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O
s estudos que visam à compreensão da dinâmica dos
plantios ilícitos extensivos de cannabis não são abun-
dantes na literatura sociológica. Há um hiato significati-
vo que dificulta o conhecimento mais específico da cultura dessa
planta e das relações estabelecidas entre os atores envolvidos em
seu cultivo. Diversamente ao tratamento dispensado pela socio-
logia ao uso e ao comércio da maconha e do haxixe (BECKER,
2000; VELHO, 1998), produtos derivados da planta, não há estu-
dos clássicos e consagrados sobre a atividade agrícola.
É expressiva, não obstante, a quantidade de famílias e cam-
pesinos envolvida na cultura da cannabis em variados países1
(FRAGA, 2010). Apesar do incremento significativo do cultivo 1 A cannabis é produzida
hidropônico nos últimos anos e de outras formas não tradicio- mundialmente em quase
todas as latitudes. A África
nais de cultivar a erva, notadamente em países como Canadá, é o continente onde está
Estados Unidos, Inglaterra e outros, a cultura tradicional e con- localizada a maior parte
dos plantios. Trata-se da
vencional, desenvolvida de modo extensivo em superfícies, é a planta de cultivo ilícito mais
principal modalidade produtiva da planta. É a forma presente consumida no mundo.
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 4 - no 1 - JAN/FEV/MAR 2011 - pp. 11-39 11
em países que a exportam ou consomem seus produtos. Deman-
da um número expressivo de força de trabalho e seus cultivado-
res dependem de seu plantio para a sobrevivência. Há, inegavel-
2 O cultivo legal de papoula
está legislado pela Conven- mente, distinções marcantes nas formas de sociabilidades e nas
ção Única Sobre os Estupe- relações econômicas engendradas em decorrência das formas
facientes da ONU e outros
tratados, e é supervisionado de produção. As plantações extensivas envolvem, geralmente, a
por cada país produtor. Em- produção familiar e cunham institucionalidades específicas em
bora a folha de coca apareça
aí como substância proibida, diversos atores. Envolvem também o dispêndio de menos recur-
sua inclusão na lista recebeu sos para a sua realização, permitindo, assim, que trabalhadores
severas críticas, já que ela
tem importante papel para rurais mais pobres estejam inseridos no processo produtivo.
determinados povos andi- Nos últimos anos, entretanto, investigações desenvolvidas
nos. A controvérsia acarre-
tou uma renegociação do
por pesquisadores sobre os cultivos de cannabis em países afri-
parágrafo 2o do artigo 14 da canos vêm dando expressivas contribuições para a compreen-
Convenção das Nações uni-
das contra o Tráfico Ilícito de
são da dinâmica das relações sociais construídas e do impor-
Estupefaciente e Substân- tante papel que o cultivo representa para a economia familiar e
cias Psicotrópicas, de 1988,
e os usos tradicionais e eco-
para o desenvolvimento de regiões e de populações. As lavouras
nômicos legais passaram a de cannabis, diferentemente do que acontece com o cultivo da
ser levados em conta, desde coca e da papoula, outras duas importantes culturas agrícolas
que sejam tomadas medidas
para a erradicação do cultivo ilícitas, dispersaram-se geograficamente de forma mais rapida,
ilícito. A cannabis não possui podendo ser encontradas em todos os continentes. No entanto,
um uso legal convenciona-
do, ainda que seja vendida de maneira distinta das outras duas, trata-se da única cultura
nos coffee shops holande- ilícita sem um mercado lícito mais ampliado2.
ses, onde são permitidos o
consumo e a venda sob de- A literatura filosófica sobre a ação social também
terminadas condições, e em nos permite uma análise dos discursos sociopolíticos
alguns estados americanos,
onde a venda sob prescrição construídos ao redor das políticas sociais de segurança e
médica é liberada. para drogas. Resguardadas as diferenças internas, elas es-
3 Conquanto os três autores tão conformadas em três matrizes principais. Há aquelas
tenham posições díspares,
estão de acordo com o pa-
orientadas pelo paradigma liberal, que admitem a ação de
radigma liberal do papel do agentes racionais livres dirigidos pela realização ampliada
cidadão e da cidadania so- dos próprios interesses (John Rawls; Ronald Dworkin; Ro-
breposto ao do Estado na re-
gulação da vida sociopolítica. bert Nozick)3. Existem aquelas orientadas por uma leitura
4 São diferentes leituras do da construção dos interesses coletivos a partir do paradig-
comunitarismo, que têm em ma do reconhecimento (Michael Walzer; Charles Taylor;
comum a perspectiva dos di-
reitos no solo da comunida- Alasdayr Mcyntyre)4. E temos, além disso, aquelas que pro-
de humana e para as quais o põem uma composição entre as políticas de superação das
pertencimento e o reconhe-
cimento se tornarão catego-
desigualdades distributivas e as de reconhecimento, no li-
rias políticas indeléveis. mite, com o estabelecimento de novos horizontes sociopo-
5 Trata-se de um conjunto líticos (Michael Hardt, Antonio Negri; Jürgen Habermas;
de autores com poucas ca- Michel Foucault; Alan Badiou)5. Nossa leitura remeterá,
racterísticas em comum, ex-
ceto a proposição de leituras pelos limites deste artigo, especialmente ao último grupo,
alternativas à sociodinâmica cujos autores são referenciados nas considerações finais,
das sociedades complexas
do capitalismo avançado. apontando-se a necessidade de suas contribuições.
4.000.000
3.500.000
3.000.000
2.500.000
2.000.000
1.500.000
1.000.000
500.000
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
5. Considerações finais