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Introdução
Devemos estudar “os benefícios das intervenções médicas em relação a seus riscos e
custos”.
– Kerr L. White
1992
1
2 Epidemiologia clínica: elementos essenciais
e troponinas elevadas) que nos esquecemos de que possibilidade de que, no diabetes tipo 2, a redução
os resultados desses testes não são o que realmen- agressiva da glicemia não protege contra doenças
te importa na prática clínica. Somos levados a crer cardíacas.) Mostrar melhora nos desfechos de saú-
que, se pudermos mudar o resultado do teste de de dos pacientes é especialmente importante com
alterado para normal, teremos ajudado o pacien- novos fármacos, pois em geral intervenções far-
te. Porém isso só é verdadeiro se estudos cuida- macológicas apresentam diversos efeitos clínicos
dosos tiverem demonstrado uma relação clara en- em vez de somente um.
tre os resultados de exames laboratoriais e um dos
cinco Ds. A BASE CIENTÍFICA PARA
A MEDICINA CLÍNICA
EXEMPLO A epidemiologia clínica é uma das ciências bási-
A incidência de diabetes melito tipo 2 está aumen- cas em que os clínicos se apoiam para o cuidado
tando drasticamente nos Estados Unidos. Em pesso- com os pacientes. Outras ciências da saúde tam-
as com diabetes, o risco de óbito por doença cardíaca bém são inerentes ao cuidado com o paciente e es-
é duas a quatro vezes maior do que naquelas sem es-
sa doença, e as doenças cardiovasculares são respon- tão resumidas na Figura 1.1. Muitas das ciências
sáveis por aproximadamente 70% de todos os óbitos se sobrepõem.
em pacientes com diabetes. Novos esforços farmaco- A epidemiologia clínica é a ciência que faz pre-
lógicos para controlar o diabetes produziram uma
classe de fármacos, as tiazolidinedionas, que aumen-
dições sobre pacientes individuais, utilizando a
tam a sensibilidade à insulina em músculos, gordura e contagem de eventos clínicos (os cinco Ds) em
fígado. Diversos estudos demonstraram que esses fár- grupos de pacientes semelhantes e valendo-se de
macos reduzem os níveis de hemoglobina A1C em pa- métodos científicos sólidos para garantir que as
cientes com diabetes. Um desses fármacos, a rosigli-
tazona, foi aprovado para uso em 1999. No entanto,
predições sejam corretas. O objetivo da epidemio-
nos anos seguintes, diversos estudos de seguimento logia clínica é desenvolver e aplicar métodos de
demonstraram um resultado surpreendente: pacien- observação clínica que conduzam a conclusões vá-
tes recebendo rosiglitazona tinham uma probabili- lidas, evitando o engano por erros sistemáticos e
dade maior, e não menor, de apresentar problemas
cardíacos, com diferentes estudos demonstrando au- aleatórios. É uma abordagem importante para ob-
mento de infartos, insuficiência cardíaca, AVC e mor- ter o tipo de informação de que os clínicos neces-
talidade cardiovascular ou por todas as causas (1-3). sitam para tomar boas decisões no cuidado com
Como muitos dos estudos que apresentavam resulta-
dos positivos do medicamento sobre os níveis de gli-
o paciente.
cose ou hemoglobina A1C não foram a princípio deli-
neados para examinar os resultados cardiovasculares
por um período mais longo, a maioria dos estudos de CAMPO DE PESQUISA FOCO PRINCIPAL
seguimento não eram ensaios clínicos rigorosos. En-
tretanto, foram levantadas dúvidas suficientes para, Modelos animais
Ciências biológicas
em 2010, o U.S. Food and Drug Administration res- Células e transmissores
tringir o uso de rosiglitazona; na Europa, essa medi- Moléculas
cação foi retirada do mercado. Genes
Desenvolvimento de fármacos
ra um paciente individual e têm maior probabili- toacidose diabética. A genética molecular prediz
dade de mudar sua prática após tal experiência do a ocorrência de doenças que variam das doenças
que após ler um estudo bem conduzido. Essas al- cardiovasculares comuns e do câncer até raros er-
ternativas, que são menos confiáveis do que a me- ros inatos do metabolismo, como fenilcetonúria e
dicina baseada em evidências, podem ser bastan- fibrose cística.
te atrativas no nível emocional e podem fornecer A compreensão da biologia da doença, contu-
uma forma conveniente de lidar com a incerteza, do, muitas vezes não é uma base sólida para fazer
mas são más substitutas para as evidências basea- predições em humanos intactos. Muitos outros
das em pesquisas. fatores contribuem para a saúde e para a doen-
A pesquisa em serviços de saúde é o estudo de ça. Antes de tudo, os mecanismos da doença po-
como fatores não biológicos (por exemplo, fun- dem não ser completamente compreendidos. Por
cionários e instalações clínicas, a maneira como exemplo, a noção de que a glicemia em pacientes
o serviço é organizado e pago, as crenças dos clí- diabéticos é mais afetada pela ingestão de açúca-
nicos e a cooperação dos pacientes) afetam a saú- res simples (sacarose ou açúcar de cozinha) do que
de dos pacientes. Esses estudos têm demonstrado, por açúcares complexos, como o amido (como em
por exemplo, que o cuidado médico difere subs- batatas e massas), foi derrubada por estudos rigo-
tancialmente de uma pequena área geográfica pa- rosos que compararam os respectivos efeitos des-
ra outra (sem diferenças correspondentes na saú- ses alimentos na glicemia. Além disso, está fican-
de dos pacientes); que as cirurgias em hospitais do claro que os efeitos de anormalidades genéticas
que costumam realizar um procedimento especí- podem ser alterados por um ambiente físico e so-
fico tendem a apresentar um desfecho melhor do cial complexo, como a dieta do indivíduo, a expo-
que em hospitais em que tal intervenção é rea- sição a agentes infecciosos e químicos. Por exem-
lizada com pouca frequência; e que a aspirina é plo, a glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é
pouco utilizada no tratamento do infarto agudo uma enzima que protege as hemácias contra le-
do miocárdio, mesmo que se tenha demonstrado são oxidativa que leva à hemólise. A deficiência
que essa prática simples reduz o número de even- de G6PD é a deficiência de enzimas mais comum
tos vasculares subsequentes em cerca de 25%. Es- em humanos, ocorrendo devido a mutações espe-
ses tipos de estudos orientam os clínicos em seus cíficas do gene G6PD ligado ao cromossomo X.
esforços para aplicar o conhecimento existente so- No entanto, homens com variantes genéticas de
bre as melhores práticas clínicas. ocorrência comum da deficiência de G6PD são
Outras ciências relacionadas a serviços de saú- em geral assintomáticos e desenvolvem hemólise
de também orientam o cuidado com o paciente. A e icterícia somente quando são expostos a fato-
tomada de decisão quantitativa inclui análises de res ambientais que geram estresse oxidativo, co-
custo-efetividade, que descrevem os custos finan- mo determinados fármacos ou infecções. Por fim,
ceiros necessários para chegar a um bom desfecho, como mostrado no exemplo do tratamento com
como a prevenção de morte ou doença, e análises rosiglitazona para pacientes como diabetes tipo 2,
de decisão, que estabelecem a base racional para os fármacos muitas vezes têm múltiplos efeitos na
decisões clínicas e para avaliar as consequências de saúde dos pacientes, não somente o efeito previs-
cada escolha. As ciências sociais descrevem como to ao estudar a biologia da doença. Portanto, o co-
o ambiente social afeta o comportamento relacio- nhecimento da biologia da doença produz hipóte-
nado à saúde e o uso dos serviços de saúde. ses, frequentemente muito boas, sobre o que pode
As ciências biológicas estudam a sequência de acontecer aos pacientes, mas essas hipóteses pre-
eventos biológicos que levam da saúde à doen- cisam ser testadas por meio de estudos rigorosos
ça e são uma forma eficaz de saber como os fe- com humanos intactos, antes de serem aceitas co-
nômenos clínicos podem funcionar no nível hu- mo fatos clínicos.
mano. Historicamente, foi sobretudo o progresso Em resumo, a epidemiologia clínica é apenas
nas ciências biológicas que estabeleceu a aborda- uma entre as várias ciências que são básicas para
gem científica à medicina clínica e continua de- a medicina clínica. Na melhor das hipóteses, as
sempenhando um papel central. A anatomia ex- muitas ciências relacionadas à saúde se comple-
plica as síndromes de compressão de nervos, suas mentam. As descobertas de uma são confirmadas
causas, sintomas e mecanismos de alívio. A fisio- em outra, e as descobertas da segunda levam a no-
logia e a bioquímica orientam o manejo da ce- vas hipóteses para a primeira.
6 Epidemiologia clínica: elementos essenciais
AMOSTRAGEM AMOSTRA
As observações dos pacientes (seja para o cui-
dado do paciente ou para pesquisa) são particu-
POPULAÇÃO
INFERÊNCIA larmente suscetíveis a viés. O processo tende a ser
desorganizado. Como participantes em um estu-
do, os seres humanos tendem a ter o desconcer-
tante hábito de fazer o que preferem e não o que
seria necessário para produzir respostas cientifica-
FIGURA 1.2 População e amostra. mente rigorosas. Quando os pesquisadores ten-
8 Epidemiologia clínica: elementos essenciais
ca (mas superestimar a diastólica). Estudos também randomizados, capazes de evitar o viés de confusão,
demonstraram uma tendência de os clínicos registra- não mostraram grandes efeitos dos antioxidantes
rem valores que estejam no nível normal em pacien- (13, 14). De fato, quando os resultados desses estudos
tes no limite para pressão arterial alta. Erros sistemá- foram combinados, o uso de antioxidantes, especial-
ticos na aferição da pressão arterial podem, portanto, mente em altas doses, foi associado a um pequeno
levar a excesso ou falta de tratamento de pacientes aumento, não redução, nas taxas de mortalidade. Co-
na prática clínica. A pesquisa clínica baseada em afe- mo conciliar os resultados dos estudos iniciais com os
rições da pressão arterial feitas durante o cuidado ro- achados opostos dos ensaios clínicos posteriores, cui-
tineiro de pacientes pode levar a resultados engana- dadosamente controlados? Sugeriu-se que houve vi-
dores, a menos que procedimentos cuidadosamente és de confusão, como mostra a Figura 1.4. As pessoas
padronizados sejam usados. Esses tipos de vieses le- que ingerem antioxidantes por conta própria tendem
varam ao desenvolvimento de instrumentos de afe- a fazer outras coisas de forma diferente daqueles que
rição da pressão arterial que não envolvam ouvidos não tomam antioxidantes – como fazer mais exercí-
e mãos humanas. cios, cuidar do peso, comer mais vegetais e não fumar
– e podem ser essas atividades, não os antioxidantes,
que levaram a uma redução na taxa de mortalidade
nos estudos que não randomizaram a intervenção.
Viés de confusão (ou confundimento)
O viés de confusão (ou confundimento) pode
ocorrer quando se tenta descobrir se um fator, co- A maioria das pesquisas clínicas, sobretudo es-
mo um comportamento ou a exposição a um me- tudos que observam pessoas durante um perío-
dicamento, é, por si só, uma causa de doença. Se do de tempo, rotineiramente tentam evitar o viés
esse fator estiver associado ou “andar junto” com de confusão, “controlando” para possíveis variá-
outro fator, que está por sua vez relacionado ao veis confundidoras na análise (veja o Capítulo 5).
desfecho, o efeito de um pode ser confundido ou Variáveis como idade, sexo e raça quase sempre
distorcido pelo efeito do outro. são analisadas como potenciais confundidoras,
pois muitos desfechos de saúde variam de acordo
com elas. Estudos que envolvem comportamento
humano (como a ingestão regular de antioxidan-
EXEMPLO tes) são especialmente propensos a viés de con-
Suplementos de antioxidantes, como as vitaminas A, fusão, uma vez que o comportamento humano é
C e E, são populares entre o público leigo. Experimen- tão complexo que é difícil analisar todos os fato-
tos de laboratório e estudos realizados com pessoas
que escolhem ingerir antioxidantes sugeriram que
res que podem influenciá-lo.
eles previnem doenças cardiovasculares e alguns ti- Uma variável não precisa ser uma causa da doen
pos de câncer. No entanto, cuidadosos ensaios clínicos ça ou outra condição de interesse para ser confun-
didora. Ela pode estar relacionada à condição, em
Prevenção
Ingestão de de doenças
Questão antioxidantes cardiovasculares
principal
Idade
Uso de aspirina
FIGURA 1.4 Viés de confusão. A Atividade física
Fatores potencialmente
relação entre a ingestão de antio- confundidores Índice de massa corporal
xidantes e o risco de doenças car- Tabagismo
diovasculares é potencialmente História familiar
confundida pelas características Dieta
do paciente e por comportamen-
tos relacionados tanto ao uso de
antioxidantes quanto ao desen-
volvimento de doenças cardio-
vasculares.
10 Epidemiologia clínica: elementos essenciais
um determinado banco de dados, devido ao viés estiver, que teria um efeito suficientemente gran-
de seleção ou ao acaso, mas não relacionada na na- de nos resultados para ter relevância. Para um pes-
tureza. Seja a relação apenas nos dados ou na na- quisador ou um leitor lidar de forma adequada
tureza, a consequência é a mesma: a impressão er- com o viés, é necessário primeiro saber onde e co-
rônea de que o fator de interesse é uma causa real mo procurar por ele e o que pode ser feito. Mas
e independente quando, na verdade, não é. não se deve parar por aí. Também é necessário de-
O viés de seleção e o de confusão são relacio- terminar se o viés está de fato presente e qual é o
nados. Entretanto, eles são descritos separada- seu tamanho provável e, então, decidir se é impor-
mente, porque apresentam problemas em pontos tante o bastante para modificar as conclusões do
diferentes em um estudo clínico. O viés de sele- estudo de forma clinicamente relevante.
ção é relevante principalmente quando os pacien-
tes são escolhidos para a investigação e é impor- Acaso
tante no planejamento de um estudo. É necessário
tratar do viés de confusão durante a análise dos As observações sobre as doenças são normalmente
dados, após as observações já terem sido feitas. feitas em uma amostra de pacientes, uma vez que
Um mesmo estudo pode envolver diversos ti- não é possível estudar todos os pacientes que so-
pos de vieses ao mesmo tempo. frem da doença em questão. Os resultados de uma
amostra não enviesada tendem a se aproximar do
valor verdadeiro. No entanto, uma determinada
amostra, mesmo se selecionada sem viés, pode re-
EXEMPLO presentar erroneamente a situação na população
como um todo por causa do acaso. Se as obser-
Surgiram preocupações de que o consumo de cafeí-
na durante a gravidez pudesse levar a desfechos fe- vações fossem repetidas em mais amostras de pa-
tais adversos. Não seria ético determinar se a cafeína cientes da mesma população, os resultados iriam
é perigosa para fetos por meio de um experimento, se aglomerar em torno do valor verdadeiro, com
designando algumas gestantes para ingerir altas do-
ses de cafeína e outras não; portanto, pesquisadores
um número maior deles próximos, em vez de dis-
avaliaram os desfechos na gestação de acordo com a tantes, do valor verdadeiro. A divergência entre a
quantia de cafeína ingerida. No entanto, muitos des- observação em uma amostra e o valor verdadei-
ses estudos apresentaram diversos vieses (15). Pode ro na população, devida exclusivamente ao acaso,
ter ocorrido viés de aferição, uma vez que muitos es-
tudos se fizeram valer do relato das gestantes quan-
chama-se variação aleatória.
to ao consumo de cafeína. Um estudo demonstrou vi- Todos nós estamos familiarizados com o aca-
és recordatório, um tipo de viés de aferição que se so como uma explicação de por que uma moeda,
refere ao diferencial nas recordações de pessoas que
apresentaram um desfecho adverso, em comparação
quando jogada para o alto, digamos, cem vezes,
com aquelas que tiveram um desfecho normal. Des- não resulta em cara em 50% delas. O mesmo efei-
cobriu-se uma associação entre consumo de cafeína to, a variação aleatória, aplica-se quando se com-
e aborto espontâneo quando as mulheres foram en- param os efeitos do reparo laparoscópico e da ci-
trevistadas após o aborto, mas não quando elas fo-
ram questionadas sobre o consumo antes do aborto
rurgia aberta para hérnia inguinal, já discutidos.
(16). Se algumas mulheres foram recrutadas para os Suponha que todos os vieses tenham sido removi-
estudos sobre cafeína durante as consultas de pré-na- dos de um estudo sobre os efeitos dos dois proce-
tal (mulheres com maior probabilidade de serem par- dimentos. Suponha, também, que os dois proce-
ticularmente cuidadosas com a saúde) e outras recru-
tadas no final da gestação, as diferentes abordagens dimentos sejam, na verdade, igualmente eficazes
para recrutamento poderiam levar a viés de seleção, em termos de dor pós-operatória, cada um segui-
o que poderia invalidar os resultados. Por fim, sabe-se do por dor em 10% dos pacientes. Mesmo assim,
que o alto consumo de cafeína é associado ao hábi-
to do tabagismo, níveis socioeconômicos mais baixos,
exclusivamente em decorrência do acaso, um úni-
maior consumo de bebidas alcoólicas e geralmente co estudo com um número pequeno de pacientes
menor consciência com relação à saúde. Todos esses em cada grupo de tratamento poderia facilmente
itens poderiam confundir qualquer associação entre descobrir que os pacientes ficam melhores com a
cafeína e desfechos fetais adversos.
laparoscopia do que com a cirurgia aberta (ou vi-
ce-versa).
O acaso pode afetar todos os estágios envolvi-
O potencial para viés não significa que o vi- dos nas observações clínicas. Na avaliação das du-
és esteja realmente presente em um estudo ou, se as formas de reparo de hérnia inguinal, a variação
Capítulo 1: Introdução 11
aleatória ocorre na amostragem dos pacientes pa- ca em um único paciente é usada como exemplo;
ra o estudo, na seleção dos grupos de tratamen- cada ponto representa uma observação daque-
to e nas aferições de dor e de retorno ao trabalho. le paciente. A pressão arterial verdadeira, que é
Ao contrário do viés, que tende a distorcer de 80 mmHg para esse paciente, pode ser obti-
os resultados para uma direção ou outra, a varia- da por meio de uma cânula intra-arterial, mas
ção aleatória tem tanta probabilidade de resultar esse método não é factível para aferições de ro-
em observações acima do valor verdadeiro quan- tina. A pressão arterial é em geral medida indire-
to abaixo. Consequentemente, a média de mui- tamente, utilizando um esfigmomanômetro (um
tas observações não enviesadas em amostras tende manguito de pressão arterial). Como foi discuti-
a se aproximar do valor verdadeiro na população, do em um exemplo anterior, o instrumento mais
embora isso possa não ocorrer com os resultados simples é propenso a erro ou desvio do valor ver-
de amostras pequenas. No caso do reparo da hér- dadeiro. Na figura, o erro é representado por to-
nia inguinal, múltiplos estudos, quando avaliados das as leituras do esfigmomanômetro, que ficam à
em conjunto, mostraram que o reparo laparos- direita do valor verdadeiro. O desvio das leituras
cópico resulta em menos dor nos primeiros dias do esfigmomanômetro para valores mais elevados
após a cirurgia. (viés) pode ter diversas explicações (por exemplo,
A estatística pode ser utilizada para estimar um tamanho de manguito errado, paciente ansio-
até que ponto o acaso (variação aleatória) é res- so ou “hipertensão do jaleco branco”). As leituras
ponsável pelos resultados de um estudo clínico. O da pressão arterial individual também estão sujei-
conhecimento sobre estatística também pode au- tas a erro, devido à variação aleatória na medição,
xiliar a reduzir o papel do acaso ao ajudar a elabo- como ilustrado pela dispersão das leituras do es-
rar um melhor delineamento e plano de análises. figmomanômetro em torno do valor médio (90
Entretanto, a variação aleatória não pode jamais mmHg).
ser totalmente eliminada, de forma que o acaso A razão principal para a distinção entre viés
sempre precisa ser considerado quando se avaliam e acaso é que eles são tratados de forma diferen-
os resultados de observações clínicas. O papel do te. Em teoria, o viés pode ser evitado pela condu-
acaso em observações clínicas será discutido em ção de investigações clínicas apropriadas ou pode
mais detalhes no Capítulo 11. ser corrigido durante a análise dos dados. Se não
for eliminado, o viés pode ser frequentemente de-
Os efeitos do viés e tectado pelo leitor perspicaz. Grande parte deste
do acaso são cumulativos livro é sobre como reconhecer, evitar ou minimi-
As duas fontes de erro – viés e acaso – não são zar o viés. O acaso, no entanto, não pode ser eli-
mutuamente exclusivas. Na maioria das situações, minado, mas sua influência pode ser reduzida por
ambos estão presentes. A relação entre eles é ilus- meio de um delineamento de pesquisa apropria-
trada na Figura 1.5. A medida da pressão diastóli- do, e o efeito remanescente pode ser estimado pe-
la estatística. Não há tratamento estatístico capaz
Pressão arterial Medida da de corrigir os vieses desconhecidos nos dados. Al-
verdadeira (cânula pressão arterial guns estatísticos chegam a sugerir que a estatística
intra-arterial) (esfigmomanômetro) não deve ser aplicada a dados que sejam vulnerá-
veis ao viés em consequência de um mau planeja-
Número de observações
12
A capacidade de generalização das observações
clínicas, mesmo daquelas com validade interna al- 10
ta, é uma questão de julgamento pessoal, sobre a
8
7
2
Amostragem
AMOSTRA AMOSTRA
42 estudos com Estudo com base
base clínica populacional
Viés de
seleção
FIGURA 1.7 Viés de amostragem. Mortalidade em
30 anos por todas as causas em pacientes com ano-
rexia nervosa. A comparação entre uma síntese de
Viés de aferição 42 estudos publicados, principalmente de centros
e de confusão de referência, e um estudo de todos os pacientes
? com anorexia na população. (Fonte: Sullivan PF.
?? Acaso “Mortality in anorexia nervosa”. Am J Psychiatry.
VALIDADE EXTERNA 1995; 152:1073-1074; e Korndorfer SR, Lucan AR,
CONCLUSÃO
(capacidade de Suman VJ, et al. “Long-term survival of patients wi-
generalização) th anorexia nervosa: a population-based study in Ro-
chester, Minn”. Mayo Clinic Proc. 2003; 78: 278-284.)
FIGURA 1.6 Validade interna e externa.
Capítulo 1: Introdução 13
qual pessoas sensatas podem discordar. Frequen- sões em conjunto, um processo denominado to-
temente surge um dilema quando os clínicos pre- mada de decisão compartilhada, reconhecendo
cisam decidir sobre utilizar ou não os resultados que a experiência de ambas as partes são comple-
de um estudo bem conduzido para definir a con- mentares. Os pacientes são especialistas no que
duta para um paciente mais velho do que o grupo eles esperam obter de seu cuidado médico, devido
estudado, de um gênero diferente ou mais doen a suas experiências e preferências singulares. Eles
te. Por exemplo, pode ser que um tratamento que podem ter descoberto muitas informações sobre a
funcione bem em homens jovens e saudáveis fa- sua doença (por exemplo, pela internet), mas não
ça mais mal do que bem a mulheres mais velhas e estão certos de como separar as alegações verídi-
mais doentes. cas das errôneas. Os médicos são especialistas em
A capacidade de generalização raramente po- avaliar a possibilidade de atingir os objetivos dos
de ser tratada de forma satisfatória em qualquer pacientes e em como fazê-lo. Para isso, eles de-
estudo. Até mesmo uma população definida com pendem do corpo de evidências de pesquisa e da
base geográfica é uma amostra enviesada de po- capacidade, com base nos princípios da epidemio-
pulações maiores. Por exemplo, os pacientes hos- logia clínica, de distinguir as evidências fortes das
pitalizados são amostras enviesadas dos residentes fracas. É claro que os clínicos também trazem pa-
de uma cidade; cidades, de estados; estados, de re- ra a consulta sua experiência de como a doença se
giões e assim por diante. O melhor que o pesqui- apresenta e as consequências humanas do cuida-
sador pode fazer acerca da capacidade de generali- do, como a sensação de ser intubado ou de sofrer
zação é garantir a validade interna, atuar de forma uma amputação, com as quais os pacientes po-
que a população do estudo se enquadre na questão dem estar pouco familiarizados. Para que os clíni-
da pesquisa, descrever os pacientes do estudo cui- cos possam fazer sua parte nesse trabalho de equi-
dadosamente e evitar estudar pacientes que sejam pe, eles precisam ser especialistas na interpretação
tão incomuns que a experiência com eles possa ser das informações clinicamente relevantes.
generalizada somente para um número pequeno de As preferências dos pacientes e as evidências
pessoas. Cabe então a outros estudos, em outros ce- científicas sólidas são a base para a escolha entre as
nários, ampliar a capacidade de generalização. opções de cuidado à saúde. Por exemplo, um pa-
ciente que sofre de valvulopatia cardíaca pode pre-
ferir a possibilidade de uma vida saudável a lon-
INFORMAÇÕES E DECISÕES go prazo oferecida pela cirurgia, embora ela esteja
associada com desconforto e risco de morte a cur-
As principais preocupações deste livro são a quali- to prazo. O clínico, armado da leitura crítica e da
dade das informações clínicas e a sua correta inter- habilidade comunicativa, pode ajudar o paciente
pretação. A tomada de decisões é um outro assun- a entender a magnitude dos potenciais riscos e be-
to. É verdade que as boas decisões dependem de nefícios e com que grau de certeza eles foram es-
boas informações, mas elas envolvem muito mais, tabelecidos.
incluindo julgamentos de valor e o peso dos riscos Alguns aspectos da análise de decisão, como a
e dos benefícios, que competem entre si. avaliação dos testes diagnósticos, estão incluídos
Nos últimos anos, a tomada de decisão médi- neste livro. Entretanto, decidimos não nos apro-
ca vem se tornando uma disciplina valorizada por fundar na tomada de decisão. Nossa justificativa é
mérito próprio. O campo inclui estudos qualitati- que as decisões são tão boas quanto as informações
vos de como os clínicos tomam decisões e como o utilizadas para que sejam tomadas, e já encontra-
processo pode sofrer vieses e ser melhorado. Tam- mos conteúdo suficiente para ter o que falar sobre
bém inclui métodos quantitativos, como análise os elementos essenciais da coleta e interpretação de
de decisão, de custo-benefício e de custo-efetivi- informações clínicas para encher um livro.
dade, que colocam o processo de tomada de de-
cisão de uma forma explícita, de modo que seus
componentes e as consequências de se atribuir vá- A ORGANIZAÇÃO DESTE LIVRO
rias probabilidades e valores para eles possam ser
examinados. Na maioria dos livros-texto sobre medicina clíni-
Os pacientes e os clínicos tomam decisões clí- ca, as informações sobre cada doença estão apre-
nicas. Na melhor das hipóteses, eles tomam deci- sentadas como respostas às questões clínicas tra-
14 Epidemiologia clínica: elementos essenciais
dicionais: diagnóstico, curso clínico, tratamento e Nós organizamos este livro principalmente de
assim por diante. Entretanto, a maioria dos livros acordo com as questões com que os clínicos se de-
sobre epidemiologia está organizada em torno das param quando cuidam dos pacientes (veja a Tabe-
estratégias de pesquisa, como ensaios clínicos, in- la 1.1). A Figura 1.8 ilustra como essas questões
quéritos, estudos de caso-controle, etc. Essa forma correspondem aos capítulos do livro, tomando o
de organizar um livro pode ser boa para aqueles vírus da imunodeficiência humana (HIV) como
que realizam pesquisas clínicas, mas é, em muitos exemplo. As questões se relacionam à história na-
casos, pouco útil para os clínicos. tural completa da doença, do momento em que
Título do
História natural capítulo Página
População
em risco
Infecção Frequência p. 19
Anormalidade p. 34
Diagnóstico p. 116
Prevenção p. 163
Início da doença
Infecção primária
Doença definidora da aids
Sarcoma de Kaposi
Infecção por Pneumocystis
Infecção disseminada por
Mycobacterium avium
FIGURA 1.8 A organização deste livro em relação à história natural da infecção pelo vírus da imunodefi-
ciência humana (HIV). Os Capítulos 11, 13 e 14 descrevem temas transversais, que se relacionam a todos os
pontos na história natural de uma doença.
Capítulo 1: Introdução 15
as pessoas sem o vírus são expostas ao risco, pas- nicas do capítulo. Algumas estratégias, como estu-
sando por quando alguns adquirem a doença e se dos de coorte, são úteis para responder a diversos
tornam pacientes, por meio das complicações da tipos diferentes de questões clínicas. Por motivos
doença, doenças definidoras de aids, até a sobre- didáticos, discutimos cada estratégia com mais
vida ou a morte. detalhe em um capítulo e simplesmente nos re-
Em cada capítulo, descrevemos estratégias de ferimos à discussão quando o método é relevante
pesquisa utilizadas para responder às questões clí- para outras questões, em outros capítulos.
Q u e stõ e s d e re visã o
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