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Resposta ao e-mail com a questão sobre ibuprofeno e aumento do risco de

complicações cardíacas em 31% verificado em publicação de 2017:


‘Boa noite,
Segundo alguns estudos publicados (https://www.escardio.org/The-ESC/Press-
Office/Press-releases/harmless-painkillers-associated-with-increased-risk-of-cardiac-
arrest?hit=twitter) o ibuprofeno aumenta o risco de complicações cardíacas em 31%.
Foi feito alguma coisa quanto a isso? ‘

Respondendo à questão apresentada


O que já se sabia sobre o risco vascular dos AINEs
Os anti-inflamatórios não esteroides (AINE), são inibidores da ciclo-oxigenase (COX).
São dos fármacos mais prescritos a nível mundial, pelo efeito anti-inflamatório e
analgésico. Despois de uma primeira geração de AINE, de que o ibuprofeno faz parte,
surgiu uma segunda geração, os inibidores seletivos da ciclo-oxigenase 2 (COX 2).
Sabemos que quando inibimos a COX inibimos todos os produtos desta enzima.
Assim, há diminuição das prostaglandinas (inflamatórias), prostaciclinas
(vasodilatadoras) e tromboxanos (efeitos agregativos / coagulativos).
Nestas circunstâncias, sabemos que o uso de AINE, em geral, comporta riscos de
complicações cardiovasculares e outras. Por vasoconstrição pode agravar a
insuficiência cardíaca, descompensar a hipertensão arterial e, por alteração dos
tromboxanos, pode haver alterações da agregação / coagulação.
O uso dos inibidores da COX-2 também pode apresentar estas complicações, mas,
aparentemente, em menor nível.
Nestas circunstâncias, os AINEs, como qualquer outro medicamento, devem ser
utilizados quando os previsíveis benefícios suplantam os riscos, que estão
discriminados nos seus Resumos de Caraterísticas do Medicamento (RCM).
Sendo medicamentos sintomáticos, devem ser utilizados em doses baixas, e, se
possível, por períodos curtos.

O artigo em causa, de 2017


O artigo de base que levou à questão apresentada é o: “Non-steroidal anti-
inflammatory drug use is associated with increased risk of out-of-hospital cardiac
arrest: a nationwide case–time–control study”, da autoria de Kathrine B. Sondergaard
et al, publicado no European Heart Journal - Cardiovascular Pharmacotherapy 2017;
3: 100–107.
Este estudo avalia numa amostra importante de 28947 doentes, o risco de paragem
cardíaca (PC) em doentes que fazem AINEs.

Dos resultados emerge que o uso de AINEs está globalmente associado à PC, sendo
esta associação significativa em relação ao Diclofenac (Odds Ratio OR=1,50,
intervalo de confiança de 95% de 1,23 a 1,82) e ao Ibuprofeno (OR=1,31, de 1,14 a
1,51) e não significativo em relação ao Naproxeno (OR=1,29, de 0,77 a 2,16) e
inibidores da COX-2: Celecoxib (OR=1,13, de 0,74 a 1,70) e Rofecoxib (OR=1,28, de
0,74 a 1,70).
Estes resultados são interessantes, no entanto são muito controversos por várias
ordens de razões:
1 – Trata-se de um estudo observacional e descritivo. Um estudo observacional não
pode, pela sua natureza, definir nexo de causalidade;
2 – Não há aleatorização dos doentes a fazer AINEs, pelo que pode haver grande
enviesamento de dados e consequentemente de resultados;
3 – Para tentar evitar enviesamentos nos 2 grupos, cada doente, enquanto são, é
controlo de si próprio, após PC. Este procedimento evita diferenças de género, de
fatores de risco, etc, mas não pode corrigir as flutuações da doença.

Faz sentido que se tomem mais medicamentos, nomeadamente quando se tem mais
queixas ou quando se está mais doente. Em última análise, poderemos aceitar que
há mais paragens cardíacas quando há mais queixas dolorosas ou quando se está
mais doente, o que pode nada ter a ver com a toma de AINEs.
4 – A toma de AINEs foi assumida pela prescrição destes medicamentos, e não pela
efetiva toma dos mesmos, que não foi avaliada.
Devo referir que parte destas limitações são reconhecidas e referidas no artigo em
questão.

Analisando com mais pormenor os dados, e sendo correto na sua avaliação,


verificamos que o risco do Ibuprofeno, que corresponde a 51 % das prescrições, de
1,31, é rigorosamente igual ao risco da toma dos AINEs globalmente (1,31).
Como a amostra de toma de qualquer AINE é maior, os resultados apresentam
intervalos de confiança menores (OR=1,31 IC de 1,17 a 1,46, com AINEs versus
OR=1,31 IC de 1,14 a 1,51 com Ibuprofeno).
Logo, baseado nestes resultados, não podemos afirmar que a toma de Ibuprofeno
seja melhor ou pior que a toma de AINEs em geral. De acordo com estes dados é até
rigorosamente igual.
Indo um pouco mais longe: seria incompreensível que, em medicamentos com o
mesmo mecanismo de ação, uns tenham risco acrescido de PC e outros não. Refiro
o Naproxeno, com OR=1,29, IC de 0,77 a 2,16. Como é referido no próprio artigo,
este facto pode dever-se à reduzida amostra em estudo. Com uma amostra maior,
um OR de 1,29 certamente seria significativo.
O mesmo se passa com os inibidores da COX-2, em que a dimensão reduzida da
amostra em estudo impediu que o seu risco fosse estatisticamente significativo, mas
tal não quer dizer que esse risco não exista.
Ou seja, podemos aceitar que o risco “significativo” de PC com Ibuprofeno e
Naproxeno se deveu ao maior número de doentes que os tomam (51 e 21,8%,
respetivamente), enquanto que todos os outros AINEs só representam 27,2 % da
amostra, criando grupos em que o risco de PC não atinge significância estatística.
Sendo justo, também não é legítimo afirmar que o Diclofenac apresente mais risco do
que o Ibuprofeno ou do que o uso de outros AINEs em particular, uma vez que deve
ser tido em conta o OR, mas também os seus intervalos de confiança. Ora, como os
intervalos de confiança de 95% estão sempre sobrepostos, não podemos afirmar que
qualquer AINE em avaliação é significativamente inferior ou superior a outro.
Concluindo: trabalho interessante, que levanta um problema importante (a PC no
âmbito da toma de AINE), mas com grandes limitações metodológicas que não
permitem conclusões seguras.

Conclusão
O Ibuprofeno é um AINE utilizado a nível Mundial por milhões de pessoas.
Como com todos os medicamentos, o seu uso deve ser criterioso, ponderando os
seus benefícios com os riscos. Obviamente só deve ser utilizado quando os primeiros
suplantam claramente os segundos.
No caso do Ibuprofeno, aconselha-se o seu uso por períodos curtos e em dose baixas,
para se conseguir o máximo de benefício com o mínimo de risco. Por isso, em OTC,
só existe em doses até 400 mg, sendo esta dose de dispensa exclusiva em farmácia
(de salientar o facto de a dose referida no estudo ser a de 200 mg)
A vigilância da adequação dos vários medicamentos está a cargo dos
Comercializadores, que mantêm a Farmacovigilância contínua dos eventuais efeitos
adversos associados ao uso dos medicamentos, bem como de entidades nacionais
(INFARMED) e internacionais (EMEA), que recebem e avaliam os reportes das várias
origens e que, caso detectem uma alteração do perfil de efeitos adversos que
considerem significativa, ordenam que sejam submetidas alterações à informação
relativa à sua utilização (Resumo das Características do Medicamento e Folheto
Informativo).
A possibilidade de haver efeitos adversos com o uso de AINEs em geral, e de Brufen(
Ibuprofeno) em particular, estão referidos no Resumo das Caraterísticas do
Medicamento, aprovado pelo INFARMED, que refere, textualmente:

Extratos do RCM Brufen (Ibuprofeno)

“A dose de ibuprofeno depende da idade e do peso corporal do doente. Nos adultos e


adolescentes, a dose única máxima diária de 400 mg de ibuprofeno não deve ser
ultrapassada.”…

A dose total não deve exceder 1200 mg de ibuprofeno num período de 24 horas.


Efeitos cardiovasculares e cerebrovasculares:
Deve tomar-se precaução (consultar o médico ou farmacêutico) antes de iniciar o tratamento
em doentes com antecedentes de hipertensão ou insuficiência cardíaca, uma vez que foram
notificados casos de retenção de líquidos e edema em associação com a terapêutica com
AINEs.
Os estudos clínicos sugerem que a utilização de ibuprofeno, particularmente com uma dose
alta (2400 mg/ dia), pode estar associada a um pequeno risco aumentado de episódios
trombóticos arteriais (por exemplo, enfarte do miocárdio ou acidente vascular cerebral (AVC)).
De uma forma geral, os estudos epidemiológicos não sugerem uma associação entre a
utilização de doses baixas de ibuprofeno (p.ex., ≤ 1200 mg/ dia) e um risco aumentado de
episódios trombóticos arteriais.
Os doentes com hipertensão não controlada, insuficiência cardíaca congestiva (Associação
Cardíaca de NYHA II-III), cardiopatia isquémica estabelecida, arteriopatia periférica e/ou
doença cerebrovascular apenas devem ser tratados com ibuprofeno após uma ponderação
cuidadosa e as doses altas (2400 mg/dia) devem ser evitadas.
Também se recomenda uma ponderação cuidadosa antes de iniciar o tratamento a longo
prazo de doentes com fatores de risco para episódios cardiovasculares (p. ex., hipertensão,
hiperlipidemia, diabetes mellitus, tabagismo), particularmente se forem necessárias doses
altas de ibuprofeno (2400 mg/dia).

Por todas estas razões, acreditamos que a Saúde Pública está protegida e que o uso
de Ibuprofeno, nas doses preconizadas, continua a constituir uma alternativa
terapêutica válida nas suas indicações, quando não há contraindicações.

R Palma Reis, Cardiologista, PhD, FESC

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