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ARTIGO 10.20396/td.v17i00.

8667331
Terræ Didatica

Autoformação em Geociências: aprendizado permanente


e temporalidade na imersão sociedade-natureza
Self-training in Geosciences: permanent learning and temporality in society-nature immersion

José Roberto Serra Martins1, Celso Dal Ré Carneiro2


1 - Professor efetivo do Instituto Federal de São Paulo, São João da Boa Vista, SP. Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Ensino e História de Ciência da
Terra, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
2 - Programa de Pós-graduação em Ensino e História de Ciência da Terra, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
E-mail: serra@ifsp.edu.br; cedrec@unicamp.br

Abstract: Three dimensions compose the construction of complex thinking: hetero-training, eco-training Citation/Citação: Martins, J. R. S., &
and self-training. The latter impacts an adult individual when he/she assumes driving his/her maturation, Carneioro, C. D. R. (2021). Autoforma-
in a virtuous circle of action-reflection-action. Self-training requires autonomy and time; it evolves to ção em Geociências: aprendizado per-
permanent learning, by associating with transdisciplinarity, a pluralist perspective of knowledge that manente e temporalidade na imersão
transcends the frontiers of knowledge and articulates different ways of understanding the world. Privileged sociedade-natureza. Terræ Didatica,
fields for self-training are identified in the great interdisciplinary field of Environmental Sciences and, in 17(Publ. Contínua), 1-11, e021046.
particular, Geosciences. This article describes and analyzes the opportunity of a self-training proposal in doi: 10.20396/td.v17i00.8667331.
Geosciences, based on controversial and conflicting situations of human interference with natural ecosys-
tems, whose consequences can be evident, hidden or even unpredictable. One of the expected results of Keywords: Environment, Transdisci-
the process is to allow persons to exercise, throughout their lives, responsible and consequent citizenship. plinarity, Systemic Vision, Citizenship,
Education.
Resumo: Três dimensões compõem a construção do pensamento complexo: a heteroformação, a eco-
formação e a autoformação. Esta última impacta um indivíduo adulto quando, em um círculo virtuoso de Palavras-chave: Meio ambiente,
ação-reflexão-ação, ele toma as rédeas de seu amadurecimento. Autoformação requer autonomia e tempo. Transdisciplinaridade, Visão sistêmica,
Evolui para aprendizagem permanente, ao se associar à transdisciplinaridade, uma perspectiva pluralista Cidadania, Educação.
do conhecimento que transcende as fronteiras do saber e articula diferentes formas de compreensão
Manuscript/Manuscrito:
do mundo. Identificam-se campos privilegiados para autoformação no grande campo interdisciplinar
Received/Recebido: 20/10/2021
das Ciências Ambientais e, em especial, das Geociências. Este artigo descreve e analisa a oportunidade
de uma proposta de autoformação em Geociências, baseada em situações polêmicas e conflituosas Revised/Corrigido: 17/11/2021
da interferência humana com os ecossistemas naturais, cujas consequências podem ser evidentes, Accepted/Aceito: 22/11/2021
dissimuladas ou até mesmo imprevisíveis. Um dos resultados esperados do processo é permitir que
cada pessoa exerça, ao longo da vida, uma cidadania responsável e consequente.

Introdução
a ecoformação, quando o ambiente nos ensina. Os
O desafio da formação permanente é construir o mecanismos de autonomização demandam tem-
próprio mundo conquistando o próprio tempo po, evoluem rumo à aprendizagem permanente
(Pineau, 2021, p. 14). e prolongada e induzem as pessoas a praticar um
círculo virtuoso de ação-reflexão-ação. Contudo,
Ao atingir a idade adulta, todo indivíduo passa a em sentido inverso, caso a autorreflexão não ocor-
responder, entre outras coisas, pela sua própria for- ra, o indivíduo poderá perpetuar um indesejável
mação, dando início a um novo regime de ensino/ quadro de submissão (Pineau, 2006, grifos nossos).
aprendizagem, o da autoformação. É uma transição Gaston Pineau (2021), em entrevista recente, dis-
entre etapas de vida que não é automática, nem tingue sucessivas etapas de suas pesquisas e assinala
equivale ao avanço da idade, porque implica uma a importância do tempo e da temporalidade para
“autonomização formativa” (Pineau, 2021, p. 13). fazer frente ao desafio de adquirir uma “compe-
Os termos “ensino” e “aprendizagem” não tência ritmo-formadora”, que corresponde à com-
são passíveis de desvinculação; daí a heteroforma- petência temporal chave de dar ritmo aos “tempos
ção, quando outras pessoas e livros nos ensinam e de formação”, ou seja, a capacidade de “ritmar os

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tempos e contratempos em movimentos formado-
res de si” (Pineau, 2021, p. 7). Sobre a Autoformação
A transdisciplinaridade é uma perspectiva A autoformação pode ser entendida como um
pluralista do conhecimento que transcende as conjunto de processos ou dinâmicas, nos quais as
fronteiras dos saberes e articula as múltiplas faces manifestações e transformações, em sentido mais
de compreensão do mundo (Sommerman, 2003). amplo, emergem das interações da pessoa com os
Assim, ao levar em consideração a complexidade ambientes físico e social (Galvani, 2002). Embora
crescente do mundo atual, é possível problematizar a autoformação possa ser mais bem compreendida
conceitos basilares das mais variadas áreas do saber, quando associada à transdisciplinaridade (Nico-
possibilitando um exercício mais amplo da cogni- lescu, 2001), convém assinalar que a autoformação
ção humana. A fluidez de ideias e, principalmente, não equivale, nem é sinônima, de autodidatismo.
a dinâmica de reflexão conceitual, são capazes de Trata-se de uma abordagem de autonomização
modificar o modo como cada pessoa se volta para educativa, na qual cada pessoa se apropria de sua
si mesma e, ao entender o seu papel no mundo, capacidade de formação (Pineau, 1983).
perceber como ocorrem as interações e retroações Os processos de autoformação são guiados
entre cada pessoa e os ambientes físico e social. por três polos principais, cujos focos são a própria
Em contraponto, as fortes pressões que o pessoa (agente da autoformação), os outros (hete-
crescimento populacional introduz sobre o meio roformação) e as coisas (ecoformação), tal como
ambiente geram “problemas que, com o tempo, representado na Figura 1.
parecem se tornar insolúveis, na exata medida em A heteroformação, decorrente do movimento
que grande parte da população sequer tem conhe- de socialização, deve ser entendida como a dimen-
cimento deles” (Carneiro, 2021). É, portanto, cada são (S-1) resultante da interação entre o agente e
vez mais clara a necessidade de que cada pessoa os elementos formadores dos ambientes social e
possa exercer, ao longo da vida, uma cidadania cultural, tais como família, amigos, professores
responsável e consequente: etc. Em nosso caso, este processo deve incluir os
processos relativos às formações inicial e continu-
Para atingir os objetivos pretendidos de formar ada de profissionais em Ciências Exatas e da Terra.
cidadãos conscientes, capazes de avaliar e julgar
A ecoformação, advinda do movimento de eco-
as atividades humanas que envolvem a ocupação
logização, é a dimensão (S-2) decorrente das influ-
e o uso do ambiente e dos materiais naturais, é
necessária a introdução de Geologia/Geociências ências físicas, ecológicas, climáticas e das interações
como ciência integradora da Física e da Quími- físico-corporais que constituem a pessoa, além
ca e que inclui muitos aspectos biológicos (...) de possuir uma dimensão simbólica. No que diz
(Carneiro et al., 2004, p. 559). respeito ao ambiente físico, é possível considerar
grande variedade de ambientes, como afloramentos
As Ciências Ambientais e, sobretudo, as Geoci- rochosos, montanhas, florestas, desertos, oceanos
ências, constituem cenário transdisciplinar privilegia- ou metrópoles urbanas, entre tantos.
do para a autoformação. Apresentar as vantagens e a Os ambientes nos quais se desenvolvem as
oportunidade de uma proposta de autoformação em dimensões S-1 e S-2 influenciam diretamente
Geociências é objetivo central do presente trabalho. tanto os níveis de realidade (culturas humanas,

Figura 1. O processo transdisciplinar de autoformação. Fonte: modificado de Galvani (2002)


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por exemplo), quanto os de percepção (imaginário os sujeitos a participar do debate intelectual, e (4)
pessoal), ao organizar e dar sentido à experiência transformação da prática, visando à retomada da
vivida pelo agente em autoformação. As dimensões reflexão teórica, que Dumazedier (1994) denomina
correspondem ao que Varela (1989) denomina aco- Treinamento mental.
plamentos estruturais e simbolizam a conscientização A conscientização para a exploração fenomeno-
(e retroações) da pessoa sobre a influência física e lógica – pela tomada de consciência e de pesquisas
social recebida. Da personalização, surge a dimen- das ações oportunas, das competências e dos saberes
são S-3 da autoformação, que representa a tomada na ação – almeja compreender não somente o ‘que’
de consciência do agente (sujeito) por seu próprio e o ‘como’ aprender e fazer, mas a desenvolver habi-
funcionamento – seja do ponto de vista orgânico ou lidades que contribuam para a compreensão das
intelectual, por exemplo – e a retroação deste sobre interações e retroações entre as dimensões S-1, S-2
si mesmo e sobre as interações com os ambientes e S-3, resultando na morfogênese (manifestações)
ou fechamento operacional, tal como nomeia o mes- e na metamorfose (transformação) da experiência.
mo autor.
As dimensões S-1, S-2 e S-3 são partes inte- Meio ambiente: campo privilegiado para a
grantes do processo de autoformação e podem ser autoformação
entendidas como processos dinâmicos de tomada
de consciência e de retroação desta sobre si mesma Martins (2020) salienta a necessidade de abor-
ou sobre suas interações com os ambientes físico e dagens inter e transdisciplinares para se equacio-
social, sendo as conscientizações e as retroações indissoci- nar temas altamente complexos. No campo das
áveis das interações que lhes deram origem. Como afirma Ciências Ambientais, muitos problemas novos e
Galvani (2002, p. 97), a “autoformação é um proces- inusitados emergem quando, na busca por solu-
so paradoxal, que se alimenta de suas dependências”. cionar uma determinada questão, escolhe-se uma
alternativa capaz de oferecer riscos ao ambiente,
os quais ainda não foram avaliados, nem ao menos
Interações éticas, epistêmicas e empíricas previstos. O autor aponta a necessidade de pesqui-
As interações de cada pessoa com os ambien- sas que envolvam o pensamento complexo, apro-
tes físico e social são, concomitantemente, éticas, veitando três situações aparentemente paradoxais
teóricas (ou epistêmicas) e práticas (ou empíricas). e distintas, citadas a seguir:
Para entendê-las, sugerem-se metodologias dife-
rentes, mas que dialogam entre si. Nesse sentido, Seria possível prever que a devastação de florestas
para as interações (1) éticas, a hermenêutica instaura- inglesas levaria ao aumento do número de pessoas
tiva; (2) teóricas, a co-construção dialógica e transdisci- afetadas por doenças respiratórias? [p. 21] (...).
plinar dos saberes formais; (3) práticas, a conscientização Seria possível prever que a tentativa de debelar
visando a exploração fenomenológica. processos inflamatórios em bovinos na Índia leva-
ria à morte de abutres? [p. 23] (...). Como esperar
A hermenêutica instaurativa (ou simbólica)
que protetores/bloqueadores solares, produzidos
caracteriza-se pela eliminação dos juízos de valor
na intenção de evitar o aumento de mortes cau-
presentes ao gênero textual em análise, sendo seu sadas por neoplasias dermatológicas decorrentes
produto final um texto sobre outro texto; mas não do “buraco na camada de ozônio”, poderiam levar
uma redução ou síntese explicativa. A interpreta- a um desequilíbrio ecológico [que afetasse] os
ção estabelece significados, ao utilizar linguagem recifes de coral? (Martins, 2020, p. 25).
natural para tornar mais acessível a interpretação
de qualquer texto (livro, imagem, filme ou mesmo As questões citadas, dentre inúmeros exemplos
um afloramento, por exemplo). Esse trajeto pode que podem ser levantados, acentuam a relevância
evitar reduções explicativas que, em certa medida, do “pensar além” associado à temática ambiental,
enfraquecem as explicações prontas, quando se opta posto que os problemas ambientais não são pontu-
pela interpretação. ais nem mesmo restritos a uma determinada região
A construção conjunta, dialógica e transdiscipli- do planeta. A Química Ambiental foi, por muito
nar, de conhecimentos formais se caracteriza pela: tempo, encarada como uma ciência meramente
(1) teorização da prática, (2) tomada de consciên- factual, dependente de verificações, e que, em sua
cia das conceituações implícitas no processo, (3) maioria, eram provisórias, por serem historicamen-
produção de saberes críticos, os quais autorizam te datadas, quando não, ambíguas (Martins, 2020).
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Somente com o estudo sistemático dos comparti- ração com moradores locais, conciliou o efeito de
mentos ambientais é que se avançou na direção do borda da floresta com a plantação de espécies ama-
pensamento complexo. zônicas, como açaí, pupunha e cupuaçu. Para isso,
O tema recorrente das queimadas e da destrui- ele utilizou (provavelmente de modo não cons-
ção florestal na região amazônica fomenta deba- ciente) princípios caros à autoformação, sobretudo
tes relevantes. Entretanto, existe um fato radical ao agregar conhecimentos cotidianos e científicos
que derruba qualquer análise mais superficial: “o provenientes de sua heteroformação (pelo contato
desconhecimento entristecedor sobre a ordem social) aos de sua ecoformação (pelo contato com
de grandeza das redes hidrográficas do território o ambiente). O bem-sucedido projeto poderia ser
intertropical brasileiro” (Ab’Sáber, 2011, p. 118). replicado em “numerosas outras áreas de borda de
Há dez anos, quando o Congresso Nacional se matas remanescentes” preservando-se no seio da
movimentava para alterar profundamente o Código floresta as ações do “projeto extrativista tão caro
Florestal, o eminente Prof. Dr. Aziz Nacib Ab’Sáber aos companheiros do extraordinário acreano Chico
publicou um alerta que denominou “Do Código Mendes” (Ab’Sáber, 2011, p. 122).
Florestal para o Código da Biodiversidade”, no Desse modo, é possível afirmar que...
qual acentuava o papel fundamental das estradas
locais e inter-regionais (Fig. 2) na destruição da “o aprendizado de Geologia/Geociências consti-
biodiversidade regional: tui um modo de construir ou aprimorar o caráter
do indivíduo, na exata medida em que nos leva a
No caso da Amazônia, que mais nos preocupa, conceber a singularidade de cada etapa evolutiva
machadeiros e motoserristas – acompanhados da Terra e a adquirir uma acentuada visão crítica
de queimadas sincopadas – o roteiro dos des- de nossa própria realidade, das circunstâncias sob
matamentos seguiu por rodovias, ramais e sub- as quais vivemos e da necessidade de se valorizar
-ramais, atingindo radicalmente as “espinhelas a geobiodiversidade terrestre. A Geoética é com-
de peixe” dos loteamentos feitos em quarteirões ponente essencial na formação de diversas cate-
especulativos no interior das matas biodiversas gorias profissionais (Carneiro et al. 2019, p. 26)”.
(Ab’Sáber, 2011, p. 120).

Ab’Sáber cita um experimento realizado na Centralidade da autoformação em Geociências


região de Nova Califórnia, na fronteira de Ron- O cenário de conflitos se expande sob um
dônia e Acre, que parece ser um bom exemplo de exame mais atento das complexas relações da inter-
autoformação: um missionário francês, em coope- ferência humana com os ecossistemas naturais,

Figura 2. O efeito “espinha de peixe” é um padrão recorrente de devastação da Floresta Amazônica, expandindo-se
a partir das estradas pioneiras de acesso. Vizinhanças de Itaituba (PA); imagem Landsat 2021. Fonte: Google
Earth® (2021)
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cujas consequências podem ser, às vezes, eviden- até o próprio planeta, em um contexto global. Tal
tes, como no caso da Figura 2; latentes; ocultas, ou convergência de tendências abriu amplo campo de
mesmo impossíveis de se prever. Pesquisadores e pesquisa integrada em Geociências, ao considerar a
professores estão diante do desafio permanente Terra como um local em que ações, reações, rela-
de possibilitar que “jovens e adultos detenham, ções e transformações podem ajudar a explicar o
minimamente, um repertório indispensável para processo histórico-geológico. Temas tipicamente
compreender o mundo complexo que nos cerca” geológicos como a Teoria da Tectônica de Placas e
(Carneiro et al., 2021). Geologia Planetária passaram a ser relacionados aos
As Geociências permitem situar o debate sob processos ocorridos na atmosfera e na hidrosfera,
uma perspectiva temporal – enriquecida pela con- de forma a (re)conceituar os impactos ambientais
cepção de Tempo Geológico – e oferecem um e os acidentes naturais. Nesse modo mais com-
arcabouço de conhecimentos básicos que promove plexo de ver a ciência, que enfatiza aspectos éticos,
notável convergência entre conhecimentos e expe- filosóficos e históricos, diversos problemas gerais
riências oriundos de diferentes campos da Ciência, do ambiente e temas como mudanças climáticas
principalmente se considerarmos as conquistas pro- globais e desafios globais relacionados à sustenta-
porcionadas pela visão sistêmica do funcionamento bilidade da vida humana no planeta são tratados
da Terra, que culmina na concepção de Ciência como constituindo diferentes aspectos da interação
do Sistema Terra. Tomemos o seguinte exemplo: dinâmica do homem com o planeta.
quando mostramos que o processo de geração de
combustíveis fósseis, como o petróleo, carvão e gás Trabalho de campo: uma possibilidade de
natural, demora milhões de anos, podemos
autoformação
(...) conscientizar a atual geração sobre a necessi- Trabalhos de campo compõem espaços de
dade de regular sua utilização, bem como mostrar ensino/aprendizagem que geram ricas condições
que o consumo exacerbado também é responsá- iniciais para a autoformação. Ali, no campo, onde
vel por manter alta a demanda. Geologicamente a ecoformação e a heteroformação se imbricam e
falando, é importante que os estudantes possam se complementam, ocorre uma imersão do indi-
confrontar os padrões de consumo atual e perce- víduo no meio natural ou social. Concorrem para
ber quantos recursos estão sendo desperdiçados.
as análises de campo nexos tão díspares quanto as
O desperdício, fruto [principal] do consumismo,
escalas do Tempo Geológico, o ciclo das rochas, a
consiste na utilização abusiva dos recursos natu-
rais (florestas, água, ar etc.) relacionados ao nosso atuação humana sobre a paisagem, aspectos relati-
grau de desenvolvimento industrial (Martins & vos à climatologia e às interações biológicas. Como
Carneiro, 2012, p. 67-68). conjugar tantas variáveis?
Uma possibilidade de conjugação é dada pela
A Ciência do Sistema Terra é um campo do construção do pensamento complexo. Para isso,
conhecimento humano que busca abranger e devem-se revisitar princípios, leis e teorias apren-
compreender as relações entre a esfera rochosa didas/construídas nas salas de aula pela mediação
(geosfera) e as demais esferas planetárias (atmos- do professor e as oferecidas pelo ambiente físico,
fera, hidrosfera, biosfera, tecnosfera). Tal ciência, levando-se em consideração uma terceira dimen-
de cariz ambiental, visa estudar: (a) as interações são, ligada à heteroformação e à ecoformação: a
entre oceanos, massas atmosféricas, seres vivos, autoformação. Apesar de esta tornar o caminho
processos geológicos, a dinâmica superficial e os mais complexo, ela é capaz de criar um campo
sistemas humanos; (b) dinâmicas que operam nas dialético de tensões, rebelde a toda a simplificação
zonas próximas à superfície da Terra e que conec- unidimensional. Mas como resistir a essa simpli-
tam os sistemas biológicos, físicos e humanos; (c) ficação?
inter-relações entre os sistemas físicos e biológi- Segundo Pineau (1983), uma reflexão educativa
cos, com enfoque nos respectivos impactos e nas fugaz (limitada à ação dos docentes sobre os discen-
mudanças que promovem. tes, na qual surgem concepções fixistas – e mesmo
A abordagem, intrinsecamente temporal e espa- involutivas – da vida) contribuiu para a formação
cial, utiliza variadas escalas de tempo e de espaço, incompleta de cidadãos, tornando-os incapazes de
que abrangem desde intervalos instantâneos até compreender e se posicionar sobre as contradições
bilhões de anos e desde uma simples partícula surgidas ao longo do caminho.
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Reforça-se que a autoformação será tomada
como uma perspectiva de autonomização educati-
va, entendida, a princípio, como apropriação intrín-
seca à pessoa de seu próprio poder de formação.
Trata-se, portanto, de uma pulsão (Freud, 2013)
dos indivíduos em regular, orientar e gerir, cada vez
mais, seu processo educativo (Dumazedier, 1980).
Visando explicar o processo de autoformação
em Ciências/Geociências, permitam-nos utilizar
imagens para discutir as dimensões citadas, uma vez
que a formação (inicial ou continuada) de profis-
sionais depende da construção de conhecimentos Figura 3. Aula no Laboratório de Cartografia Geológica
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
por meio dos acoplamentos estruturais em ambientes Fonte:  http://www.geologia.ufpr.br/portal/wp-con-
de educação formal, via socialização, e/ou por meio tent/uploads/2017/11/SalaDoMapa-1024x765.jpg
de coletas, pesquisas e trabalhos de campo, via
ecologização. O estabelecimento dos acoplamen- intenção do corpo docente (em realizar um levan-
tos acarreta o fechamento operacional, realizado pelos tamento, analisar ou comprovar fatos geológicos) e/
agentes envolvidos e caracterizado pelas reflexões ou da composição do grupo que realizará o trabalho
– decorrentes de interações/retroações – destas, em campo: São especialistas no assunto? São estu-
consigo mesmas (personalização), o que constitui dantes? Qual o nível de ensino envolvido?
um movimento passível de problematizações e Interessante observar que, não raro, saídas de
reavaliações. campo são programadas para ocorrer em um único
dia, nos períodos da manhã e da tarde. Se a visita for
específica, em geral, utiliza-se o período matutino
O trabalho de campo em contexto para preparar os integrantes das equipes, informan-
Muito acontece antes de uma saída para um do-os por meio de mapas, dados georreferenciados,
trabalho de campo: analisam-se objetivos; verifi- sobre o objeto de investigação, sobre o local de visita
cam-se as reais condições (econômicas, didáticas, etc. No caso de visita a vários locais, ou as infor-
ambientais etc.) para a sua realização, o que inclui mações são apresentadas (e até discutidas) em uma
uma ida dos responsáveis pelo trabalho aos locais reunião/aula, ou por meio de roteiros contidos em
para confirmar o que se sabe e até obter autoriza- materiais instrucionais específicos (Fig. 3). De um
ções para entrar na propriedade, sendo esta particu- modo ou de outro, é possível considerar essa etapa
lar; escolhem-se, previamente, os locais de parada como uma dinâmica de heteroformação, mediada
e de refeição; define-se um trajeto que minimize o pelo discurso docente (seja este oral ou escrito),
tempo de deslocamento e aumente o tempo reque- o que comprova que a experiência do outro pode
rido para a realização da pesquisa. O planejamento, ser formadora. Neste caso, assumimos a noção de
organização e execução de trabalhos de campo são experiência como sendo as “diferentes maneiras atra-
fundamentais para o êxito da iniciativa. vés das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade”
Outro fato importante relativo ao trabalho de (Tuan, 2013, p. 17). Refletindo sobre a heterofor-
campo em Geologia, por exemplo, é que ele não mação tradicional e a utilização de roteiros estru-
apenas aplica as bases gerais desta ciência ao cam- turados, muitos docentes transformam o trabalho
po, mediante a apropriação de técnicas e métodos de campo em uma experiência comprovatória, ou
para realização de levantamentos e representação de seja, os alunos são alertados sobre o que devem
dados geológicos, com mapas ou seções. O registro procurar e quais aspectos serão observados. Para o
do conhecimento gerado envolve ainda diversifi- caso de uma dinâmica de heteroformação baseada
cadas formas de representação e apresentação de no estudante, o roteiro semiestruturado (e até o não
resultados escritos, gráficos, pictóricos etc. No que estruturado) fornece pistas sobre a exploração do
diz respeito ao trabalho em si, é possível redigir ambiente, mas não restringe o objeto de pesquisa,
um roteiro com informações básicas (geográficas, podendo, ainda, aguçar a curiosidade dos estudan-
pedológicas, geológicas, por exemplo) e determinar tes, ao oferecer ao docente a oportunidade de gerir
se tal roteiro será estruturado, semiestruturado ou as atitudes de seus estudantes, inclusive, respon-
não estruturado – a depender, principalmente, da dendo questionamentos com outras perguntas.
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Ao chegar ao campo e receber suas missões, uma pulsão (no sentido freudiano) dos indivíduos
as equipes, já divididas, dirigem-se aos locais de em regular, orientar e gerir, cada vez mais, seu pro-
observação e interagem com o ambiente. Comu- cesso educativo (Dumazedier, 1980). Assim, para
mente, um membro da equipe irá registrar o local, que a autoformação tenha lugar é necessário que a
por meio de representações pictóricas (desenhos). pessoa se liberte dos determinismos, que são fontes
Até hoje, sugere-se aos estudantes que façam um de estereótipos, das ideias prontas e de preconcei-
esboço (‘o mais completo possível’) do objeto de tos, originados na dinâmica social.
pesquisa ao invés de somente fotografá-lo, uma vez Se considerarmos que a autoformação ultrapas-
que, assim, eles se detêm na observação do local, sa os quadros sociais de vida, é possível compre-
prestando maior atenção aos detalhes. Os outros endê-la como a expressão de um processo que, ao
membros da equipe poderão realizar tarefas mais produzir novos sentidos, enfraquece (até mesmo
técnicas como o levantamento do tipo de rocha esvanece) os limites impostos pelo ambiente social
presente, recolher dados sobre afloramentos e estra- e pela pedagogia tradicional. Nesse sentido, toda
tos rochosos, comprovar as informações de mapas reflexão sobre autoformação deve se apoiar na
geológicos, entre outras tantas possibilidades. autonomização, que alia o processo autoforma-
A interação dos envolvidos no trabalho de cam- tivo ao permanente processo de interrogação, ou
po com os aspectos geológicos locais constituem problematização.
parte relevante da ecoformação. Como cada mem-
bro da equipe enxerga o ambiente de um modo Interações ético-teórico-práticas e o
diferente (Fig. 4), focalizando sua atenção sobre
determinado ponto, para que se possa obter uma
trabalho de campo
visão mais completa sobre o objeto de pesquisa, faz- Como já afirmado, as interações da pessoa com
-se necessária a interação com os demais membros os ambientes físico e social são, ao mesmo tempo,
do grupo ou pedir a intervenção do docente, com a éticas, teóricas e práticas. Embora a dinâmica da
mobilização de saberes relativos à heteroformação. autoformação preveja a utilização de metodologias
Como dito anteriormente, o entrelaçamento das diferentes, estas são capazes de dialogar entre si e
dinâmicas ou processos de ecoformação e de hete- propiciar a efetivação desta dinâmica.
roformação pode possibilitar o acoplamento estrutural, Se a hermenêutica instaurativa se caracteriza
do qual resulta o fechamento operacional, dimensão pela eliminação de juízos de valor, ao produzir um
basilar à dinâmica de autoformação. texto sobre outro texto, torna-se importante compre-
Reforça-se que a autoformação – tomada como ender que fatos geológicos, como afloramentos
perspectiva de autonomização educativa – deve ser ou estratos rochosos, podem ser percebidos como
compreendida como a apropriação, pela pessoa em textos, que não demandam, necessariamente, uma
si, de seu poder de formação. Trata-se, portanto, de síntese explicativa, mas que podem auxiliar na
análise de uma dada região. A
interpretação dos fatos geoló-
gicos será mais relevante com
o estabelecimento de relações
temporais e espaciais capazes
de contribuir para a compre-
ensão do processo histórico-
-geológico, objeto de estudo
da Geologia (Potapova, 1968,
2007).
A construção conjunta e
dialógica do conhecimento,
por seu turno, é caracteriza-
da pela teorização da prática,
que pode levar à produção de
saberes críticos e à tomada de
Figura 4. Grupo de estudantes da UFOP realizando trabalho de campo. Fonte: consciência das conceituações
https://degeo.ufop.br/presentations/graduacao implícitas no processo. Assim,
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ao problematizar os saberes gerados ao longo do A exploração fenomenológica, pela tomada
trabalho de campo, os agentes em formação pode- de consciência e de pesquisas sobre ações opor-
riam tanto transformar a prática, quanto retomar tunas e sobre saberes na ação, não visa somente
as reflexões teóricas, analisando-as sobre outros compreender ‘o que’ e ‘como’ fazer, do ponto de
enfoques e reavaliando-as. De modo exemplar, é vista empírico. Ela contribui para a compreensão
comum que estudantes observem estratos geológi- das interações e retroações entre as três dimensões
cos sedimentares para inferir sobre a idade e origem da autoformação (S-1, S-2 e S-3), as quais podem
destes, de modo a reconstituir o processo histórico- acarretar novas descobertas (morfogênese) e/ou
-geológico, por meio da análise do conteúdo fóssil transformações (metamorfose) dos procedimentos
de cada um dos estratos, por exemplo. experimentais.
Esta construção transdisciplinar e dialógica pode- O método fenomenológico almeja, conforme
ria ser estabelecida pela utilização do método de Trei- Ribeiro Júnior (1991), descrever as bases do empi-
namento mental, tal como sugerido por Dumazedier rismo por meio da lógica, ao oferecer explicações
(1994), que se baseia na transformação (metamor- sobre o papel do entendimento na experiência,
fose) das situações. Nesse sentido, o método prevê e ao buscar na realidade, por meio da descrição
a investigação da situação a começar por questões dos fenômenos, aproximar-se da compreensão
científicas simples (reconhecimento da presença dos do processo histórico-geológico – núcleo duro
estratos, por exemplo), gerenciar a seleção dos obje- da Geologia (Potapova, 1968, 2007). Nesse senti-
tivos (análise da composição do estrato) e dos meios do, é possível afirmar que, assim como a dialética
para efetivá-la (análise química, geológica, paleon- pode problematizar aspectos teóricos da Geologia,
tológica etc.) e determinar, por meio da ética, sua caberia à fenomenologia problematizar os aspectos
possível trajetória de estudos. Assim, a dinâmica da práticos do trabalho de campo.
personalização do processo de autoformação poderá
auxiliar o indivíduo a: (1) focar sua atenção em um
tema, (2) refletir sobre possíveis transformações do
Relatos sobre trabalhos de campo
objeto de pesquisa e das bases teórico-metodológicas O(s) relatório(s) que o(s) membro(s) das equi-
– notadamente frente às novas descobertas – e (3) pes prepara(m) após a ida ao campo constituem
gerir as transformações propostas, relativas à com- importantes elementos de análise das dinâmicas
preensão e à religação dos saberes. S1, S2 e S3, caso o processo de autoformação esteja em
O Treinamento mental participa no processo de curso. Entre os aspectos a analisar, é possível foca-
autoformação ajudando a eleger não somente seu lizar tanto os provenientes da realidade do entor-
foco de pesquisa, como também as referências no, percebida pelos participantes, quanto atitudes
que serão utilizadas no trabalho. Ao iniciar pela tomadas por estes, frente ao que percebiam. Nas
leitura crítica, a pessoa buscará informações sobre interações ocorridas ao longo do processo de cons-
o problema em si e sobre os referenciais teórico- trução do conhecimento, ao longo do trabalho
-metodológicos, para, assim, refletir sobre os resul- de campo, cada participante não somente narra
tados obtidos e tirar suas próprias conclusões. Não suas percepções, mas também constrói sentidos.
se pode esquecer que a leitura se aplica tanto aos Nesse sentido, deve-se esclarecer que os sentidos
textos redigidos quanto aos afloramentos e estratos construídos no que tange aos objetos, pessoas,
em análise! A problematização da primeira leitu- ambientes e símbolos do universo empírico, bem
ra pode levar a uma segunda, na qual se devem como suas respostas e interações com as categorias
avaliar aspectos tanto intrínsecos (há coerência? o problematizadas, constituem chaves interpretativas
problema é esclarecido?), quanto extrínsecos das para a compreensão do processo de autoformação.
referências utilizadas em relação à leitura primeira Com certa frequência, observam-se grupos de
(que informações obtidas no trabalho de campo estudantes de Geologia em trabalho de campo, em
comprovam – ou negam – o autor/ as análises cortes de estrada, coletando amostras, observando
geológicas anteriores?). Finalmente, uma terceira e analisando rochas e estratos geológicos e sugerin-
e última releitura, denominada criativa, pode levar a do interpretações aos fatos geológicos presentes na
novos horizontes. Nesta, outros problemas e hipó- paisagem. Mais que isso, é bastante comum que, ao
teses podem surgir e novas metodologias podem analisar o entorno, a atenção dos membros do grupo
ser testadas. Contudo, o processo de autoformação seja atraída para áreas ocupadas por grupos humanos
deve nortear cada uma das leituras. e para os efeitos de ações antrópicas sobre o ambiente.
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Apesar de muitos relatórios não citarem o fato, os incorporam, constituem uma tentativa de narra-
na hora das refeições e das paradas os membros do ção (incompleta) sobre o tempo e o espaço vividos
grupo aproveitam para trocar informações entre si no trabalho de campo, ao apresentar os sentidos
ou se relacionar (de modo diverso) com o entor- construídos durante a experiência.
no, por meio de conversas com moradores locais, A avaliação dos relatórios comprova que não é
por exemplo. É possível dizer que este “choque possível apreender tudo sobre o meio observado,
de realidade” não somente leva a reflexões sobre nem entender totalmente a experiência do outro.
as condições de vida das pessoas, como “planta O máximo que se pode esperar são algumas gene-
a semente” para a germinação da autoformação, ralizações e comparações na construção de sentidos,
fruto da socialização (S1) e ecologização (S2), das tanto as envolvidas nas práticas quanto as constan-
quais decorre a formação da própria pessoa (per- tes dos objetos culturais (Duccini & Sales, 2013).
sonalização, S3).
Esses tipos de interação são de suma importân-
cia para pensar e problematizar aspectos sociais e
Discussão
culturais, que contextualizam, junto aos membros O item de discussão, que ora apresentamos, se
das equipes, os fatores sociais da percepção e que inicia pelas palavras de Gilbert Simondon (1964):
complementam a análise da área. Por meio desses
aspectos, pode-se comprovar como se mesclam O ser vivo não resolve os seus problemas ao se
conceitos, tais como cultura e ambiente, humani- adaptar, ou seja, ao modificar a sua relação com
o meio, mas sim se modificando [a si mesmo],
dade e natureza. A hibridação possibilita começar
inventando estruturas interiores novas e intro-
a derrubar o limite entre sujeito e objeto – tão
duzindo-se completamente na axiomática1 dos
importante à transdisciplinaridade – e que se pode problemas vitais (Simondon, 1964, p. 9).
compreender que o espaço “não é um ambiente em
que as coisas se dispõem, mas um meio pelo qual Desse modo, é possível entender que a autofor-
a disposição das coisas ocorre” (Merleau-Ponty, mação em ciências constitui uma dinâmica basilar
1999, p. 328). de ensino/aprendizagem, que pode ser iniciada a
Outro fato que se destaca nos trabalhos de partir das séries iniciais do ensino fundamental,
campo é que as pessoas costumam assumir posturas mas que irá se concretizar somente no ensino supe-
díspares das fundamentadas em seus conhecimen- rior, estendendo-se por toda vida. Do processo de
tos objetivos; algumas delas podem se expressar autoformação resultarão momentos de regulação,
por meio de imagens subjetivas, construídas nos atuação, síntese, organização de múltiplos elemen-
espaços vividos. Da experiência vivida, esses agentes tos (físicos, ambientais e sociais, entre outros) que
em formação estabelecem relações com os níveis constituirão o ser humano, em sua incompletude e
de realidade (sociais) por meio de interações com resiliência. No mesmo processo, surgirão questões,
objetos exteriores, atreladas aos níveis de percepção que podem ser originais ou não, e problematiza-
(individual), tal como afirmam Santa Ana e cola- ções, capazes de produzir novos sentidos.
boradores (2020). Por estarem sempre em ação, os seres humanos
O processo de autoformação pode transformar são capazes de transformar a realidade, reagindo
ideias prévias sobre a natureza dos objetos ana- contra situações que os oprimem. Mais do que bus-
lisados em ideias (originais ou não) construídas car uma situação de estabilidade, a autoformação é
a partir da relação com a natureza e por meio da um processo de exercício permanente e contínuo,
consciência, pautada na percepção e derivada da ati- que estabelece (e problematiza) os níveis (sociais)
vidade de campo. Entretanto, é das especificidades de realidade a partir dos níveis de percepção (o que
de cada indivíduo – apresentadas nos processos de inclui a autopercepção), para mais bem compreen-
apreensão e avaliação do espaço – que o processo der o mundo que vivemos.
de autoformação define seu trajeto, que a apreensão
objetiva transmuta para um olhar autorizado, que 1 Segundo Tassinari (2013), teorias axiomáticas
acolhe as subjetividades e simbolismos da experi- servem à sistematização de uma área do co-
nhecimento, no qual necessitamos de deduções
ência vivida. e demonstrações, sendo que estas sempre se
Considerando conceitos, ideias e represen- apoiam em asserções anteriores, admitidas sem
tações como objetos culturais, afirma-se que os demonstração (axiomas), das quais se definem e se
relatórios redigidos, que na maior parte das vezes demonstram outros termos logicamente dedutíveis.

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O processo de autoformação pode ser instigado de ordenar e controlar as interações e articulações
ou sugerido, mas somente virá acompanhado de entre os discentes e a comunidade.
bons resultados se for aceito e incorporado pelo Os projetos criaram um espaço comunitário de
agente em formação. O ciclo vital deste processo solidariedade, que possibilitou aos professores – e
surge em função da própria incompletude da edu- aos seus estudantes – refletir e problematizar sobre
cação recebida, das ‘grandes narrativas’ da ciência o papel das pessoas na preservação do ambiente.
e das concepções (fixistas ou evolutivas) do trajeto Os projetos, por seu turno, não apenas organiza-
de vida, sendo operado pela dinâmica reflexiva da ram a experiência; eles ajudaram a construir uma
personalização (S3). Trata-se, portanto, de uma série de relações espaciais e sociais elementares, tão
dupla apropriação do poder de formação: é tomar singulares quanto importantes à autoformação dos
em mãos este poder – ao se tornar sujeito da ação – e professores em formação continuada.
aplicá-lo a si mesmo – tonando-se objeto de formação para
si mesmo. A dupla operação desdobra o indivíduo
em um sujeito e em um objeto muito particular,
Considerações Finais
denominado autorreferencial, que esclarece e amplia Pineau (1983) afirmou, há quase quarenta anos,
as capacidades de autonomização na interface entre que deveríamos superar o período paleocultural
a heteroformação e a ecoformação, ou seja, no da heteroformação, que tentou se impor como
âmago do próprio agente em formação (Pineau, o único processo a ser considerado na formação.
1983). Ao criar essa interface, oferece ao sujeito um Segundo tal autor, ao valorizar e trazer a ecofor-
distanciamento que lhe permite ver-se, perceber- mação para junto da heteroformação, poderíamos
-se ou reconhecer-se como um objeto entre os conseguir um acoplamento, que incorporaria uma
demais objetos, mas diferente destes por ser capaz dinâmica permanente, dialética e multiforme: a
de refletir e se autonomizar, ou seja, autoformar-se. autoformação.
Como cada indivíduo constrói um projeto de Cada indivíduo adulto envolve-se em um
vida que se apoia na fluidez de uma rica trama de mecanismo de autoformação ao assumir as rédeas
trocas, reflexões, vivências e histórias, podemos de seu aprendizado, dando início a ciclos sucessi-
admitir que nossa vida pode ser compreendida vos de ação-reflexão-ação. O campo das Ciências
como uma narrativa dinâmica (com enredo fluido) Ambientais e, sobretudo, das Geociências, compõe
na qual aprendemos mais e melhor quando encon- um espaço privilegiado para a autoformação, que
tramos significado – significamos – em tudo aquilo contribui para engendrar uma cidadania respon-
que percebemos e somos. sável e consequente. A autoformação é uma das
Por essa razão, defende-se que parte da educa- dimensões da construção do pensamento comple-
ção esteja atrelada à realização de projetos de cunho xo, juntamente com a heteroformação e a ecofor-
social, até mesmo quando estiverem envolvidos mação. Embora a autoformação exija autonomia e
componentes curriculares ligados às Ciências da tempo, ela se torna aprendizagem permanente ao se
Natureza. Em tese recente, Martins (2020) consta- associar à perspectiva pluralista da transdisciplina-
tou que a autoformação de professores de ciências ridade. Ao mesmo tempo, a imersão do indivíduo
parece atingir melhores resultados quanto à cons- na sociedade e na natureza modifica amplamente
trução conceitual quando seus alunos se engajam os ritmos temporais de seu aprendizado e ajuda
em projetos sociais que envolvam uma vertente cada comunidade a enfrentar situações polêmicas
ambiental. Realizados por professores de escolas e conflituosas da interferência humana com os
particulares do interior de São Paulo, os projetos ecossistemas naturais, cujas consequências podem
visaram: (1) a melhoria do trânsito e a redução da ser evidentes, fracamente percebidas ou, eventual-
emissão de gases poluentes, por meio de um projeto mente, imprevisíveis.
de carona solidária e (2) ações comunitárias para
conseguir limpar (atitudes corretivas) e manter Referências
limpo (atitudes preventivas) um córrego que flui Ab’Sáber, A. N. (2011). Do Código Florestal para o Có-
pelo centro da cidade. Nos dois casos, apesar dos digo da Biodiversidade. Campinas, SP, Terræ Didat-
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