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D(d e ejuC&_IO.

Confesso que me sinto envergonhado sempre que ouço estas


r3ç afirmações. Não por reconhecer tão facilmente a sua razão, mas
L.SBac& €LÂ.L&dC%C (ocA1,tcSc iCc&ua( QcS Sc pelo facto de quem profere essas afirmações branquear a sua
própria responsabilidade na situação que descreve. Ao ouvi-los,
até parece que a «má educação» das novas gerações não foi pro
duto da negligência das gerações mais velhas.
O mesmo se poderá dizer das condutas dos alunos na escola,
o eterno problema da disciplina e da autoridade dos professores.
Será que os alunos actualmente são mais indisciplinados e mais
4. Melhor educação? violentos do que eram os seus pais ou os seus avós? Admito que
sejam. Mas os que são hoje pais e avós comportam-se como se
tivessem sido, enquanto alunos, casos exemplares de disciplina
A comparação internacional do desempenho dos nossos jo
e de bom comportamento. Mais grave ainda, não reconhecem
vens a matemática, ciência e leitura/escrita não nos deixa satis
que uma das causas dessa indisciplina e quantas vezes das dife
feitos nem descansados. Ficamos aquém da média dos países
rentes expressões de violência têm origem no próprio ambiente
da OCDE e, por mais argumentos que possamos aduzir para doméstico, na sua negligência, na falta de regras de conduta, no
contestar as metodologias adoptadas ou a valia da comparação,
défice de autoridade parental e de valores sociais.
nem por isso o nosso posicionamento se altera de forma signi De quem nos queixamos afinal? E os professores, especial
ficativa. Por isso torna-se mais interessante tomar os resultados
mente os mais novos e mais inexperientes, que formação ti
como um bom pretexto para reflectirmos sobre os problemas veram para lidar com situações críticas na sala de aula, com a
da educação em Portugal do que perdermos tempo a esgrimir
necessidade de liderarem os processos de aprendizagem e de
contestações que em nada nos ajudam a resolver esses proble também eles se assumirem como exemplo para os mais novos?
mas.
A mediatização crescente da indisciplina escolar confere a
A opção é simples, ou enfrentamos esses problemas ou conti este fenómeno uma projecção social muito superior ao que é
nuamos a fugir deles. Prefiro a primeira alternativa. na realidade. Melhor seria que os profissionais da comunica
A qualidade da educação é um tema recorrente, não só dos
ção social reflectissem melhor sobre a sua responsabilidade no
últimos anos, mas de há muitas décadas, nos debates públicos, empolamento do problema e avaliassem qual o preço de uma
em Portugal. Uma das expressões mais vulgarizadas desse de
polémica estéril face à imagem que acabam por criar destas no
bate é a ideia de que as novas gerações não são tão bem educa
vas gerações.
das quanto foram as suas antecessoras. Expressões como «no
Num contexto de cobardia social, as críticas que constante
meu tempo é que era» ou «agora nem sabem ler nem escrever», mente se ouvem sobre a «má educação» dos mais novos dirigem
«já não sabem fazer contas», «eles trabalham pouco», «são uns -se sempre ou para os alvos mais frágeis e sempre para os que
indisciplinados» fazem parte do discurso de um rol imenso de
estão mais à mão, ou para a figura do ministro da Educação e
uma espécie de «carpideiras de serviço» que dominam os deba
dos políticos que, solícitos, se apressam a fazer mais uma altera
tes públicos e as conversas de café.
ção no Estatuto do Aluno para calar as vozes do protesto.
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Mas será que essas críticas têm razão de ser? Será mesmo Ainda que centrados sobre as disciplinas de Matemática e
que as novas gerações não são tão bem educadas quanto foram Português, esses problemas tendem a identificar determinado ti
as anteriores? po de aprendizagens que são extensíveis às restantes disciplinas.
Só quem não conhece a proporção de analfabetos ou de in Em primeiro lugar, destaca-se o facto de os alunos portugue
divíduos que sabiam ler e escrever sem nunca terem obtido um ses apresentarem melhores resultados nos saberes que exigem
diploma, há 50 anos, é que poderá proferir qualquer das afirma menor elaboração cognitiva, ou seja, onde se limitem a reprodu
ções que citámos atrás. Em 1960, 56 % dos portugueses resi zir conhecimentos, a aplicar procedimentos de carácter rotineiro
dentes com pelo menos 7 anos de idade não sabia ler nem escre e a recorrer a raciocínios simples. As dificuldades identificam-se
ver ou, sabendo-o, nunca tinha concluído a escola primária. No ao nível da capacidade de desenvolver raciocínios mais comple
Censo desse mesmo ano a população com ensino superior não ia xos, na resolução de problemas, especialmente quando têm de
além de uns míseros 0,6 %. Esquecemo-nos, decerto por acaso, aplicar os conhecimentos adquiridos a situações menos usuais.
que, em 2001,86 % da população não tinha mais que 09.0 ano Todos os estudos revelam que os alunos portugueses conse
de escolaridade? E que a população com idades compreendidas guem melhores resultados nos itens que testam os conhecimen
entre os 35 e os 59 anos tinha em 2001 uma escolaridade média tos adquiridos, no domínio de procedimentos e na compreensão
de 6,7 anos? dos conceitos utilizados. Pelo contrário, as dificuldades surgem
Só uma geração de analfabetos e ignorantes compulsivos po na compreensão de textos não narrativos, na interpretação e re
derá não reconhecer que as novas gerações estão mais qualifi solução de problemas matemáticos e na capacidade de raciocí
cadas que as gerações anteriores. Mas este reconhecimento ele nio complexo, desde a análise à síntese ou ao raciocínio infe
mentar das diferenças não atenua o facto de continuarmos muito rencial5. No caso da matemática, essas dificuldades aumentam
longe do já atingido por outros países e também muito aquém quando se trata de questões relacionadas com a geometria e a
do que seria possível alcançar. Tentemos então saber quais são visualização e o estudo das formas no espaço, ou no caso das
as causas dessa menor qualidade da educação. fracções em comparação com os resultados obtidos com os nú
meros inteiros. A capacidade de abstracção é claramente mais
reduzida.
O que nos revelam os testes nacionais e internacionais Não estamos, assim, perante dificuldades decorrentes da
aquisição de conhecimentos, mas antes da capacidade de saber
Os relatórios nacionais que foram elaborados pelo Gabinete pensar os problemas que são colocados, especialmente os que
de Avaliação Educacional do Ministério da Educação sobre não seguem a rotina das aprendizagens.
os resultados dos estudos PISA e sobre as provas de aferição Em segundo lugar, esses estudos, nomeadamente os baseados
aos 4.°, 6.° e 9.° anos de escolaridade constituem um bom nos resultados dos testes e provas de aferição nacionais, revelam
manancial de informação sobre a qualidade das aprendiza ainda algumas surpresas. Por exemplo, os resultados dos alunos
gens, os seus problemas e as suas limitações. Desde 2000 que do 6.° ano são geralmente piores que os do 4.° ano. Será que os
esses relatórios são elaborados e identificam um conjunto de
problemas, alguns dos quais se repetem invariavelmente de
ano para ano.
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1 5 O raciocÇnio inferencial,de carúcter dedutivo ou indutivo, processa-se a par


tir de um conjunto de observações ou premissas para atingir uma conclusão.
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ir
alunos perdem competências na passagem do 1.0 para o2.° ciclo? Os efeitos desta inadequação reflectem-se não só no 5.° e no
Ou será que essa transição não é acompanhada de uma melhor 6.° anos como no ano seguinte (7.° ano de escolaridade), em que
articulação de conteúdos e de procedimentos entre os vários sa as taxas de insucesso e retenção são das mais elevadas.
beres? Será ainda que os conhecimentos e competências adqui
ridos no 1.0 ciclo não são suficientemente consolidados para que
os alunos possam enfrentar os desafios mais complexos que os Os curricula
anos seguintes vão trazer?
A nível macro, que respeita à forma como se organiza o en Quem conheça a estrutura curricular do 3.° ciclo em Portugal
sino, o 2.° ciclo sempre foi um dos pontos de tensão do siste decerto perceberá o impacto que provoca em qualquer aluno.
ma educativo português, desde o velho «complementar» até ao Basta para o efeito consultar os horários de qualquer escola e a
«ciclo preparatório», acabando por transferir essa tensão para a lista de professores afectos a cada uma das disciplinas ou áre
Reforma de 1986 com a introdução do actual «ensino básico» as curriculares para se perceber como as 27 horas lectivas se
de nove anos. Coincidindo com o período da pré-adolescência, distribuem por cerca de 15 ou 16 componentes, a que poderão
trata-se de uma transição crítica nos trajectos escolares que não corresponder outros tantos docentes. Depois de olhar bem para
tem sido gerida da melhor forma. os horários e para a forma como se distribuem tempos e meios
Ao nível intermédio, a organização das escolas, separando tempos, ao longo do dia, não será difícil ficar surpreendido com
as escolas do 1.0 ciclo das EB23, obriga a uma transição de am o facto de a maioria dos alunos conseguir ter sucesso.
biente escolar e de estrutura cunicular para as quais os alunos Ouso dizer que os autores desta organização curricular de
não estão devidamente preparados e capacitados. vem ter pensado em tudo, menos nos alunos e na qualidade das
A nível micro, relativo aos processos de aprendizagem, é co aprendizagens. A dispersão disciplinar, as cargas horárias mal
nhecido o facto de algumas competências fundamentais, quer na distribuídas, a quantidade de docentes e a consequente dificul
língua materna quer na matemática, precisarem da continuidade dade de articular e integrar tudo isto convergem no princípio de
dos processos e de ambientes de aprendizagem estáveis para se ensinar mal um pouco de tudo, quando seria preferível ensinar
consolidarem. bem o que é fundamental.
É por estas razões que de há muito defendo um. ensino pri Esse mesmo princípio conduz à desvalorização do que consi
mário de seis anos de forma a assegurar essa consolidação e a dero serem os saberes axiais e estruturantes das aprendizagens:
fazer coincidir os problemas da transição escolar para o período o Português e a Matemática. A ideia de que todas as disciplinas
de entrada na adolescência. Lembre-se que o início antecipado devem ter, especialmente nesta fase dos trajectos educativos, a
da escolarização dos alunos no 1 .° ciclo (a partir dos 6 anos e mesma carga horária (ou muito próximo disso) é a revelação de
muitos ainda com 5) é uma razão adicional para repensar o tal que tudo parece estar feito para se ter insucesso escolar.
ciclo primário de seis anos. Não é por acaso que em muitos paí Para percebermos melhor este problema, elaborámos um
ses europeus se continua a limitar o acesso das crianças à escola quadro com a distribuição percentual dos tempos curricula
primária até aos 7 anos, considerada a idade adequada. res afectos a cada uma das matérias leccionadas, comparando,
Poderemos, assim, estar perante uma clara inadequação entre para dois momentos do trajecto escolar, a distribuição média
o que se pretende ensinar e o que é possível aprender. dos países da OCDE.
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Valores em percentagem do total Na Matemática afectou-se uma carga de sete horas sema
Ano de 2006 dos 9 aos II anos de idade ‘dos 12 aos 14 anos de idade nais, o que me parece adequado. O único problema é que esta
rias.
Matérias do cun-fculo w distribuição parece destinar-se aos quatro anos do 1 .° ciclo,
obrigatário Portugal Média OCDE Portugal Média OCDE 4. quando deveria ser diferenciada nos dois primeiros — maior
Leitura, escrita e literatura 15 23 11 IS Y peso da Matemática e do Português em relação ao Estudo do
Matemática 12 16 II 13 Meio e às Expressões.
Ciência 9 9 12 11
Com o 1.° ciclo e o Secundário ajustados, restam o 2.° e 3.°
Estudos Sociais 6 8 13
ciclos, que continuam a ser um autêntico quebra-cabeças para
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Línguas estrangeiras
alunos e professores.
modernas 11 7 15 12
Artes IS 12 II 8
Educaçio Física 9 8 9 8
Os programas e os manuais escolares
Outras matérias 20 17 18 21
A ideia do Estado Educador, concebida nos séculos xviii e
Fonte: OCDE, Education ar a Glance 2008. Nota: em «outras matérias» incluem-se xix e tendo atingido entre nós a sua expressão mais totalitária
também as componentes flexíveis do currículo. durante o Estado Novo, não se prende só com a função de do
tar o país de uma rede de escolas, de assegurar o pagamento
Julgo que a comparação é suficientemente elucidativa para dos professores e de impor de forma coerciva uma escolaridade
podermos questionar se este tipo de organização curricular está obrigatória.Ajuntar a esta responsabilidade de assegurar a infra-
concebido para termos melhor educação. -estrutura educativa, o Estado também chamou a si o monopólio
Pergunta o leitor qual a razão desta opção? Quem, como eu, da organização curricular, da definição do que se ensina, quando
teve a experiência de fazer uma reforma do ensino secundário se ensina e mesmo como se ensina. A margem deixada às esco
com alterações nos desenhos curriculares, só pode responder de las, aos professores e às comunidades é mínima.
uma forma: quando os interesses profissionais de carácter cor Durante o regime do Estado Novo, esse monopólio da co
porativo que dominam o ensino em Portugal convergem com a erção educativa foi ainda levado ao extremo da imposição do
fragilidade do poder político, é muito provável que se chegue a livro único, garantia da uniformidade do ensino, mas igualmen
este tipo de organização curricular. te mecanismo de controlo ideológico da formação das novas
As últimas alterações introduzidas no 1.0 ciclo tiveram a gerações.
virtude de afectar um número mínimo de horas (Despacho O regime democrático liberalizou progressivamente a pro
19.572/2006) às diferentes áreas curriculares, reforçando o dução e a adopção dos manuais escolares, mas não retirou ao
ensino da Língua Portuguesa e da Matemática. No caso da Estado esse poder de selecção e definição dos conteúdos e dos
Língua Portuguesa, saúda-se a obrigatoriedade de uma hora próprios métodos de ensino. Este poder mantém-se incólume
de leitura diária, no seguimento das recomendações do Plano e surpreendentemente não é exercido pelo poder político legí
Nacional de Leitura, mas já se estranha o facto de apenas so timo, mas sim pelas estruturas burocráticas do Ministério da
brarem três horas semanais para o ensino das restantes maté Educação. São elas que através de convite escolhem as equi
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pas de autores dos vários programas, mas raramente promovem escolas façam as suas escolhas baseados em critérios objectivos
a necessária articulação horizontal e vertical dos mesmos. Daí de qualidade e de preço e que o Ministério da Educação comple
que há muito esse seja um dos problemas decisivos que limitam mente essa escolha com uma avaliação sistemática e exigente da
a coerência e a qualidade do ensino. qualidade desses manuais.
É com base nos programas que se elaboram os manuais es
colares, constituindo-se como instrumento didáctico decisivo
na operacionalização dos objectivos e conteúdos estipulados Os professores
nesses programas. Não valerá a pena especularmos sobre a
dispensabilidade dos manuais como instrumento didáctico. Os professores têm um papel central nos processos de apren
Para todos os efeitos, eles existem, competem pela adopção e dizagem: são eles que ensinam e terão de ser eles a fazer apren
propiciam aos professores o poder de os escolher entre dife der. Quando minimizam este seu papel, dificilmente poderão
rentes alternativas. Nesta perspectiva, o quadro legal que regu assumir-se como professores. Por isso, uma parte significativa
lamenta a concepção, produção e adopção dos livros escolares da qualidade do ensino está dependente da qualidade do seu de
é um excepcional avanço em relação ao que existia no regime sempenho e da sua competência.
anterior. Até há bem pouco tempo não havia nenhum sistema que nos
Será que essa maior liberdade de escolha dos manuais es permitisse avaliar o desempenho dos docentes, a sua qualidade
colares por parte das escolas e dos professores contribuiu para profissional, o valor do seu contributo para a concretização da
uma melhor qualidade desses instrumentos? Não tenho nenhu missão central da escola. Duvido que tal sistema já exista e que
ma dúvida em responder pela afirmativa. Não obstante as quei permita reconhecer o mérito dos melhores, valorizar o trabalho
xas correntes sobre a qualidade científica e pedagógica desses dos que são apenas bons e afastar aqueles que,por razões objec
manuais, eles são, em média, infinitamente melhores do que tivas, não podem continuar a exercer a profissão de professor.
os utilizados há vinte ou cinquenta anos. Não há comparação O défice de avaliação do desempenho docente é claramente
possível. uma das causas do défice da qualidade da educação em Portugal,
Continuam a ter falhas e erros? Possivelmente. Face à diver em especial do ensino público.
sidade da oferta e da competência dos autores e editores, é natu O Estado de há muito prescindiu do direito de seleccionar
ral que subsistam alguns problemas de qualidade. Mas os manu os candidatos à docência. O argumento que é correntemente
ais não são códigos de normas, são instrumentos de trabalho que aduzido para justificar esta situação baseia-se no facto de ser o
incumbe ao professor potenciar nos processos de aprendizagem. próprio Estado o responsável pela formação inicial dos profes
Também há que reconhecer que algumas das críticas lançadas sores, o que desde logo os certifica. Estamos perante uma meia-
aos manuais escolares seriam mais bem dirigidas aos programas -verdade. O facto de uma grande parte dos candidatos a profes
aprovados pelo Ministério da Educação em que eles se baseiam sores provir de estabelecimentos públicos do ensino superior
ou às modas pedagógicas que tendem a menorizar a capacidade não apaga o facto de esses estabelecimentos disporem de auto
de compreensão do aluno. nomia científica e pedagógica, o mesmo se aplicando aos estabe
A liberdade de edição é um bem para o sistema de ensino e lecimentos de ensino privado que também formam professores.
para que continue a sê-lo é indispensável que os professores e as A qualidade dos seus formandos nunca foi certificada.
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Nos finais da década de 90, lançou-se o sistema de acredita A ilusão tecnológica
ção dos cursos de formação de professores e educadores, mas o
resultado deste esforço meritório foi uma acreditação genera De há muito que o fascínio pelas tecnologias influenciou as
lizada de todos os cursos. A competição desenfreada entre es políticas educativas e as práticas pedagógicas. Basta lembrar o
tabelecimentos de ensino superior, visando captar mais e mais papel que a televisão teve no ensino a distância, a importância
alunos, resultou na redução dos níveis de exigência e da qua do vfdeo no alargamento dos conteúdos didácticos, a máquina
lidade da formação, bem como na mais que esperada inflação de calcular para a matemática e mais recentemente a importân
das classificações de curso de forma a beneficiar os seus alunos cia do ensino assistido por computador, os projectores de ima
em detrimentos dos da «concorrência». Se o único critério de gem, os quadros interactivos ou a Internet para a diversificação
admissão à docência era a classificação de curso, não será de dos instrumentos de trabalho e para o acesso a uma informação
estranhar os estratagemas a que recorreram para que fossem be abundante susceptível de enriquecer qualquer aula em qualquer
neficiados os «seus» candidatos. domfnio do saber.
Mais eficaz tem sido o sistema de certificação profissional Esse fascínio, porém, raramente correspondeu aos resultados
adoptado por vários países, assente em provas individuais de alcançados, especialmente no domínio da qualidade do ensino.
acesso e em processos extremamente rigorosos de avaliação de A investigação científica neste domínio não tem sido con
estágios profissionalizantes. clusiva relativamente aos ganhos de qualidade expressos em
O processo de recrutamento dos professores, bem como de resultados de testes de avaliação. Reconhece-se que os alunos
progressão na carreira docente, é claramente uma pedra de toque aprendem mais em menos tempo, demonstram atitudes mais
de um dos mais importantes pilares da qualificação do ensino em favoráveis à aprendizagem, em especial nas experiências que
Portugal.As tensões corporativas que marcaram as lutas dos pro exigem um elevado nível de raciocínio e de resolução de pro
fessores nos últimos anos poderão ter como consequência ficar blemas, tendem a desenvolver práticas mais cooperativas, mas
tudo na mesma sem que alguém se atreva a (<mexer» no assunto, em todas estas situações verificou-se ser decisivo o papel do
sob risco de fazer desmoronar o pouco que ainda ficou de pé. professor, especialmente o que beneficiou de formação ajustada
Felizmente, ainda há um vasto grupo de professores que sus ao tipo de ensino que praticava.
tenta as escolas e o sistema de ensino através do seu profissio Há um ganho evidente na familiarização dessas novas tecno
nalismo, dedicação e brio. A não ser isso, diffcil seria imaginar logias com as quais vai ter de lidar na sua vida futura. Contudo,
o estado a que estaríamos condenados. as tecnologias não passam de instrumentos, sofisticados e atra
Objectivamente, nada nos ajuda a responder à questão: qual entes, sem dúvida, mas tão-só instrumentos. Se o aluno não sabe
o valor de um bom professor no sucesso de um aluno? E qual o ejfuturar um texto argumentativo, não há nenhum processador
contributo de um mau professor para o insucesso? As escolas e ,,de texto que o ajude. Se não sabe interpretar o enunciado de um
os alunos sabem, caso a caso, quem são os melhores. Impossível problema, não será a folha de cálculo que o fará- Se não sabe
será estimar, de forma rigorosa e objectiva, quanto é que eles formular um problema, nenhum programa o ajudará a encontrar
representam no conjunto do corpo docente e qual o potencial de a melhor solução.
qualificação que poderiam representar para o ensino em Portugal. Quer isto dizer que o fascínio pela tecnologia pode rapida
mente transformar-se numa ilusão, esta sim extremamente ne
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gativa para o processo educativo, se conduzir à desvalorização para a sua superação. É uma avaliação de carácter interno e da
do que é fundamental, ou seja, o desenvolvimento de compe responsabilidade exclusiva do professor, que de forma contínua
tências cognitivas, capacidade de raciocínio lógico, domínio compara os desempenhos do aluno com os objectivos previa-
das maneiras de pensar cientificamente conduzidas. Em síntese, mente definidos. Utiliza para o efeito diferentes instrumentos
saber pensar. de avaliação directa ou indirecta: observação diária, exercícios,
Mais do que aprender a fazer, as aprendizagens têm de trabalhos escritos ou exposições orais, testes regulares, etc.
orientar-se para o aprender a pensar. Este é o grande desafio O facto de se tratar de uma avaliação extremamente perso
de quem não quer ficar pela «sociedade da informação» e quer nalizada na relação professor-aluno e susceptível de grande
entrar decisivamente na «sociedade do conhecimento». Separa subjectividade relativamente às exigências e aos objectivos da
estes dois tipos de sociedade a capacidade de utilizar a informa aprendizagem conduziu à introdução das chamadas «avaliações
ção disponível e abundante para produzir novo conhecimento externas», visando aferir os níveis de desempenho, não só entre
que só esse saber pensar permite. Por outras palavras, essa di vários alunos, mas também entre várias escolas. Estas avalia
ferença vai do consumo acrítico da informação disponível à ca ções externas são por natureza sumativas e restritas, ou seja,
pacidade de produzir nova informação, resultante da elaboração realizam-se num determinado momento do trajecto educativo
sistemática e racional da primeira. e cobrem apenas uma parte dos conhecimentos e competências
De pouco vale a tecnologia se ela não for utilizada para o adquiridos, de forma a/avaliar se o nível de desempenho está de
desenvolvimento de processos educativos cada vez mais com acordo com os objectivos da aprendizagem, podendo então ser
plexos. É pela educação que se chega à tecnologia e não o con ou não certifrcadas
trário. Por isso, torna-se decisivo pensar primeiro naquela e só Neste contexto, as avaliações interna e externa, ainda que de
depois nesta sob risco de estarmos a criar novas ilusões, tão natureza diferente e prosseguindo objectivos diversos, acabam
frustrantes quanto tantas que as antecederam. por ser complementares.
Porém, para além de aferir, as avaliações externas assumem
outros efeitos. Em primeiro lugar, expressam um referencial a
A avaliação atingir que poderá funcionar como elemento adicional de mo
tivação. Em segundo lugar, são um instrumento de regulação,
Se a qualidade da educação fosse plenamente assumida como especialmente quando estamos perante sistemas de ensino mas
um desígnio colectivo, de há muito estaria interiorizada uma sificados que visam impor determinados padrões de qualidade
cultura de avaliação dos desempenhos: dos alunos, dos profes de ensino.
sores, das escolas, mas também das políticas educativas. A ava Quando, após a Revolução do 25 de Abril de 1974, se suspen
liação é um requisito da qualidade. deram os exames nacionais, poucos pensaram de acordo com o
Sempre houve a avaliação dos alunos feita pelos professo que é um sistema de avaliação educacional em qualquer país do
res durante o processo de ensino e aprendizagem. Trata-se do mundo. Os exames nacionais eram, aos olhos de muitos por
que muitos designam por «avaliação formativa», tendo por tugueses, um símbolo e um instrumento repressivo e selectivo
objectivo monitorizar o que se aprende de forma a identificar do regime totalitário que acabara de ser derrubado. Tudo o que
deficiências e a permitir reorientar o esforço de aprendizagem era avaliação externa ou de carácter sumativo foi sacrificado ao
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primado da «avaliação contínua». Este foi um erro de conse
quências dramáticas para o sistema de ensino em Portugal, só
equiparável à extinção dos cursos técnico-profissionais, porque
pretensamente discriminavam socialmente os alunos.
Mas o mais grave foi ter-se prolongado o erro por quase duas
décadas, mantendo-se ainda no presente algumas marcas desse
erro. Não terá sido por acaso que os primeiros exames nacionais
foram introduzidos no 12.° ano. Compreende-se a necessida
de de aferir classificações para uma maior justiça no acesso ao
ensino superior. Sem utilizar este pretexto, introduziram-se os 5. Maior equidade?
exames do 9.° ano. No final dos restantes ciclos (4.° e 6.° anos),
aplicam-se provas de aferição, que mais não são que testes na
cionais, mas sem qualquer efeito de ponderação na avaliação A história da educação em Portugal no último século e meio
dos alunos. encerra um inquietante paradoxo: os dois regimes políticos
Trinta e cinco anos de indecisões e de debates ideológicos em — a Monarquia Constitucional e a República — que convic
torno de aspectos tão decisivos para a educação é tempo perdido tamente mais se empenharam na generalização da instrução
em excesso. pública, especialmente a «primária», como requisito da cida
Os exames ou testes nacionais são, para todos os efeitos, pro dania, viram os seus esforços traduzidos numa imensa fmstra
vas de avaliação externa já consagradas no sistema nacional de ção; o regime do Estado Novo, que tanto fez por contrariar os
ensino. A pouco e pouco vai-se tomando consciência da sua im princípios da liberdade individual e da cidadania, acabou por
portância na orientação das aprendizagens e muitos dos críticos concretizar nos anos 50 e 60 o que os seus antecessores sempre
vão rendendo-se à sua utilidade. ambicionaram.
Como é compreensível, os exames e testes nacionais não es A generalização da «instrução popular» era um desígnio in
tão desprovidos de inconvenientes: a excessiva orientação das dispensável à consolidação da sociedade liberal e da democracia
aprendizagens para «passar» no exame, o facto de incidirem republicana cujas elites dirigentes tinham consciência perfeita
apenas sobre uma parte das matérias e das competências en de que o enraizado analfabetismo corria contra elas próprias.
sinadas e desenvolvidas, a forma como são elaborados os tes Uma economia atrasada e fechada, incapaz de acompanhar os
tes não ser a mais adequada são argumentos atendíveis. Mas ritmos de desenvolvimento europeus, um Estado endividado,
qualquer instrumento de avaliação não está isento de limitações uma sociedade sem uma classe média suficientemente nume
que apenas se superam se tivermos uma visão integrada do pro rosa e dinâmica, com a maioria da população a viver de uma
cesso de avaliação. Esses vários instrumentos completam-se e agricultura de subsistência e entregue à iliteracia e ao conser
esclarecem-se mutuamente. Haja quem os queira utilizar de for vadorismo de pendor religioso eram ingredientes mais do que
ma ponderada e sistemática. suficientes para temer a ameaça autoritária.
A ideia de recorrer à educação e ao sistema de ensino como
instrumento fundamental para moldar e provocar a mudança
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cultural na sociedade é comum aos diferentes regimes. A lai Mas não será bem assim. O que hoje sabemos da investigação
científica neste particular domínio é que, para além do papel
cização da sociedade e a cidadania dos indivíduos só assim se
preponderante do capital familiar no sucesso dos alunos, há ou
poderiam afirmar. O Estado Novo recorreria à contenção das
tros factores que fazem a diferença, desde a escola à qualidade e
expectativas educativas e à gestão parcimoniosa das oportuni
competência dos seus professores, a organização do sistema de
dades de ascensão como forma de manter a ordem social.
ensino, o papel da comunidade e das relações sociais de proxi
O regime democrático saído da Revolução do 25 de Abril
midade e, não menos importante, a capacidade de todos pode
criou a ilusão da «escola pública democrática» como instrumen
rem gerar expectativas elevadas e oportunidades sociais que as
to para construir uma sociedade assente na preservação da liber
realizem.
dade, mas também na da progressiva equidade social através da
garantia do Estado em promover a igualdade de oportunidades. O determinismo que faz do futuro de uma criança um produto
do seu estatuto económico-social teremos de o confrontar com a
Em qualquer das situações, a educação e a escola foram sem
capacidade que algumas sociedades revelam de contrariar essa
pre instrumentos privilegiados para gerir ora a ordem ora a mu
dependência e abrir caminhos de equidade e de promoção social
dança social. Mas nem por isso a educação em Portugal deixou
e cultural. Quanto mais o conseguirem, mais desenvolvidas se
de revelar indicadores de atraso e de ineficácia na superação das
tomam.
próprias desigualdades sociais.
Num país que revela as maiores desigualdades na distribui O crescimento da escolarização em Portugal foi por si só um
factor de maior equidade social, principalmente quando se alar
ção dos rendimentos e dos activos patrimoniais no conjunto da
gou o acesso às formações secundária e superior.
União Europeia, a tentação de remeter para a educação a respon
O travão colocado pelo Estado Novo no acesso ao ensino li
sabilidade de superar esse desequilíbrio é enorme e não deixa de
ceal foi, durante muitos anos, especialmente nas décadas de 50
ser pertinente.
e 60, um instrumento eficaz de contenção do crescimento das
Nas últimas décadas e um pouco por todo o mundo, reconhece-
classes médias urbanas. Fazendo-o, aliviava a procura de ensino
-se que as desigualdades educativas tendem a reproduzir as de
superior e a formação de diplomados para alimentar não só os
sigualdades sociais. O problema nem se deverá colocar entre os
quadros das empresas, mas também das profissões liberais que
alunos das famflias com maiores rendimentos e património face
a crescente urbanização do país exigia.
aos alunos provenientes de famílias pobres. Coloca-se sim entre
O regime ainda traçou um «plano de fuga» encaminhando
os alunos cujas famílias têm um elevado nível de escolaridade e
milhares de crianças e jovens para o ensino técnico-profissional
de «capital cultural» e aquelas que o não têm.
de maneira a contemplar as necessidades crescentes da indústria
Para muitos, não é a escola que faz a diferença, é o nível de
e dos serviços. Só que essa pressão era insustentável e não só
escolaridade dos pais dos alunos que sustenta a diferença entre
minou os pilares do regime como acabou por «empurrar» as
a maior ou a menor probabilidade de sucesso educativo. Se as
políticas educativas do regime democrático para a massificação
sim fosse, a escola e a educação como instrumentos de ascensão
de todos os níveis de ensino.
social não passariam de uma ilusão rapidamente desfeita pelo
grilhão cultural da família de origem. Seríamos um mero produ Há inquestionavelmente um processo de democratização
do ensino que se expressou timidamente ainda durante o
todo sucesso ou insucesso dos nossos pais, sem direito a sonhar
Estado Novo e que explode de forma quase incontrolável nas
ou a lutar por um estatuto social mais elevado.
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duas primeiras décadas do regime democrático. Nesta pers rem as expectativas educacionais: se forem baixas, ajustando-se
pectiva, não tem comparação a dimensão desse acesso nos à baixa auto-estima do aluno, decerto se produzirão resultados
dois regimes. fracos; se forem altas, aumenta-se a probabilidade de sucesso
Porém, se o regime autoritário seleccionava na passagem do educativo. E reconhecido o facto de o esforço e as expectativas
ensino primário para o liceal, o sistema de ensino «democrático» das crianças e dos jovens se ajustarem facilmente aos objecti
não deixa de o fazer de forma mais imperceptível: selecciona vos que lhes são colocados. Se lhes pedimos pouco, eles natu
ao longo do trajecto escolar do aluno através das reprovações ralmente darão pouco, se, pelo contrário, lhes pedimos muito,
e das desistências, bem expressas pelas mais elevadas taxas de darão muito mais. Repare-se, a título de exemplo, como evoluiu
reprovação e de abandono escolar que são registadas no conjunto o insucesso escolar nos últimos anos:
dos países europeus. Ou seja, cria-se a ilusão de um fácil acesso,
mas depois enfrenta-se um sistema de ensino que não está con R.t.,fl, • D..1É,a.. pç cIçJo n nç&.,ld.d.
cebido para ter sucesso.
Só existem duas formas extremas de responder a este efeito
de discriminação: fazer baixar os níveis de exigência em nome
da equidade social ou, mantendo os níveis de exigência, me
lhorar os métodos de ensino e mobilizar todos os recursos para
1 x
prevenir essa discriminação. Como é evidente, o primeiro tipo —
de solução é o mais fácil de concretizar, mas a prazo rapida ‘5:
mente se conclui que não passa de uma perigosa e irrecuperável ‘5.5
ilusão. 50
E no contexto desta tensão entre equidade social e qualida ‘Mia4 5•9 50l 155o4
de de ensino que se criam as condições para a afirmação das
visões «românticas» que tendem a confundir a consequência
com a causa ou a desvalorizar os meios em função de um fim É evidente que as taxas de retenção e desistência têm vindo a
superior. Esquecem que a melhor forma de atingir esse fim não baixar desde o princípio da década, facto que contradiz algumas
será «descer» ao aluno, mas fazê-lo «subir» a um nível superior das visões mais pessimistas aquando da introdução dos exames
de capacidade intelectual. As deficiências culturais só se supe nacionais do 12.° ano (1997) e do 9.° ano de escolaridade (2005)
ram com mais trabalho, maior capacitação e não iludindo a sua que previam, de acordo com a lógica de que os exames só ser
existência. Por isso, na maior parte dos casos, a preocupação de vem para aumentar o insucesso, um aumento da retenção e da
discriminar positivamente os mais fracos traduz-se num reforço desistência. Afinal, o que se passou foi precisamente o contrá
dessa mesma fragilidade. rio. Podemos facilmente concluir que os exames são perfeita
Curiosamente, terá sido nos períodos áureos de afirmação mente compatíveis com o sucesso escolar.
do romantismo educativo, sintetizado na expressão corrente de Um bom professor, tal como uma boa escola, é aquele que
«eduquês», que as taxas de reprovação atingiram os níveis mais consegue contrariar o determinismo sociológico do estatuto so
elevados. Talvez se explique esse facto pela forma como se ge cioeconómico familiar pela qualidade do seu ensino, pela forma
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[
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como potencia as aprendizagens, pelas expectativas que con
segue criar e pelas capacidades que consegue desenvolver nos
alunos. Por isso dá tanto trabalho ser professor!
6. Educar para quê?
Quanto tempo demora a formar um jovem que reúna as quali
ficações necessárias para uma boa inserção na vida profissional
e os requisitos para o exercício de uma cidadania plena e res
ponsável?
Tudo depende da vida profissional que lhe queiramos propor
cionar e do tipo de cidadania que lhe possamos exigir.
Se aquilo que pretendemos desse jovem é o poder vir a in
tegrar o mercado de baixas qualificações, tecnologicamente
pouco desenvolvido e assente no baixo custo de mão-de-obra,
decerto que não precisaremos de mais de nove anos de escolari
dade, tantos quantos os da actua’ escolaridade obrigatória.
Esses mesmos nove anos serão mais que suficientes para
que possa responder aos requisitos cívicos básicos: votar, mas
dificilmente poder ser eleito, «tirar a carta de condução», mas
sem acabar com as incivilidades rodoviárias, declarar os rendi
mentos e pagar impostos, mesmo que não consiga preencher os
impressos dos IRS, e mais um conjunto de direitos e deveres
elementares.
Se, pelo contrário, quisermos aumentar o número de quadros
médios e superiores, apostar nas profissões de elevada incorpo
ração de conhecimento e tecnologia que aumentam a cadeia de
valor, dispor de pessoas capazes de sustentar as novas indústrias
do conhecimento e da cultura, então vamos ter de subir o nível
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de escolarização médio das novas gerações. Se formarmos pes cialmente de capital humano, estão a transformar as bases da
soas culturalmence desenvolvidas, decerto que iremos ter cida organização social, das economias e dos Estados.
dãos mais responsáveis e mais preparados para as exigências Recuando no tempo, só encontramos períodos semelhan
das novas cidadanias — ambiental, cultural, europeia, univer tes no primeiro processo de globalização engendrado pelos
salista, etc. Descobrimentos e pela expansão europeia dos séculos xv e XVI,
Em média, precisaremos de cerca de quinze anos para formar ou na industrialização oitocentista, mais precisamente entre
os cidadãos do futuro. Quer isto dizer que deveríamos estar a o fim das guerras napoleónicas (1815) e a 1 Guerra Mundial
pensar como formar os cidadãos de 2025,2040,2050. E o pro (1914-1918).
blema é que não vejo que exista uma grande preocupação com Trata-se de períodos longos de mudança acelerada e profun
esse desafio. da, mas sem comparação possível com o ritmo e extensão das
Nos últimos anos, o debate sobre a educação não consegue transformações que se têm registado nas duas últimas décadas.
libertar-se do «imediato», ora são as carreiras dos professores e Se é lícito retirar algum ensinamento do passado, ele confirmará
as permanentes «polémicas» sindicais, ora os actos isolados de o facto de ainda estarmos no princípio de tão prolongado pro
indisciplina e incivilidade que alimentam a excessiva mediati cesso.
zação da escola, ora tantas outras questões acessórias, fazendo É necessário preparar e educar as novas gerações para a incer
silenciar o que me parece ser fundamental. Falta uma visão de teza. Como? Centrando o ensino e as aprendizagens no adqui
futuro à maior parte dos agentes directa ou indirectamente en rido fundamental, a saber: diversificada formação cultural (as
volvidos nos problemas da educação. E, sem visão de futuro, línguas, as literaturas, a história, a filosofia, as artes) combinada
não há rumo possível nem capacidade de mobilização dos recur com uma sólida cultura científica (a matemática e as ciências).
sos para um desígnio que a todos diz respeito. Quanto aos saberes axiais e estruturantes do conhecimento,
Infelizmente, não se trata de um défice exclusivo da educa não haverá muito a inovar. Se confrontarmos o desenho cur
ção. A sociedade portuguesa revela sintomas preocupantes de ricular de vários países, concluiremos que eles não são muito
recear o futuro e um enorme medo de pensar para além do ime diferentes. As diferenças notam-se nos tempos dedicados a cada
diato, disfarçado pela busca obsessiva da acção, por mais efé um desses saberes, nas prioridades que são definidas, nas articu
mera que esta se revele. lações e sequências que conferem coesão ao currículo.
Que tipo de sociedade vamos ter em 2025? Não será fácil res A incerteza exige, antes de mais, solidez de conhecimentos
ponder de forma objectiva e suficientemente ampla à questão. e capacidade de os mobilizar para situações novas. Essa soli
Mas conhecemos algumas tendências. dez adquire-se com esforço — nomeadamente de memoriza
Em primeiro lugar, a incerteza. Os últimos vinte anos da his ção — treino, trabalho sistemático e disciplina. A capacidade de
tória mundial recolocaram o problema da reduzida visibilidade mobilizar o conhecimento desenvolve-se através da prática de
prospectiva, dificuldade característica dos períodos de obso resolução de problemas, do incentivo à reflexão, do raciocínio
lescência e aceleração dos processos de mudança. Fenómenos demonstrativo, do confronto das soluções. Os dois requisitos
como a globalização, a inovação tecnológica contínua, as no completam-se e tornam-se indispensáveis principalmente quan
vas formas de competitividade nos mercados internacionais, o do sustentados em atitudes favoráveis aos processos de mudança
aumento da mobilidade das diferentes formas de capital, espe e adaptação, nomeadamente de carácter organizacional.
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I.
Li
Em segundo lugar, a abundância de informação. Hoje há mais leitura, análise e interpretação de textos, por exemplo, ou da
informação disponível, mas provavelmente vivemos numa fase prática de análise de fontes históricas, das operações mais sim
que eu classificaria de imatura face ao que se projecta para da ples de raciocínio lógico associados aos primeiros exercícios de
qui a quinze ou vinte anos. O ritmo de produção de informação estatística ou ao hábito de medida, registo, leitura e interpre
tenderá a acelerar-se, a globalização do acesso vai acentuar-se e tação de observações de fenómenos quotidianos (temperatura
a acumulação dessa informação atingirá escalas inimagináveis. do ar, humidade, tensão arterial, entre tantos outros exemplos
De há muito se fala de excesso de informação e dos proble possíveis).
mas que apresenta, mas para além dessa abundância coloca-se Em terceiro lugar, a predisposição à inovação. Se há com
também o problema da obsolescência, informação que «mata» petências que têm vindo a ser valorizadas nas últimas décadas,
ou desvaloriza a informação, a um ritmo crescente, tornando o são aquelas que sustentam atitudes favoráveis à inovação em
«mercado» uma amálgama de ofertas perante procuras poten contextos culturais de gestão da mudança. Trata-se de uma
cialmente ineficientes. consequência das alterações profundas operadas nos sistemas
Neste contexto, surge a necessidade premente de avaliação de produção e de criação cultural, especialmente na busca in
da sua utilidade e da sua validade. Ora, essa avaliação exige ca cessante de novas soluções, quer de carácter tecnológico, quer
pacidades cognitivas redobradas: saber definir muito bem a uti organizacional, quer mesmo na concepção do produto.
lidade e a finalidade da busca de informação, saber questionar e Os sistemas de inovação de há muito deixaram de respeitar
analisar criticamente, ter capacidade de a apropriar com vista a a tese schumpeteriana da propensão à inovação tecnológica
tomar uma decisão ou a produzir nova informação. em função do comportamento cíclico dos custos de produção.
E previsível um melhoramento das tecnologias de informa A globalização dos mercados e das redes de conhecimento tor
ção, desde os motores de pesquisa à gestão de bases de dados, nou as condições de competição de tal forma agressivas e volá
mas esse avanço não irá dispensar a boa utilização das ferra teis, que a pressão sobre a inovação tende a ser cada vez mais
mentas, a capacidade de análise, de reflexão e síntese por parte intensa, contínua e necessariamente planeada.
do utilizador. Ora estas capacidades exigem formação prolonga Inovar para competir, desde a escala local à escala global,
da e sistemática, integrando o que atrás designámos por ((saber parece ser o sentido do desenvolvimento das sociedades mo
pensar». Não bastará o domínio dos operadores lógicos, é ne dernas.
cessádo saber questionar, formular bem os problemas, construir Como nos prepararmos para esses novos desafios?
hipóteses e identificar com rigor o objecto da pesquisa. A educação tem um contributo a dar, mas não através de uma
Mas há um outro desafio, o da passagem da perspectiva do pseudocultura de inovação educacional que dominou a reflexão
utilizador para a do criador, do produtor de nova informação. pedagógica nas duas últimas décadas. O entusiasmo acrítico
Só assim poderá haver utilidade social e valor acrescenta pela inovação educacional, porque não reflectido em função dos
do. A informação, por si só, não passa de uma matéria-prima. problemas de base e não processada pelo conhecimento, condu
Acrescentar-lhe valor implica processá-la e tomá-la socialmente ziu ao mimetismo de experiências estranhas, à adopção volun
reconhecida. tarista de experiências não avaliadas e à replicação no ensino
Como lá chegar através da educação? Começando, desde os de práticas e lógicas de inovação tecnológica ou organizacional
primeiros anos de escolaridade, com as coisas mais simples: a que pouco ou nada tinham que ver com a educação.
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A
O experimentalismo voluntarista, mas descontrolado,
F Muitos educadores dão uma especial ênfase ao desenvolvi
generalizou-se a muitas escolas portuguesas sem que se avalias mento da capacidade criativa junto dos seus alunos, nomea
sem os efeitos directos sobre as crianças
— que não são «produ damente nos primeiros anos de escolaridade. Esse é um bom
tos» — e sem que monitorizassem os resultados e efeitos. Desde exemplo do que não se deve fazer. Ninguém cria a partir da
a distribuição dos lugares na sala de aula, ao «aprender, brin ignorância, ninguém inova sem conhecimento adquirido. Tal
cando», tudo eram «boas práticas» e confesso que nunca tive a como o ensinar, criar e inovar dá muito trabalho e requer muito
oportunidade de ver alguém dizer, por exemplo, que esta expe conhecimento. Por isso falamos em desenvolver atitudes favo
riência falhou, que foi um erro, ou seja, que foi uma «má práti ráveis à criação e à inovação e não da pretensa prática precoce
ca». É mais útil difundir uma má prática como forma de alertar de o fazer.
e dissuadir a sua replicação do que banalizarmos a inovação e as A missão do ensino e da educação é a de formar pessoas,
boas práticas. Por isso começo a defender, sem grande sucesso, indivíduos capazes de enfrentar os desafios do futuro numa
diga-se, a realização de «seminários de más práticas». perspectiva integral. Nessa perspectiva também cabe o cidadão,
Há que perceber que a inovação em contextos competitivos como terá de caber o profissional. Se o objectivo é formar pes
das empresas e das organizações é regulada pelos resultados soas capazes, como é que ele se decompõe nessas dimensões da
obtidos e pela sua capacidade de gerar valor no mercado. É o actividade profissionai e do exercício da cidadania?
mercado que dita o sucesso ou insucesso da inovação. Quais são as profissões mais necessárias daqui a quinze ou vin
Nos sistemas educativos, em especial com forte peso de ser te anos? Que tipo de quadros médios, de que tipo de formações
viço público, as regras da oferta e da procura são completamente superiores? E com que perfis de conhecimentos e competências?
diferentes. A educação é mesmo um exemplo de não mercado A resposta a estas questões exige um exercício de prospectiva
e a recompensa do agente inovador nem sempre existe. A ino que não cabe neste ensaio. Mas toma-se cada vez mais urgente
vação educacional é algo de uma enorme delicadeza porque es que a sociedade portuguesa ou os seus legítimos representantes
tamos a trabalhar com crianças, requer reflexão aturada e não a definam de forma clara qual a visão de futuro que têm para o
adesão entusiástica, a monitorização dos processos e a avaliação país. Sem esse esforço indispensável, será difícil orientar o sis
comparada dos resultados. Sem isso, o risco de ficar tudo na tema educativo para dar resposta não só aos anseios da popula
mesma é bem menor que o do insucesso. ção, mas, mais importante e decisivo, a um modelo de sociedade
O que precisamos de desenvolver nas novas gerações são as que se ambiciona construir.
atitudes favoráveis à inovação e à capacidade empreendedora Decerto que uma grande parte das profissões vai continuar a
associadas à afirmação da autonomia reflexiva e responsável. existir, alterando possivelmente o estatuto social que lhes está
Isso requer recentrar as aprendizagens na capacidade de formu actualmente associado. Mas teremos de prever as novas profis
lar e resolver problemas, sem prejuízo do domínio prévio, por sões, bem como assumir a obsolescência de tantas outras que vi
exemplo na Matemática, dos algoritmos e dos conceitos funda ram as suas actividades desaparecidas ou reconvertidas. Quem
mentais. Essa particular maneira de pensar não pode ficar confi olhar para os últimos cem anos da História perceberá que há
nada à Matemática, vai muito para além dela para estar presente profissões que desapareceram, outras que surgiram e se valori
nos mais variados domínios, desde o ambiente à história, da li zaram e tantas outras que se mantiveram ou ajustaram aos novos
teratura às ciências. tempos.
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Pretender valorizar o ensino profissional de forma a preparar dade e da democracia é mais elevado. Valores coffio o respeito
os jovens para uma inserção bem sucedida no mercado de tra e a disciplina, mais do que imposições das sociedades e dos re
balho passa, antes de mais, por pensar nos quadros médios de gimes autoritários, são requisitos das sociedades livres e demo
que vamos precisar no futuro, sob risco de continuarmos ou a cráticas.
formar para o desemprego ou para o subemprego desqualificado Se desejamos preservar o modelo de sociedade livre e de
e mal remunerado. mocrática, é pouco compreensível que não valorizemos esses
Formar cidadãos para que tipo de sociedade? Terá sido uma requisitos estruturantes da modernidade. Fala-se conentemente
questão em tudo idêntica a esta que orientou os políticos liberais da autoridade do professor, mas esquece-se que essa autoridade
do século xix para a necessidade de recorrer ao ensino público, exige o reconhecimento através do respeito e da disciplina. Se
nacional e obrigatório, como forma de formar os cidadãos li nem a família nem a escola assegurarem o valor da civilidade,
vres, conscientes dos seus direitos e deveres, da sua igualdade dificilmente a autoridade do professor poderá prevalecer.
perante a lei, amantes da Pátria, participantes responsáveis e nesta perspectiva que a educação para a civilidade deverá
esclarecidos sobre as grandes opções que se apresentavam ao preceder a educação para a cidadania e, para o efeito, nem se
futuro da vida colectiva. precisa de criar uma disciplina nova para o «ensino» destes va
Estes objectivos mantêm-se, ajo rtiori, nas sociedades demo E só tem de os praticar
lores, através da exigência das práticas e,
cráticas contemporâneas, mas o conceito de cidadania alargou- mais importante ainda, do exemplo: da pontualidade à postura
-se a novos domínios de preocupação e de sustentação da vida em sala de aula, dos hábitos de trabalho às regras elementares de
colectiva organizada. O conceito de cidadania nunca foi imutá participação nas aprendizagens, da promoção do respeito para
vel e hoje, perante novos riscos e novos desafios à sustentabili com o professor e os restantes colegas à preservação do espaço
dade e segurança da vida colectiva, tem todo o sentido falarmos e património público e comum. As sociedades e regimes autori
de uma nova cidadania. tários valorizam estas condutas pela necessidade de controlo e
Há, porém, um pressuposto da cidadania que nem sempre é submissão, as sociedades e regimes livres fazem-no por neces
considerado: a civilidade. sidade de organização e sobrevivência.
Civilidade define-se de forma simplificada como o conjunto O requisito da civilidade terá de ser promovido numa outra
de normas de convivência entre os diferentes membros de uma perspectiva: a das atitudes perante o risco. Capacitar os mais
sociedade organizada. Trata-se de regras interiorizadas e maio jovens para uma atitude responsável perante o risco é formá
ritariamente aceites como requisito da vida social, integrando -los no sentido de preservar a sua integridade e bem-estar, mas,
não só os valores, princípios que orientam o comportamento dos mais importante, a de estruturar a sua autonomia e a forma
indivíduos, mas também as normas de conduta que disciplinam como se desenvolve física e intelectualmente. A educação fami
a actividade desses indivíduos. liar tende a centrar-se, nos primeiros anos de vida da criança, na
A família e a escola são as instâncias privilegiadas de forma sua preparação para lidar com diferentes riscos, a preservar-se
ção dessa civilidade, menos através do ensino, mais através das perante potenciais ameaças à sua integridade física e intelec
práticas de sociabilidade e do exemplo que pais e professores tual. A escola terá de lhe dar continuidade. Desde a promoção
acabam sempre por dar. Esta é uma dimensão estruturante da de uma alimentação saudável às regras de higiene, do consumo
educação, principalmente nas sociedades onde o valor da liber de substâncias tóxicas à iniciação das práticas sexuais, da pre
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À
venção em espaço público à preservação do ambiente, existem tos deles sobre a Constituição da República, as instituições de
domínios diversos em que a escola é chamada a exercer a sua mocráticas ou a história da luta dos povos pela liberdade, só
função educadora. Se a família o faz menos, a escola terá de porque ainda não nos libertámos do «complexo OPAN»6.
compensar, e vice-versa. Se nem uma nem outra instituição o $ Se queremos continuar a formar cidadãos livres e responsá
fazem, então teremos de recear pelo tipo de sociedade que esta veis, não podemos continuar a desprezar a sua formação e de
mos a construir. senvolvimento pessoal nem ignorar a necessidade da sua capa-
E difícil imaginar os traços de uma nova cidadania sem o citação cívica e política.
suporte de uma civilidade responsável e livre. A forma e o ritmo
de mudança das sociedades actuais obrigam-nos a conceder a
este particular domínio uma atenção redobrada.
Pensemos na forma como a globalização das culturas exige
uma outra atitude perante a diversidade das maneiras de pensar,
dos estilos de vida, das crenças e práticas religiosas, da coexis
tência de sistemas de valores sociais tantas vezes inconciliáveis.
Pensemos na forma como a sociedade portuguesa se comple
xificou e se diferenciou social e culturalmente com o fenóme
no da imigração. Muitos pais e professores sabem o que é ter
de lidar na mesma escola, quando não na mesma sala de aula,
com alunos de diferentes nacionalidades, culturas e identidades
étnicas e religiosas. O esforço adicional para lidar com a diver
sidade é enorme, tanto quanto a necessidade de promover a to
lerância e o respeito pela diferença como requisito de civilidade
na aprendizagem da liberdade de cada um.
Mais do que uma ameaça à tradição homogeneizadora da
escola, esta é uma oportunidade de reflexão e regeneração das
práticas educativas visando a construção dessa nova cidadania.
Teremos, mais tarde ou mais cedo, de superar o pendor na
cionalista do ensino tradicional para valorizar o que poderemos
designar por cosmopolitismo educativo, sem perder de vista a
universalidade dos valores humanos em que terá de assentar a
coexistência da diferença.
Como professor do ensino superior, choca-me o facto de a 6 OPAN era a sigla de uma disciplina obrigatória no cuwículo do ensino liceal
maior parte dos alunos nunca ter lido a Declaração Universal que significa Organização Política e Administrativa da Nação e que foi extinta
dos Direitos do Homem, não conheça a sua história nem o seu após a queda do regime autoritário de Salazar e Caetano. As tentativas de subs
tituição por uma disciplina em que se ensinasse o fundamental da organização
desenvolvimento. Tanto quanto me choca a ignorância de mui-
e princípios do regime democrático nunca tiveram sucesso nem continuidade.
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