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fundamentos teológicos
I. INTRODUÇÃO
No debate sobre o celibato dos ministros da Igreja Católica, que regressa de novo e que tem
se intensificado nos últimos tempos, encontramos as mais variadas opiniões, especialmente
no que se refere à sua origem e desenvolvimento na Igreja Ocidental e Oriental. Essas
opiniões vão desde a convicção de sua origem divina até da que se trata – especialmente no
caso da disciplina, mais restrita, da Igreja latina – de uma mera instituição eclesiástica. Da
disciplina da Igreja Latina, se afirma freqüentemente que a obrigatoriedade do celibato só
poderia ser constatada desde o século IV em diante; para outros, ela foi adotada no início do
segundo milênio, concretamente a partir do II Concilio de Latrão em 1139.
Essas opiniões tão distantes entre si e as razões e as premissas que se alegam para
sustentá-las, permitem constatar a existência de uma significativa imprecisão no
conhecimento dos fatos e das disciplinas eclesiásticas a esse respeito, e ainda mais sobre os
motivos do celibato eclesiástico. Esta imprecisão é verificada inclusive em algumas
declarações no ambiente eclesiástico, alto ou baixo.
Parece, pois, necessário para alcançar um conhecimento seguro desta tão criticada
Instituição, esclarecer os fatos e as disposições da Igreja, desde o início até hoje, e analisar
os seus fundamentos teológicos. É evidente que este objetivo, se quisermos que a nossa
exposição tenha validade científica, só será alcançado a partir de um conhecimento
atualizado das fontes e da bibliografia sobre a questão.
Neste sentido, convém notar que, nos últimos tempos, foram alcançados importantes
resultados sobre a história do celibato eclesiástico, no Ocidente e no Oriente. Mas tais
resultados ou ainda não entraram na consciência geral, ou são silenciados, pois se considera
que poderiam influenciar de uma forma não desejada em dita consciência.
A mesma Sagrada Escritura nos mostra que a Ordenação de homens casados foi, de fato,
uma coisa normal, porque São Paulo escreve a seus discípulos Timóteo e Tito que tais
candidatos deveriam ter se casado apenas uma vez. Sabemos que pelo menos São Pedro
esteve casado, e talvez houvesse outros Apóstolos, pois o próprio Pedro disse ao Mestre:
“nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será nosso futuro?” E Jesus na sua resposta disse:
“em verdade vos digo que ninguém que tenha deixado casa, pais, irmãos, esposa, filhos pelo
reino de Deus deixará de receber muito mais no mundo presente e a vida eterna no mundo
futuro”.
Aparece já aqui a primeira obrigação do celibato eclesiástico, isto é, a continência de todo
uso do matrimônio posteriormente à Ordenação sacerdotal, da qual decorre tal obrigação.
Nisto consiste realmente o significado do celibato, hoje quase esquecido, mas claro para
todos durante o primeiro milênio, inclusive antes: a absoluta continência na geração de
filhos, incluindo a permitida (inclusive devida) por ser própria do matrimônio.
De fato, em todas as primeiras leis escritas sobre celibato – conforme mostraremos por
documentos na segunda parte – fala-se da proibição de gerar filhos depois da Ordenação.
Este fato demonstra que esta obrigação devia ser fortemente exigida para o grande número
de clérigos anteriormente casados, e que a proibição do casamento tinha no início uma
importância secundária. Esta última só passou para o primeiro plano quando a Igreja
começou a preferir e, em seguida, a impor candidatos celibatários, dentre aqueles que eram
escolhidos quase exclusivamente dos aspirantes às Sagradas Ordens.
Para concluir este primeiro esboço do significado do celibato eclesiástico, que foi chamado
desde o início com propriedade “continência”, é preciso esclarecer, rapidamente, que os
candidatos casados podiam ser ordenados e renunciar à utilização do matrimônio apenas
com o consentimento da sua esposa, já que ela, por força do sacramento recebido, possuía
um direito inalienável à utilização do casamento contraído e consumado, que é indissolúvel.
O conjunto de questões derivadas de tal renúncia, será tratado na segunda parte.
Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em
relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no método postulado por ele. É
verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns
que devem ser observadas. Por exemplo, em uma investigação de caráter histórico não se
pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a
autenticidade e a integridade dessas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre
essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.
De acordo com o dito, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica,
em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se quisermos
fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode
prescindir do método próprio do Direito Canônico e da Teologia. O significado e a
necessidade dessas observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão
evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.
Estes se referem, sem dúvida, a disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito,
como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas apenas oralmente e assim
transmitidas. Então, quem somente admitisse disposições obrigatórias as que podem ser
encontradas nas leis escritas, não estaria fazendo justiça ao método de conhecimento
próprio da história dos ordenamentos jurídicos.
Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito com questões
jurídicas e disciplinares, nem do modo apropriado, mas se apropriou das discussões e das
conclusões da canonística clássica – também chamada de “glosadores” – então muito
florescente. Os historiadores da Teologia Medieval constataram isso há bastante tempo, e,
um olhar para a obra do príncipe da Escolástica Medieval, confirma-o suficientemente. Esta
realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero
não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na
Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida,
hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente
teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho, procuraremos atender a essa
exigência tão legítima.
o O Concílio de Elvira
Entre os testemunhos de diversos tipos que interessam para o nosso assunto, deve ser
mencionado, em primeiro lugar, o Concílio de Elvira. Na primeira década do século
IV, reuniram-se bispos e sacerdotes da Igreja da Espanha, no centro diocesano de Elvira,
perto da Granada, para colocar sob uma regulamentação comum as diversas circunscrições
eclesiásticas da Espanha, pertencente à parte ocidental do Império Romano, que gozava, sob
o governo do César Constâncio, de uma paz religiosa relativamente boa. No período anterior,
durante a perseguição dos cristãos, se havia constatado abusos em mais de um setor da vida
cristã e havia sofrido danos graves na observância da disciplina eclesiástica. Em 81 cânones
conciliares, são emanadas disposições relativas às áreas mais importantes da vida
eclesiástica, necessitadas de clarificação e de renovação para reafirmar a antiga disciplina e
para sancionar novas normas que se tinham tornado desnecessárias.
O Cânon 33 do Concílio contém a já conhecida primeira lei sobre o celibato. Sob a rubrica:
“Sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas”, se
encontra o seguinte texto dispositivo: “Se está de acordo sobre a proibição total, válida para
bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar,
que devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isso deve ser excluído
do estado clerical”. O cânon 27 já havia insistido na proibição de que habitassem com os
bispos e outros eclesiásticos, outras mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam
levar para junto de si, uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo
uma estranha.
Desses primeiros e importantes textos legais se devem deduzir que muitos dos clérigos
maiores da Igreja espanhola de então, talvez inclusive a maior parte, eram viri probati, quer
dizer, homens casados antes de serem ordenados como diáconos, sacerdotes ou bispos.
Todos, entretanto, estavam obrigados depois de ter recebido a Sagrada Ordenação a
renunciar completamente do uso do matrimonio, quer dizer, à observância de uma perfeita
continência. À luz do final do Concilio de Elvira, assim como do Direito e da História do
Direito do Império Romano, dotado de uma cultura jurídica que dominava naquela época
também na Espanha, não é possível ver no cânon 33 (junto com o cânon 27) uma lei nova.
Manifesta-se claramente, ao contrário, como uma reação contra a inobservância, muito
estendida, de uma obrigação tradicional e bem conhecida a que se acrescenta, nesse
momento, uma sanção: ou se aceita o cumprimento da obrigação assumida, ou se renuncia
ao estado clerical. A introdução de uma novidade nesse terreno, com retroatividade geral
das sanções frente a direitos adquiridos desde a Ordenação, teria causado num mundo como
aquele, tão imbuído do respeito ao legal, uma verdadeira tempestade de protestos ante a
evidente violação de um direito. Isto já o havia percebido Pio XI quando, na sua Encíclica
sobre o sacerdócio, afirmou que essa lei escrita supunha uma práxis precedente.
Em terceiro lugar foi repetido o texto sobre a continência dos clérigos do Concílio de 390, ao
que já aludimos, que então tinha sido recitado por Epigônio e Genetlio e que agora era
pronunciado por Aurélio. O legado papal, Faustino, sob a rubrica “dos graus da Ordem
Sagrada que devem abster-se de suas esposas”, acrescentou: “estamos de acordo que os
bispos, sacerdotes e diáconos, quer dizer, todos os que tocam os Sacramentos como
guardiões da castidade, devem abster-se de suas esposas”. A isso responderam todos os
bispos: “estamos de acordo que a castidade deve ser guardada em tudo e por todos os que
servem ao altar”.
Entre as normas que tomadas do patrimônio tradicional da Igreja Africana foram em seguida
relidas ou novamente decididas, se encontram no vigésimo quinto posto um texto do
presidente Aurélio: “nós, queridos irmãos, acrescentamos também que em relação ao que foi
dito da incontinência de alguns clérigos, que eram somente leitores, com suas próprias
esposas, se decidiu o que também noutros Concílios foi confirmado: que os subdiáconos, que
tocam os santos mistérios, e os diáconos, sacerdotes e bispos devem, segundo as normas
vigentes para eles, abster-se da própria esposa e se comportar como se não a tivesse; e se
não se ativerem a isso, devem ser afastados do serviço eclesiástico. Os demais clérigos não
estão obrigados até uma idade mais madura. Depois disso todo o Concílio respondeu: nós
confirmamos tudo o que Vossa Santidade disse de maneira justa e é santo e agradável a
Deus”.
Recolhemos aqui com tanto detalhe esse testemunho da Igreja Africana do final do século IV
e do começo do século V por causa de sua fundamental importância. Desses textos se
deduzem a clara consciência de uma tradição baseada não somente numa persuasão geral,
que ninguém suspeitava, mas também em documentos bem conservados. Naqueles anos
foram encontradas ainda no arquivo da Igreja Africana, as atas originais que os Padres
tinham trazido do Concílio de Nicéia. Se houvesse disposições contrárias ao celibato
eclesiástico tal e como o vemos afirmado, tinham sido mencionadas da mesma forma que
sucedeu com o erro ou o descuido da Igreja Romana a respeito dos cânones de Sárdica
atribuídos a Nicéia.
Tudo isso mostra também a consciência de uma tradição comum da Igreja Universal, cujas
diversas partes guardam uma comunhão viva entre si. O que na Igreja Africana foi afirmado
muito explícita e repetidamente sobre a origem apostólica e a observância transmitida desde
a Antiguidade da continência dos eclesiásticos junto com as sanções aos que a
desobedecessem, não teria sido certamente aceito de modo tão geral e pacífico, se não
houvesse tido o aval de ser um fato comumente conhecido. Sobre isso temos ainda
testemunhos explícitos da Igreja Oriental, que teremos oportunidade de analisar.
Roma, aliás, já tinha enviado uma carta aos bispos da África, na época do Papa Sirício, que
comunicava as decisões do Sínodo Romano de 386, nas que se insistia novamente em
algumas importantes disposições apostólicas. Esta carta tinha sido comunicada durante o
Concílio de Telepte do ano 418. A última parte da mesma (can. 9.) trata precisamente da
continência do clero.
A nove delas é exposta com detalhes: “os sacerdotes e levitas não devem ter relações
sexuais com suas esposas, porque devem estar ocupados diariamente com o seu ministério
sacerdotal”. São Paulo escreveu aos Coríntios que eles deviam se abster das relações sexuais
para se dedicar à oração. Se aos leigos a continência é imposta, a fim de serem ouvidos na
sua oração, com muito maior razão deve estar disposto em todo momento o sacerdote para
oferecer, com castidade verdadeira, o Sacrifício e para administrar o Batismo. Depois de
outras considerações ascéticas, é rejeitada – que eu saiba, pela primeira vez no Ocidente –
pelos oitenta bispos reunidos, uma objeção, ainda hoje viva, que visa provar à continuidade
no uso do matrimônio com base nas palavras do Apóstolo São Paulo segundo as quais, o
candidato às Sagradas Ordens, só podia ter estado casado uma vez. Essas palavras,
apontaram os bispos, não querem dizer que se pode continuar vivendo na concupiscência e
gerando filhos, mas foram precisamente ditas em favor da futura continência. É ensinado,
por conseguinte, oficialmente – e será repetido continuamente – que as segundas núpcias ou
o matrimônio com uma viúva, não oferecem segurança de continência futura. A carta conclui
com uma exortação a obedecer estas disposições que estão sustentadas pela tradição.
A terceira das questões propostas dá a seguinte resposta: “Em primeiro lugar, no que diz
respeito aos bispos, sacerdotes e diáconos, que devem participar nos sacrifícios divinos, por
cujas mãos se comunicam a graça do batismo e se oferecem o Corpo de Cristo, decidiu-se
que estão obrigados, não só por nós, mas pela Divina Escritura, à castidade (ao qual
também os Padres ordenaram que observassem a continência corporal)”. Continua então
uma ampla exposição – que ainda hoje é digna de ser recordada – dos motivos, sobretudo
bíblicos, da dita prescrição, e se conclui dizendo que, ainda que só fosse pela veneração
devida à religião, não se deve confiar o ministério divino aos desobedientes.
Outras três cartas do mesmo Papa repetem os conceitos de seu antecessor Sirício, aos quais
se unem plenamente. Trata-se da carta a Victricio de Rouen, de 15 de fevereiro de 404; da
dirigida a Exupério de Tolosa, de 20 de fevereiro de 405 e da dirigida aos bispos Máximo e
Severo de Calábria, de data incerta. É importante notar que sempre se pede sanções contra
os impenitentes que devem ser afastados do ministério clerical.
O Papa confirmou assim outro ponto relacionado com a continência dos clérigos casados, que
na legislação precedente era também mencionado, a saber: que as esposas dos clérigos
casados, após a Ordenação de seus maridos, devem ser sustentadas pela Igreja. A posterior
coabitação com o marido, então obrigado à continência, não era geralmente tolerada pelo
perigo de faltar à obrigação assumida. Foi permitida apenas nos casos em que esse risco
estava excluído. Qualquer texto contra o abandono das esposas deve ser interpretado nesse
mesmo sentido, como é evidente nesse fragmento de Leão Magno.
Deve acrescentar-se que este Papa estendeu aos subdiáconos a obrigação à continência
posterior à sagrada Ordenação, que até agora não estava claro, por causa da dúvida que
existia sobre se a Ordem do subdiaconado pertencia ou não às Ordens maiores.
Gregório Magno (590 a 604) faz compreender nas suas cartas, ao menos indiretamente, que
a continência dos eclesiásticos era substancialmente observada na Igreja Ocidental. Dispôs
simplesmente que também a ordenação de subdiácono comportava, definitivamente e para
todos, a obrigação de perfeita continência. Ele também sugeriu, repetidamente, que a
coexistência entre clérigos maiores e mulheres não autorizadas para isso continuava estando
absolutamente proibida, e devia, portanto, ser impedida. E como as esposas não pertenciam
normalmente à categoria das autorizadas, dava com isso uma significativa interpretação ao
cânon 3 do Concílio de Nicéia.
Tudo isso nunca é apresentado como uma inovação, mas é sempre posto em referência com
a origem da Igreja. Estamos autorizados, portanto, conforme as regras de um correto
método jurídico-histórico, a considerar dita práxis como uma verdadeira obrigação vinculante
transmitida por tradição oral antes de ter sido fixado por leis escritas. Quem quiser afirmar o
contrário não somente se oporia a uma metodologia científica válida, mas também estaria
tachando de mentirosos – porque de ignorância não poderiam ser acusados – a todos os
testemunhos unânimes que até agora escutamos.
As sanções foram atenuadas em algumas ocasiões, como, por exemplo, no Concílio de Tours,
no ano 461, onde não se pune já com a e excomunhão para toda a vida, mas apenas com a
exclusão do serviço eclesiástico.
Além disso, é cada vez mais enfatizada a preocupação da Igreja para dispor de candidatos às
ordens maiores que sejam celibatários e para reduzir o número dos candidatos casados, já
que a experiência mostrava o perigo permanente da debilidade humana ante as obrigações
assumidas por estes candidatos.
Outra disposição que deve ser constantemente recordada e renovada foi a proibição de
qualquer clérigo maior para viver sob o mesmo teto com mulheres que não oferecesse plena
confiança pelo que se refere à observância da continência.
Para estabelecer um juízo de conjunto sobre a disciplina celibatária na Europa medieval, são
muito significativas as disposições relativas à Igreja Insular (Irlanda – Bretanha). Os Livros
Penitenciais, que refletem fielmente a vida e a disciplina em vigor nesta igreja, em muitos
aspectos demonstram inequivocamente a validade para os clérigos maiores insulares
previamente casados, das mesmas obrigações que estamos vendo. O que continuasse
usando do matrimônio com sua esposa era considerado culpado de adultério e castigado
convenientemente. Se essas obrigações onerosas eram exigidas e observadas
substancialmente também na Igreja Insular, na qual estavam em vigor rudes costumes entre
os seus habitantes, dos quais esses livros nos dão uma viva prova, temos uma ótima
demonstração de que o celibato era também possível ali, ainda que, provavelmente, só por
uma nobre tradição que ninguém punha em dúvida.
Juntamente com os perigos gerais periódicos que ameaçavam sempre e em toda parte a
continência do clero, sempre existiu na história da Igreja momentos, circunstâncias e regiões
onde surgiram perigos extraordinários que provocavam de modo muito especial a autoridade
da Igreja. As dificuldades desse tipo eram produzidas pelas heresias bastante difundidas. Um
exemplo é o arianismo dos visigodos, ainda a operar após a conversão ao catolicismo de seu
reino na Península Ibérica. O Concílio de Toledo de 569 e o de Zaragoza em 592 emanaram
normas explícitas neste sentido para os clérigos provenientes do arianismo.
o A Reforma Gregoriana
Uma das mais graves crises que afetou a continência do clero foi a que se deu em todas as
regiões da Igreja Católica Ocidental, afetadas pelas desordens que levaram à Reforma
Gregoriana. Essas regiões eram aquelas partes da Europa onde tinha penetrado, com maior
ou menor difusão, o chamado sistema beneficial eclesiástico, que, basicamente, dominou
toda a vida pública e, mais tarde, também a vida privada da Igreja e da sociedade
eclesiástica.
Os bens patrimoniais do benefício eclesiástico, que estavam ligados a todos os ofícios da
Igreja, altos ou baixos, conferiam ao detentor do benefício, e portanto também do ofício,
uma grande independência econômica e, por isso, freqüentemente profissional, uma vez que
o ofício que acompanhava ao benefício não se podia retirar facilmente. A concessão do
benéfico-ofício, que vinha realizada com frequência através de leigos que possuíam esse
direito – proveniente da Igreja em sentido estrito ou lato – situava nos ofícios eclesiásticos
de bispos, abades e, inclusive, de párocos, a candidatos com freqüência pouco preparados e,
até mesmo, indignos. A concessão e a designação dos ofícios por parte de leigos poderosos,
que nesse assunto atendiam mais aos interesses seculares e profanos que aos espirituais e
religiosos da Igreja, conduziam aos outros dois males fundamentais: a simonia, ou seja, a
compra dos ofícios, e o nicolaísmo, isto é, a estendida violação do celibato eclesiástico.
Após o fracasso das reformas regionais, os Papas começaram a enfrentar essa situação difícil
da Igreja Européia. Conseguiram, devido ao empenho de Gregório VII, enfrentar este grave
perigo que tinha envolvido a hierarquia da Igreja em todos os seus graus.
Assim, esse perigo levou a um impulso decidido para a reintegração da antiga disciplina
celibatária; para isso foi necessário cuidar especialmente da eleição e da formação dos
candidatos ao sacerdócio, para o qual se limitava cada vez mais a aceitação de homens
casados, buscando, assim, o retorno a uma observância geral da obrigação da continência.
Temos de dizer agora, no entanto, que precisamente devido a essa negligência crítica às
dúvidas já existentes no Ocidente sobre esse assunto, e que Gregório VII e outros
reformadores, incluindo especialmente Bernoldo de Constança, tinham reconhecido, não
produziram uma impressão decisiva sobre a escola canonística, que reconheceu também as
deliberações do Concílio Trulano II como plenamente válidas para a Igreja Oriental. Nesse
mesmo Concílio, como veremos, foi fixada a disciplina celibatária da Igreja Bizantina e das
dependentes dela.
Primeiro devemos mencionar Raimundo de Peñafort. Esse autor compôs também o Liber
Extra do Papa Gregório IX (parte central do Corpus Iuris Canonici) e pode, pois, ser
considerado como homem de confiança do Papa, e é também representante qualificado da
ciência canonística, já então bem madura. No que diz respeito à origem e ao conteúdo da
obrigação de continência dos homens casados antes da sagrada Ordenação diz: “Os bispos,
sacerdotes e diáconos devem observar a continência também com sua esposa (de antes).
Isto é o que os Apóstolos ensinaram com seu exemplo e também com suas disposições,
como alguns dizem, para quem a palavra “ensinamento” (Dist. 84, can. 3) pode ser
interpretada de maneira diversa. Isso foi renovado no Concílio de Cartago, como na citada
disposição Cum in merito do Papa Siríaco”. Depois de resumir outras explicações, se refere
Raimundo às razões para a introdução de tal obrigação: “a razão era dupla: uma, a pureza
sacerdotal, para que possam obter com toda sinceridade o que com sua oração pedem a
Deus” (Dist. 84 , cap. 3 e dict. 1 p. c. 1 Dist. 31); “a segunda razão é que possam orar sem
impedimentos (1 Cor 7, 5) e exercer seu ofício, pois não podem fazer as duas coisas: servir
à mulher e à Igreja, ao mesmo tempo”.
Todos os movimentos heréticos e cismáticos que apareceram na Igreja são uma renovada
demonstração dessa verdade. Uma das primeiras consequências que ocorrem entre os seus
seguidores é a renúncia da continência clerical. Não pode, portanto, causar surpresa o fato
de que também nas grandes heresias e defecções da unidade da Igreja Católica no século
XVI, ou seja, entre os luteranos, calvinistas, seguidores de Zwinglio, ou Anglicanos, a
renúncia rápida ao celibato eclesiástico. Os esforços de reforma do Concílio de Trento para
restaurar a verdadeira fé e a boa disciplina na Igreja Católica, portanto, deverão também
abordar os ataques contra a continência dos ministros sagrados.
Da história deste Concílio já é conhecida, com absoluta certeza, que muitas pessoas,
especialmente imperadores, reis, príncipes e mesmo representantes da mesma Igreja, com a
boa intenção de recuperar os ministros sagrados que haviam deixado a Igreja Católica, se
empenharam em obter uma redução ou uma dispensa desse dever. Mas uma comissão
criada pelos Romanos Pontífices para tratar dessa questão, concluiu, considerando toda a
tradição precedente, que se devia manter sem comprometer a obrigação do celibato: a
Igreja não estava capacitada para renunciar a uma obrigação válida desde seu começo e
depois sempre renovada.
Por razões pastorais se deu permissão especial para que na Alemanha e na Inglaterra os
sacerdotes apóstatas, depois de renunciar a toda convivência e utilização do casamento,
podiam ser absolvidos e reintegrados ao seu ministério na Igreja Católica. Caso rejeitassem
o retorno ao clero, podia ser sanada a invalidez de seu matrimônio; mas, nesse caso, seriam
excluídos para sempre do ministério sagrado.
Note-se também que os Padres do Concílio de Trento, não só renovaram todas as obrigações
nesta matéria, mas também se recusaram a declarar a lei do celibato da Igreja Latina como
uma lei puramente eclesiástica, da mesma forma que haviam negado incluir à Virgem Maria
sob a lei universal do pecado original.
Mas a decisão mais radical do Concílio de Trento para salvaguardar o celibato eclesiástico foi
a fundação de Seminários para a formação de sacerdotes, que foi estabelecido pelo famoso
cânone 18, da Sessão XXIII, e imposta a todas as dioceses. Os jovens deveriam ser eleitos
para o sacerdócio, formados e fortalecidos para o ministério nesses Seminários.
Essa decisão providencial, que se tornou realidade progressivamente em todos os lugares,
permitiu à Igreja contar com tantos candidatos celibatários para os graus superiores do
sagrado ministério, que, a partir de então, se pode ir prescindindo de ordenar homens
casados, o que tinha sido um desejo explícito de muitos Padres conciliares.
Desde então, a noção de celibato até então dominante e muito presente na mentalidade dos
fiéis, que incluía tanto a obrigação de continência completa no uso do matrimônio contraído
antes da ordenação, bem como a proibição de se contrair novas núpcias, foi restringida a
esta última. Daí procede que hoje se entenda o dever do celibato eclesiástico só como
proibição de se casar.
A Igreja tem sido sempre forte em preservar a sua tradição em relação ao celibato, mesmo
nos tempos difíceis que se seguiram. Um claro testemunho é fornecido pela Revolução do
final do século XVIII e início do século XIX. Também se adotou nesta ocasião a prática do
século XVI: os sacerdotes que tinham se casado durante a Revolução tinha de decidir: ou
renunciar ao matrimônio civil invalidamente contraído, ou procurar sanar esta invalidez na
Igreja. No primeiro caso, podiam ser readmitidos ao sagrado ministério; no segundo,
ficavam excluídos definitivamente do ministério, como já havia estabelecido a primeira lei
escrita sobre essa matéria, que já conhecemos: a do Concílio de Elvira.
A Igreja se opôs também a todas as outras tentativas feitas para abolir o celibato dos
ministros sagrados, como os esforços feitos em Baden-Wurttemberg em tempos de Gregório
XVI, ou o movimento Jednota da Mohêmia em tempos de Bento XV.
É novamente importante a abolição imediata do celibato entre os “velhos católicos” após o
Concílio Vaticano I. Não é menos clara a oposição da Igreja contra as tentativas,
constantemente renovadas após o Concílio Vaticano II, de ordenar a viri probati, quer dizer,
homens casados sem exigir-lhes a renúncia ao matrimônio, ou de permitir o matrimônio dos
sacerdotes.
Foi dirigida contra a Igreja Latina a crítica de que contra uma suposta atitude mais liberal no
início, foi evoluindo a posições cada vez mais severas na sua disciplina celibatária. Como
prova desta afirmação se apela para a prática da Igreja Oriental, que teria mantido a original
disciplina da Igreja primitiva. Por esta razão, se diz, a Igreja Latina deveria retornar à
disciplina original, especialmente por causa do grave peso que o celibato é hoje para a
situação pastoral da Igreja universal.
A resposta a esta declaração e às correspondentes propostas depende da verdade ou não
dessa condição da Igreja primitiva. O resultado da análise histórica que temos feito sobre a
prática real celibatária no Ocidente, suscita sérias dúvidas sobre a suposta exatidão de tal
parecer. Devemos, portanto, procurar uma clarificação do verdadeiro desenvolvimento do
celibato na Igreja Oriental. E é isso que tentamos fazer nesta quarta parte da nossa
exposição.
o São Jerônimo
A segunda testemunha é já conhecida. São Jerônimo foi ordenado sacerdote na Ásia Menor
por volta do ano 379 e ao longo de seis anos conheceu a doutrina e a disciplina oriental, bem
como eclesiásticos e comunidades monásticas. Após ter vivido três anos em Roma, ele
retornou, através do Egito, à Palestina, onde permaneceu até a sua morte, por volta do ano
420. Esteve sempre em contato estreito e ativo com a vida de toda a Igreja, graças às suas
relações com muitos homens importantes do Ocidente e Oriente, e também graças ao seu
vasto conhecimento de várias línguas.
Seu testemunho explícito sobre a continência do clero já foram ilustrados na terceira parte.
Recordemos agora novamente sua obra Adversus Vigilantium, que, contrariamente àquele
sacerdote da Gália meridional que desprezava o celibato, invocou a prática das Igrejas do
Oriente, do Egito e da Sé Apostólica, nas que, segundo afirma, só aceitam clérigos virgens,
continentes, e, se são casados, que tenham renunciado ao uso de casamento. Com isto
conhecemos um testemunho sobre a posição oficial também da Igreja, sobre a continência
dos ministros sagrados.
No que diz respeito à legislação dos Sínodos orientais, deve-se salientar que os Concílios
regionais anteriores a Nicéia, ou seja, os de Ancira e Neo-Cesaréia e o post-niceno de
Gangra, falam efetivamente de ministros casados, mas não nos dão informações confiáveis
sobre a licitude de uma vida não continente após a Ordenação, que vai mais além de uma
situação excepcional.
Também nos sínodos particulares das diversas Igrejas cismáticas do Oriente, que foram
estabelecidas depois das controvérsias cristológicas, nas quais – como no Ocidente – houve
um claro afastamento da prática da disciplina celibatária, encontramos assim um testemunho
por sua atitude oficial contrária à ortodoxia.
Uma vez que o Concílio Trullano I, dos anos 680/81, não tinha emitido disposições
disciplinares, o imperador Justiniano II convocou um segundo Concílio “em Trullo”, no
Outono de 690. Nele se tentou reunir toda a legislação disciplinar da Igreja bizantina, e
decidir as necessárias atualizações e complementos, incluindo a legalização de situações
carentes, de fato, do necessário suporte normativo. Isso foi feito através da promulgação de
102 cânones, que foram acrescentados mais tarde ao antigo Syntagma adauctum,
transformando-se dessa forma no último Código da Igreja Bizantina.
Toda a disciplina atualizada no que respeita ao celibato foi fixado de forma vinculativa e com
sanções adjuntas em sete cânones (3, 6, 12, 13, 26, 30, 48). Este Concilio II “em Trullo”,
também chamadoQuinisexto, foi um Concílio da Igreja Bizantina, convocado e frequentado
somente por seus bispos e mantido pela sua autoridade, que se apoiava de modo decisivo na
autoridade do imperador. A Igreja Ocidental não enviou delegados (embora Apocrisário, o
legado de Roma em Constantinopla, assistiu a esse Concílio) e nunca reconheceu este
Concílio como ecumênico, apesar das repetidas tentativas e pressões, especialmente por
parte do imperador. O Papa Sérgio (687-701), que procedia da Síria, negou o
reconhecimento. João VIII (872-882) só reconheceu as disposições que não eram contrários
à prática de Roma em vigor até aquele momento. Qualquer outra referência por parte dos
Romanos Pontífices aos cânones “trullanos” não deve ser considerada como outra coisa além
de uma consideração, com um reconhecimento mais ou menos explícito do direito particular
da Igreja Oriental.
Então, de que fontes derivam as decisões “trullanas” sobre disciplina celibatária bizantina,
vinculantes até hoje? Para responder adequadamente a esta pergunta, é necessário
considerar antes tais disposições.
Cân. 3: Decide que todos os que depois do batismo tenham contraído um segundo
matrimônio ou tenha vivido em concubinato, bem como aqueles que se tinham casado com
uma viúva, uma divorciada, uma prostituta, uma escrava ou uma atriz, não poderiam tornar-
se nem bispos, nem sacerdotes, nem diáconos.
Cân. 6: Declara que aos sacerdotes e diáconos não estão autorizados a se casar após a
Ordenação.
Cân. 12: Ordena que os bispos não podem, após a Ordenação, coabitar com sua esposa e,
por conseguinte, não podem mais usar do matrimônio;
Cân. 13: Estabelece que, ao contrário da prática romana que proíbe o uso do matrimônio, os
sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja oriental, em virtude de antigas prescrições
apostólicas, podem conviver com suas esposas e usar dos direitos do casamento para a
perfeição e ordem correta, exceto nos tempos em que prestam o serviço no altar e celebram
os sagrados mistérios, devendo ser continentes durante este tempo. Esta doutrina havia sido
afirmada pelos Padres reunidos em Cartago: “os sacerdotes, diáconos e subdiáconos devem
ser continentes durante o tempo do seu serviço ao altar, tendo em vista o que foi
transmitido pelos Apóstolos e observado desde os tempos antigos também nós o
custodiemos, dedicando um tempo para cada coisa, especialmente à oração e ao jejum.
Assim, pois, os que servem no altar devem ser em tudo continentes durante o tempo do seu
serviço sagrado para que possam obter o que se pedem a Deus com toda simplicidade.”
Portanto quem ouse privar mais além do que estabelece os cânones apostólicos, aos
ministros in sacris, quer dizer, aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos, da união e comunhão
com as legítimas esposas, deve ser deposto, bem como aquele que, sob o pretexto de
piedade, expulsa à sua esposa e insiste na separação.
Cân. 26: Decreta que um sacerdote que por ignorância houvesse contraído casamento ilícito
tem de se conformar com a sua situação anterior, mas abstendo-se de todo ministério
sacerdotal. Esse matrimônio deve ser dissolvido e toda a comunhão com a esposa está
proibida.
Cân. 30: Permite que os que, com consentimento mútuo, querem viver continentes, não
devem habitar juntos; isso é válido também para os sacerdotes que residem em países
bárbaros (isso é entendido como os que vivem no território da Igreja Ocidental). Esse
compromisso assumido é, no entanto, uma dispensa dada a esses sacerdotes por sua
pusilanimidade e pelos costumes das pessoas ao redor.
Cân.: 48: Manda que a mulher do bispo que, após consentimento mútuo, se separou, deve
ingressar num mosteiro depois da Ordenação do marido e deve ser mantida por ele. Pode
também ser promovida à diaconisa.
Encontramos aqui, portanto, uma volta à pratica vigente no Antigo Testamento que a Igreja
havia rejeitado sempre explicitamente com razões claras. Pelo contrário, a convivência e o
uso do matrimônio durante o tempo livre do serviço direto não somente é defendido aqui
com grande resolução, mas que qualquer atitude contrária é castigada com gravíssimas
sanções. A compreensível exceção para os sacerdotes que residem na Igreja latina é
declarada como uma dispensa que se concede só por causa da evidente debilidade humana
de tais sacerdotes e pelas dificuldades que provém do ambiente, entre as quais está
certamente o fato da geral prática de continência do clero ocidental.
Uma vez que tais cânones afirmavam a mesma disciplina, isto é, da completa continência,
para bispos, sacerdotes e diáconos, devia ser modificado o texto autêntico dos cânones
africanos. Não era algo perigoso, pois no Oriente realmente muito poucos podiam verificar o
latim genuíno do texto original.
Deste modo as palavra do cânon 3 de Cartago: “gradus isti tres (…) episcopos, presbyteros
et diaconos (…) continentes in omnibus”, foram substituídos no cânon 13 do Concílio Trullano
por estas outras: “subdiaconi (…) diaconi et presbyteri secundum easdem rationes a
consortibus se abstineant”, sendo que as palavras “easdem rationes”, opostas às palavras do
texto original de Cartago, representavam as mudanças introduzidas pelos Padres trullanos.
Mas em todos estes textos, documentalmente manipulados, se conserva, ou melhor, se
busca a referência aos Apóstolos e à Igreja antiga para dar ao celibato bizantino e oriental,
através destes testemunhos autorizados, o mesmo fundamento que tinha a tradição
ocidental, explicitamente indicado por ela em Cartago e noutros lugares.
Que podemos dizer diante deste procedimento trullano? Os Padres orientais se sentiam, não
há dúvidas, autorizados para decretar disposições particulares para a Igreja Bizantina, posto
que desde muito tempo antes haviam insistido em sua autonomia jurídica no âmbito da
administração e da disciplina. Somente se sentiam obrigados pelas decisões doutrinais da
Igreja universal estabelecidas em Concílios Ecumênicos nos quais também eles tinham
participado. Pode-se, desde já, reconhecer naqueles Padres – que estabeleciam as normas
de validade geral na sua Igreja – o direito de levar em conta só a situação de fato na
questão do celibato dos ministros sagrados, para a que viam possibilidade de reforma
frutuosa. Que isso fosse possível em um campo no que, como o caso do celibato, está
implicada a Igreja Universal é outra questão. Mas o que sem dúvida podemos negar é o
direito a fazê-lo com este método, ou seja, mediante uma manipulação dos textos que
transforma a verdade na sua contrária.
Para a Igreja Católica Ocidental, esta atitude dos Padres trullanos pode ser considerada com
uma prova a mais, e não sem importância, a favor da própria tradição celibatária, que se
considera apostólica e se fundamenta realmente sobre uma consciência comum à Igreja
Universal antiga; por isso a tradição celibatária ocidental deve ser considerada verdadeira e
justa.
Devemos ainda nos perguntar o que diz a história sobre essa mudança dirigida a obter uma
base de apoio para as novas e até agora definitivas obrigações do celibato na Igreja Oriental.
Os comentários dos canonistas da Igreja Bizantina a essa leitura dos cânones africanos
permitem compreender que conheciam o texto original autêntico, e que desde o século XVI
em adiante – como, por exemplo, o comentário de Mateo Blastares – recolhiam dúvidas
sobre a exatidão das referências dos Padres do Concílio Trullano II aos textos africanos. Os
intérpretes modernos das disposições trullanas sobre o celibato admitem a inexatidão das
referências, mas ao mesmo tempo afirmam que o Concílio tinha autoridade para mudar
qualquer lei disciplinar para a Igreja Bizantina, e para adaptá-la às condições dos tempos.
Fazendo uso desta autoridade podiam também mudar o sentido original dos textos para
fazê-los concordar com o parecer e a vontade do próprio Concílio. Mas com toda certeza não
era objetivamente lícito alterar o original atribuindo a esse uma autenticidade falsa.
Falta-nos ainda fazer uma referência às marcas da genuína disciplina celibatária antiga que
permaneceu até nossos dias na nova disciplina trullana, quer dizer, à constante preocupação
da Igreja pelo perigo grave e contínuo para os ministros sagrados e sua continência, que é a
coabitação com mulheres que estejam acima de qualquer suspeita. Seguindo ao já referido
cânone 3 do Concílio de Nicéia, de 325, os mesmos cânones trullanos, examinados
anteriormente, tratam dele repetidamente. Semelhante preocupação se deve somente pela
solicitude geral para salvaguardar a castidade e a continência dos ministros sagrados em
ambas as Igrejas.
O fato de haver conservado para os bispos da Igreja Oriental a mesma severa disciplina
sobre a continência que se praticou sempre em toda a Igreja, pode ser considerada como um
resíduo na legislação trullana de uma tradição que sempre considerou unidos a todos os
graus da Ordem Sagrada numa mesma obrigação de completa continência.
Também não se compreende porque se conservou, com todo rigor, na Igreja Oriental a
condição de admitir um único matrimônio entre os candidatos ao sacerdócio casados. Como
já vimos (e veremos mais detalhadamente) essa condição tem só um significado razoável em
função de um empenho definitivo na continência completa.
Nas Igrejas particulares unidas à Bizantina, que aceitaram a disciplina trullana, não se
verificou nos séculos seguintes nenhuma mudança na práxis do celibato dos ministros
sagrados. Às comunidades orientais que se uniram a Roma foi concedido poder de continuar
na sua tradição celibatária diferente. Mas o retorno dos “uniatas” à práxis latina de
continência completa não só não encontrou oposição, mas também foi positiva e
favoravelmente aceita. O reconhecimento da diversidade de disciplina concedido pelas
autoridades centrais de Roma pode ser considerado como um nobre respeito, mas
dificilmente como aprovação oficial da mudança da antiga disciplina da continência. Essa
opinião parece estar sustentada pela reação oficial que teve a Santa Sé frente ao Concílio
Trullano II, como já assinalamos anteriormente.
Temos, portanto, por esse motivo, a tarefa atual e importante de analisar os elementos
teológicos tanto do sacerdócio do Novo Testamento como, a partir deste, o celibato dos
ministros sagrados. Ambos têm suas raízes nas Escrituras – a principal fonte da Teologia
católica – e na Tradição da Igreja que revela e interpreta o testemunho escriturístico.
O sacerdócio de Jesus Cristo é um profundo mistério da nossa fé. Para compreender isso, o
homem deve se abrir para uma visão sobrenatural e submeter a sua razão a um modo
transcendente de pensar. Em tempos de fé viva, que incentiva e orienta não só a cada fiel
como pessoa única, mas também permeia a vida e dá forma à vida de toda a comunidade
crente, Cristo Sacerdote constitui na consciência de todos o centro da vida de fé pessoal e
comunitária. Em tempos de declínio do sentido da fé, pelo contrário, a figura de Cristo
Sacerdote desbota e desaparece cada vez mais da consciência dos homens e da sociedade, e
não está mais no centro da vida cristã.
Mas, em meio a uma atmosfera racionalista que desvia cada vez mais a mente humana do
sobrenatural, em uma época de materialismo que obscurece cada vez mais a realidade
espiritual, torna-se cada vez mais difícil para o sacerdote resistir à pressão da mentalidade
secularizante. A identidade espiritual e transcendente de seu sacerdócio tende a desvanecer
se ele não se esforça, conscientemente, em aprofundar nela e em mantê-la viva, por meio
de uma íntima união pessoal com Cristo.
Essa crítica situação torna ainda mais indispensável a ajuda para os sacerdotes de uma
ascética e de uma mística adequadas ao estado das coisas. É preciso que lhes revelem a
tempo os perigos que ameaçam ao seu sacerdócio, mostrando-lhes as necessidades e que se
ponham à disposição os meios que a sua vida sacerdotal requerem. A atual crise de
identidade do sacerdócio católico se manifesta toda sua crueza através da renúncia de
milhares de sacerdotes ao seu ministério, através também da profunda secularização de
muitos outros que continuam em um serviço puramente formal, e, enfim, através da
escassez de vocações causadas pela rejeição a seguir ao chamado de Cristo. Numa situação
desse tipo é uma necessidade fundamental para desenvolver uma pastoral sacerdotal nova,
que seja consciente das circunstâncias e das exigências atuais e que responda, em uma
palavra, ao “contexto presente”.
Nos últimos tempos, especialmente desde o Vaticano II em diante, esta relação do sacerdote
com Cristo tem sido cada vez mais posta no centro da essência do sacerdócio, e se pôde
aprofundar e alargar desde essa perspectiva os ensinamentos bíblicos e as doutrinas
teológicas e canônicas sobre o assunto. Tem, assim, adquirido uma nova iluminação
teológica a doutrina tradicional do sacerdos alter Christus.
Se São Paulo escreve aos coríntios: “Temos de ser considerados pelos homens como
ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1); ou então: “Agimos
como embaixadores de Cristo, como se Deus mesmo vos exortasse através de nós.
Suplicamos-vos, pois, em nome de Cristo, deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Cor 5, 20),
essas expressões podem ser consideradas como autênticas ilustrações bíblicas da
identificação do sacerdote com Cristo.
O mais importante ato oficial do Papa, com referência ao sacerdócio foi, sem dúvida, a
convocação e a realização do Oitavo Sínodo dos Bispos, que teve por objetivo a formação
dos sacerdotes nas circunstâncias atuais. Um dos pontos centrais das discussões dos Padres
sinodais foi a noção justa da identidade sacerdotal, vistas as coisas no mundo de hoje e em
meio a grave crise em que se encontra o sacerdócio católico. Síntese e coroação dos
trabalhos sinodais foi a Exortação Apostólica pós-sinodalPastores dabo vobis, publicada em
25 de março de 1992, dedicada precisamente à formação dos sacerdotes nas circunstâncias
atuais.
No segundo capítulo da Exortação Apostólica, o Papa aborda a “natureza e a missão do
sacerdócio ministerial” e informa expressamente que as intervenções dos Padres na aula
sinodal “mostrou a consciência do vínculo ontológico específico que liga o sacerdote a Cristo,
Sumo Sacerdote e Bom Pastor” (n. 11). O Papa conclui essa exposição com uma afirmação
verdadeiramente clássica: “O presbítero encontra a plena verdade da sua identidade no ser
uma derivação, uma participação específica e uma continuação do mesmo Cristo, Sumo e
Eterno Sacerdote da Eterna Aliança; Ele é uma imagem viva e transparente de Cristo
sacerdote. O sacerdócio de Cristo, expressão da sua absoluta “novidade” na história da
salvação, é a única fonte e o paradigma insubstituível do sacerdócio do cristão, e,
especialmente, do presbítero. A referência a Cristo, então, é a chave essencial para a
compreensão das realidades sacerdotais” (n.º 12, ao final).
Sobre a base desta afinidade natural entre Cristo e os seus sacerdotes não será difícil
anunciar a teologia do sacerdócio ministerial. O mesmo João Paulo II oferece-nos novamente
a chave: “É particularmente importante que o sacerdote compreenda a motivação teológica
da lei eclesiástica sobre o celibato. Enquanto lei, ela expressa a vontade da Igreja, antes
mesmo da vontade que o sujeito manifesta com a sua disponibilidade. Mas essa vontade da
Igreja encontra sua motivação última na relação que o celibato tem com a ordenação
sagrada, que configura ao sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. A Igreja,
como esposa de Jesus Cristo, quer ser amada pelo sacerdote de modo total e exclusivo como
Jesus Cristo Cabeça e esposo a tem amado. Assim o celibato sacerdotal é um dom de si em e
com Cristo à sua Igreja, e manifesta o serviço do sacerdote à Igreja em e com o Senhor
“(n.º 29 até o final).]
A falta de lógica nesta disposição do cânon 3, em comparação com o cânon 13 que permite
aos sacerdotes e diáconos o uso do matrimônio contraído antes da Ordenação, só pode ser
explicado pelo fato de que aquela proibição apostólica estava também profundamente
enraizada na tradição oriental, mas sem que se perceba já o seu sentido original. Daí surge
outra prova tácita do autêntico significado original, como garantia da total continência após a
Ordenação, tal como permaneceu vivo no Ocidente, sempre aceito com fiel observância por
parte de Roma.
Deve-se mencionar neste contexto de duas outras passagens das Escrituras que não se
encontram explicitamente nos testemunhos antigos, a segunda das quais vem hoje invocada
contra a continência dos mesmos Apóstolos.
Entre as qualidades que São Paulo exigia ao ministro da Igreja se encontra também a de ser
“Encratés”, ou seja, continente. Este termo significa a continência sexual, como se deduz do
texto paralelo no qual São Paulo exorta os fiéis casados continência, a necessária abstinência
para dedicar-se à oração, e também dos posteriores textos gregos sobre o celibato,
reunidos, por exemplo, na coleção oficial do Pedalion.
A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São Paulo diz que
também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem os outros apóstolos, os
irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a expressão “mulher” como a “esposa” dos
Apóstolos, que no caso de Pedro poderia ser verdade. Mas é preciso se ter claramente
presente o fato do texto original grego não falar simplesmente de “Ginaika”, que podia
perfeitamente significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo
acrescenta a palavra “adelfén”, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso mal-
entendido com esposa.
Somos convencidos facilmente deste sentido retificador que, de aqui em adiante, os
testemunhos mais importantes da continência dos ministros sagrados mostram que ao falar
da esposa de tais ministros, no contexto da posterior continência sexual, sempre se usa a
palavra “sóror”, irmã. Do mesmo modo, a relação entre marido e mulher depois da
Ordenação do marido é visto como o de um irmão com sua irmã. São Gregório Magno, por
exemplo, diz: “Desde sua Ordenação, o sacerdote amará sua sacerdotisa (ou seja, sua
esposa) como a uma irmã”. O Concílio de Gerona (ano 517) decidiu que “se tiverem sido
ordenados aqueles que antes estiveram casados, não devem viver junto com a que de
esposa se tornou irmã”. E o Concílio de Auvergne (ano 535), por sua vez, dispôs que
“quando um sacerdote ou um diácono recebeu a Ordenação ao serviço divino, passa
imediatamente de ser marido a ser irmão da sua esposa”. Este uso das palavras é
encontrado em muitos textos patrísticos e conciliares.
Antes de tudo deve-se assinalar que o sacerdócio vetero-testamentário havia sido confiado a
uma única tribo que devia ser conservada, e isso fazia necessário o matrimônio. O
sacerdócio do Novo Testamento não foi definido, no entanto, como o sacerdócio de sucessão
pelo sangue e não se baseia na descendência familiar. Um segundo e mais importante
argumento a favor da distinção entre um sacerdócio e outro diz: os sacerdotes do Antigo
Testamento prestavam um serviço temporal limitado no templo, enquanto que os sacerdotes
do Novo Testamento mantêm um serviço permanente, por isso a obrigação temporal de
continência e de pureza se estendeu a uma observância ilimitada e contínua.
Os mesmos documentos também oferecem outros motivos de caráter pastoral: como poderia
um padre pregar sobre a continência e sobre a pureza a uma viúva ou a uma virgem, se ele
mesmo desse maior valor o trazer filhos ao mundo que a Deus? Assim, a objeção contrária
torna-se argumento a favor da continência ministerial.
Foi tarefa da escola, ou seja, da canonística clássica a partir do décimo segundo século em
diante, descobrir, explicar e desenvolver as razões que ligam continência e sacerdócio
neotestamentário. Na história do desenvolvimento científico do tema, brevemente descrito
na segunda parte deste trabalho, se mencionou as dificuldades existentes então para se
chegar à elaboração de uma teoria satisfatória. Embora os antigos Padres tivessem já
entendido que a continência pertencia à essência do sacerdócio novo – como, por exemplo,
quando Epifânio disse que o carisma do sacerdócio consiste na continência; ou Santo
Ambrósio que apontava a obrigação de rezar continuamente como o mandamento da Nova
Aliança –, os glossistas, no entanto, foram incapazes de construir uma teologia do celibato,
talvez porque eram demasiado pouco teólogos. Em seus trabalhos sobre a disciplina
celibatária no Ocidente, estiveram também muito influenciadas pela disciplina oriental, cuja
legitimidade tomaram por boa ao aceitar tanto a lenda de Pafnucio como a legislação
trullana.
No entanto a partir dos documentos da Igreja Católica sobre este assunto, tentaram
desenvolver uma teoria na qual se continham os elementos essenciais para uma Teologia
válida. Compreenderam, sobretudo, que a continência está em relação estreita com o ordo
sacer, e que essa lei tinha sido dada à Igreja propter ordinis reverentiam, pela reverência
que é devida à Ordem. Também entenderam que a continência está mais unida ao
Sacramento da Ordem recebido que ao homem ordenado, o qual era livre de aceitar a
Ordenação, sabendo que aceitava também a obrigação anexa.
Desde a síntese realizada por São Raimundo de Peñafort, já mencionado, se deriva com toda
certeza que naquele tempo se tinha como verdadeiro motivo da continência clerical não
tanto a pureza do ministro – que se adequaria muito bem com a práxis oriental estabelecida
no Concílio Trullano – quanto à eficácia da oração mediadora do ministro sagrado, que
procedia da sua total dedicação a Deus. De um modo geral eram apresentadas já então as
verdadeiras razões da perfeita continência: a possibilidade de rezar com liberdade, assim
como a também completa liberdade de desenvolver o próprio ministério e para dedicar-se ao
serviço da Igreja.
Embora a Teologia dos séculos posteriores até hoje, não desatendeu a reflexão sobre o
sacerdócio do Novo Testamento, a crise dos sacerdotes e das vocações ao sacerdócio nestas
últimas décadas – difundidas e ampliadas através dos meios de comunicação social – exigiu
com urgência um especial aprofundamento na matéria. O fundamento para isso tinha sido
posto pelo Concílio Vaticano II, sobre o que se baseou o ensinamento do Papa João Paulo II,
que fez do sacerdócio um motivo particular do seu programa doutrinal e pastoral desde o
começo do seu pontificado. É significativo nesse sentido, que já na sua primeira mensagem
aos sacerdotes, por ocasião da quinta-feira santa, dissesse sobre o celibato que a Igreja
ocidental o quis no passado e o quer no futuro enquanto que se “inspira no exemplo mesmo
de Nosso Senhor Jesus Cristo, na doutrina apostólica e em toda a Tradição que lhe é
própria”. Nos anos seguintes voltou várias vezes a tratar o tema do sacerdócio e do celibato
unido a ele e tem posto um grande empenho em frear as fáceis demasiadas dispensas nesta
matéria.
O ponto mais alto dessas preocupações de sua elevadíssima consciência pastoral constituiu a
convocatória, para outubro de 1990, do oitavo Sínodo dos Bispos, que devia abordar a
questão da formação sacerdotal no contexto das circunstâncias atuais. Isto foi feito de uma
forma exaustiva através das vozes dos representantes do episcopado mundial, e esta
questão encontrou a sua mais perfeita expressão na Exortação Apostólica Pós-
sinodal Pastores Dabo Vobis, que pode ser considerada uma “Carta Magna” da Teologia do
sacerdócio, e que permanecerá como norma autorizada no futuro da Igreja.
o A Teologia do celibato sacerdotal
Não é possível fazer aqui um completo desenvolvimento deste tema, nem este é o objetivo
da nossa exposição histórica, mas esta permite dar uma palavra final sobre a Teologia do
celibato sacerdotal, a qual está intimamente relacionada com a Teologia do sacerdócio.
Deve ser valorizado, acima de tudo, neste sentido, aquilo que é afirmado no capítulo três,
especialmente nos números 22 e 23, acerca da “configuração com Jesus Cristo Cabeça e
Pastor e a caridade pastoral”. Cristo nos é mostrado aqui no mesmo sentido de Ef 5, 23-32,
como Esposo da Igreja, assim como ela é a única Esposa de Cristo. Em ligação com outros
textos das Escrituras, nesta passagem da Exortação se contempla a profunda e misteriosa
união entre Cristo e a Igreja, que é colocado imediatamente em relação com o sacerdote: “O
sacerdote está chamado a ser uma imagem viva de Jesus Cristo, Esposo da Igreja… Está
chamado, portanto, a reviver na sua vida espiritual o amor de Cristo Esposo pela Igreja
Esposa.” Não lhe falta, por isso, ao sacerdote um amor esponsal, pois tem a Igreja como
esposa. “Sua vida deve também estar iluminada e orientada por esta relação esponsal, que
lhe pede ser testemunho do amor esponsal de Cristo, ser capaz de amar as pessoas com um
coração novo, grande e puro, com autêntico desapego de si, com plena dedicação, contínua
e fiel e, ao mesmo tempo, com uma forma especial de zelo (cf. 2 Cor 11, 2), com uma
ternura que se reveste também com acentos do amor maternal, capaz de tomar a cargo das
‘dores de parto’ para que ‘Cristo’ seja formado nos fiéis (cf. Gal 4, 19)”.
“O princípio interno, a força que anima e orienta a vida espiritual do presbítero, enquanto
configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é a caridade pastoral, participação da caridade pastoral
do mesmo Jesus Cristo”. Seu conteúdo essencial “é o dom de si, o dom total de si à Igreja, à
imagem e em união com o dom de Cristo…” “Com a caridade pastoral, que converte o
exercício do ministério sacerdotal numamoris officium, o sacerdote que recebe sua vocação
ao ministério está em condições de fazer disso uma escolha de amor, pela qual a Igreja e as
almas se tornam seu principal interesse”.
VI. CONCLUSÃO
O sacerdócio da Igreja Católica se manifesta, pois, como um mistério inserido, por sua vez,
no mistério da Igreja. Quaisquer das questões que estão relacionadas com ele e sobretudo o
problema grave e sempre atual do celibato, não pode ser considerado e resolvido por
argumentos puramente antropológicos, psicológicos, sociológicos e, em geral, profanos e
terrenos. Este problema, aliás, não pode ser resolvido com puras disposições disciplinares.
Todas as manifestações da vida e das atividades do sacerdócio, a sua natureza e identidade,
requerem, acima de tudo, uma justificação teológica. Aqui, com o que diz respeito ao
celibato, tentamos tratá-lo através da sua história, e em base a uma análise baseada nas
fontes da Revelação.
Note-se, falando no plano formal, que uma explicação satisfatória desse mistério não pode
ser compatível com um tipo de linguagem meramente profano. Exige, pelo contrário, um
modo elevado de expressão, digna do mistério. Além disso, considerando a natureza do
sacerdócio católico, não é suficiente recorrer à reflexão sobre esse tema por razões, digamos
assim, externas, ou seja, o que tornaria mais “funcional” o serviço da Igreja: a salvaguarda
ou a renúncia do celibato? O sacerdócio do Novo Testamento não responde a uma noção
funcional, como sucedia no caso do Antigo Testamento, mas é uma realidade ontológica, à
qual só corresponde uma forma adequada de agir: a derivada do axioma agere sequitur
esse, quer dizer, a ação segue ao ser.
Ante essa Teologia do sacerdócio neo-testamentário, que tem sido confirmada e aprofundada
pelo Magistério oficial da Igreja, devemos nos perguntar: essas razões que têm sido
expostas a favor do celibato, falam só de sua “conveniência” ou de algo realmente
necessário e irrenunciável? Não existe realmente um iunctum – um vínculo de unidade –
entre sacerdócio e celibato? Somente com uma resposta adequada a essa pergunta se
poderá responder a esta outra: poderia a Igreja decidir um dia a modificação da obrigação
do celibato, ou aboli-la?
Para não correr riscos na resposta a essa pergunta, deverá se partir do fato de que o
sacerdócio católico não foi estabelecido pelo Fundador da Igreja sobre os homens, que se
transformam e mudam, mas sobre o mistério imutável da Igreja e do próprio Cristo.
Alfons M. Stickler
CIDADE DO VATICANO