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Jose Siles
University of Alicante
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José Siles
Autor/colaborador
Capítulo 13
Introdução
Um dos objetivos deste capítulo consiste, em primeiro lugar, em descrever as exigências pre-
cisas para a existência da história da enfermagem. Também se pretende esclarecer o processo de
interpretação conceitual desse campo de estudo como passo prévio e necessário a qualquer viés
de investigação. Nessa mesma linha, serão explicados os diferentes métodos e técnicas aplicáveis,
bem como as características do modelo estrutural dialético dos cuidados como ferramenta idônea
para a ordenação e análise dos dados na história cultural da enfermagem.
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
Tudo isso tem como consequência a ausência do princípio da pertinência metodológica, isto
é, a falta de coerência entre o paradigma de partida, o sistema conceitual, as teorias, os modelos,
os métodos, as técnicas e a natureza do caso investigado. A reflexão histórico-epistemológica con-
tribui para potenciar tal princípio, mediante a vinculação entre as características do problema de
estudo – incluindo seu contexto histórico-cultural – e a eleição do paradigma adequado, salva-
guardando a coerência entre as teorias, os modelos e os recursos metodológicos.
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
Processo de Interpretação
(Conceituação, Compreensão e Significado da História da Enfermagem)
Uma vez identificadas e definidas as atividades da enfermagem através do tempo, conta-se,
portanto, com a possibilidade de armazenamento de grande número de feitos, informações e rea
lidades úteis para o início do processo de construção histórica. É fundamental que se concentre
a busca de fontes (heurística) em relação a um problema específico (objeto). A partir do material
coletado, tem lugar a interpretação (hermenêutica) dos dados. O principal resultado dessa etapa
interpretativa se constitui, por um lado, na conceituação e, por outro, na compreensão de todos os
fenômenos implicados na prática de cuidar e seu significado como entidade histórica.
A compreensão da história da enfermagem deriva da ordem, unidade de diversos aconteci-
mentos. Os fatos não são percebidos como superiores em si mesmos, não mais que elos da grande
cadeia, e sim como uma função dentro de um todo ou como uma parte de um todo composto por
uma série de elementos e fatores constituintes de um sistema coerente.
Constatada a existência da enfermagem, o objetivo essencial da sua pesquisa histórica consiste
em oferecer explicações sobre o “porquê” de tal existência. A essa questão preliminar, que dota
de sentido/significado o fenômeno, seguem outras, exigindo a explicação de por que existe essa
profissão em determinadas condições. Pela perspectiva hermenêutica, é possível chegar-se a um
esclarecimento sobre o caso estudado.
Como um exemplo, tem-se a investigação histórica da divisão genérica da enfermagem em
dois blocos com características distintas após a Reforma Religiosa. Esse movimento reformista foi
interpretado e explicado de muitas maneiras, não exclusivamente sob a ótica religiosa, devido aos
diversos reflexos na sociedade. O entendimento de suas várias causas e consequências é pertinente
à história da enfermagem, pois tem efeito direto na profissão.
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
significa caminho, guia para orientar a pesquisa de maneira organizada, isto é, com critérios e nor-
mas. A ordenação é imprescindível para que o método seja sistemático e constitua a base adequada
para produzir o saber histórico de uma área profissional.
Método tem sido definido de muitas maneiras:
Definição do problema
Desenho (planificação/projeto)
Recolhimento de dados
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
QUALITATIVAS
Observação Documental
–– Arquivo (atas/formulários/relatórios: regulamentações normativas, legados, livros de folhas
de pagamento, inventários, livros contábeis etc.)
–– Imprensa
–– Publicações oficiais, profissionais, escolares etc.
–– Textos bibliográficos
Técnicas Arqueológicas
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
para resgatar e armazenar as histórias íntimas que refletem as emoções de pessoas internadas em
hospitais, com a finalidade de diminuir o distanciamento entre o sistema hospitalar (burocratiza-
do, impessoal e repleto da tecnologia mais sofisticada) e as necessidades mais particulares das pes-
soas, evitando a desorientação e a ansiedade causadas pela súbita institucionalização do indivíduo
em um “habitat” estranho.
Atualmente, a existência de diversas associações de História Oral mostra o nível de desen-
volvimento alcançado por essa área tão peculiar. Organizações de âmbito internacional, como
International Association of Oral History e Michigan Oral History Council, avalizam a progres-
siva estruturação da disciplina. Na Espanha, celebram-se, anualmente, jornadas de História Oral
patrocinadas pela Fundação Santa Teresa (Ávila). Os trabalhos apresentados contam com a enor-
me vantagem de poderem ser publicados em revistas espanholas e/ou estrangeiras especializadas
nesta temática: História e Fonte Oral.
Nesse mesmo país, dentro do contexto da enfermagem, existem iniciativas de potenciação da
história oral, como o projeto “Arquivos da Memória”, da Fundação Index de Enfermagem, cujo
objetivo é resgatar os testemunhos orais de pessoas que viveram situações de saúde-doença, a
partir de diferentes perspectivas (pacientes, cuidadores, familiares etc.). Desse modo, é possível
conhecer os significados experimentados pelos diferentes sujeitos envolvidos: a experiência de um
doente agredido no serviço de urgências (SERRANO, 2006), o relato autorreflexivo das vivências
de uma supervisora sobre seu trabalho (CIDONCHA, 2006) ou o resgate da vida profissional de
um enfermeiro em sua zona rural de trabalho (ARBOLEDAS, 2005).
Outra iniciativa similar é a patrocinada pela revista espanhola Cultura dos Cuidados em sua
seção “Fenomenologia”, em que são publicados depoimentos sobre experiências de vida e saúde,
tanto em forma de narrações literárias como pelo emprego de metodologia fenomenológica e
histórica. Assim, podem ser consultados diversos relatos, desde um paciente que explica subje-
tivamente os motivos pelos quais pede alta para abandonar o hospital após sofrer um infarto de
miocárdio (TATO, 19997) até as reflexões de uma jovem modelo que acabou de realizar mastec-
tomia (FERNÁNDEZ, 1998).
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
a) Decidir quais indivíduos serão entrevistados tendo em conta o tema foco do projeto.
Por exemplo, entrevistar profissionais aposentados, enfermeiras de hospitais urbanos,
parteiras em centros rurais etc.
b) Priorizar as entrevistas: quais devem ser realizadas primeiro, em função da relevância
dos sujeitos com relação aos objetivos do projeto, das condições físicas dos entrevistados
(pessoas muito idosas), da disponibilidade das pessoas etc.
c) Determinar os mecanismos apropriados para contatar os entrevistados potenciais e re-
querer sua participação.
a) Selecionar uma das formas de gravação de material (fitas de áudio, fitas de vídeo ou escrita).
b) Treinar os entrevistadores sobre o uso adequado do material.
c) Facilitar e garantir a devolução do material.
a) E
laborar um documento para capturar o consentimento ou a renúncia para o uso do
conteúdo das entrevistas e explicitar, de forma clara, sob que condições se pode utilizar
ou não o citado material.
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
I – APRESENTAÇÃO
Corresponde à introdução do registro e consiste em duas fases. Na primeira, deve-se escolher o
título do projeto de investigação de forma clara e precisa, o nome da pessoa estudada, a relação
dela com o capítulo ou a temática de estudo e, por último, a data e a hora de quando se iniciou
o registro oral – é recomendável explicitar, também, o lugar onde ele foi realizado. Na segunda
fase do trabalho, o objetivo é resumir, brevemente, algumas das características mais relevantes
da pessoa estudada.
II – DADOS BIOGRÁFICOS PRELIMINARES E CONCOMITANTES HISTÓRICOS
–– Naturalidade e data de nascimento. Lugares de residência (cidades, bairros);
–– Características familiares (irmãos, pais etc.);
–– Concomitantes históricos: feitos históricos que aconteceram à época do nascimento e nos
primeiros anos de vida;
–– Colégios em que estudou durante a infância e adolescência;
–– Jogos da infância, lugares, costumes das crianças da época;
–– Trabalhos anteriores (se houve algum);
–– Condições de vida da época.
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
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III – O PRIMEIRO CONTATO COM A PROFISSÃO
–– Recordações sobre os primeiros contatos com os praticantes, enfermeiras ou parteiras da época
(impressões que lhe causaram, se lhe atraíram as atividades desses profissionais desde o princípio);
–– Precedentes familiares (profissionalmente);
–– Existência de influências projetadas por algum profissional seu amigo ou da família;
–– Lembra se pensou em dedicar-se a outra coisa?
–– Lembra quando decidiu dedicar-se à prática?
–– Concomitantes históricos. Nesses momentos em que foi preciso decidir o seu futuro, que
perspectivas socioprofissionais existiam para os jovens (a partir de sua própria interpretação/
memória histórica)? Era possível seguir outras carreiras na cidade onde vivia? Que
acontecimentos remetem àquela época tão decisiva para seu futuro?
–– Lembra-se de quando e do porquê decidiu matricular-se em enfermagem?
IV – DADOS SOCIOFAMILIARES
–– Estado civil;
–– Época em que conheceu seu cônjuge;
–– Como sua futura profissão era vista por ele, caso tenham se conhecido antes de exercê-la;
–– Número de filhos e se algum seguiu sua vocação;
–– Relatos sobre a época.
V – PERÍODO DE ESTUDO DA CARREIRA
–– Onde estudou?
–– Lembra-se de como estava a estrutura da carreira em seguida?
–– Poderia referenciar algumas anedotas sobre alguns de seus professores ou sobre o seu trabalho
clínico e prático?
–– Poderia, igualmente, contar alguns relatos sobre seus companheiros de carreira?
–– Manteve contato com algum deles?
–– Teve algum contato com parteiras ou enfermeiras durante essa fase?
–– Lembra-se de sua primeira injeção, seu primeiro paciente etc.?
–– Concomitantes históricos.
VI – PERÍODO PROFISSIONAL
–– Hospitais e centros de saúde onde trabalhou. Atividades que desenvolveu habitualmente em seu
trabalho. Relações com médicos, pessoal da área da saúde, salários etc.
–– Outras atividades, não estritamente assistenciais, que realizou durante sua trajetória profissional:
docentes, gestoras, culturais, científicas etc;
–– Relação com o colégio dos praticantes;
–– Relação com a Escola de Assistente Técnico Sanitário/Diplomado em Enfermagem (ATS/DE).
VII – PERÍODO ATUAL
–– Contato com antigos companheiros;
–– Atividades que realiza relacionadas com a enfermagem;
–– Atividades de ócio, de recreação, culturais, artísticas;
–– Opinião sobre o futuro da profissão.
Quadro 4: Processo de entrevista oral. Fonte: Adaptado de Siles (2011).
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
o termo história de vida foi tomado em um sentido amplo que englobou as autobio-
grafias definidas como vidas narradas por quem as viveu, ou informações produzidas pelos
sujeitos sobre suas próprias vidas e as biografias entendidas como narrações nas que o su-
jeito da narração não é o autor final da mesma [...]. Também, foram utilizadas histórias de
vida para designar tanto relatos de toda uma vida como narrações parciais de certas etapas
ou momentos biográficos. Mais convém notar que o termo se refere não só ao relato em
si, senão a toda a informação acumulada sobre a vida objeto do estudo: informação proce-
dente de etapas escolares, informações sanitárias etc., e obviamente, ao trabalho de análises
realizadas por ele ou os pesquisadores [...] (SARABIA, 1989, p. 210).
Defino o método biográfico como o uso e coleção de documentos estudados e que des-
crevem os momentos decisivos nas vidas dos indivíduos. Esses documentos incluiriam au-
tobiografias, biografias, diários, cartas, necrológicas, histórias de vida, relatos de vida, histó-
rias de experiências pessoais, histórias orais e histórias pessoais (PLUMER, 1989 p. 84).
O gênero autobiográfico foi uma constante ao longo da história, sendo utilizado por filósofos,
clérigos, cruzados, políticos, historiadores, romancistas e pela gente comum – o grupo mais impor-
tante para a história da enfermagem. Todos eles praticaram, de uma forma ou de outra, o relato
biográfico ou autobiográfico.
O relato, isto é, a forma de descrever a vida em totalidade ou em episódios significativos,
chegou a alcançar a categoria de gênero devido ao desenvolvimento estilístico experimentado,
mostrando diversas formas de expressão técnica e literária até chegar às autênticas especializa-
ções: autobiografias, confissões, diários, epistolários ou cartas, memórias, biografias, apologias,
hagiografias etc. Logicamente, cada um desses subgêneros se desenvolveu ao amparo de con-
dições adequadas para sua difusão: confissões e hagiografias emergiram com o cristianismo; as
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
A Análise de Conteúdo
A análise de conteúdo se baseia na leitura como um instrumento de recolhimento de infor-
mação; e essa leitura deve ser realizada de forma sistemática, replicável e válida. Consequen-
temente, sua metodologia é parecida a de qualquer outro método de coleta de dados, ainda que
especialmente relacionada com as técnicas próprias da história oral (SANTAMARINA; MARI-
NAS, 1994), com as técnicas iconográficas (em que prevalece a imagem sobre a palavra) e, em
última instância, com as técnicas que costumam ser utilizadas em trabalhos antropológicos e
etnográficos (ALTHEIDE, 1987).
Mas, concentrando-nos na análise de conteúdo aplicada a textos, é preciso destacar, em pri-
meiro lugar, que o processo de leitura, o posterior tratamento e a etapa analítica podem ser leva-
dos a cabo combinando-se estratégias metodológicas características, tanto do quadro qualitativo
como do quantitativo. Para que a leitura seja científica, ela deve ser oral e completa; portanto,
é preciso considerar o texto como um material histórico composto por cinco grandes blocos
informativos (RUIZ; ISPIZUA, 1989):
A partir do conteúdo textual, podem-se realizar conclusões relativas a situações pessoais, so-
ciais, culturais, ideológicas, profissionais, sanitárias etc. a respeito do autor, da audiência (objeto
alvo do texto), da estrutura social e econômica, da política etc. A capacitação da globalidade do
material é possível na análise de conteúdo, mediante a realização de inferências do texto em seu
contexto. A ação de inferir é a característica diferencial desse método frente à análise documental
(técnica que se limita, estritamente, ao conteúdo do texto) (BARDIN, 1977).
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
Também, o texto tem uma dupla natureza: a manifestada ou explícita, que constitui a sua parte
epidêmica e direta, e a oculta ou latente.
Quadro 5: As duas formas de leitura em análise de conteúdo. Fonte: Adaptado de Barthes (1986).
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
compreender-se, recorrendo-se aos esquemas da história serial – cujos dados denotam uma esmaga-
dora continuidade –, a mudança nas relações de produção que se produziu na Espanha do século XIX,
vinculada à transformação dos senhorios territoriais em propriedade burguesa da terra?
Portanto, deve-se evitar cair na interpretação simplista e linear de causas e efeitos, dado que
qualquer interpretação histórica, por mais simples que pretenda ser, requer a consideração da
interação mútua de todos os aspectos que constituem a realidade analisada (incluindo os fatores
conjunturais e estruturais). Como reforça Tuñon de Lara (1977), não vale para nada uma série de
preços sem a consideração da série de salários, e esses salários devem ser contemplados à luz dos
pressupostos familiares. Por exemplo, não se pode explicar o valor do salário recebido pelos Aju-
dantes Técnicos Sanitários espanhóis durante o biênio 1975-1977 ou pelas enfermeiras brasileiras
do mesmo período sem se ter em conta os elementos assinalados.
Uma das características que define a história serial é que, com sua objetividade pretendida,
tranquiliza ao dar prioridade ao “estável”, porém, mostra, ensina, mas não explica. Sendo assim,
os dados devem fazer parte do estudo, mas devem ser mantidos em quarentena.
Com os avanços da informática, cada vez é menos complicado analisar quantidades enormes
de dados. Contudo, paralelamente ao processo de simplificação das análises estatísticas pelo uso de
computadores, foi-se perdendo a confiança cega que antes se tinha nas explicações sobre os fatos
históricos sustentados exclusivamente em interpretações de dados quantitativos, os quais alcan-
çavam um nível de complexidade que lhes conferia uma aura quase mística. A reflexão sobre o
produto desse tipo de abordagem numérica, longe de manter vigente o caráter místico dos dados,
provocou uma reação curiosa: quanto mais ao alcance da mão eles e seus conseguintes tratamen-
tos analíticos estão, menos confiança se tem na validade das informações para oferecer explicações
históricas sobre acontecimentos de qualquer natureza, inclusive os econômicos.
No entanto, as técnicas quantitativas têm grande utilidade para a história. E, como ocorre
com o resto das ciências socais, é preciso utilizá-las de forma equilibrada e contextualizada, isto
é, conforme as características do estudo requeiram, e não como um mero artifício ou exercício de
ostentação matemático-estatístico. De qualquer forma, os métodos quantitativos seguem relacio-
nados direta ou indiretamente com a história da enfermagem: estudos históricos epidemiológicos,
história da formação do enfermeiro, aspectos determinados da história profissional etc.
Em última instância, pode-se extrair a seguinte conclusão quanto o papel da história serial: “o
quantitativo tem um ótimo valor instrumental; serve para basear, para poiar uma explicação, mas
não substitui a própria explicação” (LARA, 1977, p. 34).
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
*Unidade Funcional
Figura 1: Modelo estrutural dialético dos cuidados. Fonte: Elaborada pelo autor.
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
Conforme essa perspectiva, o conjunto de estrutura implica um caráter sistêmico, dado que
seus elementos se inter-relacionam de forma que qualquer alteração em um deles provoca uma
modificação do resto: UF-MF-EF. Essa ordenação tem traço exemplar, posto que as mudanças
produzidas afetam as partes que constituem a família, podendo-se observar e, até certo ponto,
predizer o funcionamento do todo. Nesse sentido, a estrutura não é uma realidade empírica
observável, e sim um modelo explicativo teórico. É interpretada por Lévi-Strauss (1995) como
uma espinha dorsal mental (não empírica), que tem um perfil dinâmico e, portanto, está su-
jeita a variações históricas – entretanto, trata-se de uma dinâmica lenta, em consequência da
resistência à passagem do tempo e às alterações desse sistema. Em suma, além de seu caráter
vertebrador e arquitetônico e de seu dinamismo, essas estruturas têm uma terceira caracterís-
tica: sua predisposição a assumir diferentes significados segundo a pressão cultural ou o fator
histórico (LECHTE, 2008). O MEDC compartilha dessa natureza ternária, que lhe confere seu
foco dialético sobre os fenômenos da história dos cuidados.
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
Tal modelo se orienta, também, pelo funcionalismo. Malinowski (1984) interpreta o funcio-
nalismo como um processo de busca e compreensão das instituições da vida, entendendo como
instituição um conjunto de ideias, crenças, valores e regras que condicionam as formas de inter-
câmbio social. Trata-se de uma visão orgânica que relaciona o sistema cultural com o biológico das
pessoas que o integram. Isto é, os sujeitos estão sob uma pressão cultural que modela as formas de
comportamento no processo de satisfação das necessidades, a partir de raízes em se que aninham
os valores, as crenças e os sentimentos. Esse foco permite a inter-relação entre cultura e satisfa-
ção de necessidades, ou seja, relacionam-se as sete necessidades básicas dos indivíduos (nutrição,
reprodução, cuidados corporais, segurança, movimento, crescimento e saúde), segundo o referido
antropólogo, e uma função articulada culturalmente mediante uma resposta. Por exemplo, uma
necessidade cultural seria a saúde, e a resposta cultural seria a higiene.
Por meio dessa concepção, observa-se tanto o caráter estrutural como o funcional da família:
estrutura social básica de socialização e convivência que transmitiu à mulher a função do cuidado
durante séculos (SILES, 2011). Essa base familiar foi construída mediante uma rede conceitual
que constitui categorias mentais suficientemente sólidas para ser resistente à mudança durante
muito tempo, até que um desvio histórico-cultural acaba provocando uma alteração substancial de
seu significado, que produz modificações no resto das estruturas sociais. A função de sobrevivência
é mais essencial e existe desde que o homem apareceu na face da terra, mas, para entender como
ele se organiza e evolui, há de considerar-se a cultura em seu conjunto, bem como o mecanismo
geral de satisfação de necessidades em particular. Em última análise, o funcionalismo sustenta que
é primordial analisar a função específica de cada norma de comportamento ou cada instituição,
com a finalidade de estabelecer relações de funcionamento entre as diferentes fundamentações da
sociedade. Para a semiótica, a função é o conjunto de elementos sociais e das relações entre eles,
que são necessárias para definir uma estrutura.
A dialética como forma de valorização da realidade histórica e social mutante constitui outro
dos pilares que sustentam o MEDC, partindo de uma consideração elementar: a saúde e a doença
como um processo dialético cultural. Na ciência, sucederam diferentes modelos para a interpreta-
ção do princípio de pertinência metodológica e instrumental das características do objeto-sujeito
investigado no marco epistemológico de uma disciplina. Os primeiros métodos que levaram em
conta o caráter dinâmico da realidade, integrando as diferentes partes de uma dada conjuntura em
uma síntese processual, foram o dialético hegeliano reinterpretado por Kojeve (1994) e o mate-
rialismo dialético e histórico, desenvolvido por Marx (1993) e Engels (1979; 1997). Seguindo esse
último autor: “A dialética não é mais que a ciência das leis gerais do movimento e a evolução da
natureza, da sociedade humana e do pensamento” (ENGELS, 1979, p. 45).
Nesse contexto iluminado pelo viés dialético, os conceitos de saúde e doença deveriam compar-
tilhar o caráter dinâmico ou processual: “saúde é o ajuste perfeito e contínuo do homem ao seu
ambiente; pelo contrário a doença é um ajuste imperfeito e descontínuo” (DOMINGUEZ, 1988, p.
23). Por outro lado, a dimensão situacional e dinâmica de tudo que tem a ver com a saúde e a doen
ça se expressa na seguinte sentença: “Não existe a saúde e a doença (como expressões universais
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
todas as coisas são e não são, porque tudo flui, está mudando constantemente, constan-
temente nascendo e morrendo. É impossível submergir duas vezes em um e idêntico rio
[...] A mesma coisa em nós vive e morre, dorme e está desperto, é jovem e velha; cada uma
muda seu lugar e torna-se outra. Nós entramos e não entramos no mesmo rio: estamos e
não estamos (HEIDEGGER; FINK, 1986, p. 37).
Essa é a essência do método dialético, a mudança contínua através do tempo e por meio da
sucessão de contradições que se resolvem continuadamente. Engels (1997), em sua obra dedicada
a Feuerbach e ao fim da filosofia clássica alemã, enfatizou o caráter processual e o princípio de
homeostases que mantém um certo equilíbrio nas mudanças que se produzem.
A idéia principal de que o mundo não pode ser concebido como um conjunto de objetos
prontos e acabados, pois o mesmo pode ser compreendido como um conjunto de processos,
em que as coisas que parecem estáveis, iguais a seus reflexos mentais em nossas mentes,
aos conceitos, passam por uma série ininterrupta de mudanças [...]. Para a filosofia dialética
não existe nada definitivo, absoluto, consagrado; em tudo põe-se em relevo o que é pere-
cível, e não deixa em pé mais que o processo ininterrupto do vir e perecer, uma promoção
sem fim do inferior ao superior, cujo mero reflexo no cérebro pensando é esta mesma
filosofia (ENGELS, 1997, p. 83).
Para o metafísico as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos da-
dos de uma vez para sempre, isolados, um após do outro e sem necessidade de contemplar
o outro, firmes, fixos e rígidos [...]. Para ele, toda coisa existe ou não existe: uma coisa só
pode ser, ao mesmo tempo, ela mesma e algo diferente. O positivo e o negativo se excluem
um ao outro de um modo absoluto; a causa e o efeito encontram-se do mesmo modo em
rígida contraposição (ENGELS, 1979, p. 92).
No marco do modelo estrutural dialético dos cuidados, uma teoria nunca sai ilesa, íntegra e sem
mudanças após sua utilização na prática. O resultado consiste na síntese entre o momento prévio à
aplicação teórica e a resistência que gera o entorno à dita implementação. A síntese contém elemen-
tos novos que constituem a realidade prática após o emprego da teoria, mas essa realidade está inte-
grada, por sua vez, por componentes que existiam antes dessa ação. Isto é, a prática substancialmente
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
Figura 2: Modelo estrutural dialético para o estudo histórico-antropológico dos cuidados. Fonte: Adaptada de Siles
e Solano (2009).
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
Por outro lado, diversos artigos e monografias descreveram ou aplicaram o MEDC. A primeira
vez foi em uma monografia derivada de uma tese de doutorado (SILES, 1995). Ele foi utilizado
para descrever, de forma dinâmica, a evolução do papel social das nutrizes e sua vinculação com a
enfermagem (SILES et al., 1998), assim como para oferecer uma visão “total” da evolução histó-
rica da enfermagem comunitária (SILES, 1999). Especialmente relevante, colaborou para a inves-
tigação histórica e cultural da enfermagem (SILES, 1999; 2010; 2011).
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Enfermagem: História, Cultura dos Cuidados e Métodos
Considerações Finais
Toda pesquisa deve considerar, diante de uma reflexão prévia, os princípios de pertinência meto-
dológica, com intuito de manter a coerência entre os objetivos, os métodos, a teoria e as técnicas. Essa
pertinência metodológica é a que contempla aspectos que vão desde a coerência até a investigação;
trabalhando como as rimas, que se mantêm perfeitamente fiadas nos diferentes versos do poema.
Para a existência da história da enfermagem – de seu conhecimento por meio da produção do
saber científico através da pesquisa –, é preciso que sejam apresentados três fatores: o encadea-
mento dos acontecimentos; a coerência específica dessa continuidade, por conta da conexão lógica
dos fatos; e, por último, a ajustada interpretação dos fatores mencionados mediante o processo
hermenêutico devidamente contextualizado. Portanto, a representação conceitual da história da
enfermagem, isto é, sua construção teórica e epistemológica, constitui um passo prévio e im-
prescindível em qualquer trabalho investigativo. Os diferentes métodos e técnicas de observação
documental e recolhimento de dados em história oral (história de vida, documentos biográficos,
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Teoria e Metódo nos Estudos Históricos em Enfermagem
relatos de vida, estudos de caso, entrevistas de diferentes tipologias etc.) conformam o arsenal
instrumental do historiador de enfermagem.
O modelo estrutural dialético dos cuidados se constitui de uma ferramenta adequada, tanto
para a ordenação como para a análise dos dados, quando se pretende obter visões globais do fenô-
meno histórico a partir da perspectiva da história cultural ou da antropologia da enfermagem. São
especialmente pertinentes no tema histórico e antropológico dos cuidados, dada a transversalidade
de fatores que incidem na evolução histórica da enfermagem, os seguintes aspectos: construção
social do gênero, condições biológicos, papel da mulher na sociedade, religião, tecnologia, relações
de poder, saúde-doença, sistema econômico e político etc.
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