Você está na página 1de 23

ESTEREÓTIPOS SONOROS:

A Escala Menor Harmônica e a Representação da Música Árabe

Rafael Gustavo de Oliveira


RAFAEL GUSTAVO DE OLIVEIRA
Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. M estre em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Paraná. Tem se dedicado às áreas de antropologia da música,
etnomusicologia e antropologia da política e estudos pós-coloniais. Dentre os principais interesses
destaca-se a Antropologia do Oriente M édio, com ênfase na Palestina, música e política na
Palestina, música árabe. Possui graduação em música (Composição e Regência) pela Escola de
M úsica e Belas Artes do Paraná (EMBAP).

Informações coletadas do Lattes em 28/10/2015


ESTEREÓTIPO SONORO DO "OUTRO EXÓTICO"
ESTEREÓTIPOS E INTERESSES DE PODER
• Outra prova da relação da nossa música e sua teoria, com os centros
hegemônicos e uma certa “exotização” de outras formas de fazer musical,
são os livros de teoria da música usados nas academias, por alunos e
professores.
• Um livro bastante famoso, se chama “Teoria da Música”, de Bohumil Med.
Tomando como exemplo apenas as escalas, na sua obra o autor se refere
às escalas maiores, menores, suas respectivas harmônicas, escala
bachiana, modos litúrgicos, escalas artificiais.
O LIVRO DE BOHUMIL MED E AS "ESCALAS
EXÓTICAS"
• "(...) uma gama de escalas que compõem o sistema musical ocidental,
desconsiderando outros sistemas. Isto não é ruim, mas, para mim, o
problema está em quando ele procura se referir a outras escalas diversas
como 'escalas exóticas'.
• "O Capítulo XXXV do livro na 4ª edição, que trata disso, aborda o que o
autor chama de 'escala cigana', para dar um exemplo. Mas o que é uma
'escala cigana'? Na página 225 do livro, na observação 4, o autor diz que
'essa escala é encontrada nas melodias folclóricas de outros povos, por
exemplo, no folclore grego, húngaro, eslovaco, etc.'. Bem, 'outros povos' se
torna algo bastante pretensioso, mas claramente define aquilo que para
ele é 'outro', ou seja, 'não eurocêntrico'.
ESCALA(S) ÁRABE(S)
• "Na mesma parte, na observação 3, Bohumil Med diz que 'a escala Cigana
Maior é também chamada de escala Árabe'.
• "A música árabe, na língua árabe chamada de museka, não conta apenas
com 'uma escala' (ainda mais 'exótica'), como pretende Bohumil Med em
seu trabalho.
• "Esta música conta com termos e teorias próprias. Grosso modo, a base da
música árabe neste sentido são as 'Maqam' que, em termos ocidentais, são
chamadas 'escalas'. (Percebe-se como 'escala' é usada aqui como uma
categoria analítica, ocidental, para entender uma outra categoria
diferente). Ainda assim, mesmo após eu mesmo ter apontado para 'escalas'
como um artifício para a compreensão, preferiria dizer que são notas em
sequência sucessiva."
• AS MAQAM, OU NO PLURAL MAQAMAT,
SÃO DIVERSAS. SEGUNDO O SITE
“MAQAMWORLD”:
• "There are dozens of Arabic maqamat, too many to list, including many Persian and
Turkish hybrids. It's difficult to find a definitive list of Arabic maqamat that all textbooks
agree on, or a definitive reference on which maqamat are strictly Arabic and which
are Turkish or Persian. There are also many local maqamat used only in some regions of
the Arab world (e.g. Iraq and North Africa), and unknown in others. But the most widely
used and known maqamat are about 30 to 40(...)"
• "Para as maqamat, existem algumas maneiras de classificá-las e ordená-las. A
maneira mais comum é classificá-las pelos jins (grosso modo, conjunto de tríades e
tetracordes). Assim organizadas, totalizam 9 grupos. Ou seja, existem 9 grupos
principais de maqam, que totalizam ao todo 35 principais maqamat diferentes. Ou
seja, 34 a mais do que a pretensa 'escala árabe' apontada por Bohumil Med."
PRETENSÃO DA SONORIDADE ÁRABE EM
ELEMENTOS ARTÍSTICOS PRODUZIDOS NO
OCIDENTE

"(...)ao voltar para o Brasil, comecei a notar as músicas de filmes, desenhos e


produções em geral que pretendem apontar para algum tipo de
'conotação' árabe (...) imbricadas também com outras representações,
como histórias, letras, encartes de CDs, temáticas de filmes, dentre outros.
Ainda, músicas que estão relacionadas com uma ideia de 'árabe', bastante
relacionadas com uma percepção orientalista, no sentido apontado por
Edward Said. Isto colocado, procurando em um primeiro momento pensar
não a semelhança entre a música que pretensamente aponta para uma
'estética sonora' árabe e a música árabe 'tradicional' palestina e árabe em
geral, mas sim a semelhança entre as produções ocidentais a que me refiro,
facilmente pode-se encontrar uma característica comum, a escala menor
harmônica. "
A ESCALA MENOR HARMÔNICA
• A escala menor harmônica, de acordo o sistema tonal na musicologia
ocidental, é uma variação da escala menor pura deste sistema, com uma
alteração no VII grau, onde este é alterado em um semitom acima, como
apontado abaixo:
"ARABIAN NIGHTS" - ALADDIN
• Adaptado dos contos contidos em “As Mil e Uma Noites”, uma reunião de
contos populares publicados no Oriente Médio por volta do século IX,
ganha uma versão em desenho animado, lançado em 1992 pela Walt
Disney. A trilha sonora foi composta pelos estadunidenses Alan Menken e
Howard Asham, além do britânico Tim Rice. Entre as músicas que compõem
a trilha sonora, destaco uma com título original em inglês Arabian Nights. Na
versão brasileira da música o título foi traduzido como “Noite da Arábia”
• https://www.youtube.com/watch?v=gqc07ihevHU
• "A partir do segundo compasso, na melodia que se segue é usada a escala
menor harmônica, em lá, sendo a nota mi, o V grau da escala, como nota
inicial. (...) Destaco o VII grau e sua alteração em um semitom acima, ou
seja, sol sustenido. A predileção por esta região da escala (o que envolve
não apenas a relação do VII grau com o I, mas também a relação
intervalar que se dá entre os graus VI, VII e I) é bastante recorrente em
outros temas"
"ARABESQUE" - SAMUEL HAZO

• Para o próximo exemplo, aponto para o uso da escala menor harmônica


em uma composição para banda sinfônica, a obra intitulada “Arabesque”,
do compositor estadunidense Samuel R. Hazo.
• https://www.youtube.com/watch?v=W6kaSA7rpNE
• No primeiro trecho estão, da voz mais aguda para a mais grave (da pauta mais
acima para a pauta mais abaixo da grade), o piccolo, as flautas 1 e 2, e por fim o
oboé. Embora não apareça na imagem do exemplo, todos estão usando clave de
sol e, importante frisar, a armadura de clave para esta sessão conta com quatro
bemóis, na ordem si bemol, mi bemol, lá bemol e ré bemol, apontando para a
tonalidade de Fá menor (relativa menor de Lá bemol maior).
• Na imagem acima, neste trecho da música que ocorre nos compassos 19, 20 e 21,
percebe-se que esta melodia também se inicia pelo V grau da escala, no caso, a
nota dó. O VII grau, a nota mi bemol, aparece com um bequadro, anulando o
acidente presente na armadura de clave, alterando-o em um semitom acima,
caracterizando, assim, a escala menor harmônica em Fá menor.
"POWERSLAVE" - IRON MAIDEN -1984
• O terceiro exemplo refere-se à banda de Heavy M etal inglesa Iron M aiden. A música Powerslave, do
álbum homônimo, apresenta também a escala menor harmônica
• https://www.youtube.com/watch?v=o_UIkS5m9gc
• Para o caso desta música, é importante apontar que sua tonalidade está em
Lá menor, contudo, a escala usada neste trecho (comumente chamado de
riff quando trata-se de melodias “principais” de guitarra no Heavy Metal) é a
escala menor harmônica de ré menor. A linha melódica, então, começa na
tônica da escala (nota ré) e, como se percebe no trecho que destaque
acima (a partir da segunda nota do segundo compasso), o VII grau (nota dó)
conta com um sustenido, alterando-o em um semitom acima. A última nota
do trecho destacado também é bastante relevante, um si bemol. Esta nota se
encontra antes do retorno para a tônica (nota lá) da tonalidade da música
(lá menor). Interessante observar que, neste caso, o movimento da escala é
descendente, criando uma cadência melódica do si bemol para o lá,
reforçando a sonoridade da escala menor harmônica, na resolução para a
tônica da tonalidade.
POWERSLAVE - "ESCRAVO DO PODER"
"Dentro do abismo eu cairei - o olho de Horus
Dentro dos olhos da noite - me olhando ir
Verde é o olho do gato que brilha - neste templo
Entre o Osíris ressuscitado - ressuscitado novamente"

"De todo modo, o ponto interessante a se notar com este exemplo, não é apenas a
sonoridade da música e o uso da escala menor harmônica, mas sim, a temática da
música e do álbum em questão. A capa do disco conta com um desenho de uma
pirâmide e de uma esfinge, apontando para as pirâmides do Egito. Embora o país
encontre-se ao norte do continente africano, o Egito é sabidamente um país árabe,
com fronteiras com os países árabes da Líbia e Palestina (pela divisa com a Faixa de
Gaza, através da Península do Sinai)."
"RALANDO O TCHAN"
• "Ainda com o tema 'Egito', destaco o trabalho da banda brasileira de
pagode É o Tchan. No álbum lançado em 1997, com o nome de “É o Tchan
do Brasil”, a primeira música tem o título de “Ralando o Tchan (A Dança do
Ventre)”. A letra da música, repleta de menções a uma “temática árabe”,
conta com trechos como: “Essa é a mistura do Brasil com o Egito”, “Ali
Babá, o califa tá de olho no decote dela”, “olha o quibe” e “habibi”. O
videoclipe da música também conta com a mesma “temática”, onde as
dançarinas aparecem vestidas de odaliscas.
• https://www.youtube.com/watch?v=aL7RF2vcC5c
• No trecho, a melodia aparece na tonalidade de dó menor (relativa menor
de mi bemol maior). Embora durante toda a passagem a predileção por
tercinas ocorra, é apenas no final que, em um movimento melódico
descendente percebe-se que se trata de uma escala menor harmônica,
quando o VII grau (si) aparece com um bequadro, anulando o acidente
presente na armadura de clave (si bemol), alterando-o em um semitom
acima, caracterizando também a escala aqui referida.
NOVELA "O CLONE"
• O último exemplo que quero demonstrar é referente ao tema de abertura
da novela “O Clone”, exibida pela Rede Globo entre outubro de 2001 e
junho de 2002. O enredo da novela se desenvolve basicamente entre o
Brasil e Marrocos, país árabe localizado ao norte do continente africano.
Com personagens “árabes”, vestimentas e expressões como yallah (em
árabe, “vamos”) e inshallah (em árabe, “se Deus quiser”), a novela também
procurava apresentar uma “temática árabe”. Na abertura da novela, a
primeira melodia que aparece, embora bastante curte e rápida, também é
baseada na escala menor harmônica.
• https://www.youtube.com/watch?v=SRD6oz4YKYU
• Aqui, percebe-se que a melodia está no tom de lá menor. Como em
exemplos anteriores, também inicia e termina no V grau da escala. Como
apontado no destaque, o VII grau (sol) da escala de lá menor aparece
com um sustenido, criando um intervalo de segunda menor entre o VII grau
e a tônica da escala, além de um tom e meio em relação ao VI grau. Ou
seja, trata-se do VII grau alterado em um semitom acima, caracterizando a
escala menor harmônica de lá.
CONCLUSÃO
• "Daí a importância de se destacar que o sistema musical ocidental,
principalmente o tonal e as variações que o antecedem ou surgem a partir
dele, não é o único possível, tampouco 'superior', para servir inclusive como
categoria analítica para a compreensão e mesmo crítica de músicas 'não
ocidentais'. E então, novamente surge a importância do uso e
conhecimento dos sistemas nativos, sejam eles musicais ou outros diversos
possíveis. Sobre o uso das chamadas 'categorias nativas' em pesquisas de
música, a etnomusicóloga Maria Elizabeth Lucas (1989) afirma que uma das
estratégias mais discutidas na ETM [etnomusicologia] tem sido a de
trabalhar com as 'categorias nativas', isto é, com os conceitos musicais de
dentro da cultura(...)."

Você também pode gostar