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inedito-da-migracao-em-massa-da-america-do-sul

O MUNDO AGORA

América do Sul enfrenta desafio das


migrações em massa, pela primeira
vez em sua história
Publicado em: 27/08/2018 - 12:29Modificado em: 27/08/2018 - 15:09
Áudio 04:58Podcast
Refugiados venezuelanos com bagagens esperam para cruzar a fronteira entre o Peru e o
Equador. Tumbes 24 de agosto de 2018. REUTERS/Douglas Juarez
Por:Alfredo Valladão
A América do Sul está tão longe de todos os conflitos e problemas estratégicos do
mundo que não precisa se preocupar. Não é preciso tomar posições políticas
incômodas sobre as grandes questões de paz e guerra que afetam outros
continentes. O subcontinente americano sempre foi protegido pelas distâncias
oceânicas.

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Uma posição geopolítica confortável onde ninguém o ameaça e ele não ameaça
ninguém. Basta assistir de camarote às angústias dos outros e a violência de longínquas
guerras regionais, desfrutando o luxo de dar lições sobre o respeito do direito
internacional, dos direitos humanos e da soberanias nacionais. Posições de princípio,
mas sem assumir responsabilidades. Claro, a contrapartida é que a voz dos sul-
americanos é bastante irrelevante nos grande foros onde se decide o futuro do planeta.

Mas o mundo mudou. Não são só as crises econômicas globais que afetam
diretamente os nossos interesses. Pela primeira vez numa história de pesadas violências
domésticas mas pouquíssimas guerras entre Estados, a América do Sul está enfrentando
o desafio das migrações de massa. Um problema que até hoje, era só dos países ricos do
Atlântico Norte, do mundo árabe, dos Estados falidos africanos e de vários Estados
asiáticos. Com quase dois milhões e meio de venezuelanos que buscaram refúgio nos
países vizinhos nos últimos quatro anos, e dezenas de milhares que continuam
chegando, não dá mais para contentar-se com boas intenções e retóricas pomposas.
Decisões terão que ser tomadas e não é fácil combinar as responsabilidades
humanitárias com as exigências de segurança.

Esse dilema não é nada novo para o resto do mundo. A Europa não sabe como
administrar a onda de imigrantes e refugiados africanos que continuam arriscando a vida
para atravessar o Mediterrâneo sonhando que vão aportar no Eldorado. Os governos do
Líbano e a Jordânia estão paralisados pelas centenas de milhares de refugiados sírios e
palestinos que lotam acampamentos insalubres, sem esperanças de solução a médio
prazo. Países africanos subsaarianos paupérrimos não tem maneira de oferecer
condições de hospitalidade mínimas aos milhões de imigrantes que fogem de seus
estados falidos. E o que fazer com o mais de meio milhão de Rohingyas, vítimas de uma
verdadeira limpeza étnica na Birmânia?

O dever de assistência é um pressuposto moral incontornável

Claro, sempre houve imigrantes na história. Mas nesse mundo em crise, os


deslocamentos em massa só podem aumentar. O dever de assistência é um pressuposto
moral incontornável, mas milhões de pessoas desgarradas também viram um problema
político e de segurança. Pela simples razão que números tão grandes criam atritos
inevitáveis com as populações locais. Demagogos racistas e xenófobos utilizam essas
dificuldades para desestabilizar os governos democráticos dos países de acolhimento, ou
para justificar e implantar ditaduras repressivas. Brasil, Colômbia, Equador e Peru vão
ter que inventar um jeito de enfrentar esses desafios, sem atacar as liberdades públicas e
o dever de assistência.

Mas o problema, no mundo inteiro, não são só as atitudes do governos que recebem os
migrantes. Não dá mais para tapar o sol com peneira: a responsabilidade maior está no
colo dos governos dos países de origem. Não é possível aceitar que o regime
bolivariano, sentado na maior reserva de petróleo do planeta, possa continuar destruindo
completamente a Venezuela. A ponto de levar ao desespero milhões de cidadãos
fugitivos e de criar perigosas ameaças políticas nos países vizinhos. Como continuar
respeitando a falsa “soberania” de regimes corruptos africanos cujos cidadãos não tem
outra alternativa senão emigrar em massa?

O capítulo XII da Carta da ONU, prevê a possibilidade de colocar territórios sob tutela
internacional. Se os êxodos continuarem, alguém vai ter que assumir a responsabilidade
de invocar essa cláusula. É óbvio que nenhum governo hoje está disposto a encampar
soluções deste tipo que seriam imediatamente rotuladas de “colonialismo”. Mas as
alternativas serão, ou bem massacres xenófobos generalizados, ou bem o lento
derretimento dos regimes democráticos junto com guerras e intervenções cada vez mais
sangrentas.

Alfredo Valladão, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, faz uma crônica de


política internacional às segundas-feiras para a RFI

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