, esse intervalo
sonoro passa a representar as qualidades da criação divina.
Com Zarlino (2008: p. 262), que, assim como Fux, cita Euclides quando trata dos números,
compreende-se que o 1 (Unitas) não é propriamente uma quantidade, mas sim o princípio da própria
quantidade: “Euclides de Mégara a descreveu muito bem [a unidade], dizendo que o número é uma
pluralidade composta de muitas unidades. Embora a unidade não seja um número, é princípio do
número”. Para Zarlino (2008: p. 484), os sons constituem a matéria da consonância, aquilo que é
acessado através dos sentidos. Enquanto o número e as proporções constituem a forma das consonâncias,
aquilo que é acessado através do pensamento. Aristotelicamente, essa forma é chamada por Zarlino
(2008: p. 487) de “causa intrínseca”. Ou seja, “o modelo”, “o exemplar”, a partir do qual “tudo é feito para
se parecer”.
A perfeição pela proximidade do princípio, do 1 (Unitas), permite estratificações não só entre
consonância e dissonância e entre consonâncias perfeitas e imperfeitas. Permite, também, propor
hierarquizações no interior das consonâncias perfeitas, das imperfeitas e das dissonâncias. Para tanto,
Fux recorre a uma racionalização por adição: sobre a proporção 3:2, quinta justa, Fux nota que esta é
menos perfeita que a oitava, pois a soma dos termos 2:1 totaliza 3, enquanto que a soma dos temos 3:2
totaliza 5, quantia que é “mais distante da unidade, seu princípio, que o número 3” (Fux, 2010: p. 40).
Com os antigos, Fux (2010: p. 40-41) chega ao número máximo que comporta a perfeição, o 6, pois
“a própria natureza se inclina a produzir consonâncias de tal tipo que seus termos, somados por adição,
não excedem o número 6: como pode comprovar-se no uníssono (1:1), na oitava (2:1), na quinta (3:2), na
décima segunda (3:1) e na décima quinta (4:1)”. Nota-se que a proporção 4:3, quarta justa, não foi
incluída entre as consonâncias perfeitas: trata-se de uma reinterpretação do senario? Supondo que
sim, Fux encontraria subsídios para justificar a imperfeição de terças e sextas, posto que tais
consonâncias, assim como as perfeitas, pertencem ao senario?

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 89


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Vejamos: os termos das proporções 5:4 (terça maior), 6:5 (terça menor) e 5:3 (sexta maior) não
ultrapassam o número 6 e, portanto, estão no âmbito senario. Então, para distinguir perfeições e
imperfeiçoes, Fux soma tais termos. Ou seja, desconsiderando que individualmente tais termos são
inferiores a 6, Fux soma os termos, obtendo alguns números que, superando o 6, alcançam o âmbito do
“6 duplicado” (senarium duplicatum), o que justifica sua imperfeição. Com isso, são perfeitos a oitava
(pois a soma dos termos 2:1, totaliza 3), a quinta (3:2 igual 5), a décima segunda (3:1 igual 4) e a décima
quinta (4:1 igual 5). E imperfeitos, a terça maior (5:4 igual 9), a terça menor (6:5 igual 11) e a sexta maior
(5:3 igual 8), números que não podem ser valorados como consonâncias perfeitas, “seja porque a soma
de seus termos excede o número 6, seja porque a natureza não participa em sua produção” (FUX, 2010,
p. 43).
Assim, com números – a causa formal dos intervalos musicais –, Fux embasa distinções: entre
consonâncias perfeitas e imperfeitas, aquelas vão até o 6 e essas até o 6 duplicado. No conjunto das
consonâncias imperfeitas, pela distância da unidade, algumas são mais imperfeitas do que outras: terça
maior (5:4) é menos imperfeita do que terça menor (6:5), pois 9 está mais perto de 1 do que 11. Se a
soma dos termos ultrapassar o 6 duplicado, então é dissonância. Vejamos duas dissonâncias famosas:
trítono e quinta diminuta, o diabolus in musica (Fux, 2010: p. 76). A intelecção fuxiana dessa diabólica
conotação depende, então, do conhecimento das razões numéricas subjacentes aos intervalos de três tons.

Figura 1: Operação que demonstra a distância entre o Trítono (quarta aumentada) e a unidade.
A partir de Fux (2010: p. 47)

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 90


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

A razão do trítono (Fig. 1) resulta da soma de dois tons maiores (sesquioctavos), 9:8 e 9:8, e um tom
menor (sesquinono), 10:9. Com a operação descrita por Fux (2010: p. 34-35) temos: multiplicam-se os
termos maiores de cada proporção, 9 x 9 x 10, resultando 810. Multiplicam-se os termos menores, 8 x 8
x 9, resultando 576. Essa proporção, 810:576, é simplificada: os dois números são divididos por 9,
resultando 90:64. Termos que são novamente divididos, agora por 2, resultando 45:32 que, somados,
totalizam 77.
A quinta diminuta deve ser considerada em separado (Fig. 2), pois, conforme Fux, esse intervalo e o
trítono não são equidistantes, decorrem da soma de razões diferentes: quinta diminuta resulta da soma de
quarta justa, 4:3, e semitom maior, 16:15. Multiplicam-se os termos maiores de cada proporção, 4 x 16 igual
a 64, e os termos menores, 3 x 15 igual a 45. Tais números, 64:45, não podem ser simplificados, pois não há
divisor comum. Somados, resultam 109!

Figura 2: Operação que demonstra a distância entre o quinta diminuta e a unidade.


A partir de Fux (2010: p. 47)

Assim, no âmbito da oitava, os intervalos de três tons, 77 e 109, são os mais distantes da unidade,
aqueles que causam maior “moléstia” (Fux, 2010: p. 59) aos sentidos. Considerando as razões numéricas
como causa formal da consonância e, também, que a distância da unidade revela o valor da perfeição,
Fux sustenta seu discurso:
Quem não vê que quanto mais separadas estão estas coisas de seu criador ou princípio, tanto
mais imperfeitas são em nobreza? De forma similar, a coisa é assim em relação aos intervalos mu-
sicais, no que diz respeito a sua perfeição e imperfeição. E, em efeito, quanto maiores os termos de
uma proporção e, também, mais distantes estão da unidade, seu princípio, mais imperfeitos serão
os intervalos que dela [da proporção] derivem (Fux, 2010: p. 38).

Embora abreviadas, essas interpretações de Fux acerca de valores que ainda ressoam na-
quilo que ouvimos como música –intervalos, proporções, qualidades, distinções, hierarquias,
natureza e gosto–, nos permitem algumas considerações.

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 91


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Fux, e aqueles que levam em conta suas interpretações primeiras, compartilha a premissa
de que, ao músico, não convém desassociar exercício, uso e especulação. No Gradus, esse ar-
gumento é reiterado em diferentes passagens e imagens, dialogando com autores do passado
que nem sempre são nominalmente citados. A especulação permite acesso à causa formal, a
algo que é subjacente aos intervalos musicais. E o exercício e o uso são degraus que orientam
combinações engenhosas e decorosas das consonâncias e dissonâncias. Conhecer as distâncias
da unidade fundamenta o julgamento de qualidades, perfeições e imperfeições. E esse funda-
mento é aceitável pela razão, isto é, algo que pode ser apreendido, compartilhado, e que não se
prende a uma leitura esvaziada das prescrições.
A partir dessa breve exposição, pode-se enxergar uma alternativa para o enfrentamento
de um esvaziamento que, confundindo propósitos, reduz o Gradus a um conjunto de regras
pelas regras, desvinculando os capítulos que precedem e sucedem o estudo das espécies e, com
isso, esvazia o discurso fuxiano de sua transcendência, cultura e história. Em suma: reconhe-
cer, no Gradus, querelas entre antigos e modernos, discussões sobre gosto e sobre o valor dos
números, pode arejar nossas práticas de ensino e aprendizagem, posto que, a leitura abran-
gente e contextualizada das proporções musicais nos ajuda a ouvir mais longe.

Bibliografia
Bailey, Nathan. 1730. Dictionarium Britannicum. London: T. Cox.
Bent, Ian. 2008. Steps to Parnassus: contrapuntual precursors and successors. In: Christensen,
Thomas (ed.). The Cambridge History of Western Music Theory. Cambridge: Cambridge
University Press, pp. 554-602.
Bluteau, Raphael de. 1728. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Colégio das Artes da Com-
panhia de Jesus.
Bromberg, Carla. 2014. Os objetos da música e da matemática e a subalternação das ciências em
alguns tratados de música do século XVI. Trans/Form/Ação, v. 37, n. 1, p. 9-30.
Callegari, Paula Andrade. 2019. As virtudes retóricas em “Le istitutioni harmoniche” (1558) de
Gioseffo Zarlino. Tese de doutorado. Instituto de Artes. Unicamp.
Fux, Johann Joseph. 2010. Gradus ad Parnassum. Introducción, traducción y notas de José F.
Ortega. Universidad de Granada - Universidad de Murcia.

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 92


Revista 4’33’’ Matheus Rocha Grain y Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas – Das proporções
Año IX – N° 19 – Diciembre 2020 musicais: preceitos em Zarlino e interpretações de Fux – pp. 84-93

Le Goff, Jacques. 1990. Antigo/Moderno. In: História e memória. Ed. Unicamp: São Paulo.
Lemos, Maya Suemi. 2017. Modelos de Antiguidade na teoria musical do Tardo-Renascimento:
De Pitágoras a Aristóxeno de Tarento. FIGURA. Studi Sull`Immagine Nella Tradizione Clas-
sica, v. 5, p. 211-233.
Zarlino, Gioseffo. 1968. The art of counterpoint: Part Three of Le Istitutioni Harmoniche, 1558.
Tradução de Marco, Guy A.; Palisca, Claude V. New Haven: Yale University Press.
_______. 1983. On the modes: Part Four of Le Istitutioni Harmoniche, 1558. Tradução de Co-
hen, Vered; Palisca, Claude V. New Haven: Yale University Press.
_______. 2008. Le istitutioni harmoniche” of Gioseffo Zarlino, Part 1: A translation with in-
troduction. Tradução de CORWIN, Lucille. City University of New York.

___________

MATHEUS ROCHA GRAIN: Licenciado em Música pela UNESPAR, Escola de Música e Belas Artes do Paraná
(2015), Mestre em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, 2018). Doutorando
em Música no PPGMUS/UDESC com financiamento do Programa de Bolsas de Monitoria de Pós-
Graduação (PROMOP) da UDESC. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6231-3593.

SÉRGIO PAULO RIBEIRO DE FREITAS: Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Música na
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Sua atuação docente, pesquisas e publicações se
desenvolvem nos campos da teoria e análise musical. Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa “A
teoria anda só? Questões de história e reexame analítico em repertório tonal”. ORCID: https://or-
cid.org/0000-0002-0215-616X.

Revista on line de investigación musical ● Departamento de Artes Musicales y Sonoras– UNA 93

Você também pode gostar