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Sistemas de Análise Musical

“ONCE UPON A TIME” DE SARA


CARVALHO

PARA GUITARRA SOLO

SISTEMAS DE ANÁLISE MUSICAL

Mathilde Braun Martins- 85392

Professora: Helena Santana


Índice

Introdução..........................................................................................................................3

Sara Carvalho....................................................................................................................4

Once upon a time...............................................................................................................5

Análise.....................................................................................................................................7

Últimas considerações.....................................................................................................15

Conclusão........................................................................................................................18

Anexos.............................................................................................................................19

Partitura.................................................................................................................................19

Partitura analisada..................................................................................................................23
Introdução

Este trabalho é realizado no âmbito da disciplina de Sistema de Análise Musical,


e tem como foco a obra Once upon a time de Sara Carvalho (1970) e respetiva análise
temática e musical.
Assim, é objetivo principal deste projeto explicitar a análise da obra escolhida. É
igualmente objetivo conhecer e dar a conhecer a Sara Carvalho como uma influente
compositora portuguesa da atualidade e a sua obra para guitarra solo Once upon a time
que, de alguma forma, contribui para o seu desenvolvimento. Esta temática, como ainda
pouco explorada, não tem grandes referências bibliográficas dedicadas à obra ou
compositora, pelo que o trabalho realizado é maioritariamente sobre pesquisa e uma
perspetiva pessoal à análise da respetiva obra.
Com o intuito de desenvolver este tema, o presente trabalho está organizado e
estruturado em duas principais partes. Inicialmente, é apresentada uma breve
contextualização, que terá́ por base a vida e obras da compositora. É importante referir
que será focada a obra do ponto de vista da sua escrita, estrutura e características mais
importantes. Numa segunda parte, desenvolve-se a análise musical da obra. Na análise
de partitura, apresentar-se-á uma análise em texto e uma outra ilustrativa, assinalada em
partes dos devidos excertos da obra.
Sara Carvalho

Sara Carvalho nasceu no dia 16 de Junho de 1970, no porto. É considerada uma


das mais reconhecidas compositoras em Portugal, e que desenvolve um estilo muito
próprio de Música Contemporânea.
Licenciou-se em Ensino de Música na Universidade de Aveiro (área específica
de Composição) e é doutorada em Composição pela Universidade de Nova Iorque.
Atualmente, é professora no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de
Aveiro, onde leciona, entre outras áreas, principalmente “composição” e “ensino da
música”.
Escreveu mais de 50 obras que são regularmente tocadas em Portugal e no
estrangeiro. Recebe muitas encomendas de obras de artistas e instituições de grande
prestígio como, por exemplo, a orquestra metropolitana de Lisboa, Remix Ensemble,
Duque Quartet, Helena Marinho e Pedro Rodrigues. Apresenta já várias discografias,
como é exemplo o seu CD monográfico 7 Pomegranate Seeds, editado pela Numérica.
Tem também várias partituras que estão publicadas no Centro de Informação &
Investigação da Música Portuguesa.
Enquanto investigadora, procura compreender os processos criativos no
desenvolvimento do pensamento musical a partir do estudo da criatividade na educação
ou do ensino e da aprendizagem, entre outros.
Once upon a time
A obra Once upon a time é escrita para guitarra solo e é dedicada ao prestigiado
guitarrista Pedro Rodrigues- professor doutorado em performance musical na
Universidade de Aveiro. A obra tem a sua estreia a 2010, tendo sido escrita em Agosto
do mesmo ano. O guitarrista foi Pedro Rodrigues, a quem tinha sido dedicada a obra.
Esta obra foi também mencionada na Revista Guitarra Clássica Nº4, em Aveiro de
2011 e catalogada no Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa, já
em 2012.
Once upon a time, que significa “era uma vez”, está associada ao primeiro verso
de um poema da escritora e poetisa estadunidense Gertrude Stein.

“Once upon a time “Era uma vez


the word was round o mundo era redondo
and you could go on it e tu poderias continuar nele
around and around” a dar voltas e voltas”.

O tema deste poema está relacionado ao conteúdo musical da obra,


principalmente do ponto de vista da sua forma.
A obra apresenta características de gestos musicais redondos, de motivos
melódicos ou campos harmónicos que se repetem de forma “circular”, sendo que existe
um retorno cronológico do ponto de vista musical do início até o fim da obra. Tudo o
que foi agora explicado será depois ainda mais desenvolvido posteriormente.
Como primeira abordagem, e de um ponto de visto extramusical, observa-se que
a obra expõe um ambiente muito calmo, pacífico e introvertido. A linha melódica da
guitarra é sentida como que se fosse o discurso de uma personagem. Na minha
perspetiva, associo esta personagem ao sexo masculino, pelos indícios remetidos pela
textura e pela própria sonoridade do instrumento. Os gestos são lentos, mas assertivos.
Cada gesto melódico provoca uma sensação de confirmação do que foi tocado, ou
melhor, o que é discurso da personagem. O discurso musical é sentido como que uma
leitura, como que a audição de uma voz. Esta voz é calma e partilha breves frases. Esta
voz respira a cada fim de frase, como que se fosse um momento de introspeção para
proferir uma seguinte. Esta voz respira. Esta voz repousa por longos momentos. E, mais
uma vez, a meu ver, é este o intuito musical expresso nesta obra.
A partitura é para o instrumentista como que uma leitura de um poema, de uns
versos. No decorrer da obra, existe vários momentos expressivos diferentes. Estes são
associados às emoções da personagem e, principalmente, à voz e palavras que profere.
É uma obra intensa, que mergulha o ouvinte no mundo de uma personagem solitária
que, como o poema descreve e sugere, anda continuamente “às voltas”, vezes sem
contas, e que se encontra perdida eternamente neste ciclo sem fim.
Análise

Quanto à análise formal, observa-se uma forma circular da obra, associada ao poema
escolhido pela compositora. De facto, existe a apresentação de material musical e um
regresso cronológico deste mesmo material até ao fim da obra. Considerei que os dois
primeiros sistemas da obra, do compasso 1 até 8, podem ser considerados como que
uma introdução. A partir do compasso 9, é apresentado material novo e o início de um
discurso musical diferente do que foi anteriormente apresentado. Considero o compasso
9 como a exposição da primeira parte, que vou definir como parte A, e que é
desenvolvida até o compasso 21. No compasso 22, começa a parte B, que se apresenta
com um caráter diferente e que vai levar ao clímax da obra. Esta parte B é a mais
extensa e só acaba no compasso 67. No compasso 68, inicia-se o tal retorno, antes
referido. Inicialmente, com noções do tema A e depois, gradualmente, acaba com a
repetição do primeiro sistema da obra de forma igual. A obra termina com uma duração
de cerca de 6’30’’ (informação que está indicada no fim da última página).
A obra Once upon a time de Sara Carvalho Aires Pereira, começa com um
compasso bem particular e questionável. Este compasso consiste numa suspensão com
indicação “immobile” no tempo de uma semínima em ¾. Este compasso deixa algumas
dúvidas do ponto de vista do seu significado. De facto, percebe-se que o interprete tem
que estar em silêncio, numa primeira e significativa respiração antes do início da obra,
mas questiona-se o porquê da menção do ¾ se, no compasso que se segue, não existe
pulsação nem células rítmicas mencionadas.
Este “¾” no primeiro compasso mostra-se, além de, simbolicamente, expressar
calma e introspeção, enigmático e questionável. O compasso que segue, compasso 2,
tem a informação de ser tocado de forma “ad lib.”, ou seja, usando o material
apresentado com pulsação e ritmo de forma livre. O material musical usado neste
compasso consiste em harmónicos naturais e o uso do pizzicato nas notas reais. A
técnica escolhida pela compositora recria um ambiente muito calmo e celestial,
conseguido pelo soar das notas mais agudas. De um ponto de vista ilustrativo e
extramusical, o pizzicato é como que a nota que mantém estas “notas celestiais” atraídas
à terra. Este compasso, que tem duração de 15 a 20 segundos, segundo informação
contida na partitura, insere o ouvinte rapidamente no ambiente musical desejado pela
compositora: pacífico e volátil. Ao nível da harmonia, parece intencionalmente pedido o
destaque das notas “si” e “mi” em harmónicos- que são repetidos diversas vezes- e ao
“ré”, com recurso ao pizzicato. Ainda neste compasso, esta primeira frase acaba na
corda solta mais grave da guitarra, “mi”, também em pizzicato. No fim deste sistema, a
noção de que começa a haver métrica na obra aparece com um 4/4.
Quanto ao segundo sistema, ou seja, compasso 3, é então visível uma escrita em
4/4 e com uma primeira indicação de pulsação de semínima a 42 bpm’s, e de forma a
poder desenvolver, de um ponto de vista musical, o compasso anterior. De facto, as
notas continuam escritas com recurso à mesma técnica - harmónico- sendo que, desta
vez, com harmónicos considerados “artificiais”, definindo, ao contrário do que é tocado,
uma altura oitavada acima.
O terceiro compasso já apresenta o estilo gestual musical, pelo qual a
compositora optou ao longo da obra: cada compasso tem um caráter conclusivo, quase
cadencial, e que confere importância às respirações entre cada um. Existe também um
processo intercadente e de continuidade entre o gesto melódico ascendente e o gesto
melódico descendente. Ainda aparece também, além das células rítmicas nas notas, mais
informação como noções de dinâmicas ou de digitação de guitarra.
O compasso seguinte é, mais uma vez, uma suspensão numa pausa: o silêncio.
Estes 7 compassos que constituem os dois primeiros sistemas da obra começam e
acabam então numa suspensão silenciosa. Aqui concretiza-se o que se pode considerar a
introdução desta obra.
Com isto, pode-se definir no compasso nº9 o início da parte A. É esta parte que
apresenta o material temático mais importante da obra, e que contempla o “discurso” da
voz da personagem, que foi antes referido, e é desenvolvido. Seria quase possível
associar a forma desta obra à forma tripartida de género sonata e esta parte A pode ser
então assumida como a exposição.
Observa-se uma primeira frase é tocada do compasso 9 ao compasso 14, mas,
como várias vezes referido, também é sentida uma certa respiração em forma conclusão
no fim de cada compasso. Apesar de, já no compasso 12, se sentir um efeito conclusivo,
este evidencia-se mais importante no compasso 14, no qual a compositora optou até por
adicionar umas barras duplas no fim deste compasso. É também pedido um acc. Poco a
poco do compasso 12 até ao fim compasso 14. Tudo isto indicia a confirmação de que
realmente é definido o limite da primeira frase. Do ponto visto harmónico, observa-se a
existência de um campo harmónico bem assumido. De facto, existe a repetição de um
baixo de ritmo de 2 semínimas e uma semibreve com a notas de “lá”-“sol#”, “re”-“mi” e
“lá”-“sol”. Conclui-se também que existe então um pedal em “lá” presente nesta
primeira frase.
A partir do compasso 13, o ritmo e padrão destes acordes de intuito harmónico
começa a desfragmentar-se. É também a partir deste compasso que novos acordes
começam a ser tocados: “mi” (em corda solta) - “dó-” “sol” - “si”. Este acorde vai ter
importância mais para frente.
O accelerando visível do compasso 12 até ao compasso 14 faz com que a
indicação pulsação inicial de semínima a 42 se transforme para semínima 56. A partir
deste momento observa-se o desenvolvimento do material da primeira frase,
continuando a seguir a mesma lógica gestual, mas com mudanças no campo harmónico.
De facto, o padrão dos 3 acordes que é o sustento harmónico ou acompanhamento
muda. A partir daí, são tocados os acordes que surgiram nos compassos 13 e 14, sob
forma de apogiatura até ao compasso 21- compasso que marca o fim da parte A.
Nos compassos 18 e 20, observam-se acordes que têm como intuito anunciar o
início de uso de material novo na parte B. Já o compasso 21 tem um caráter muito
conclusivo, embora se continue a sentir a suspensão no discurso musical no fim desta
frase.
Quanto à parte B, começa no compasso 22 e termina no compasso 67. É a parte
mais extensa da obra e é a parte que apresenta mais material e recurso atécnicas.
O discurso do compasso 22 começa por ser mais assertivo: duas notas
antecedidas por acordes em apogiatura com notas novas. Estas notas são “sol#”, “do#”,
“si”. A harmonia existente neste compasso revela-se então bastante contrastante com a
dos compassos anteriores. Este acorde em apogiatura, que vai instaurar certo campo
harmónico, mantém-se durante 7 compassos, até ao compasso 26. Durante estes 7
compassos, é desenvolvido material musical que dá enfase a um certo motivo: o
cromatismo “dó#” para dó. Este motivo é repetido duas vezes de modo igual nos
compassos 22 e 26. Nos restantes compassos existem variantes deste mesmo motivo,
mas mantendo sempre a ideia de cromatismo descendente na linha melódica, nas quais
as apogiaturas antecedem as notas.
Ao nível da pulsação, existem várias informações na partitura que demonstram
irregularidade ao nível do respeito da pulsação e da métrica. Está indicado, no compasso
23 meno mosso, no compasso 24 a tempo e no compasso 25, mais uma vez, meno
mosso. Este tipo de anotações e mudanças informações influenciam, de forma ativa e
importante, a expressividade e carater da obra.
De referir que, ao nível da dinâmica, esta parte B (onde é possível ver que
começa até com a indicação forte). apresenta mais “fortes” que a parte A. Observa-se
também o recurso à técnica de tremolo. Esta técnica é usada pela primeira vez no
compasso 24.
No compasso 26, e apesar de ter referido o fim do uso de certo acorde, com
finalidade de criação de uma desejada harmonia, não considero que se concretize o fim
de uma frase do discurso musical. Efetivamente, a respiração do fim do compasso 26
não tem um caráter conclusivo e observa-se até um efeito contrário. A linha melódica
do compasso 26 é ressentida com interrompida e então considera-se os compassos que
seguem como que a sua continuação.
Os 4 compassos que se seguem ao compasso 26 estão escritos em 2/4, 3/4, e 4/4,
respetivamente, e apresentam-se, rítmica e musicalmente, bastante contrastantes ao que
foi até agora analisado. Pela primeira vez, a apogiatura apresenta-se sob forma de linha
de notas seguidas e não sob forma de acorde arpejado. Estes compassos demonstram-se
mais estáticos e provocam uma maior sensação de retardamento e suspensão. Este
ambiente musical mantém-se durante diversos compassos porque existe a intenção em
deixar de seguir a lógica gestual que tinha sido assumida até então, em que a música
segue sem se sentir repouso.
Já no final do compasso 32, observa-se uma suspensão na nota de “lá”, mas
mesmo esta suspensão não expressa o repouso que tanto sentíamos no início da obra.
Pode-se associar esta parte como que a leitura de um texto corrido, com pouca
pontuação. Embora não haja nenhum accelerando, é criada sensação de aceleração na
pulsação da obra, pelo gesto melódico e as células rítmicas da música.
É só no fim do compasso 35 que é sentido o fim da frase. Esta frase apresenta-se
então como a mais extensa e complexa até agora, sendo que foi exibido muito material
novo, e com pouco repouso, com técnicas não antes vistas, como é exemplo o tremolo e
o glissando. O harmónico continua a ser utilizado.
No compasso, observa-se uma referência ao material da parte da introdução com
o uso dos harmónicos e também o regresso ao uso do acorde de tipo acompanhamento.
Este acorde é, mais uma vez, escrito com recurso à corda solta mais grave- “mi”.
O regresso a uma estrutura mais coordenada pelo uso do acompanhamento e de
uma melodia semelhante às que foram anteriormente apresentadas evoca uma sensação
de regresso à estabilidade. Esta sensação pode fazer com que se considerem os
compassos anteriores (do compasso 27 a 35), que ressentimos como instáveis sem
repouso, como que uma pequena ponte, ou como um breve afastamento ao conteúdo
temático base da obra da compositora. No entanto, a partir do compasso 36, volta-se a
assumir como material da parte B.
Do ponto de visto harmónico, observa-se que a nota de “mi” grave continua
muito importante até o fim da página, em que pode ser considerada como uma nota
pedal. O uso do acorde arpejado sob forma de apogiatura volta também a ser utilizado
na sua forma inicial e sob a forma de notas consecutivas, garantindo uma maior
expressividade.
É visível um pequeno contraste entre o uso do 3/4 e do 4/4, mas com o intuito de
prolongar respirações de pulsação de tempos fortes, como são exemplos os compasso
39 e 40. Confirma-se, e apesar de estar indicado para o instrumentista na partitura de
interpretar esta parte de forma irregolare, a intenção em dar mais destaque ao primeiro
tempo de cada compasso, precisamente onde a compositora opta por indicar a noção dos
compassos de 3/4 e 4/4.
O tremolo volta a ser usado nos compassos 42 e 43 e pode-se considerar que os
compassos 44 e 45 são um “eco” do compasso 36 e 37, ou seja uma referência ao
material da introdução da obra.
O último compasso da segunda página da obra, ou seja, o compasso 47,
apresenta os 3 acordes com mais notas e com maior dinâmica desde do início da obra, e
tem como intuito introduzir um ambiente completamente diferente ao que foi
apresentado até então.
Já na página 3, mais concretamente dos compassos 48 a 61, é apresentado muito
material musical novo, e o uso de mais técnicas no instrumento, de forma a conseguir,
principalmente, um caráter expressivo distinto.
Considero que esta página é a chegada ao clímax da obra. O seu caráter é mais
expressivo, mais convicto e assertivo. As células rítmicas são mais rápidas e as
dinâmicas mais fortes. A tessitura das notas é maior, com mais saltos intervalares, e as
pausas são mínimas. O caráter desta parte é então muito forte e transporta o ouvinte para
um universo musical mais tenso e nervoso.
O ritmo do primeiro tempo do compasso 48, apresenta a célula rítmica mais
rápida que foi apresentada desde o início da obra. Este gesto é finalizado com o uso do
tremolo, o que efetua ligação com o material antes apresentado.
Já no compasso seguinte, o material anterior volta a ser usado: o acorde em “mi”
e “lá”, em cordas soltas. O compasso 50 repete o mesmo gesto do compasso 47 e
repousa na nota “ré”, no compasso 51. Esta nota fica a soar e a sua ressonância torna-se
a base de um novo gesto, e com recurso a uma nova técnica, que é apresentada no
compasso 52. Esta técnica referida consiste em tocar uma serie de 8 notas, com o ritmo
do compasso 48, que no sentido de procurar um som que não tradicionalmente audível,
através da indicação de left hand pizz. É a primeira vez que é usada esta técnica que,
mais à frente, será usada três vezes até o fim da obra.
A partir deste ponto, o caminho para clímax da obra é iniciado. O ritmo das
células acelera e as dinâmicas aumentam gradualmente até um ff, fortíssimo, no
compasso 55.
Quanto às notas usadas nos compassos 53 a 55, são constituintes os doze tons da escala
cromática, ainda que não se observe qualquer padrão de série intervalar base. No
entanto o gesto intervalar tem muita importância- este consiste em tocar a nota grave e a
nota aguda alternadamente, durante o tempo de duas semínimas, iniciado ou antecedido
por um acorde arpejado de 5 a 6 notas. De seguida, este gesto repete-se por duas
semínimas, mas subindo ao nível das alturas e da dinâmica. O gesto rápido das 8 notas
referidas tem uma linha melódica “redonda”, ou seja, ascendente e descendente. Este
segmento que, na a meu ver, é considerado o mais tenso e nervoso da obra, é concluído
no compasso 55, com um acorde e em ff. No terceiro tempo deste compasso, é repetida
a técnica das 8 fusas em left hand pizz., provavelmente com o intuito de criar uma fusão
textual com a ressonância do acorde que foi anteriormente tocado, com uma dinâmica
muito forte.
O climax da obra termina num brusco decrescendo no último tempo do
compasso 55, e principalmente no 56 com o uso do repouso no harmónico. Este finaliza
esta frase de cariz tenso, numa nota aguda e celestial, de forma a que contraste com a
agressividade dos compassos antecedentes.
A partir deste nota em harmónico no compasso 56, surge então um momento
muito calmo e introspetivo. O interprete, a partir de um registo mais grave, debita notas
com a técnica pluck the string at the octave node, o que cria um ambiente muito calmo e
intemporal. Os dois compassos que se seguem parecem surgir numa tentativa de quebrar
toda a violência atingida na secção anterior. Do ponto de visto extramusical,
consideraria este momento como que se o ouvir da voz interior da personagem. É
também usado, e pela primeira vez, o Bartók pizzicato no compasso a seguir, e
apresentado novo material, tanto ao nível melódico tanto ao nível harmónico,
semelhante ao da parte A.
De facto, as notas do baixo da primeira frase da parte A aparecem nos
compassos 59 e 60 com um harmónico de referência, mais uma vez, para a introdução
da obra (motivo que acabou por fazer parte do material musical da obra em si). Após
este momento mais pacifico, o compasso 61 faz um retorno ao material musical dos
compassos do clímax, com a noção de um accel. Molto. Este gesto termina num
violento acorde arpejado, em fortíssimo e em suspensão.
Com tudo isto começa o processo de conclusão da parte B. Neste processo, são
usadas todas as técnicas até aí apresentadas. De facto, o pizzicato na mão esquerda é
usado, assim como pluck the string at the octave node, o Bartók pizzicato e até mesmo o
uso de harmónicos.
No início da última página, ou seja, compasso 63, vê-se a indicação de “a tempo,
calmo”. Anunciado o fim da secção, com o fim do clímax, percebe-se então um retorno
ao ambiente inicial e geral da obra.
Nesta fase, os acordes do baixo, que constituíam parte do campo harmónico na
parte A e início da parte B começam a surgir. Consequentemente, o ritmo da linha
melódica começa a abrandar, transmitindo a sensação inicial de suspensão e volatilidade
da música.
O compasso 68, que consiste no tocar de um Bartók pizzicato, em “ré”, é
antecedido por barras duplas, provavelmente associadas a um significado de forte
importância, e que a compositora quis indicar na composição da obra. Além de
antecedido, é indicada também uma mudança de tempo da semínima de 56 para 42
bpm’s. Observa-se que a noção de semínima a 42 é a pulsação presente na parte A.
É possível então, e principalmente pela análise do material musical que segue no
compasso seguinte, concluir que a partir daí existe uma reexposição da parte A. Esta
reexposição não é completa, sendo que está constituída pelo uso do material e não pela
sua transcriação fidedigna. Nomear-se-á esta parte de A’, ou seja, variante da parte A.
Quanto à melodia, é diferente nos compassos 69 a 73, mas os acordes do baixo,
que acompanha, estruturalmente e harmonicamente, são iguais. Existe um retorno à
lógica gestual de respiração e de repouso sentido a cada fim de compasso, assim como
uma grande suspensão no fim do compasso 72. Com isto, sente-se um regresso gradual
e cronológico ao ambiente musical da parte A e mesmo do início da obra, numa parte
em que a leveza da melodia resolve toda a tensão do clímax da parte B.
Por fim, o último sistema, compasso 76, é, do ponto de vista da composição
musical, surpreendentemente igual ao segundo sistema da obra. As notas são iguais e o
que varia é o tempo possível de interpretação (de 15 a 20 segundos para 10 a 15
segundos). O último compasso consiste numa suspensão, numa pausa de semínima com
a indicação de um silêncio immóbile. A obra acaba como começou: o regresso ao início
da “volta”.
De ponto de vista extramusical, o retorno antes referido confirma a ideia do
poema, do caminho da personagem e do sentido do poema: “Andy ou could go on it/
around anda round”.
Últimas considerações
Esta obra para guitarra solo é muito interessante do seu ponto de vista
composicional. Observa-se que o tema, o poema de Gertrude Stein, foi intrinsecamente
influente na sua composição. Este poema, e a ideia que lhe é associada, serviu de base
para muitos dos caminhos composicionais escolhidos, como é exemplo: a forma, o
gesto, a harmonia, o uso de diferentes técnicas, entre outros.
A obra é uma ilustração sonora narrativa associada ao poema e é então possível
perceber a inspiração e ligação entre ambos. Assim, a interpretação do poema é
determinante no processo composicional da compositora.
Como o conteúdo do poema concretiza ideia de “um mundo redondo” no qual a
personagem recetora do poema “poderia continuar nele a dar voltas e voltas” permite,
do ponto visto composicional, compreender algumas referências e ideias para a escrita.
O primeiro verso do poema “Once upon a time” (Era uma vez), também serviu como
elemento temático na obra.
Se for considerado o “Once upon a time” como a introdução utilizada na maioria
dos contos e histórias infantis da literatura europeia e americana é possível, então, a
compreensão do porquê da compositora Sara Carvalho ter optado por começar a sua
obra com uma introdução. Associo, na minha perspetiva imaginária individual, o
primeiro compasso como que um livro fechado, como que uma história que está mesmo
para ser contada, mas que ainda não começara. O compasso seguinte é o “Era uma vez”,
e o segundo sistema pode ser visto como que a introdução à história, a contextualização
que se segue às palavras do clássico “Era uma vez”.
Ao nível de escrita musical, considero que a compositora fez uma ótima escolha
em usar notas em harmónicos. De facto, além de criar um ambiente mais distante e de
caráter introdutivo, os harmónicos desta primeira parte permitem um grande contraste
com a parte A e fazer perceber ao ouvinte que isto é o início do desenvolvimento
temático e musical principal da obra.
Também foi visto que então que as parte A e B podem ser associadas ao discurso
de uma personagem, deixando as várias possíveis interpretações à escolha (como, por
exemplo, um discurso, a leitura de uma história, um poema, entre outros). Mas mesmo
nestas duas partes, a lógica da forma do conto está presente. Efetivamente, se for
pensada a estrutura de um conto, as partes A e B são muito lógicas no que diz respeito
ao seu material musical e mesmo expressividade. A estrutura de um conto, ou da
maioria das histórias deste género, consiste numa introdução, com a devida ambientação
do estado da ação, do espaço e das personagens, concretizando uma contextualização.
No desenvolvimento, este é principalmente constituído pelo diálogo das
personagens (que considerei ser apenas uma, neste caso).
A terceira e mais esperada parte é a chegada ao clímax, o momento em que a
narrativa atinge o seu momento mais expressivo e que por fim, chega um a desfecho. O
desfecho é, na maior parte das vezes, o regresso á pacificidade.
Ao nível da narração, considerei que a introdução é a voz de um narrador observador e
que, quer a parte A, quer a B, de um narrador na primeira pessoa. A parte final (provida
de reexposição e coda) é concretizada com o voltar ao narrador observador.
Conclui-se então que a obra “Once upon a time” para guitarra solo de Sara
Carvalho segue a estrutura de um conto literário, mas de forma musical.
Resumidamente, existe então uma introdução, uma parte A associada ao início do
desenvolvimento, a narrativa, uma parte B, que define a chegada da narrativa ao clímax
da obra, e uma reexposição e coda, correspondente ao desfecho da obra/conto.
Já depois de explicitar a forma com maior clareza possível, vou agora abordar o
conteúdo musical em si.
Quanto ao discurso em si, apresentou-se com o mesmo caráter ao longo da obra.
Na introdução o tempo é mais livre, existe a repetição de notas e o uso de
microdinâmicas. As notas são tocadas sempre em harmónico, o que instaura um
ambiente musical já muito específico. Por diversas vezes, também são visíveis várias
suspensões.
Na parte A, referi o gesto melódico desta parte como muito específico. De facto,
a melodia de cada compasso tem um caráter conclusivo, razão pela qual associei estes
motivos melódicos a frases, ou, como antes referi, versos. Nesta parte, o material
musical já é mais tradicional. As notas são tocadas de forma normal, com pulsação,
métrica e ritmo indicado. A melodia é clara e o acompanhamento, sob forma de 3
acordes repetidos sequencialmente ou então mesmo sob forma de apogiatura em
arpejado, cria um campo harmónico estável. Sendo este campo harmónico estável, a
melodia é então bem percetível. Esta parte A é então associada ao desenvolvimento do
discurso do primeiro conteúdo temático.
A parte B é, como já foi também referido, o desenvolvimento do material, na
perspetiva de direção em chegada ao clímax. Este fenómeno também está associado a
uma das partes estruturais do conto.
A lógica gestual usada na parte A deixa de ser usada, sendo que a música se
apresenta menos pausada. Verifica-se o uso de novas técnicas, como o tremolo, o
Bartók pizzicato, e técnicas interpretativas nas cordas, como left hand pizz. ou pluck the
string at the octave node.
São usadas novas células rítmicas como, por exemplo, as fusas. Existe um
âmbito de notas maior, intervalos maiores e mais acordes. É uma parte mais ativa e
tensa, com dinâmicas em crescendo até ao fortíssimo. Aí é atingido o clímax da obra,
quer visto de um ponto de visto musical, quer de uma visão literal. Depois desta parte de
grande tensão, existe o tal desfecho a caminho da reexposição, com algum material
motívico da parte A, assim como da Coda.
O desfecho está num decrescendo gradual, que provoca uma sensação de atraso.
O regresso ao ambiente da parte A cria estabilidade, e reanima o ouvinte. O conto está
mesmo a acabar. Mas ao contrário da também clássica frase “e viveram felizes para
sempre”, a compositora opta por um caminho diferente, inteligente: volta a usar o
material da introdução. Isto não representa uma mera opção musical, mas sim um forte
teor simbólico. O simbolismo desta última frase, deste último sistema, é muito forte.
Este está diretamente relacionado ao simbolismo e significado do poema que introduz a
obra. Volto a referir “and you could go on it/ around and around” porque estes são os
versos associados a este último sistema. De facto, embora um conto tradicional tenha
um fim em vista, na sua maioria, observa-se aí que a personagem volta ao início.
A personagem, a música, volta ao mesmo apesar de todo o conteúdo que foi, ao
longo destes 76 compassos, apresentado. Não há resolução nem há a previsão de um
fim. Tudo começa no compasso 1 e depois de muito, e pelo passar pela parte A, clímax
da parte B, regressa surpreendentemente ao início. O significado da música expõe o
percurso de uma personagem num círculo eterno!
Conclusão

Foi objetivo, ao longo deste trabalho, realizar uma análise da obra “Once upon a time”
da compositora Sara Carvalho. Além de dar a conhecer a compositora Sara Carvalho
como uma influente compositora em Portugal hoje em dia, foi como principal objetivo
explicitar uma análise própria desta obra para guitarra solo “Once upon a time”,
seguindo diversos parâmetros de análise como, por exemplo, forma, estrutura,
harmonia, material musical, ritmo, técnicas, entre muito outros. E foi desenvolvido um
importante estudo e análise de simbiose entre o poema escolhido pela compositora e a
música. Concluiu -se que, tematicamente, todo o trabalho que foi desenvolvido seguiu
diversas diretrizes ao longo da sua composição. Estas são o respeito do conteúdo
temático e significado do poema da Gertrude Steim, que tem forte ligação, pelo seu
primeiro verso, com o conto na literatura. O poema permitiu instaurar um tema e um
mundo expressivo na obra, e a estrutura do conto para a organização formal do material
musical. É então uma obra altamente rica do ponto de vista técnico, musical e
simbólico.
Anexos
Partitura
Partitura analisada

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