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SURTO EPIDÊMICO DE GASTRENTERITE, COM IDENTIFICAÇÃO DO

PROVÁVEL ALIMENTO VEICULADOR DA INFECÇÃO *

Anastácio F. Morgado **

Descreve-se um surto epidêm ico de gastrenterite entre pessoas adultas, com um to tal de 5 2
casos, todos iniciando-se até 2 4 horas após terem ingerido um alim ento provavelmente conta­
minado. Clinicam ente, a doença caracterizou-se po r dor abdom inal em cólicas, urgência para evacuar,
e missão de fezes diarreicas, febre e adinamia, que persistiram po r um a tres dias. Todos os casos
foram benignos, sem uma só complicação e nenhum tem necessidade de tratam ento hospitalar. Foram
feitos exames bacteriológicos das fezes de alguns casos, mas não se isolou qualquer germe; esses casos,
porém , já estavam em convalescença ou em uso de antibióticos.
Todos os casos tinham em com um o fato de terem alm oçado ou feito lanche em um mesmo
restaurante. Comparou-se, então, 109 pessoas que haviam alm oçado, e 7 0 que haviam feito lanche,
com 107 pessoas, do mesmo am biente dos comensais, que não alm oçaram nem lancharam. A associa­
ção com fato de alm oçar ou lanchar no restaurante fo i inequívoca. Ademais, em um núm ero de pes­
soas bem m aior do que os comensais, bebendo da mesma água, não surgiu um só caso de gastroen-
terite.
As 109 pessoas que alm oçaram responderam quais os alim entos q ue haviam ingerido, o que
pe rm itiu identificar a carne assada, servida no alm oço, como sendo o veiculo provável da infecção.
Infelizm ente, não se conseguiu restos dessa carne assada para que se pudesse tentar isolar germes.
A mediana do perío do de incubação fo i 10,4 horas e os períodos de incubação m áxim o e
m ín im o foram de 2 4 e 0 ,5 horas, respectivamente; a distribuição cronológica dos casos lembra m uito
o p e rfil dos surtos epidêmicos de toxi-infecção alim entar produzidos pelo C lo s trid iu m perfrigens.

Na manhã do dia 21.08.1979 vários alunos e epidêmico de gastrenterite viesse a ser associado
funcionários da FIO C R U Z queixaram de terem ao restaurante, seria devido a água e não a alguma
sido vítim as de uma doença cujo quadro clínico impureza porventura existente em um ou mais
era o da gastrenterite. A maioria dessas pessoas alimentos, ou a alguma contaminação pelo
não vacilou em a trib u ir a causa da doença ao manuseio ou pelo processo de servir os alimentos.
almoço do dia anterior (20.08.1979, uma Impunha-se, pois, uma investigação epide-
segunda-feira), preparado em um restaurante miológica, a fim de esclarecer a extensão do súrto
localizado na Escola Nacional de Saúde Pública epidêm ico, as características das pessoas afetadas
(ENSP), na própria FIO C R U Z. 0 responsável e, principalm ente, determ inar o modo de
pelo referido restaurante, porém, enfatisou a transmissão e a provável fon te da infecção. Por
"excelente higiene" do seu serviço, e alegou que não se ter isolado nenhum germe e, portanto, não
no dia anterior (20.08.1979) a água de uso do se ter determ inado o agente etiológico, o alcance
restaurante teria saído turva das próprias to r ­ do trabalho fico u bastante com prom etido. A l­
neiras. E para reassegurar a ausência de im ­ gumas dificuldades encontradas, contudo, ju s ti­
purezas no almoço incrim inado, cerca de dez ficam uma divulgação maior, pois cada vez mais
funçionários do restaurante foram exibidos pelo tem-se notícias de surtos epidêmicos de gastre-
locatário, os quais teriam almoçado e nenhum enterite relacionados a um almoço, jantar, etc.,
deles teria ficado doente. Desta form a, se o surto mas só com uma associação empírica, jamais

( * I Trabalho apresentado no X V I Cong. Soc. Bras. Med. Trop., N atal, 1980.


1**1 Prof. Assistente do D eptP Epidem iologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pú­
blica — F IO C R U Z . Caixa Postal 8 0 1 6 , R io de Janeiro.

Recebido para publicação em 2 0 .0 8 .1 9 8 0 .


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especificando o alim ento veiculador. Na presente mesmo curso ou seção de trabalho) levou-nos a
investigação fo i possível, segundo evidências postular que não havia uma diferença signi­
epidemiológicas, identificar esse alim ento. ficativa entre os dois grupos. Reconhecemos que
o grupo B não é um grupo controle, no sentido
M A T E R IA L E MÉTODOS dos estudos comparativos da epidem iologia;
adm itim os porém, que seja um grupo de " c o n tro ­
A investigação epidemiológica efetuada le ecológico". Sem este grupo não teríam os
obedeceu às recomendações clássicas para inves­ garantia de que o surto epidêmico fora, de fa to ,
tigação de surtos epidêmicos; uma boa descrição devido ao almoço. O procedim ento de entre-
desse método encontrase em PRICE (1965). vistar-se pessoalmente o grupo B, fo i considerado
O seguinte critério fo i adotado para que fosse im portante para dar consistência à associação.
considerado um caso de gastrenterite: qualquer Estipulou-se que as entrevistas fossem
aluno ou funcionário da FIO C R U Z que tivesse efetuadas até quatro dias após (até o dia
tid o dor abdominal em cólicas, urgência para 24.08.1979) o almoço do dia 20.08.79. Cerca de
evacuar e evacuações com fezes diarréicas, nos 60,0% das entrevistas foram efetuadas pelos
dias 2Ü e 21.U8.1 9 /9 . tm b o ra várias pessoas alunos do Curso Básico de Saúde Pública da
tivessem, tam bém, hiperterm ia de até 39°C , ENSP. A eclosão do surto epidêm ico coincidiu
calafrios, náuseas e vôm itos, esses sinais não com o ensino da disciplina de epidem iologia do
foram considerados necessários para a definição referido curso básico, situação que fo i consi­
de caso de gastrenterite. derada uma boa oportunidade de exemplificação
Elaborou-se uma ficha, de quesitos pertinentes de estudo de surtos epidêmicos. Explicou-se o
a sinais e sintomas de gastrenterite, tip o de método aos alunos e seguiu-se uma pré-testagem
refeição (almoço ou lanche) e alimentos ingeri­ da ficha de investigação, cada aluno entrevis­
dos. Entrevistou-se, nos dias 22, 23 e tando um seu colega. As fichas com falhas no
24.08.1979, o m aior número possível de alunos e preenchimento foram corrigidas por uma segunda
funcionários que almoçaram no restaurante entrevista, conduzida pelo aluno ou pelo supervi­
(grupo A) sor da investigação (A .F .M .). Este supervisor
Entrevistou-se, também, um número de alunos efetuou quase 40,0% do to ta l das entrevistas,
e funcionários, os quais não haviam almoçado apurou e analisou os dados, cujos resultado's
nem fe ito lanche no referido restaurante (grupo ficaram bem conhecidos pelos aluno? do já
B). O grupo B fo i selecionado mediante um só mencionado curso de Saúde Pública.
crité rio: pertencer ao curso ou à seção de traba­ Tentou-se isolar germes, mas não se conse­
lho de uma das pessoas que havia almoçado no guiu material adequado. Os restos alimentares do
restaurante. Esperava-se que fosse entrevistada, almoço do dia 20.08.1979 eram fundam entais
para cada pessoa que havia almoçado, uma pes­ para os indispensáveis exames de laboratório (mi-
soa que não houvesse almoçado nem fe ito lanche crobiológico e to x ic o ló g ic o ), mas esse material
no restaurante. Mas o grupo B fico u com duas imprescindível não existia mais, ou não nos fo i
pessoas a menos que o grupo que almoçou; claro disponível. Restos alimentares do dia
que poderia entrevistar mais duas pessoas, dada a 21.08.1979 foram entregues para exames. Os
grande disponibilidade de alunos e funcionários materiais (fezes) colhidos de casos de gastren­
que não almoçaram no restaurante em questão. te rite também não foram adequados para p ro ­
Este expediente, contudo, violaria algo m uito vas m icrobiológicas, pois essas pessoas ou já
im portante: o tem po mediado entre o surto estavam assintomáticas ou em convalescença, e
epidêmico e a data da entrevista. A experi­ haviam usado antibióticos.
ência demonstra que quanto mais longe é este Os dados foram apurados e analisados no
afastamento, mais imprecisas são as informações, Dept? de Epidem iologia e Métodos Q uantitativos
devido à perda do interesse pelo incidente e à em Saúde, da ENSP. Os testes estatísticos efetu­
pouca lembrança das pessoas. A diferença de ados encontram-se descritos em R EM IN G TO N e
duas pessoas, no caso, não altera em nada os SCHORK (1970) e S lE G E L (1956).
resultados.
O objetivo de se investigar o grupo B fo i R ESULTADOS
verificar se havia alguma diferença, no que diz
respeito à gastrenterite, entre ele e o grupo de A investigação epidem iológica revelou que do
pessoas que havia almoçado. Embora não se dia 20 para o dia 21.08.1979 ocorreram pelo
tenha pareado por sexo, idade, etc, o fato de menos 52 casos de gastrenterite, com intervalo de
participar do mesmo tip o de atividade (um até 24 horas, entre o prim eiro e o ú ltim o caso.
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Impôs-se, portanto, a hipótese de surto epidêm i­ drica, fo i o fato de que o surto epidêmico foi
co adquirido por infecção simultânea e em fonte excluída quando se classificou os casos e não
única. casos, entre as pessoas que almoçaram, segundo
A alegada água turva, invocada pelo locatário cada alim ento ingerido. A evidência de maior
do restaurante, como sendo a fon te da infecção, força, porém, contra essa alegação da origem h í­
tornou-se m u ito pouco provável, por um co n ju n ­ drica, fo i o fato de que o surto epidêmico restrin­
to de evidências. Dos 52 casos, 31 foram entre giu-se exclusivamente às pessoas que comeram no
funcionários e alunos da ENSP, e 21 casos foram referido restaurante no dia 20.08.1979. Nessa
entre funcionários e alunos de algumas unidades época a ENSP estava com cerca de 190 fu n cio ­
do In s titu to Oswaldo Cruz (prédio central, Bio- nários e 138 alunos estavam matriculados nos
Manguinhos, Departam ento de V irologia, etc.). seus diferentes cursos, o que soma 328 pessoas.
A rede de distribuição de água da ENSP é inde­ As unidades do In s titu to Oswaldo Cruz contavam
pendente da rede que abastece essas unidades do aproximadamente 1.200 pessoas, mas uma
In s titu to Oswaldo Cruz. Os 21 casos dessas u n i­ pequena proporção (in fe rio r a 5%) costumava
dades teriam , pois, de terem bebido da água da almoçar no restaurante em causa. É óbvio que se
ENSP, o que é pouco provável, pois em geral só a água da ENSP estivesse implicada, esperava-se
almoçam e bebem um refrigerante engarrafado, ter o corrido, pelo menos, um caso entre os 328
ou então um copo de refresco, o qual é prepa­ funcionários e alunos que não almoçaram nem
rado com água da ENSP. Mas essa remota possi­ lancharam nesse restaurante no dia 20.08.79.
bilidade da água do refresco vir a explicar a su­ Os dados obtidos mediante entrevista com os
posta origem hídrica do surto epidêmico foi comensais do dia 20.08.79 são mais inequívocos
excluída quando se classificou os casos e não para evidenciar a associação entre o surto epidê­
casos, entre as pessoas que almoçaram, segundo mico e o tip o de refeição fornecida no restau­
cada alim ento ingerido. A evidência de maior rante, como se observa na Tabela I.
força, porém, contra essa alegação da origem h í­ Verifica-se que a gastrenterite atingiu somente

Tabela I
Número de casos e taxas de ataque de gastrenterite entre alunos e funcionários
da FIO C R U Z segundo terem ou não almoçado e fe ito lanche
na cantina. Rio de Janeiro, 1979.

Pessoas
Grupos Entrevistadas Casos
Estudados
N? N? %

Alm oçaram (1) 109 49 44,95


Lancharam (2) 70 3 4,28
Não almoçaram
Nem lancharam (3) 107 0 —

TO TAL 286 52 18,18

(1) X (2) e (1) X (3) = p < 0,001

os usuários do restaurante, principalm ente os que almoçaram nem lancharam, permanecem estatis­
almoçaram. Um to ta l de 147 pessoas almoçaram ticam ente significativas.
no dia 20.08.79, das quais foram entrevistadas Entre os 49 casos que almoçaram, 47 deram
109 (74,14%). O fato de não se ter entrevistado informações bem precisas da hora de início da
38 das 147 pessoas que almoçaram, não m odifica prim eira evacuação diarréica, acompanhada de
em nada as conclusêos. Supondo-se que dor abdominal em cólica e urgência para evacuar.
nenhuma dessas 38 pessoas tenha adquirido Na figura 1 encontram-se esses 47 casos, loca-
gastrenterite , a taxa de ataque entre os que lizando-se cada um na hora de início da primeira
almoçaram passariam a ser 33,33%, e as d ife re n ­ evacuação diarréica, a p artir do almoço, evento
çassem relação aos que lancharam e aos que não d e fin ido como ocorrendo na marca zero.
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Fig. 1
47 casos de gastrenterite, distribuídos segundo o período
de incubação, decorrido entre o almoço e o in ício dos sintomas.
Rio de Janeiro, 1979

□ Caso de g a s tro e n te rite

3 -

■o
o .

-1 L-
8 9 10 11 12 13 14 1? 16 17 18 09 20 2 1 22 23 24

P erío do de incubação em ho as

Essa distribuição cronológica dos casos, suces­ na figura 1 que cerca de 70% dos casos tiveram
sivamente representados por ordem crescente de início entre tres e quinze horas após o almoço, o
início, é típica de infecção simultânea em fonte que reforça m u ito a associação deste evento com
única. Supondo-se que o tem po decorrido entre o surto epidêmico.
o almoço e o início da doença seja um bom esti- E qual fo i c provável alim ento veiculador da
mador do período de incubação da presente infecção? As 109 pessoas que almoçaram e que
gastrenterite, concluiu-se que: 1) a mediana do foram inquiridas sobre os alimentos que inge­
período de incubação fo i de 10,4 horas; 2) os riram, tiveram suas respostas apuradas, cujo
períodos de incubação m áxim o e m ín im o foram resultado está expresso na tabela II.
de 24,0 e 0,5 horas, respectivamente. Verifica-se

Tabela II
Taxas de ataque de gastrenterite entre os 109 alunos
e funcionários que almoçaram, segundo terem ou não com ido
cada um dos alimentos servido no almoço. Rio de Janeiro 1979.

Comeram o alim ento Não comeram o alim ento


Taxas de
Ataque
Expostos Casos Taxa de ata­ Não ex­ Casos Taxa de ata- p
que postos que

A lim entos N° N° % N° N? %

Arroz 103 46 44,66 6 3 — N.S.( * )


Feijão 96 43 44,79 13 5 38,46 N.S.
Carne assada 88 45 51,13 21 4 19,04 < 0,01
Salada de beterraba 75 36 48,00 34 13 38,23 N.S.
Salada de legumes 73 39 53,42 36 10 27,77 > 0 ,0 2 5
Refresco de groselha 43 21 48,83 66 28 42,42 N.S.
Batata frita 21 4 19,04 88 45 51,13 -
Bife 21 4 19,04 88 45 51,13 -

( * ) N.S. — Não significativa.


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Observando-se as duas taxas de ataque, entre então, classificadas da seguinte form a: os dois
os que comeram e os que não comeram cada um grupos constituídos dos que comeram e dos que
dos alim entos servidos no almoço, verificou-se não comeram ambos os alimentos; e dois outros
que diferenças marcantes só ocorreram para dois grupos dos que comeram somente um dos dois
alim entos: carne assada e salada de legumes. alimentos. A seguir contou-se o número de casos
Para um e o u tro a diferença das taxas entre ex­ em cada um dos quatro grupos e calculou-se
postos e não expostos (risco a trib u ív e l), fo i de a respectiva proporção dos que adoeceram. Estes
32,09 e 25,65%, respectivamente. Testes estatís­ resultados estão expressos na tabela III.
ticos confirm aram essa análise inicial, pois encon­ A hipótese subjacente à classificação da tabela
tra-se diferença significativa somente para os dois III é a seguinte: postula-se que o agente etioló-
alimentos mencionados. Em situações como esta gico seja específico e que ele seja veiculado por
é indispensável verificar se uma das associações apenas um alim ento. Desta forma, o provável
rião é uma associação coincidente. A melhor alim ento veiculador da infecção será aquele em
form a para discrim inar um alim ento do o u tro é que a diferença da frequência de casos no grupo
através da chamada "apuração cruzada", no de pessoas que ingeriu ambos os alimentos,
modelo da dupla entrada das tabelas de c o n tin ­ não fo r estatisticamente significativa da frequên­
gência. As 109 pessoas que almoçaram, foram , cia de casos no grupo que ingeriu somente o

Tabela III
Taxas de ataque de gastrenterite da combinação de comer ou
não da carne assada e da salada de legumes. Rio de Janeiro, 1979.

CARNE ASSADA

Comeu Não comeu

Casos Casos
N° M°
N? % N? %

-o ”
m c Comeu 72 39 54,2 ( * ) 1 0 -
■o §
g> Não comeu 16 6 37,5 ( * ) 20 4 20,0
CO —

( * ) z = 1,4087 . . . p > 0,05

alim ento incrim inado. Com os dados da tabela II carnes", cuja higiene deixava m u ito a desejar.
verifica-se que a salada de legumes ficou Um o u tro alim ento, particularm ente o bife, pode
excluída; a carne assada fo i o veículo da infec­ ter-se contam inado nessa "mesa das carnes" e,
ção. Embora a proporção de casos (54,2%) do assim, veiculado a infecção para os quatro casos,
grupo que comeu os dois alim entos seja maior isso é reforçado pelo fa to de que ao longo de
que a proporção de casos (37,5%) do grupo que, quase todo o almoço do dia 20.09.79, a única
entre os dois alim entos, só comeu carne assada, carne servida fo i a carne assada; mais para o fim
essa diferença não fo i estatisticamente signifi­ do almoço esta acabou e, então, a carne servida
cativa. Mas a carne assada, sozinha, não explica passou a ser o bife. Na tabela II verifica-se que
todos os casos. Pela tabela III, verificamos que das 109 pessoas que almoçaram, 88 e 21 come­
45 casos comeram carne assada; mas quatro casos ram carne assada e bife, respectivamente; e entre
que completam o to ta l de 49 casos que alm o­ os 21 que comeram bife (não comeram carne
çaram, não comeram nem carne assada nem assada) ocorreram exatamente quatro casos de
salada de legumes. gastrenterite. O mais provável, portanto, é que
A explicação mais plausível para esses quatro a carne do bife tenha sido contaminada na "mesa
casos que não comeram carne assada advem da de carnes" onde eram visíveis resíduos úmidos,
seguinte observação. Em uma inspeção que efe­ ali previamente existentes ou, então, deixados
tuam os na cozinha do referido restaurante, pela carne assada. Como é sabido, m uitos usu­
observamos, entre outras coisas, que as fatias de ários preferem o "b ife mal passado", cujo proces­
carne assada eram cortadas sobre a "mesa de so de preparo pode ter sido insuficiente para
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inativar algum germe ou exotoxina porventura de 0,5 a 24 horas, com uma mediana de 10,4
existente. horas. Em vista de ter cinco os»s com períodos
E como foram transm itidos os tres casos de de incubação in fe rio r a tres horas, torna-se m u ito
gastrenterite entre as 70 pessoas que apenas lan­ provável que tais pessoas tenham ingerido a to x i­
charam no referido restaurante? Esses lanches, na já pronta; a rigor estes casos representam in­
em geral, constavam de sanduiches de alguns toxicação e não infecção. Os dois agentes e tiló ­
tipos (carnes, queijo, ovos, etc.) e um " líq u id o " gicos mais comuns deste tip o de surto epidêmico
(refrigerante, refresco, leite, milk-shaque, etc.). são o Staphylococcus aureus e as Salmonella
Seria coincidência demais, mas o fa to é que os spp. O prim eiro produz uma potente exotoxina,
sanduiches das três pessoas que adoeceram foram mas o período de incubação dos surtos epidê­
de carne assada. micos provocados pelo genero Salmonella em
geral tem um período de incubação de 12 a 24
DISCUSSÃO horas. A distribuição cronológica (Fig. 1) do
surto epidêmico aqui descrito, os períodos de
A questão mais im portante é a relacionada ao incubação, a clínica apresentada pelos pacientes,
possivel agente etiológico, pois com evidências ajustam-se mais aos surtos epidêmicos provoca­
puramente clínicas e epidemiológicas achamos dos pelo C lostridium perfringens. Frequente­
que se trata de infecção bacteriana. Se fôssemos mente este anaeróbio, também p ro d u to r de exo­
im por um elevado rigor m icrobiológico, tal qual to xin a , é o responsável por surtos epidêmicos vei­
o de isolar o mesmo agente etiológico do alim en­ culados por carnes. Na revisão de H O R W ITZ e
to suspeito e também das pessoas doentes (das G A N G A R O S A (1976) de surtos epidêmicos
fezes ou sangue), seria uma raridade afirm ar que transm itidos por carnes de aves, ele fo i um agente
este ou aquele surto epidêmico fo i transm itido etiológico tão freqüente quanto o S taphylo­
por alim ento. Claro que é m u ito im portante coccus aureus, só precedidos pelas Salmonella
isolar o germe a partir do alim ento suspeito. spp. A p a rtir da primeira comunicação de quatro
Muitos expedientes, contudo, impedem que se surtos epidêmicos devidos ao C lostridium p e rfrin ­
chegue a essa prova material. Autores dos mais gens, feita por M cCLUNG (1945), cada vez mais
categorizados, porém, aceitam que critérios esse germe tem sido isolado de carnes tidas como
puramente epidemiológicos, como os expostos sendo a fon te de surtos epidêmicos de gastren­
no presente trabalho sejam suficientes para carac­ terite.
terizar um surto epidemiológieo transm itido por Ainda no d o m ín io da especulação poder-se-ia
alimentos. H O R W ITZ e G A N G A R O S A (1976) a trib u ir o surto epidêmico a uma dupla etiologia:
são m uito claros: "U m surto epidêmico o rig i­ Staphylococcus aureus e Salmonella sp. ou Clos­
nado de alimento é de finido como um incidente trid iu m perfringes e Salmonella sp etc. Embora
em que duas ou mais pessoas apresentam doenças infecções concom itantes sejam algo até exótico
similar após ingerirem em comum um alim ento, o no conhecim ento das doenças infecciosas, o fato
qua-l os dados epidemiológicos im plicam como a é que elas existem, pelo menos em surtos epidê­
fonte da doença". A adoção deste crité rio em micos de gastrenterite. PETERSON, A N D E R -
Saúde Pública é um pouco temerária, por aceitar SON e D ETELS (1966) descrevem três surtos
o não isolamento de germes do alim ento in c rim i­ epidêmicos, irrom pidos um após o o u tro e a
nado; mas quando não se consegue amostra do partir da mesma fo n te de infecção (carne de
material suspeito e o surto epidêmico é público e peru), com dupla infecção: C lostridium p e rfrin ­
notório, como é o caso do aqui descrito, achamos gens e Salmonella typ h im u riu m . JU EN KER
que o critério puramente epidemiológieo seja (1957) cita vários autores que descreveram surtos
suficiente para afirm ar a associação causai. epidêmicos de gastrenterite por dois ou mais
Os dados da clínica e epidemiologia dos 52 tipos de Salmonella spp.
casos de gastrenterite perm item fazer alguma Surtos epidêmicos como o aqui descrito sem­
especulação em torno do provável agente e tio ló ­ pre evocam a necessidade de um controle dos
gico. Em síntese, todos os casos foram benignos, produtos alim entícios; no que diz respeito a
sem uma só complicação e nenhum caso que carnes, é fundam ental um adequado meio de
tenha tido necessidade de tratam ento hospitalar; conservação. Cada dia a tecnologia de alimentos
em quase todos os casos os sinais e sintoma:» torna-se mais complexa e os perigos para a saúde
duraram a três dias. Os pacientes foram todos pública tem aumentado demais. Achamos que os
adultos, do sexo masculino e fem inino. Os perío­ dispositivos para fazerem frente a tais perigos f i ­
dos de incubação variaram de 0,5 a 24 horas, cam apenas nos textos de leis e fracassam como
com uma mediana de 10,4 horas. Em vista de ter medidas de saúde pública. U ltim am ente, porém,
cinco casos com períodos de incubação variaram vem se esboçando uma m elhor e efetiva organiza­
Janeiro-Dezembro, 1982 Rev. Soc. Bras. Med ■'trop. 59

ção de um sistema de vigilância epidemiológica, 7. SIEG EL, S. (1956) Nonparametric Statistics


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