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Capítulo Críticas

à escola

Uma das mais radicais críticas feitas à


escola tradicional talvez esteja na denún­
cia do seu caráter autoritário. A escola
hierarquizada, magistrocêntrica, esclero­
sada em modelos, impregnada de dog•
mas e regras é identificada de modo pe­
jorativo a uma "escola-quartel". A partir
daí, muitos pedagogos, desejosos de dar
outra orientação para a escola, voltam­
se menos para a questão dos métodos
e processos de ensinar, para enfatizar a
recusa do exercício do poder: a educa­
ção deve ser realizada em liberdade e
para a liberdade.
Nessa linha se posicionam pedagogos
das mais diversas tendências: muitos de­
les influenciados pelas correntes da psi­
cologia, sobretudo pela psicanálise de
Freud, outros que realizaram trabalhos
com crianças problemáticas, mas todos
preocupados em centrar o processo de
< Na foto, a aprendizagem no aluno, não no profes­
Universidade de
sor. Mas, se entre as diversas tendências
Sorbonne, um dos
palcos do movimento antiautoritárias alguns pedagogos seres­
estudantil de 1968, que tringem a uma visão baseada na psico­
se irradiou pelo mundo. logia, outros dão destaque aos aspectos
Mas as reivindicações
sociais e políticos e estendem suas críticas
não se restringiam à
educação; as críticas se
também à sociedade a que pertencem,
estenderam ao modelo havendo ainda quem concilie psicanáli­
político e social vigente. se e marxismo. Enquanto uns são típicos

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representantes da pedagogia liberal, ou- dos a instituições criadas para "proteger" e
tros partem de pressupostos socialistas e "orientar", mas que na verdade cerceiam as
anarquistas e, mais que reformar a esco- ações humanas. Saúde, nutrição, educação,
la, assumem a tarefa revolucionária de transporte, bem-estar, equilíbrio psicológi-
liberação das classes oprimidas. co, comunicação, ao serem colocados nas
. Vejamos como essas diversas tendên- mãos dos especialistas e tecnocratas, reti-
. · cios podem ter influenciado, direta ou ram dos indivíduos a capacidade de decidir
indiretamente, as teorias pedagógicas por si mesmos. Desse modo, a separação
não-autoritárias. entre os "competentes" e os "incompeten-
tes" infantiliza a pessoa, sempre dependen-
1. Uma proposta radical: te de especialistas e incapaz, ela mesma, de
a desescolarização gerir sua própria vida, de educar seus filhos
e até de consertar qualquer engenhoca de
Temos analisado as diversas faces que a que se utiliza no seu mundo repleto de má-
escola adquiriu no correr da história, até o qumas.
presente momento. Vivemos uma crise mui- Mais ainda, o progresso estaria provo-
to séria e nos preocupamos em saber qual cando o consumo desordenado, resultado
. será o destino da instituição escolar. A dé- da criação ilimitada de novas necessidades .
. cada de 1970 foi fértil em críticas à escola e Todas as exigências naturais são transfor-
.propostas para alterar esse quadro sombrio. madas em procura de produtos manufatu-
.· · Fazendo coro com essa tendência, Ivan Illi- rados e, portanto, artificiais: hoje em dia
. eh apresenta uma proposta aparentemente ter sede não é precisar beber água, mas
mais radical: por que ,pão; "desescolarizar" comprar um refrigerante qualquer. O au-
a . sociedade·? '.Para ·ele a solução da crise tomóvel, esperança de economia de tem-
I?-ão .estaria em promover reformas de mé- po, gerou os engarrafamentos das grandes
. todos ou ç1;1r:ríé{ilos, nem simplesmente em cidades e a poluição do ar. Sufocado pelas
'de.nunci~:t o elitismo, mas em questionar o máquinas que ele próprio ajudou a criar, o
. -.;. fato aceito universalmente de que a escola indivíduo é um "aprendiz de feiticeiro" que
·é o único e melhor meio de educação. Me- não consegue mais controlar os efeitos da
lhor seria se ela fosse destruída. "mágica" desencadeada.
Ivan Illich (1926-2002), nascido na Áus- Em um mundo marcado pelo controle
tria, foi padre por um tempo, mas abando- das instituições, a escola escraviza mais que
nou a vida eclesiástica para evitar sanções a família, devido à estrutura sistemática e
. do Santo Oficio. Viveu em Nova York, foi organizada, à hierarquia, aos rituais das
vice-reitor em Porto Rico e, finalmente, fi- provas e ao mito do diploma. Uma socieda-
xou-se em Cuernavaca, no México, onde de assim estruturada desconsidera o autodi-
fundou uma universidade livre. Escreveu data e encara com desconfiança aquele que
inúmeros artigos e livros, entre os quais So- quer aprender por si próprio.
ciédade f §n;t e~colas, publicado em 1970. A escola agrupa pessoas segundo a idade,
a partir de três premissas consideradas in-
A sociedade institucionalizada questionáveis: o lugar das crianças é na es-
cola; as crianças aprendem na escola; só se
Para Illich, um dos grandes mitos de podem ensinar as crianças na escola. Ora,
nossa época está na crescente instituciona- aqueles que pensam assim esquecem que o
lização: todos os nossos passos são submeti- sistema escolar é um fenômeno moderno,

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como também o conceito de "ser criança" lógico provoca alienação, Illich desmistifica o
(ver capítulo 6). Portanto, a infância "artifi­ ideal de progresso e de consumo insaciável. O
cial" é uma conseqüência da escolaridade símbolo daquele que afronta o destino é Pro­
obrigatória e prolongada. meteu, um dos titãs da mitologia grega que
Segundo Illich, não é verdade que as roubou o fogo dos deuses e o ofereceu aos
crianças aprendem na escola. Ao contrá­ seres humanos. Nesse mito, o fogo simboliza
rio, os alunos realizam a maior parte de seu a técnica e, portanto, a capacidade humana
aprendizado fora dela. '½.prendemos a fa­ de transformar a natureza. Ora, para Illich é
lar, pensai� amar, sentir, brincar, praguejar, importante abolir o mito prometéico, a fim de
fazer política e trabalhar sem interferência limitarmos nossa ambição, reduzir as aspira­
de professor algum 1." ções e não afrontar tanto a natureza, respei­
Por fim, quando se diz que só se pode tando a ordem nela inscrita.
ensinar na escola, são criadas expectativas Para isso é preciso destruir a megamá­
prejudiciais, já que a escola promete o que quina. As pessoas poderiam, por exemplo,
não é capaz de cumprir. Afastada do mundo viver bem sem o automóvel, preferindo a
da produção, vive o paradoxo de querer bicicleta, que é mais saudável e mais fácil
preparar para o mundo ao mesmo tempo de consertar, não polui o ar e permite que
que corta os contatos com ele. Encarcera­ a paisagem seja mais bem apreciada. Evi­
das nas escolas pela exigência da freqüên­ dentemente, ao fazer a crítica às socieda­
cia obrigatória, as crianças ficam à mercê des industrializadas avançadas, lllich beni
do poder arbitrário dos professores. Aí elas sabe que elas não teriam como reverter
se curvam à obediência cega, desenvolvem esse quadro perverso. No entanto, pensa
uma atitude servil e o respeito pelo relógio. ser possível advertir os dois terços do globo
É a aprendizagem perversa da hierarquia. que ainda não foram plenamente indus-;
Ao criticar nossa sociedade, produti­ trializados, a fim de evitar os maleficios:da
vista e burocratizada, em que o indivíduo destruição da natureza, da·, sociedade e da
fica reduzido a consumidor passivo, Illich imaginação. Por isso suas espera�ças se di­
acusa a escola de ser cúmplice desse estado rigem aos países em via de desenvolvimento.
de coisas. Ela ajuda a alimentar o mito do Embora reconheça que a vida em socie­
progresso, da competência, do consumo. dade seria impossível sem as instituições,
Ainda mais: ao mesmo tempo que cria nas faz uma nítida distinção entre as manipula­
pessoas o anseio de atingir os altos escalões tivas e as conviviais. As primeiras são as que
da hierarquia escolar simbolizados pelo di­ merecem suas críticas, pois não estão mais
ploma, exclui a maioria delas, perpetuando a serviço das pessoas, mas contra elas, cons­
as desigualdades sociais. A enorme massa tituindo-se "falsos serviços públicos" volta­
sem acesso à escola acha-se inferiorizada e dos para os interesses econômicos de alguns
despojada de sua auto-estima. privilegiados. As segundas seriam interati­
vas, por permitirem o intercâmbio entre as
Sociedade sem escolas pessoas com a condição de qu<'; tod.tsman­
tenham sua autonomia.
O que, afinal, Illich propõe como substitui­ Ao simplificar a forma de vida, as ins­
ção à escola que ele quer destruir? Ao consta­ tituições conviviais proporcionariam me­
tar que o vertiginoso desenvolvimento tecno- lhor interação familiar, criando autênticas

1
Ivan Illich, Sociedade sem escolas. 2. ed. Petrópolis, Vozes, l 973, p. 58.

Críticas à escola 243


comunidades. Illich chama de convivialidade res contemporâneos. Illich não inovou ao
a criação de "redes de comunicações cultu- criticar a escola; o grande impacto resulta
rais" que facilitariam o encontro de pessoas da solução dada ao problema, ao conceber
interessadas no mesmo assunto. uma teoria que instiga a imaginação e a re-
Então, o inverso da escola se tornaria beldia contra o que aí está. O que ele pôs
possível. Essas redes não seriam escolas - em dúvida foi justamente a escola como ins-
por não terem programas preestabelecidos tituição, ao se perguntar se ainda ela seria
nem reconstituírem a figura do professor - o melhor meio de educação. Respondendo
e proporcionariam apenas a troca de expe- negativamente, justifica-se acusando a es-
riências, com base na aprendizagem auto- cola de ser uma instituição "manipulativa"
motivada. "Desescolarizar significa abolir e, portanto, dispensável.
o poder de uma pessoa de obrigar outra a Não deixa de ser interessante a ênfase
freqüentar uma reunião. Também significa dada à multiplicação dos contatos do estu-
o direito de qualquer pessoa, de qualquer dante com o mundo, por meio das redes de
idade ou sexo, de convocar uma reunião 2 ." convivialidade, o que sugere uma sociedade
O recurso ao computador seria indispen- globalmente educativa. No entanto, alguns
sável, por facilitar a localização dos parceiros reparos ao seu projeto podem ser feitos 3 •
a partir de interesses revelados. Haveria tam- A crítica de Illich destina-se à escola
bém o auxílio do sistema de correios, bem estritamente tradicional, mas é tão exage-
· como de uma rede de boletins informativos rada que parece ignorar as contribuições
· ou anúncios classificados de jornais. progressistas que vêm ocorrendo desde o
lllich refere-se a quatro diferentes abor- final do século XIX. Além disso, se por um
dagens que permitem ao estudante o acesso lado é pertinente a crítica antitecnocrática
q. qualquer recurso educacional: e antiburocrática feita às instituições escle-
• serviç.o de consulta a objetos educacio- rosadas, que deixaram de servir aos fins
>nais armázenados em bibliotecas, laborató- propostos, por outro lado Illich não con-
rios, museus, teatros, ou ainda nas fábricas, segue explicar bem como deve ser feita a
aeroportos ou fazendas; reversão para a convivialidade, recorrendo
• intercâmbio de habilidades (o que per- a conceitos pouco definidos e às vezes su-
mite às pessoas oferecer seus serviço~); perficiais. Falta ao seu projeto uma funda-
• encontro de colegas (parceiros interes- mentação teórica mais bem definida, e a
. sados no mesmo tipo de pesquisa); sua crítica não é propriamente política, já
· • serviço de consulta a educadores em que ele não questiona as causas das divisões
geral, agora despojados de seu autorita- sociais que tornam perversas a técnica e as
. rismo e limitados ao importante papel de instituições.
aconselhamento e orientação. A ausência de aprofundamento agrava-
se porque Illich se restringe a uma análise
Avaliação da proposta de apenas formal das institu.ições, sem refletir
de~escolarização sobre o seu conteúdo. A esse respeito, diz
o espanhol Jesús Palacios: "Não pensamos
A desescolad~ação foi um projeto provo- que o problema deva situar-se em nível de
cador que me~eceu a atenção dos educado- supressão das instituições - que é o nível

2
lvan Illich, Sociedade sem escolas, p. 153.
3
Consultar Georges Snyders, Escola, classe e luta de classes. São Paulo, Centauro, 2005.

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formal - , mas sim de um novo tipo de re- seria substituída pelo ensino em rede iguali-
lações que devem instaurar-se no seio des- tária, repousa na ingenuidade de supor que
sas instituições e em nível do novo papel o sistema de redes escaparia à pressão e às
que as instituições devem exercer na vida contradições dos interesses estabelecidos.
social. Nesse sentido, a proposta desesco- O grande risco do não-diretivismo e do
larizadora nos parece idealista e sem pers- ideal de convivialidade está em que os alu-
pectiva política. (... ) Como assinalaram nos se encontrariam abandonados a formas
alguns autores, a desescolarização é um conservadoras de pensar e viver, impregna-
slogan vazio e a 'escola' sonhada por Illich é das da ideologia da classe dominante. Para
justamente uma 'escola sem sociedade' 4 ". evitar isso, apenas um corpo docente crítico
Podemos concordar com Illich quanto e experiente teria condições de provocar um
ao "mito da competência", por meio do questionamento profundo e radical, muitas
qual o saber do especialista retira a iniciati- vezes doloroso e demorado.
va das pessoas e resulta em poder de mani-
pulação das massas. Mas é preciso reconhe- 2. Pedagogias não-diretivas liberais
cer que o saber especializado pode aliviar o
esforço humano e que a ciência e a técnica, A educação centrada no aluno, típica
quando bem utilizadas, só podem ajudar o da escola renovada, é levada até as .últimas
indivíduo a sair da privação e da penúria. conseqüências nas pedagogias antiautori-
Afinal, pela primeira vez na história da hu- tárias, típicas representantes do pedoceri-
manidade vislumbrou-se a possibilidade de trismo rousseauniano, sobretudo quanto
emancipação dos seres humanos por meio à recomendação da "educação negativa":
da técnica. Não se trata, então, de rejeitá- o professor não comanda o processo de
la devido aos riscos de alienação, mas sim aprendizagem, mas é antes um "facilita-
de utilizá-la mais adequadamente, em seu dor" da atividade do aluno. Embôr?I, µajh. ·
beneficio. Se é verdade que também Illich diferenças entre as diversas propo~t,Ís, pre~ ·
pensa assim, a solução que propõe não dei- domina a não-diretividade, pela qual o mestre
xa de ser ingênua, já que desvinculada da não dirige, mas cria as condições de atua- .
referida perspectiva política. ção da criança. Com isso, quer-se evitar
Por isso a principal crítica à proposta de toda e .qualquer hierarquia que propicie o
lllich refere-se à dimensão individualista de exercício indevido do poder. Daí derivam
seu projeto, que despreza uma análise mais diversos cuidados, que veremos a seguir.
profunda dos conflitos sociais. Na verdade, O conteúdo a ser analisado na escola não
ele propõe uma revolução moral, empe- pode ser dogmático, no sentido de expres-
nhada em conscientizar os indivíduos para sar verdades "doadas" externamente, nem ·
a mudança e em converter cada um. pode resultar de exposição "magistral" (do
É nesse sentido que Illich, temendo os professor), mas precisa ter ressonância nos
riscos do autoritarismo do professor, pro- interesses dos alunos, isto é, não pode estar
põe uma não-diretividade na qual as pes- desligado de sua experiência de vic,la1 ..

soas estariam entregues às forças espontâne- Coerente com as críticas feitas ao ensi-
as de seu auto-interesse. Ora, o ideal de con- no tradicional, de que existe uma grande
vivialidade, segundo o qual a desigualdade distância entre o que o professor ensina e
existente no nosso sistema de escolarização o que o aluno aprende de fato, a metodolo-

4
La cuestión escola1; críticas y alternativas. Barcelona, Laia, 1978, p. 629.

Críticas à escola 245


gia não resulta de caminhos pré-estipulados se transforme em uma "comunidade de
pelo professor, mas se baseia na autogestão. aprendizagem".
Ou seja, valoriza-se apenas a aprendiza- Rogers desenvolveu os T-group (training
gem auto-iniciada e autoconsumada, bem group, dinâmica de grupo), formados por dez
como as "comunidades de aprendizagem", a quinze pessoas interagindo sob a observa-
cuja direção é dada pelo próprio grupo em ção de um monitor, que intervém o mínimo
discussões, encontros e assembléias, meios possível. Sua função é dissolver as relações
·que aumentam a coesão do grupo e ajudam de autoridade que decorrem da compulsão
a trabalhar melhor os conflitos. das pessoas em mandar ou obedecer. Nesses
Com relação à avaliação, desprezam-se os grupos, o professor não dá preleções, mas
seus clássicos instrumentos (exames, qualifi- fala ou avalia trabalhos quando solicitado
cações, notas), mesmo porque, não havendo pelos alunos. Ele é apenas um "facilitador"
"matéria transmitida", não há como "to- do processo e, como tal, oferece recursos,
mar a lição", entendido esse processo como como livros, artigos, meios audiovisuais
exercício de dominação. Prefere-se a auto- para a consulta dos alunos.
avaliação, que nasce da aprendizagem da Ao recusar as acusações de espontaneís-
autocrítica e da responsabilidade. Com isso mo, Rogers pondera que, apesar de tudo,
são descartados também os procedimentos há limites para a liberdade, limites estes
burocráticos, abominados pelos libertários impostos pelas exigências mesmas da vida,
'-· p-o r serem considerados instrumentos de como, por exemplo, o fato de um médico
·poder. precisar aprender química, um engenheiro,
·A disciplina resulta da autonomia e nunca é fisica etc.
.imposta externamente; nada de prêmios, cas- Outro grande representante do não-di-
>/~os ou qualquer tipo de sanção artificial. retivismo foi o inglês Alexander Sutherland
Neill (1883-1973), que durante meio século
Principais representantes dirigiu a famosa escola de Summerhill. Fun-
dada em 1927, essa escola recebeu crianças
Carl Rogers (1902-198 7), psicólogo clíni- do mundo inteiro e continuou funcionando
co americano versado em psicanálise, apli- após a sua morte.
cou na educação os procedimentos usados Diferentemente de outros antiautoritá-
na terapia, segundo os quais o indivíduo é rios, N eill teve formação de esquerda, por
capaz de resolver por si só seus problemas, isso era muito clara para ele a idéia de que
bastando que tenha autocompreensão ou a escola tradicional, por ser fruto do siste-
percepção do eu. Como esta percepção não ma capitalista, é repressora e usa de autori-
se alcança automaticamente, o educador tarismo para obrigar a criança a se adaptar
deve, não propriamente dirigir, mas criar a uma sociedade doente, marcada pela di-
condições para que o aluno seja capaz de se visão entre ricos e pobres.
guiar por conta própria. Leitor de Wilhelm Reich, cuja teoria
N.o processo pedagógico, Rogers enfa- concilia Freud e Marx, estava atento às for-
tiza asrieçtos importantes da terapia, tais mas de repressão da vida sexual, às restri-
como a empç1,tia e a ;confiança. Ao contrá- ções que a sociedade autoritária faz aos ins-
rio da escola tradicional, considera o ato tintos, impedindo pelo medo o desenvolvi-
educativo essencialmente relacional e não mento dos mecanismos de auto-regulação.
individual, daí a importância dos intercâm- Leitor de Freud, estava convicto de que a
bios, para que o grupo, com seu professor, educação não deve reprimir as emoções e

246 Filosofia da educação


que é preciso preparar as crianças para se- Alguns autores, no entanto, vêem com
rem adultos felizes. reservas certas práticas educativas das pe-
Em Liberdade sem medo, seu livro mais co- dagogias não-diretivas liberais por iguala-
nhecido, relata a experiência efetuada na rem inadequadamente professor e aluno e
citada escola de Summerhill, freqüentada por descuidarem da transmissão da cultu-
por não mais que setenta alunos ao todo e ra acumulada. Um desses severos críticos
na qual foram abolidos os exames e a obri- é Georges Snyders 6 , que aborda a questão
gatoriedade de assistir às aulas. Ali, as ques- em diversos livros. Essas tendências são cri-
tões de disciplina se resolvem na assembléia ticadas pelo excessivo pedocentrismo e por
geral, em que os próprios alunos decidem não evitar o individualismo. Nas teorias em
as regras da comunidade. que predomina a análise psicológica, recri-
Preocupado com a liberdade e o amor, mina-se o descuido nas causas sociais das
mais com o coração do que com a cabe- diferenças de classe.
ça, Neill dava pouca importância às au- Mesmo quando existem preocupações
las, sempre optativas, nunca obrigatórias. sociais, ainda haveria um risco em deixar
Para ele, constranger uma criança a estu- os alunos às suas inclinações imediatas,
dar alguma coisa tem a mesma força auto- aos seus desejos ou àquilo que poderíamos
ritária de um governo que obriga a adotar chamar de sua experiência empírica. Nem
uma religião. Se educarmos as emoções, o sempre eles saberão livrar-se sozinhos da
intelecto se cuidará por si. Pesquisas rea- rede de pressupostos e preconceitos que ca-
lizadas com ex-alunos quando já adultos racterizam a ideologia, necessitando, por-
mostraram que eles nem sempre pros- tanto, da atuação efetiva do professor.
seguiam nos estudos, mas geralmente se
tornavam pessoas tolerantes, espontâneas 3. Teorias anarquistas
e sinceras. No entanto, estatí~ticas ingle-
sas verificaram que a grande maioria dos O movimento anarquista ou libertário, embo-
ex-alunos de Summerhill vota "de forma ra tenha raízes antigas, nasceu no mesmo
conservadora; como a escola abdicou de bojo das teorias socialistas do século XIX.
uma formação política, essa foi feita pela Etimologicamente, a palavra anarquia vem
mídia" 5 • do grego archon, "governante", e an, "sem":
"sem governante". Daí o seu princípio fun-
Avaliação do não-diretivismo damental, que elege modos alternativos de
organização voluntária, cooperativa e par-
As teorias antiautoritárias foram impor- ticipativa em oposição ao Estado, conside-
tantes para o questionamento do exercício rado nocivo e desnecessário.
do poder, que nas suas formas sutis camufla Seus representantes foram Joseph Prou-
a repressão e transforma a escola em instru- dhon (1809-1865), Mikhail Bakunin (1814-
mento de doutrinação. É louvável o esforço 1876) e Pierre Kropótkin (1842-1912).
em favor de encaminhar as crianças para a Contemporâneos de Marx, partilham as
felicidade, superando as relações marcadas mesmas críticas à sociedade capitalista e
pelo medo e pela opressão. visam à abolição da ·propriedade privada

5 Segundo Carlos Díaz, apud Silvio Gallo, Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba, Ed. Uni-
mep, 1995, p. 173, rodapé.
6
Consultar, no capítulo 16, o item sobre as teorias progressistas.

Críticas à escola 247


dos meios de produção, mas divergem dele nando-se também operários manuais". Es-
quanto ao modo de implantação da socie- tamos diante de um conceito caro e funda-
dade comunista, pois negam toda expressão mental no anarquismo, ou seja, a autogestão,
autoritária de poder. Criticam, portanto, a em que fica abolida toda e qualquer hierar-
proposta marxista de implantar a ditadura quia e imposição de autoridade. Portanto, a
do proletariado como processo de transição autogestão também pode ser implantada na
até o comunismo (ver capítulo 12). escola: é o que veremos a seguir.
Os anarquistas recusam o Estado, a Igreja
ou qualquer instituição que dificulte a eman- A autogestão pedagógica
cipação humana. Naturalmente capaz de vi-
ver em paz <:;om seus semelhantes, o indiví- O conceito de autogestão não é simples,
duo poderia realizar "a ordem na anarquia", nem teve o mesmo significado entre as di-
pois essa é a ordem natural, enquanto nas versas pedagogias antiautoritárias e não-di-
instituições a , ordem é artificial e, por isso, retivas. Em um primeiro momento, pode-
geradora de hierarquia e dominação. mos compreendê-lo em oposição à hetero-
As organizações anarquistas, fundadas gestão, típica das sociedades baseadas em
na cooperação voluntária e na autodisci- um núcleo de poder de onde emanam as
pliria, são, portanto, não-coercitivas. Para leis e as regras, cabendo aos demais aca-
tanto, é estimulada a relação direta, em tá-las, como acontece hoje em dia. Mes-
que às decisões são tomadas inicialmente mo que consideremos a possibilidade da
nos níveis mais simples, para depois serem expressão das divergências nas sociedades
ampliadas em instâncias mais complexas. ditas democráticas, o que se destaca nessa
· Com relação à política, por exemplo, as dis- idéia de heterogestão é que o Estado repre-
.:_:,cussões começariam no local de trabalho e senta um poder fortemente solidificado. E,
: nos bairros, e continuariam nas instâncias no caso da escola, existe a expectativa de
-' superiores, já que as decisões são sempre que o Estado se incumba da instalação, do
pessoais, sem intermediários. Desse modo, financiamento e da regulamentação do en-
, os anarquistas criticam a democracia parla- sino público.
mentar, representativa, preferindo a demo- Assim, a questão primeira que se colo-
cracia direta. Quando ocorre a necessidade ca para o pedagogo anarquista é recusar a
. d_e convocar assembléias, os delegados são função do Estado como mediação necessá-
· escolhidos por tempo limitado e têm seu ria, sobretudo porque os interesses do poder
mandato sujeito à revogação a qualquer não visam à educação unitária e universal,
momento. A idéia é sempre evitar o fortale- já que está imerso na ideologia liberal e ser-
cimento de focos individuais de poder. ve à elite. Para tanto, devem ser construídas
Além da crítica ao Estado e à Igreja, os alternativas pedagógicas. Segundo Silvio
anarquistas pregam a supressão da proprie- Gallo, "no paradigma anarquista, a edu-
dade privada dos meios de produção, que cação pública não é e nem deve ser uma
s~tja substituída por organizações de sujeitos função do Estado, mas sempre uma respon-
livrés:. n~ -~omuna livre e em empresas dirigi- sabilidade da comunidade, da sociedade.
das col~tivãmente. Segundo Bakunin, essas Assim, cada grupo social deve auto-organi-
empresas podem ser "tanto industriais e agrí- zar-se para constituir seu sistema de ensino,
colas como científicas e artísticas, o operário definindo-lhe os conteúdos, a carga horária,
tornando-se, ao mesmo tempo, homem de a metodologia, os processos de avaliação,
arte e de ciência, e os artistas e os sábios tor- etc., sempre num regime de autogestão".

248 Filosofia da educação


Em seguida, Gallo examina o conceito de No entanto, uma questão se coloca:
autogestão em diversas tendências, para con­ Como instaurar a autogestão pedagógica
cluir, com Henri Arvon, que "a única visão em uma sociedade capitalista heterogestio­
verdadeiramente completa da autogestão, nária? Assim responde Gallo: "Não poden­
aquela que busca explorar todas as suas po­ do jamais fugir da sociedade na qual está
tencialidades é a anarquista" 7• inserida, a educação anarquista deverá agir
Entre os teóricos anarquistas, destaca-se no capitalismo não através da instauração
Bakunin, a quem já nos referimos a res­ imediata da autogestão ( ...), mas sim atra­
peito das organizações de sujeitos livres na vés de uma progressiva construção da pos­
comuna livre e em empresas dirigidas co­ sibilidade da autogestão, de uma cada vez
letivamente. Também na escola ele propõe mais efetiva aproximação a ela. A constru­
a auto-organização dos estudos por parte ção dessa possibilidade implica, necessaria­
do grupo. Mas, se conferirmos as idéias de mente, a destruição paulatina de determi­
Bakunin, verificaremos que ele foi contra, nadas características do capitalismo, o que
explicitamente, a educação negativa de obviamente não tem a menor possibilidade
Rousseau, mentor das pedagogias não-di­ de acontecer da noite para o dia" 8•
retivas que surgiram no século XX.
Para Bakunin, o início do processo de A escola libertária de Ferrer
educação das crianças não dispensa a au­
toridade, ou seja, elas não devem ficar à O espanhol Francisco Ferrer i Guàrdia
deriva, porque a liberdade não se encontra (1859-1909) foi um apaixonado defensor
no ponto de partida, mas no de chegada, da liberdade. Sofreu influência de pensa­
isto é, ela deve ser construída pelos próprios dores anarquistas, de Godwin a Kropó­
alunos, nas relações travadas no cotidiano tkin, passando por Bakunin e pelos socia-
escolar. Enfatiza, no entanto, que na edu­ listas utópicos, mas relutava em aceitar
cação de adultos não se deve recorrer à qualquer rótulo de sua atuação política.
autoridade, a fim de evitar a manipulação Herdou do racionalismo iluminista a espe­
política. Por isso, de acordo com a interpre­ rança de construir um mundo sem supers­
tação bakuniniana de autogestão, o antiau­ tição e dogmas, e do positivismo o reco­
toritarismo na educação não se identifica nhecimento da importância da ciência no
a não-diretivismo. Gallo completa: ''Assim mundo contemporâneo.
como a não-diretividade implicaria a ino­ Criticava a atuação do Estado e da
cente submissão das crianças a desejos ex­ Igreja na educação e, para implantar suas
ternos mais fortes que o delas, gerando na idéias, fundou a Escola Moderna de Bar­
verdade indivíduos politicamente manipu­ celona, freqüentada por ricos e pobres,
láveis pela mídia, a pedagogia antiautoritá­ dos quais cobrava conforme as posses dos
ria de Bakunin busca fortalecer o desejo, a alunos, vindos de famílias das mais diver­
consciência e a autonomia dos indivíduos, sas ideologias.
de modo que sua ação social futura seja a Ainda ao contrário das demais tendências·
confirmação de uma liberdade conquistada antiautoritárias, Ferrer defendia a 3.tdâção
e conscientemente assumida" (consultar a mais efetiva do professor nos primei�os anos,
lei Lura complementar adiante). para só depois se tornar menos diretiva.

; Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba, Ed. Unimep, 1995, p. I 49 e 159.
" Sílvio Gallo, Educação anarquista: um paradigma para hoje, p. 2 J 8.

Críticas à escola 249


Diante do desafio da formação do corpo passam as dimensões da pessoa, buscando
docente, fundou uma escola para orientar uma análise "de campo", influenciada pela
os professores quanto aos novos métodos e sociologia.
conteúdos e montou a biblioteca da escola Os elementos comuns à pedagogia insti-
com livros especialmente escritos, traduzi- tucional são a oposição à escola tradicional,
dos ou adaptados. a negação de todo recurso de coerção, a
Diferentemente do reformismo e do in- proposta de autogestão, a influência da pe-
dividualismo da escola renovada, o revolu- dagogia renovadora de Célestin Freinet, as
cionário Ferrer destacou o papel social da experiências comunitárias de Summerhill,
escola no projeto mais amplo das transfor- a psicanálise de Freud, o caráter fronteiriço
mações políticas. Ao se dedicar a incansá- entre o educativo e o terapêutico e a estreita
vel militância, provocou o temor de setores relação entre o pedagógico e o político 9 •
reacionários, o que culminou com seu fuzi- Michel Lobrot, um dos mais significati-
lamento. vos representantes da pedagogia institucio-
nal, assim enuncia o princípio fundamental
A pedagogia institucional da autogestão: "O princípio consiste em
confiar aos alunos tudo o que é possível lhes
Os principais representantes da chama- confiar, isto é, não a elaboração dos progra-
eia pedagogi,a institucional são Michel Lobrot, mas ou a decisão dos exames, que não de-
· ·Fernand Oury e Aida Vásquez. pendem nem do docente nem de seus alu-
Antes, porém, uma observação. Quan- nos, mas o conjunto da vida, das atividades
.do falamos em instituição, entendemos logo e da organização do trabalho dentro desse
.de pronto as formas sociais enquanto assu- âmbito".
-._m em uma organização duradoura, como a Tal como Rogers, afirma que o professor
escola, o casamento, a família, o direito, e deve intervir só quando solicitado e, mes-
assim por diante. No entanto, esse sentido mo assim, cabe a ele a dificil tarefa de saber
está muito distante do conceito que evi- quando a pergunta de um aluno é pertinen-
dentemente interessaria a um pedagogo te ao grupo. Caso não seja, deve calar-se.
antiautoritário. Este entende o conceito Aliás, para exercer a desafiadora prática da
· de instituição a partir do caráter dinâmico ausência do poder, o mestre precisa apren-
de qualquer agrupamento humano, em der, com prudência e humildade, a silenciar
que descobrimos dois sentidos: o primeiro sempre que possível: o silêncio sistemático e
destaca o já instituído, que, como tal, pode prolongado é a concretização da não-dire-
· estar cristalizado; o segundo é o sentido tividade.
de organização instituinte, capaz de revelar as As clássicas tarefas do professor passam à
contradições do processo de se fazer, justa- responsabilidade do grupo, porque a noção
mente porque as forças instituintes sempre de autogestão supõe a atividade instituinte
trabalham no esforço de vencer a inércia do dos alunos. Realçando a dinâmica dessas
instituído, a fim de criar o novo. relações, Lobrot critica severamente a bu-
· Per estar voltada para a atuação do indi- rocracia, típica expressão do poder que, ao
víduo co,,;;,ô pertenc.ente_ ao grupo, essa tendência instaurar a hierarquia, coisifica as pessoas e
pedagógica ;p~~ie:n'ta elementos que ultra- cristaliza toda ação.

9
Segundojesús Palacios, La cuestión escolar, p. 252 e seguintes.

250 Filosofia da educação


O anarquismo no Brasil dos com o ideário anarquista, destacam-
se os professores Sílvio Gallo (ver leitura
Com a vinda dos imigrantes, sobretudo complementar), Margareth Rago, Edson
italianos e espanhóis, as idéias anarquistas Passetti.
fertilizaram o movimento operário com
a organização sindical e a divulgação das Avaliação das pedagogias
concepções libertárias por meio de jornais antiautoritárias
e outras atividades culturais, como centros
de estudos, bibliotecas e escolas, que flores- Os movimentos libertários muitas ve-
ceram principalmente nas primeiras déca- zes têm dificuldade em manter viva sua
das do século XX. atuação pelo próprio espírito que emana
Contrários à intervenção do Estado e da de suas idéias, ou seja, por serem contrá-
Igreja, esses anarquistas criaram diversas rios a toda burocracia, recusam o instituí-
escolas espalhadas pelo país, algumas de- do, negam a delegação de poder a repre-
las influenciadas pelas idéias de Ferrer. No sentantes e, portanto, geralmente não têm
final da década de 191 O, intensificou-se a como dar continuidade à organização.
repressão ao movimento operário e, conse- Além disso, as experiências libertárias,
qüentemente, à livre expressão dos ideais por serem vividas em sociedades burocra-
libertários. tizadas e hierarquizantes, não têm fôlego
Posteriormente, José Oiticica (1882- para prosseguirem, seja por problemas
195 7), professor universitário e do Colégio econômicos, seja por repressão pura e
Pedro II, no Rio de Janeiro, tentou aplicar simples. Afinal, como seria possível ins:-
em aula os princípios libertários. Além de taurar a autogestão em um sistema capi- .
teórico divulgador do anarquismo, foi ati- talista, caracterizado fundamentalmente
vista, o que o levou ao exílio. pela heterogestão?
Mais recentemente, Maurício Tragten- Manifestam-se em movimentos espontâ-
berg (1929-1998), de formação intelectual neos, alguns deles de muita força, tais como
autodidata não-tradicional, que defen- os notáveis acontecimentos de maio de
deu tese de doutoramento sem percor- 1968 na França. O conflito teve início nas
rer a trajetória comum de escolarização, instalações dos estudantes da Sorbonne, as-
aprofundou as discussões a respeito. Não sumiu proporções mundiais, alastrando-se
por acaso, em Burocracia e ideologia discute pelos quatro cantos do mundo como uma
o tema das relações de poder na escola. crítica profunda à instituição escolar e à ci-
Tradutor de Pistrak, também se inspira vilização contemporânea.
em Ferrer i Guàrdia. Jaime Cubero, igual- Ao denunciarem o afastamento do in-
mente de formação autodidata, divulgou divíduo comum dos centros de decisão, as
o anarquismo como jornalista e participou idéias anarquistas privilegiam as palavras-
ativamente do Centro de Cultura Social chave autonomia, diálogo e autogestão. Como
de São Paulo, preparando jovens para a vimos, o ideal da escola anarquista, no con-:-
melhor compreensão dessa filosofia e para texto da sociedade capitalista, visa a mos-
a militância. Fora dos meios acadêmicos, trar que uma outra e~ucação ~.'possível e
tem sido importante a atuação de Rober- que essa educação, aé/consfrufr nova men-
to Freire, psiquiatra, escritor e criador talidade, está comprometida com a supera-
da Soma, uma terapia anarquista. Além ção das condições de desigualdade impos-
destes, entre outros estudiosos identifica- tas pela economia liberal.

Críticas à escola 251


4. Teorias crítico-reprodutivistas é uma ilha separada do contexto social; ao
contrário, o sistema social marca os indiví-
É comum as pessoas desejarem que seus duos submetidos à educação de maneira
filhos freqüéntem a escola para que "sejam inevitável e irreversível. Ao abordar essa
alguém na vida", sobretudo se pertencem influência, os autores criticam aqueles que
às classes menos favorecidas. vêem a ação pedagógica como não-violen-
Essa visão otimista da escola como ins- ta, mostrando que, sob a aparência de neu-
trumento de equalização, ou seja, como tralidade, a escola dissimula uma verdadei-
meio de tornar iguais as chances para indi- ra violência simbólica.
víduos que pertencem a classes diferentes, Quando nos referimos à violência, é co-
também atraiu muitos teóricos da educa- mum a associação imediata com a violência
ção. Segundo eles, ao desfazer as injustiças material, por meio da qual as pessoas ou a
sociais, a escola seria uma alavanca do pro- natureza são agredidas fisicamente. Ha-
gresso e da democratização, bastando para veria violência, então, no ato de espancar,
isso que as pessoas tivessem ânimo e talento prender alguém numa prisão ou coagir, sob
para estudar. No entanto, os índices de re- ameaça de morte. Como expressões explíci-
petência e de evasão escolar estão aí para tas de violência, nelas se percebe claramen-
comprovar que a esperada universalização te a força exercida, ou seja, a violência sur-
.do saber não se cumpriu. ge mediante evidente coerção ou imposição
· . .. Nas décadas de 1960 e 1970, diversos de força fisica. Há, no entanto, a chamada
.teóricos franceses, refletindo sobre essa violência simbólica, exercida pelo poder de
. visão da escola, por diversos caminhos, imposição das idéias transmitidas por meio
·: chegaram à mesma conclusão: a idéia da da comunicação cultural, da doutrinação
. -' Yunção equalizadora da escola era ingênua, política e religiosa, das práticas esportivas,
'::porque, em vez de democratizar, a escola da educação escolar.
reproduz as diferenças sociais, perpetua o Enquanto no caso da persuasão conven-
._ ,:status quo e, por isso, é uma instituição alta- cemos alguém usando argumentos, aber-
. ·· mente discriminadora e repressiva. tos para a possibilidade de discordância
e, portanto, do pensamento divergente, a
Bourdieu e Passeron: a violência violência simbólica leva as pessoas a agir e
simbólica a pensar por imposição, sem se darem con-
ta dessa coação. Nesse sentido, a cultura e
Pierre Bourdieu ejean-Claude Passeron, os sistemas simbólicos em geral podem se
sociólogos franceses, influenciados pelo es- tornar instrumentos de poder quando legi-
. · truturalismo, sobretudo pelo lingüista Fer- timam a ordem vigente e tornam homogê-
. dinand de Saussure, escreveram juntos Os neo o comportamento social.
herdeiros (1964) e A reprodução (1970). Esses Para os autores, a escola constitui um
autores fizeram rigorosa crítica à instituição instrumento de violência simbólica por-
escolar ao analisar o fenômeno escolar a que reproduz os privilégios existentes na
pardr: .,dos condicionantes sociais, concluin- sociedade, beneficiando os já socialmente
do pelií·'fott,11 ..dependência da escola em re- favorecidos. O acesso à educação, o suces-
lação à sociedade. so escolar, a possibilidade de escolaridade
O mérito de Bourdieu e Passeron está prolongada até a universidade estão reser-
em desfazer a ilusão da autonomia absoluta vados àqueles cujas famílias pertencem à
do sistema escolar. Para eles, a escola não classe dominante, ou seja, aos herdeiros de

252 Filosofia da educação


sistemas privilegiados. Não cabe à escola esse tipo de justificativa representa uma for-
promover a democratização e possibilitar a ma de mistificação e de mascaramento das
ascensão social; ao contrário, ela reafirma verdadeiras causas do insucesso escolar. O
os privilégios existentes. A escola limita-se que essa "ideologia dos dotes" dissimula é
a confirmar e reforçar um habitus de classe. a imposição da cultura da classe dominan-
Habitus significa, para Bourdieu e Passeron, te sobre a classe dominada, levada a efeito
"uma formação durável e transportável, pela ação pedagógica.
isto é, [um conjunto de] esquemas comuns Essa imposição só é possível porque a au-
de pensamento, de percepção, de aprecia- toridade pedagógica tem o poder de aplicar
ção e de ação" 'º. sanções, o que determina o reconhecimen-
Os habitus são inculcados desde a infância to da cultura dominante. Daí a importância
por um trabalho pedagógico realizado pri- do trabalho pedagógico, pelo qual é incul-
meiro pela família e, posteriormente, pela cada a pretensa universalidade dos modos
escola, de modo que as normas de conduta de pensar, agir e sentir de um grupo.
que a sociedade espera de cada indivíduo Segundo os autores, a eficácia da ação
sejam interiorizadas por ele. Ora, a educa- pedagógica depende da existência de um
ção familiar das crianças vindas das classes sistema de ensino institucionalizado e bu-
privilegiadas é muito próxima daquela que rocratizado. A "objetividade" do sistema
receberão na escola, isto é, seus hábitos fa- exige fórmulas aparentemente neutras de
miliares são semelhantes aos hábitos e ritos avaliação, tais como as provas e os exames,
escolares. São crianças acostumadas a via- por meio dos quais são excluídos "os menos
gens, visitas a museus, contato com livros, dotados", que por sua vez reconhecem a si
discussões, além de ter o domínio da lin- mesmos como "incompetentes". O exame; •·
guagem que é adotada na escola. aparentemente democrático, oculta os la~·
Por outro lado, as crianças das classes ços entre o sistema escolar e a estrutura da~::
desfavorecidas pertencem a outro universo relações de classe.
de experiências e expressam-se de maneira
diferente. O "falar vulgar" é discriminado Althusser: a escola como aparelho
em relação ao "falar burguês" conforme ideológico de Estado
índices como correção, sotaque, tom e fa-
cilidade de elocução. É natural que este es- Louis Althusser (1918-1990), filósofo
tudante fique desambientado diante da des- francês influenciado pela corrente estrutu-,.
continuidade entre o ambiente familiar e o ralista e pelo marxismo, considera a fun- · '::.
escolar. A conseqüência dessas discrepân- ção da escola não de forma isolada, mas
cias é o insucesso freqüente dos estudantes inserida no contexto da sociedade capita-
vindos das classes pobres. lista. Desenvolve, então, a noção de apare-
No entanto, é bastante freqüente a expli- lho ideológico de Estado em seu pequeno livro
cação de que as desigualdades com relação Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, lan-
ao sucesso escolar resultam de "desigual- çado em 1969. ,
dades naturais". Segundo essa hipótese, o Partindo do pensamento de Mar?\,· J\1-
sucesso dos bons alunos decorre de qualida- thusser reconhece que toda prqduç5'.; pre-
des inerentes, como aptidões, talentos, do- cisa assegurar a reprodução de. ;uas condi-
tes, mérito pessoal. Para os reprodutivistas, ções materiais. Qualquer empresa - por

10
A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. São Paulo, Francisco Alves, 197 5, p. 259.

Críticas à escola 253


exemplo, uma tecelagem-, para continuar Segundo Althusser, o Estado é composto
funcionando, reproduz sua matéria-prima, de dois tipos de aparelhos que viabilizam a
suas máquinas e sua força de trabalho. Por imposição da ideologia:
isso, fora da empresa, há o criador de car- • O aparelho repressivo de Estado compreen-
neiros, que fornece a lã, a metalúrgica, que de o governo, a administração, o exército,
fabrica as máquinas etc. Mas onde ocorre- a polícia, os tribunais, as prisões etc. Cha-
ria a reprodução qualificada (diversificada) ma-se repressivo porque funciona "pela
da força de trabalho? Althusser responde: violência", isto é, o cidadão não cumpridor
"através do sistema escolar capitalista e ou- das leis é submetido a coerção (desde multa
tras instâncias e instituições". até prisão, e, em alguns países, a pena de
Desse modo, ao mesmo tempo que en- morte). Na verdade, nem todos são punidos
sina um saber prático, voltado para a qua- da mesma forma, porque, se quem legisla e
lificação da força de trabalho, a escola re- aplica a lei é a classe dominante, conclui-se
produz a ideologia dominante. E o faz por que ela tende a favorecer seus interesses.
meio da ideologi,a, entendida, do ponto de • Os aparelhos ideológicos de Estado, embora
vista político, como o conjunto de idéias da se situem ao lado do aparelho repressivo de
classe dominante estendido à classe domi- Estado, não se confundem com ele. Trata-se
n~da e que visa à manutenção da domina- de uma pluralidade de instituições distintas
ção. Por meio da ideologia, a exploração é e especializadas pertencentes ao domínio
· ITiascarada e os valores da burguesia pas- privado (sociedade civil) e que funcionam
sam a ser considerados universais, não mais não mais predominantemente pela repres-
· valores de determinada classe, impedindo o são (como o aparelho repressivo de Estado),
pensar autônomo do trabalhador. mas pela ideologia.
Se a ideologia exerce um papel impor- Althusser assim classifica os aparelhos
tante na reprodução dos valores capitalis- ideológicos de Estado (AIE) 12:
'O,; tas, é, no entanto, necessário recorrer a um • AIE religioso (o sistema das diferentes
. elemento da superestrutura, o Estado, a fim igrejas);
de garantir por mais tempo a manutenção • AIE escolar (o sistema das diferentes
da ordem vigente 11 • "escolas" públicas e particulares);
O Estado constitui um dos elementos da • AIE familiar;
,superestrutura e, como tal, representa, nos • AIE jurídico;
· · países capitalistas, os interesses da burgue- • AIE político (o sistema político, os dife-
sia. Dessa maneira, para Marx, o Estado rentes partidos);
não é garantia do bem comum nem um va- • AIE sindical;
lor "acima dos interesses das classes", como • AIE de informação (a imprensa, o rá-
_se costuma dizer. Ao contrário, na socieda- dio, a televisão etc.);
de dividida os interesses não são comuns, • AIE cultural (letras, belas-artes, espor-
mas divergentes, e o Estado é justamente tes etc.).
o instrumento de repressão que assegura a Se voltarmos agora à pergunta inicial de
dominação de uma classe sobre outra. Althusser - como é assegurada a repro-
,,v.:,:,'.;;;:-. ..

11
Os conceitos de ideologia, alienação, infra-estrutura e superestrutura estão explicados nos capítulos 5 e 12,
(ver também Vocabulário, no final deste livro).
12
Aparelhos ideológi,cos de Estado: nota sobre aparelhos ideológicos de Estado (AIE) . 2. ed. Rio de Janeiro, Graal,
1981, p. 68.

254 Filosofia da educação


dução das relações de produção? - , já é Para Establet e Baudelot, se vivemos em
possível responder que essa reprodução é uma sociedade dividida em classes, não é pos-
garantida pela superestrutura jurídico-polí- sível haver uma "escola única". Existem na
tica e ideológica. E mais: é "assegurada pelo verdade duas escolas radicalmente diferentes
exercício do poder do Estado nos aparelhos quanto ao número de anos de escolaridade,
de Estado, o Aparelho (repressivo) do Esta- aos itinerários, aos fins da educação. Mais
do, por um lado, e os Aparelhos Ideológicos ainda: trata-se não apenas de duas escolas di-
do Estado, por outro". ferentes, mas opostas, heterogêneas, antago-
Para Althusser, entre os AIE, a esco- nistas. As duas grandes redes de escolaridade
la desempenha incontestavelmente um são a secundária superior (SS) e a primária
papel de destaque. Para o autor, a classe profissional (PP), que correspondem à divisão
trabalhadora é marginalizada quando a da sociedade em burguesia e proletariado.
escola não oferece chances iguais para to- A rede primária profissional (PP) diz res-
dos, mas, ao contrário, determina de an- peito às séries finais dos estudos primários,
temão a reprodução da divisão das classes que continuam com as aulas práticas em
sociais. Além disso, pela abrangência de colégios técnicos ou de aprendizagem no
sua ação, inculca a ideologia dominante e próprio local de trabalho. A rede secundá-
impede a expressão dos anseios da classe ria superior (SS) prossegue no segundo ciclo
dominada. e conduz ao bacharelado.
Althusser reconhece que a escola tam- A divisão em redes não se dá no final da
bém é um local de luta de classes, referindo- escolarização, como se poderia supor, por--
se aos professores como "heróis" no esfor- que desde o começo os filhos dos proletários
ço pela desmistificação da ideologia, o que estão destinados a não atingir níveis supe-
tenderia a minimizar a influência da classe riores, encaminhando-se para as atividades
dominante na educação. Apesar disso, ao manuais. Aliás, é esta a função da escola pr.1~
afirmar que são raros aqueles realmente ca- mária, "é ela que, definitivamente, decide a
pazes dessa lucidez, termina por enfatizar orientação dos indivíduos para uma ou ou-
o poder da ideologia e a incapacidade de tra rede". Portanto, a escola tem a função de
reagir das classes dominadas. reproduzir as divisões sociais já existentes.
Desse modo, observa-se que a escola re-
Baudelot e Establet: a escola dualista afirma a divisão entre trabalho intelectual '
(rede SS) e trabalho manual (rede PP), ji_
Os franceses Roger Establet e Chris- que nessa dicotomia repousa a possibilida-
tian Baudelot escreveram, em 1971, A es- de material de manutenção da estrutura
cola capitalista na França, fundamentando-se capitalista. Como aparelho ideológico, a
em pressupostos teóricos marxistas, mais escola tem a função de contribuir para pre-
propriamente maoístas, sob a influência parar a força de trabalho, mas, por ser o
da Revolução Chinesa de Mao Tsé-tung. proletariado uma força ativa e "perigosa",
Retomam de Althusser o conceito de esco- no sentido de ter interesses antagônicos aos
la como aparelho ideológico e criticam em da burguesia, é preciso contê-lo e dorqjr;i,á-
Bourdieu e Passeron o fato de não terem lo. Daí a segunda função da escola: Íhtukar
enfatizado a contradição real entre classe a ideologia burguesa.
dominante e classe dominada nem terem Diferentemente de Bourdieu e Passeron,
levado em conta a força latente da ideolo- para Establet e Baudelot o proletariado pos-
gia do proletariado. sui ideologia própria, que se origina fora da

Críticas à escola 255


escola, nas diversas organizações de ope- casem mistificações, a menos que a explora-
rários. Por isso cabe à escola não só incul- ção de classe seja politicamente superada.
car a ideologia burguesa, mas também re- Bourdieu e Passeron não enfatizaram o
calcar e disfarçar a nascente ideologia do embate de forças contraditórias dentro da
proletariado. sociedade, nem destacaram que, se por um
lado a classe dominante impõe seus valores
Representantes brasileiros como legítimos, por outro a classe dominada
não se submete assim tão passivamente. O
Apoiados nas teorias crítico-reprodu- filósofo e educador francês Georges Snyders
tivistas, vários teóricos brasileiros fizeram diz que, se o operário não atinge de imediato
a releitura do fracasso escolar no Brasil e uma consciência lúcida da realidade social,
. criticaram a ilusão liberal da Escola Nova, também não se reduz a um alvo passivo de
bem como as tendências tecnicistas que in- mistificação. ':A partida não se joga unica-
fluenciaram a educação durante a ditadura mente entre alunos ludibriados e professores
militar. cúmplices do sistema."
Não convém, porém, enquadrar defi- Snyders completa que a separação en-
nitivamente esses teóricos na tendência tre escola e mundo descrita por Baudelot e
repr.odutivista, pois suas reflexões tivera~--· Establet parece muito ultrapassada, presa a
sentido riaquele momento histórico em que uma caricatura da escola tradicional e não
foram levadas a efeito. Assim, partindo de leva em conta as contribuições da pedago-
. Althusser e Gramsci, Barbara Freitag ana- gia contemporânea. Além disso, exageram
. lisou a educação brasileira de 1964 a 197 5. quando afirmam que "todas as práticas es-
Maria de Lo urdes De ir ó N osella fez uma colares são práticas de inculcação ideológi-
.~~álise dos livros didáticos, da perspectiva ca", não admitindo que os conhecimentos
da ideologia a eles subjacente. Luiz Antô- adquiridos na escola possibilitam a elabo-
nio Cunha criticou a escola liberal, sobre- ração de uma sabedoria autêntica. Embora
tudo a Escola Nova, denunciando a política enfatizem a luta de classes, parecem descar-
educacional que leva à discriminação e à tar a possibilidade de tornar a escola um
falência educacional no Brasil. dos campos dessa luta, o que redunda em
pessimismo e impotência.
Avaliação das teorias No entanto, tais questões são polêmicas.
crítico-reprodutivistas O professor Luiz Antônio Cunha não concor-
da com a acusação de que essas teorias sejam
É necessário reconhecer a importância da pessimistas e geradoras de impotência, ponde-
~., análise feita pelos autores crítico-reproduti- rando que, "se algum problema existe, está na
vistas para a compreensão dos mecanismos onipotência dos educadores, não nas teorias
da escola na sociedade dividida em classes. que pretendem desvelar a ilusão da mudança
Levar essa crítica às últimas conseqüências, da sociedade a partir da educação escolar".
no entanto, poderia resultar em um pessi- E, em vez de "levarem à suposta impotência,
rrÜ$mO imobilista. Se considerarmos a escola por nada restar aos docentes senão confor-
m~tit·reprogyt_o ra das desigualdades sociais, mar-se com a reprodução da sociedade, elas
não teremos'c:omq exercer a ação pedagógi- permitem, isto sim, orientar sua ação" 13 .

13
'½. atuação de Dermeval Saviani na educação brasileira: um depoimento", in Celestino Alves da Silvajúnior
(org.), Dermeval Saviani e a educação brasileira: o simpósio de Marília. São Paulo, Cortez, 1994, p. 52-53.

256 Filosofia da educação


Conclusão desenvolver a autogestão, sobretudo sob o
aspecto das questões morais e políticas, que
Por mais radicais que seJam as críticas possibilitem a construção da autonomia do
à escola, elas são bem-vindas, porque, ao jovem e sua inserção livre no coletivo.
aguçar nossos argumentos para defendê-la, Por fim, recuperando o que foi discutido
temos de reconhecer suas falhas mais gra- na unidade I deste livro, a pedagogia tem
ves. O importante é "não jogar a criança suas especificidades, e descobrimos que a
com a água do banho", tal como fez Illich escola não constitui um espaço neutro, já
com sua proposta de desescolarização. E que é marcada pela influência do contex-
também reconhecer, com prudência, que as to sociopolítico do seu tempo. No entanto,
tendências não-diretivas deixam as crianças recusando os determinismos, as tendências
à deriva, em um período de heteronomia no contemporâneas descartam as teorias qüe
qual, bem sabemos, elas precisam de nosso ora reforçam o individualismo, ora o coleti-
cuidado. As teorias crítico-reprodutivistas vo, para buscarem, na abordagem dialética
deram sua contribuição, ao analisar os de- da educação, o devido equacionamento dos
terminismos sociais e muito aproveitamos pólos opostos indivíduo- sociedade, como
delas, sem, porém, nos deixarmos levar a veremos no próximo capítulo, ao exami-
um beco sem saída. Nesse sentido, as peda- narmos as teorias histórico-sociais. ·
gogias anarquistas reconheceram o impacto Mais ainda, é preciso lembrar que vive-
da sociedade na formação da·s crianças, mas mos tempos de crise da instituição escolar,.
descobriram na escola alternativa meios de que terá de mudar para não morrer.

Dropes porque o código de processo civil é em-


perrado ou porque estas normas são
1 - Num mundo sem escolas só resta- violadas na prática forense. . . (Lauro
ria o clã familiar para a educação dos Oliveira Lima)
jovens ou os jovens se dispersariam
numa sociedade de massa. Bem se vê 1
+ Foyer: no contexto, significa "centro", "sede".
que Illich não é um educador e nunca
conviveu nas escolas com os jovens. Sua 2 · Tenho grandes reticências quanto
"sociedade sem escolas" é uma socieda- à pedagogia não-diretiva; não é por ela
de geriátrica, uma república de Platão ser demasiado revolucionária, mas sim
gerida pelos sábios que "se encontram" porque, querendo ser revolucionária,
ocasionalmente em seus simpósios ... O não o consegue e mantém-se no con-
fato de a escola não ser um "foyer'* de formismo; pois, se tomarmos como fio
comunicação e de criatividade é, ape- condutor o desejo da criança, as crian-
nas, um defeito histórico superável e ças que vivem num meio onde nin- ·
é para obter esta mudança processual guém ou quase ninguém se ~nteressã;· ·
que os educadores refletem e experi- digamos, pela leitura de livros, devido
mentam! Não se destroem as constitui- às condições de vida, à . superexplora-
ções e os códigos dos direitos do homem ção, às condições do trabalho etc., essas

Críticos à escola 257


crianças hão de vir a ter pouca vontade ções anteriores a ele: e os costumes e
de ler. (Georges Snyders) as idéias evoluem lentamente. Por isso
precisamos nos convencer de que a edu-
3 - Tinha razão aquele que, quando cação moderna, que iniciamos agora,
perguntado em que idade deve iniciar a dará seus frutos em um futuro longín-
educação da criança, respondeu: quan- quo. Nós devemos, sem pisotear o sen-
do nasce seu avô. De fato, cada um de timento dos pais, combater os prejuízos
nós leva dentro de si prejuízos e defeitos e erros dos filhos e educar inclusive os
atávicos que remontam a muitas gera- pais. (Ferrer i Guàrdia)

e Leitura complementar a cnança de desabrochar suas faculdades


naturais, dentre elas a liberdade; por outro
A autogestão pedagógica lado, a concepção socialista de liberdade de
Bakunin leva a uma proposta pedagógica
A concepção bakuniniana de uma edu- onde a liberdade é algo a ser aprendido e
cação libertária é uma crítica direta ao Émi- construído pelos próprios alunos, através
le ele Rousseau, avatar da não-diretividade: das relações que travam em seu cotidiano
. enquanto para o filósofo genebrino "tudo escolar. Na perspectiva bakuniniana não
· está bem, ao sair das mãos do Autor das há, pois, nenhum impedimento para a re-
coisas; tudo degenera entre as mãos do ho- lação do professor com os alunos, dado que
.· : . mem", o que o leva a propor uma educação não se deseja uma suposta não-diretivida-
· . o mais longe da sociedade (fonte de corrup- de no processo pedagógico; por outro lado,
ção) e o mais próximo da natureza (fonte existe sim uma meta a ser atingida, que é
de virtude) possível, o anarquista russo con- , a da progressiva crítica da autoridade em
sidera o homem como um único criador, nome da liberdade que é construída pelo
·' :estando em suas mãos, portanto, tanto a grupo. As intervenções do professor devem
.~·. virtude quanto a corrupção. dar-se justamente no sentido de se alcançar
Mas o divisor de águas entre Rousseau e essa meta.
·· Bakunin é a questão da liberdade; enquan- Poder-se-ia questionar então: O que tem
to o primeiro a considera como um fator a educação anarquista, na concepção de
_eminentemente natural, donde decorre que Bakunin, de antiautoritária? Não defen-
. a sociedade aparece-lhe como um obstácu- de ele a ação manipuladora do professor?
lo, o segundo considera-a como um fato es- Onde está a liberdade?
. · tritamente social, sendo esta, pois, condição Em um de seus textos mais conhecidos
sine qua non de sua existência. - o clássico "Deus e o Estado" - Baku-
.Desse background filosófico antagônico nin anexou uma longa nota de pé de pá-
surg~_m , como seria de esperar, concep- gina onde oferece aquela que talvez seja
ções·,,_'}Jeqqgógicas também antagônicas. a mais elucidativa explicação de sua con-
A concepçãô nat_uralista de liberdade de cepção de educação (... ). Retomando suas
Rousseau sustenta o desenvolvimento de considerações, que são fundamentais para
uma educação não-diretiva: quanto me- nosso tema, afirma ele que a autoridade é
nos o professor intervier, mais chances terá tão boa e indispensável na educação das

258 Filosofia do educação


crianças quanto permc10sa e desnecessá- cunho militarista, subdividiam-na em
ria quando aplicada aos adultos. Por outro três aspectos: o físico propriamente dito,
lado, continua ele, se tomamos a educação desenvolvido através de exercícios e jogos
por um processo de crescimento, de de- que visavam à solidariedade; o manual,
senvolvimento, devemos aceitar que todo baseado no desenvolvimento sensório-
desenvolvimento implica necessariamente motor da criança através da manipula-
a paulatina negação do ponto de partida ção dos mais diversos tipos de objetos e
à medida que nos aproximamos da meta instrumentos; e o profissional, em que os
de chegada; deve-se, pois, partir da auto- indivíduos passavam pelo aprendizado de
ridade para que seja possível chegar até a várias atividades industriais.
liberdade. • educação moral: talvez a mais impor-
(... )Mas é chegado o momento de levan- tante do ponto de vista social. Consistia
tarmos uma questão: Posto que aceitemos na crítica do modo de vida burguês e na
os postulados bakuninianos de uma educa- proposta de uma ação social diferenciada,
ção antiautoritária, onde fica a autogestão não através de discursos, mas da vivência
pedagógica nesse processo? mesmo de uma nova estrutura de coletivi-
Bakunin foi um dos primeiros a tratar da dade participativa.
questão de uma educação integral, conceito É no âmbito da educação moral que se
que ganharia corpo e importância no movi- situa a autogestão pedagógica na proposta
mento socialista, merecendo inclusive uma educacional anarquista. Contrariamente à
moção num dos congressos da Associação sociedade de exploração e dominação ,do
Internacional dos Trabalhadores. No que capitalismo, busca-se organizar na escola ·
tange a sua elaboração pelos anarquistas - um grupo baseado na solidariedade e na li-
em particular por Bakunin - , a educação berdade. Contra uma "democracia" eletiva
integral abarcaria três níveis específicos, a do capitalismo, procura-se estabelecer uma
saber:
democracia direta, participativa, na qual á ·; ·
• educação intelectual: o desenvolvimento
·coletividade mesma é responsável por seu
do intelecto da criança, jovem ou adulto,
destino.
envolvendo a assimilação da bagagem cul-
Obviamente, como já ficou claro, não se ·'
tural produzida pela humanidade ao longo
trata de dar às crianças todo o poder de de- , ·
dos séculos. Na maioria dos casos, fala-se
cisão, mesmo porque elas não teriam como
muito da educação intelectual como uma
nem o que decidir, e esse poder decisório
instrução científica, baseada na apreensão
a elas outorgado nada mais seria do que
do saber científico e na compreensão de seu
um demagógico engodo político. Trata-se
método, de modo que todo indivíduo possa
muito mais de desenvolver atividades com
ser um produtor de ciência.
o grupo de alunos que fortaleçam sua capa-
• educação .fisica: alarmados com as
cidade de crítica e autonomia, para suces~--
péssimas condições de higiene em que
sivamente ir aumentando sua participação
viviam os trabalhadores, os anarquistas
nas reuniões comunitárias.
preocupavam-se muito com a educação
. .' .. : .

do físico, que não era muito difundi-
Silvio Gallo, Educação anarquista: ug:i ··pi;~cligma
da na época. Diferentemente de Marx, para hoje. Piracicaba, Ed. Unim~p,; 1995, p. 170-171
que pensava em uma educação física de e 174-175.

Críticas à escola 259

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