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Capítu l o 1

Introdução
Devemos estudar “os benefícios das intervenções médicas em relação a seus riscos e
custos”.
– Kerr L. White
1992

PALAVRAS-CHAVE Esse paciente provavelmente tem diversas per-


guntas. Estou doente? Você tem certeza? Se estou
Ciências biológicas Populações doen­te, o que está causando a minha doença? Co-
Ciências clínicas Amostra mo isso irá me afetar? O que pode ser feito a res-
Ciências populacionais Inferência peito? Quanto irá custar?
Epidemiologia Tomada de decisão
Como clínico responsável por esse paciente,
Pesquisa em serviços quantitativa
de saúde Viés você se faz as mesmas perguntas, embora as su-
Análise de Viés de seleção as reflitam uma compreensão maior das possibi-
custo-efetividade Viés de aferição lidades. A probabilidade de uma doença grave
Análise de decisão Viés de confusão e tratável é suficientemente grande para passar
Ciências sociais Acaso de imediato da simples explicação e da tranqui-
Epidemiologia clínica Variação aleatória lização do paciente para os testes diagnósticos?
Medicina baseada em Validade interna
Até que ponto os diversos testes distinguem en-
evidências Validade externa
Variáveis Capacidade de tre as possíveis causas de dor torácica: angina de
Variável independente generalização peito, espasmo esofagiano, distensão muscular,
Variável dependente Tomada de decisão ansiedade, entre outras causas? Por exemplo, até
Variável externa compartilhada que ponto um teste de esforço pode ser útil pa-
Covariáveis ra confirmar ou descartar doença arterial coro-
nariana? Se uma doença coronariana for encon-
trada, por quanto tempo o paciente pode esperar
sentir dores? Qual é a probabilidade de ocorre-
EXEMPLO rem outras complicações – insuficiência cardía-
Um homem de 51 anos consulta por dor torácica que ca congestiva, infarto do miocárdio ou doença
ele acredita ser “indigestão”. Ele esteve bem até du- aterosclerótica de outros órgãos? A doença en-
as semanas atrás, quando percebeu um aperto retro- curtará sua vida? A redução dos fatores de ris-
esternal, após uma farta refeição, ao subir uma la-
deira. O aperto parou após dois ou três minutos de
co para doença coronariana (originários do ta-
descanso. Um desconforto semelhante vem ocorren- bagismo e da hipertensão) diminuirá o seu risco?
do diversas vezes desde então, algumas vezes duran- É necessário procurar outros possíveis fatores de
te os exercícios e outras em repouso. Ele deixou de risco? Se as medicações controlarem a dor, uma
fumar um maço de cigarros por dia há três anos e já
lhe foi dito que sua pressão arterial está “um pouco cirurgia de revascularização traria benefício adi-
elevada”. Fora isso, ele está bem e não está toman- cional – por exemplo, prevenindo futuros infar-
do nenhum medicamento, mas está preocupado com tos ou mortalidade cardiovascular? Uma vez que
sua saúde, especialmente com doenças cardíacas. Ele
perdeu o emprego há seis meses e não tem plano de
o paciente está desempregado e não possui plano
saúde. O exame físico completo e o eletrocardiogra- de saúde, será que procedimentos diagnósticos e
ma em repouso são normais, exceto pela pressão ar- tratamentos mais baratos terão o mesmo resulta-
terial de 150/96 mmHg. do que outros mais caros?

1
2 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

Questões clínicas e TABELA 1.1


epidemiologia clínica Tópicos e questões clínicasa
As dúvidas do paciente e do médico no exemplo Tópico Questão
representam os tipos de questões clínicas mais co- Frequência Com que frequência uma doença
muns na maioria dos encontros médico-pacien- (Cap. 2) ocorre?
te. O que é “anormal”? Qual a acurácia dos tes- Anormalidade O paciente está doente ou sadio?
tes diagnósticos utilizados? Com que frequência (Cap. 3)
a condição ocorre? Quais são os riscos para uma Risco Quais são os fatores que estão
determinada doença e como determinamos es- (Caps. 5 e 6) associados com um risco maior de
ses riscos? A condição médica em geral se agrava, doença?
permanece estável ou se resolve (prognóstico)? O Prognóstico Quais são as consequências de se ter
tratamento realmente ajuda o paciente ou somen- (Cap. 7) uma doença?
te melhora os resultados nos testes? Existe alguma Diagnóstico Qual a acurácia dos testes utilizados
forma de prevenir a doença? Qual é a causa sub- (Cap. 8) para diagnosticar a doença?
jacente da doença ou condição? E como podemos Tratamento Como o tratamento altera o curso de
oferecer um bom cuidado médico de forma mais (Cap. 9) uma doença?
eficiente? Essas questões clínicas e os métodos epi- Prevenção Uma intervenção em pessoas sadias
demiológicos para respondê-las são a base deste li- (Cap. 10) impede o surgimento da doença?
Fazer a detecção e iniciar o
vro. Essas questões clínicas são resumidas na Ta- tratamento precocemente melhora o
bela 1.1. Cada uma também se refere a um tópico curso da doença?
de capítulos específicos no livro. Causa (Cap. 12) Que condições levam à doença?
Os clínicos necessitam das melhores respos- Quais são as origens da doença?
tas possíveis a essas questões. Eles utilizam diver- a Quatro capítulos – Risco: Princípios Básicos (4), Acaso (11), Re-
sas fontes de informação: sua própria experiên- visões Sistemáticas (13) e Gestão do Conhecimento (14) – são
cia, o conselho de colegas e as conclusões a partir pertinentes a todos esses tópicos.
de seu conhecimento acerca da biologia da doen-
ça. Em muitas situações, a fonte mais confiável é
clínica é a ciência que estuda os Cinco Ds em hu-
a pesquisa clínica, que envolve o uso de observa-
manos intactos.
ções anteriores de pacientes semelhantes para pre-
Na medicina clínica moderna, é tão comum
dizer o que acontecerá ao paciente em tratamen-
solicitar exames laboratoriais e tratar as alterações
to. A maneira como tais observações são feitas e
desses exames (por exemplo, glicemia, hematúria
interpretadas determina a validade das conclusões
e, dessa forma, até que ponto elas serão úteis pa-
ra os pacientes. TABELA 1.2
Desfechos de doenças (os cinco Ds)a
Desfechos de saúde Desenlace ou Um desfecho ruim, se for antes
morte (death) do tempo
Os eventos clínicos mais importantes na medici-
Doença (disease)b Um conjunto de sintomas,
na são os desfechos de saúde dos pacientes, como sinais físicos e anormalidades
sintomas (desconforto e/ou descontentamento), laboratoriais
deficiência funcional, doença e morte. Esses des- Desconforto Sintomas como dor, náusea,
fechos centrados no paciente algumas vezes são re- (discomfort) dispneia, prurido e zumbido
feridos como os “Cinco Ds” (Tabela 1.2). Eles são Deficiência Limitação na capacidade de
os eventos de saúde que interessam aos pacientes. funcional desempenhar as atividades
Os médicos deveriam tentar entender, prever, in- (disability) normais em casa, no trabalho
ou no lazer
terpretar e modificar esses desfechos ao cuidar dos
pacientes. Os Cinco Ds podem ser estudados di- Descontentamento Reação emocional à doença e ao
(dissatisfaction) seu cuidado, como tristeza e raiva
retamente apenas em humanos intactos, e não em
a Talvez um sexto D, despesa (destitution), pertença a essa lista,
partes de humanos (como neurotransmissores,
porque o custo financeiro da enfermidade (para cada paciente
culturas teciduais, membranas celulares e sequên- ou para a sociedade) é uma consequência importante da doença.
cias genéticas) ou em animais. A epidemiologia b Ou como o paciente vivencia a doença.
Capítulo 1: Introdução 3

e troponinas elevadas) que nos esquecemos de que possibilidade de que, no diabetes tipo 2, a redução
os resultados desses testes não são o que realmen- agressiva da glicemia não protege contra doenças
te importa na prática clínica. Somos levados a crer cardíacas.) Mostrar melhora nos desfechos de saú-
que, se pudermos mudar o resultado do teste de de dos pacientes é especialmente importante com
alterado para normal, teremos ajudado o pacien- novos fármacos, pois em geral intervenções far-
te. Porém isso só é verdadeiro se estudos cuida- macológicas apresentam diversos efeitos clínicos
dosos tiverem demonstrado uma relação clara en- em vez de somente um.
tre os resultados de exames laboratoriais e um dos
cinco Ds. A BASE CIENTÍFICA PARA
A MEDICINA CLÍNICA
EXEMPLO A epidemiologia clínica é uma das ciências bási-
A incidência de diabetes melito tipo 2 está aumen- cas em que os clínicos se apoiam para o cuidado
tando drasticamente nos Estados Unidos. Em pesso- com os pacientes. Outras ciências da saúde tam-
as com diabetes, o risco de óbito por doença cardíaca bém são inerentes ao cuidado com o paciente e es-
é duas a quatro vezes maior do que naquelas sem es-
sa doença, e as doenças cardiovasculares são respon- tão resumidas na Figura 1.1. Muitas das ciências
sáveis por aproximadamente 70% de todos os óbitos se sobrepõem.
em pacientes com diabetes. Novos esforços farmaco- A epidemiologia clínica é a ciência que faz pre-
lógicos para controlar o diabetes produziram uma
classe de fármacos, as tiazolidinedionas, que aumen-
dições sobre pacientes individuais, utilizando a
tam a sensibilidade à insulina em músculos, gordura e contagem de eventos clínicos (os cinco Ds) em
fígado. Diversos estudos demonstraram que esses fár- grupos de pacientes semelhantes e valendo-se de
macos reduzem os níveis de hemoglobina A1C em pa- métodos científicos sólidos para garantir que as
cientes com diabetes. Um desses fármacos, a rosigli-
tazona, foi aprovado para uso em 1999. No entanto,
predições sejam corretas. O objetivo da epidemio-
nos anos seguintes, diversos estudos de seguimento logia clínica é desenvolver e aplicar métodos de
demonstraram um resultado surpreendente: pacien- observação clínica que conduzam a conclusões vá-
tes recebendo rosiglitazona tinham uma probabili- lidas, evitando o engano por erros sistemáticos e
dade maior, e não menor, de apresentar problemas
cardíacos, com diferentes estudos demonstrando au- aleatórios. É uma abordagem importante para ob-
mento de infartos, insuficiência cardíaca, AVC e mor- ter o tipo de informação de que os clínicos neces-
talidade cardiovascular ou por todas as causas (1-3). sitam para tomar boas decisões no cuidado com
Como muitos dos estudos que apresentavam resulta-
dos positivos do medicamento sobre os níveis de gli-
o paciente.
cose ou hemoglobina A1C não foram a princípio deli-
neados para examinar os resultados cardiovasculares
por um período mais longo, a maioria dos estudos de CAMPO DE PESQUISA FOCO PRINCIPAL
seguimento não eram ensaios clínicos rigorosos. En-
tretanto, foram levantadas dúvidas suficientes para, Modelos animais
Ciências biológicas
em 2010, o U.S. Food and Drug Administration res- Células e transmissores
tringir o uso de rosiglitazona; na Europa, essa medi- Moléculas
cação foi retirada do mercado. Genes
Desenvolvimento de fármacos

Durante seu treinamento, os clínicos mergu- Ciências clínicas Pacientes individuais


lham na biologia da doença, a sequência de pas-
sos que leva dos eventos subcelulares à doença e
às suas consequências. Assim, pareceria razoável Epidemiologia clínica Questões sobre
pacientes individuais
pressupor que uma intervenção que reduzisse a Métodos populacionais
glicemia em pessoas com diabetes ajudaria a pro-
teger contra doenças cardíacas. No entanto, em- Epidemiologia Populações
bora muito importantes para a medicina clínica,
esses mecanismos biológicos não podem substi-
tuir desfechos clínicos, a menos que existam for- Serviços de saúde Sistemas de atenção à saúde
tes evidências que confirmem a relação entre os
dois. (Na verdade, os resultados de estudos com Figura 1.1 As ciências da saúde e suas relações com­
diversos medicamentos diferentes têm levantado a plementares.
4 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

O termo “epidemiologia clínica” deriva das TABELA 1.3


duas disciplinas que lhe deram origem: a medici- Outros fatores além da medicina baseada
na clínica e a epidemiologia. Ela é “clínica” por- em evidências que podem influenciar
que se propõe a responder questões clínicas e a as decisões clínicas
orientar a tomada de decisão clínica com as me-
lhores evidências disponíveis. É “epidemiologia” Medicina baseada Colegas mais experientes que
em eminência acreditam que a experiência
porque muitos dos métodos utilizados para res- supera as evidências
ponder a questões sobre como melhor cuidar dos
Medicina baseada Substituição do volume e da
pacientes foram desenvolvidos por epidemiologis- em veemência estridência por evidências
tas e porque o cuidado com cada paciente é visto
Medicina baseada Elegância sartória e eloquência
no contexto do todo da população da qual o pa- em eloquência verbal
ciente faz parte. (ou elegância)
As ciências clínicas fornecem as questões e a Medicina baseada A decisão é deixada nas mãos do
abordagem que podem ser usadas no cuidado em Providência Todo-Poderoso
com pacientes individuais. Algumas ciências bio- Medicina baseada Muito tímido para tomar
lógicas, como a anatomia e a fisiologia, são tam- em difidência qualquer decisão médica
bém “clínicas”, na medida em que fornecem Medicina baseada O medo de um processo é um
informações sólidas para orientar as decisões clí- em nervosismo estímulo poderoso para o excesso
nicas. Por exemplo, conhecer a anatomia do cor- de investigação e de tratamento

po ajuda a determinar as possibilidades para diag- Medicina baseada Bravata


em confiança
nóstico e tratamento de muitos sintomas.
As ciências populacionais estudam grandes Adaptada a partir de Isaacs D, Fitzgerald D. Seven alternatives to
grupos de pessoas. A epidemiologia é o “estudo da evidence-based medicine. BMJ 1999; 319:1618.

ocorrência de doença em populações humanas”


(4), pela contagem de eventos de saúde nas pesso- ria de estudo para estudo; por isso, os clínicos pre-
as em relação ao grupo natural de ocorrência (po- cisam ter uma abordagem para separar as evidên-
pulação) do qual fazem parte. Os resultados de cias fortes das fracas.
muitos desses estudos são diretamente aplicáveis A medicina baseada em evidências é um ter-
ao cuidado de pacientes individuais. Por exemplo, mo moderno para a aplicação da epidemiologia
estudos epidemiológicos são utilizados como ba- clínica ao cuidado com os pacientes. Ela inclui a
se para aconselhar a evitar comportamentos co- formulação de questões clínicas específicas, a bus-
mo o tabagismo e o sedentarismo, que aumentam ca das melhores evidências de pesquisa disponí-
o risco para os pacientes. Outros estudos epide- veis sobre aquelas questões, o julgamento sobre a
miológicos, como aqueles que mostram os efei- validade das informações e a integração da avalia-
tos nocivos do tabagismo passivo e outros perigos ção crítica com a experiência do clínico e a situa-
ambientais e ocupacionais, são a base das reco- ção e os valores do paciente (5). Este livro tratará
mendações de saúde pública. A epidemiologia clí- de muitos aspectos da medicina baseada em evi-
nica é um subconjunto das ciências populacionais dências, especialmente a avaliação crítica das evi-
que é útil para o cuidado de pacientes individuais. dências sobre questões clínicas.
Os clínicos há muito dependem, até certo Em cenários clínicos reais, outros tipos de
ponto, das evidências de pesquisas. Mas a com- “evidências” competem pela atenção do clínico e
preensão das evidências clínicas é mais importan- podem influenciar as decisões médicas. A Tabe-
te nos tempos modernos do que no passado, por la 1.3 descreve alguns deles em uma paródia da
diversas razões. Uma extraordinária quantidade medicina baseada em evidências que foi publica-
de informações deve ser organizada. As interven- da há alguns anos, mas que continua verdadeira
ções diagnósticas e terapêuticas têm o potencial ainda hoje. Provavelmente todos os clínicos já ex-
de grande efetividade, bem como riscos e custos; perimentaram pelo menos um desses fatores du-
assim, há uma grande responsabilidade envolvida rante seus anos de treinamento! Outro fator, não
na escolha dessas intervenções. As melhores pes- tão engraçado, mas muito relevante, tem sido des-
quisas clínicas são muito confiáveis e, portanto, crito como evidência de nível IV (6). Os clíni-
formam uma base sólida para as decisões clínicas. cos tendem a lembrar casos em que as coisas vão
Entretanto, a credibilidade da pesquisa clínica va- terrivelmente mal no cuidado que oferecem pa-
Capítulo 1: Introdução 5

ra um paciente individual e têm maior probabili- toacidose diabética. A genética molecular prediz
dade de mudar sua prática após tal experiência do a ocorrência de doenças que variam das doenças
que após ler um estudo bem conduzido. Essas al- cardiovasculares comuns e do câncer até raros er-
ternativas, que são menos confiáveis do que a me- ros inatos do metabolismo, como fenilcetonúria e
dicina baseada em evidências, podem ser bastan- fibrose cística.
te atrativas no nível emocional e podem fornecer A compreensão da biologia da doença, contu-
uma forma conveniente de lidar com a incerteza, do, muitas vezes não é uma base sólida para fazer
mas são más substitutas para as evidências basea- predições em humanos intactos. Muitos outros
das em pesquisas. fatores contribuem para a saúde e para a doen-
A pesquisa em serviços de saúde é o estudo de ça. Antes de tudo, os mecanismos da doença po-
como fatores não biológicos (por exemplo, fun- dem não ser completamente compreendidos. Por
cionários e instalações clínicas, a maneira como exemplo, a noção de que a glicemia em pacientes
o serviço é organizado e pago, as crenças dos clí- diabéticos é mais afetada pela ingestão de açúca-
nicos e a cooperação dos pacientes) afetam a saú- res simples (sacarose ou açúcar de cozinha) do que
de dos pacientes. Esses estudos têm demonstrado, por açúcares complexos, como o amido (como em
por exemplo, que o cuidado médico difere subs- batatas e massas), foi derrubada por estudos rigo-
tancialmente de uma pequena área geográfica pa- rosos que compararam os respectivos efeitos des-
ra outra (sem diferenças correspondentes na saú- ses alimentos na glicemia. Além disso, está fican-
de dos pacientes); que as cirurgias em hospitais do claro que os efeitos de anormalidades genéticas
que costumam realizar um procedimento especí- podem ser alterados por um ambiente físico e so-
fico tendem a apresentar um desfecho melhor do cial complexo, como a dieta do indivíduo, a expo-
que em hospitais em que tal intervenção é rea- sição a agentes infecciosos e químicos. Por exem-
lizada com pouca frequência; e que a aspirina é plo, a glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é
pouco utilizada no tratamento do infarto agudo uma enzima que protege as hemácias contra le-
do miocárdio, mesmo que se tenha demonstrado são oxidativa que leva à hemólise. A deficiência
que essa prática simples reduz o número de even- de G6PD é a deficiência de enzimas mais comum
tos vasculares subsequentes em cerca de 25%. Es- em humanos, ocorrendo devido a mutações espe-
ses tipos de estudos orientam os clínicos em seus cíficas do gene G6PD ligado ao cromossomo X.
esforços para aplicar o conhecimento existente so- No entanto, homens com variantes genéticas de
bre as melhores práticas clínicas. ocorrência comum da deficiência de G6PD são
Outras ciências relacionadas a serviços de saú- em geral assintomáticos e desenvolvem hemólise
de também orientam o cuidado com o paciente. A e icterícia somente quando são expostos a fato-
tomada de decisão quantitativa inclui análises de res ambientais que geram estresse oxidativo, co-
custo-efetividade, que descrevem os custos finan- mo determinados fármacos ou infecções. Por fim,
ceiros necessários para chegar a um bom desfecho, como mostrado no exemplo do tratamento com
como a prevenção de morte ou doença, e análises rosiglitazona para pacientes como diabetes tipo 2,
de decisão, que estabelecem a base racional para os fármacos muitas vezes têm múltiplos efeitos na
decisões clínicas e para avaliar as consequências de saúde dos pacientes, não somente o efeito previs-
cada escolha. As ciências sociais descrevem como to ao estudar a biologia da doença. Portanto, o co-
o ambiente social afeta o comportamento relacio- nhecimento da biologia da doença produz hipóte-
nado à saúde e o uso dos serviços de saúde. ses, frequentemente muito boas, sobre o que pode
As ciências biológicas estudam a sequência de acontecer aos pacientes, mas essas hipóteses pre-
eventos biológicos que levam da saúde à doen- cisam ser testadas por meio de estudos rigorosos
ça e são uma forma eficaz de saber como os fe- com humanos intactos, antes de serem aceitas co-
nômenos clínicos podem funcionar no nível hu- mo fatos clínicos.
mano. Historicamente, foi sobretudo o progresso Em resumo, a epidemiologia clínica é apenas
nas ciências biológicas que estabeleceu a aborda- uma entre as várias ciências que são básicas para
gem científica à medicina clínica e continua de- a medicina clínica. Na melhor das hipóteses, as
sempenhando um papel central. A anatomia ex- muitas ciências relacionadas à saúde se comple-
plica as síndromes de compressão de nervos, suas mentam. As descobertas de uma são confirmadas
causas, sintomas e mecanismos de alívio. A fisio- em outra, e as descobertas da segunda levam a no-
logia e a bioquímica orientam o manejo da ce- vas hipóteses para a primeira.
6 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

vel dependente. Outras variáveis podem ser parte


EXEMPLO do sistema sob estudo e podem afetar a relação en-
tre as variáveis independentes e dependentes. Elas
Na década de 1980, médicos que atuavam em São são chamadas de variáveis externas (ou covariá-
Francisco, Califórnia, começaram a ver em homens veis), porque são alheias à questão principal, em-
homossexuais infecções e casos de câncer incomuns,
que só haviam sido vistos antes em pacientes profun- bora talvez sejam parte do fenômeno em estudo.
damente imunocomprometidos. A nova síndrome
foi chamada de “síndrome da imunodeficiência ad- Números e probabilidade
quirida” (aids). Epidemiologistas mostraram que es-
ses homens estavam sofrendo de uma doença trans- A ciência clínica, como todas as outras ciências,
missível que afetava tanto homens quanto mulheres depende de aferições quantitativas. Impressões,
e que era transmitida não somente por atividade se-
xual, mas também por compartilhamento de seringas
intuições e crenças também são importantes na
e pela transfusão de sangue ou seus derivados. Cien- medicina, mas apenas quando se somam a uma
tistas de laboratório identificaram o vírus da imuno- base sólida de informações numéricas. Essa base
deficiência humana (HIV) e desenvolveram novos me- permite uma melhor confirmação, uma comuni-
dicamentos que buscavam atingir especificamente a
estrutura e o metabolismo do vírus. Fármacos promis- cação mais precisa entre clínicos e entre clínicos e
sores, desenvolvidos com base na compreensão dos pacientes, bem como uma estimativa de erro. Os
mecanismos biológicos, foram testados em ensaios desfechos clínicos, como a ocorrência de doença,
clínicos. Uma nova especialidade clínica surgiu, foca-
da no atendimento de pessoas infectadas pelo HIV.
morte, sintomas ou deficiência funcional, podem
Sanitaristas passaram a promover o sexo seguro e ou- ser contados e expressos em números.
tros programas para prevenir a infecção pelo vírus. Na maioria das situações clínicas, o diagnósti-
Dessa forma, clínicos, epidemiologistas, cientistas de co, o prognóstico e os resultados do tratamento são
laboratório e sanitaristas contribuíram para o contro-
le dessa nova doença, especialmente em países de-
incertos para um paciente individual. Uma pessoa
senvolvidos, levando a um importante aumento na experimentará um desfecho clínico ou não; a predi-
sobrevivência e melhoria na qualidade de vida dos in- ção raramente é exata. Portanto, uma predição pre-
divíduos infectados pelo HIV. cisa ser expressa como uma probabilidade. A pro-
babilidade para cada paciente é mais bem expressa
ao fazer referência à experiência passada com gru-
pos de pacientes semelhantes – por exemplo, o ta-
PRINCÍPIOS BÁSICOS bagismo dobra o risco de morte em adultos na meia
idade; os exames de sangue para troponinas detec-
O objetivo da epidemiologia clínica é fomentar tam cerca de 99% dos infartos do miocárdio em
métodos de observação e interpretação clínica que pacientes com dor torácica aguda; e 2 a 6% dos pa-
levem a conclusões válidas e a um melhor cuida- cientes submetidos à cirurgia eletiva para aneuris-
do do paciente. As respostas mais convincentes às ma da aorta abdominal morrerão até 30 dias após
questões clínicas baseiam-se em alguns princípios o procedimento, contra os 40 a 80% que morrem
básicos. Dois deles já foram analisados – as obser- quando uma cirurgia de emergência é necessária.
vações deveriam focar nas questões com as quais
se deparam os pacientes e os profissionais de saú- Populações e amostras
de, e os resultados deveriam incluir desfechos de
saúde centrados no paciente (os cinco Ds). Ou- Uma população são todas as pessoas em um cená-
tros princípios básicos são discutidos a seguir. rio definido (como o estado da Carolina do Nor-
te) ou com certas características definidas (como
Variáveis idade > 65 anos ou ter um nódulo de tireoide).
Indivíduos não selecionados na comunidade são a
Os pesquisadores chamam os atributos dos pa- população habitual para estudos epidemiológicos
cientes e os eventos clínicos de variáveis – coisas de causa. No entanto, as populações clínicas in-
que variam e que podem ser medidas. Em um es- cluem todos os pacientes com uma característica
tudo típico, existem três tipos principais de va- clínica, como todos aqueles com pneumonia ad-
riáveis. Uma é uma suposta causa ou variável quirida na comunidade ou estenose aórtica. Dessa
preditora, algumas vezes chamada de variável in- forma, fala-se na população geral, em uma popu-
dependente. Outra é o efeito possível ou variá- lação hospitalizada ou em uma população de pa-
vel de desfecho, algumas vezes chamada de variá- cientes com uma doença específica.
Capítulo 1: Introdução 7

A pesquisa clínica é em geral conduzida em ros” (7). É um “erro na concepção e delineamen-


uma amostra, ou subconjunto de pessoas em uma to de um estudo – ou na coleta, análise, interpre-
população definida. Há interesse nas característi- tação, publicação ou revisão de dados – que leve
cas da população definida, mas é necessário, por a resultados ou conclusões que sejam sistematica-
questões práticas, fazer uma estimativa por meio mente (em oposição a aleatoriamente) diferentes
das características de pessoas em uma amostra (Fi- da verdade” (8).
gura 1.2). Faz-se, então, uma inferência, um jul-
gamento racional com base em dados, de que as
características da amostra assemelham-se àquelas EXEMPLO
da população de origem.
O grau em que uma amostra representa sua Os pacientes com hérnia inguinal que passam por um
reparo laparoscópico aparentemente sofrem menos
população, e, dessa forma, é uma boa substitu- de dor pós-operatória e retornam mais rápido ao tra-
ta para ela, depende de como foi selecionada. Os balho do que aqueles que são submetidos à cirurgia
métodos em que cada membro da população tem aberta tradicional. O clínico cuidadoso indaga: “Os
resultados da cirurgia laparoscópica são realmente
uma probabilidade igual (ou conhecida) de ser se- melhores ou eles podem parecer melhores como re-
lecionado podem produzir amostras extraordina- sultado de vieses na forma como as informações fo-
riamente semelhantes à população de origem, pe- ram coletadas?”. Talvez o procedimento laparoscópi-
lo menos a longo prazo e para grandes amostras. co seja oferecido a pacientes que estejam em melhor
estado ou que pareçam ter maior resistência tecidu-
Um exemplo cotidiano são as pesquisas de opi- al devido à idade ou estado geral de saúde. Talvez
nião utilizando amostragens em residências, com os cirurgiões e os pacientes estejam mais inclinados
base em dados do censo. Em nossa própria pes- a pensar que o procedimento deveria causar menos
quisa clínica, com frequência utilizamos um com- dor porque é novo, a cicatriz é menor e, dessa for-
ma, os pacientes relatam sentir menos dor, e os cirur-
putador para selecionar uma amostra representa- giões, provavelmente, perguntem menos sobre a dor
tiva de todos os pacientes em nossa ampla clínica ou façam menos registros do fato. Talvez os pacien-
de multiespecialidades, cada um com a mesma tes que são submetidos à cirurgia laparoscópica se-
jam em geral instruídos a voltar ao trabalho mais ce-
probabilidade de ser selecionado. Já as amostras do do que aqueles que sofrem uma cirurgia aberta.
obtidas por puro acaso ou por conveniência (is- Se qualquer uma dessas possibilidades for verdadeira,
so é, pela seleção de pacientes que sejam fáceis de os resultados favoráveis podem estar relacionados às
se trabalhar ou que, casualmente, estejam fazen- diferenças sistemáticas de como os pacientes são sele-
cionados para o procedimento laparoscópico, ao mo-
do uma consulta na clínica quando os dados estão do como eles relatam seus sintomas, ou a como eles
sendo coletados) podem não representar de mo- foram instruídos sobre o que podem fazer – não ha-
do correto a população de origem e, dessa forma, vendo uma diferença real nas taxas de sucesso. Co-
mo será discutido no Capítulo 5, existem maneiras de
ser enganosas. se proteger contra esses possíveis vieses. Os estudos
que evitaram esses vieses demonstraram que os pa-
Viés (erro sistemático) cientes que se submetem à cirurgia laparoscópica, de
fato, sentem menos dor (mas apenas inicialmente) e
Viés é “um processo em qualquer estágio da infe- são capazes de retornar ao trabalho mais rápido. A ci-
rência com tendência a produzir resultados que rurgia laparoscópica, porém, é mais demorada, e di-
versos estudos mostraram que pacientes submetidos
se afastem sistematicamente dos valores verdadei- a ela apresentaram complicações mais graves, bem
como alto índice de recidiva, sobretudo em homens
mais velhos (9, 10). Em resumo, estudos cuidadosos
constataram que a escolha entre os dois procedimen-
tos não é tão simples assim.

AMOSTRAGEM AMOSTRA
As observações dos pacientes (seja para o cui-
dado do paciente ou para pesquisa) são particu-
POPULAÇÃO
INFERÊNCIA larmente suscetíveis a viés. O processo tende a ser
desorganizado. Como participantes em um estu-
do, os seres humanos tendem a ter o desconcer-
tante hábito de fazer o que preferem e não o que
seria necessário para produzir respostas cientifica-
FIGURA 1.2 População e amostra. mente rigorosas. Quando os pesquisadores ten-
8 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

tam conduzir um experimento como seria feito Viés de aferição


em laboratório, as coisas tendem a dar errado. Al-
gumas pessoas se recusam a participar, enquanto O viés de aferição ocorre quando os métodos de
outras desistem ou escolhem outro tratamento. aferição levam sistematicamente a resultados in-
Além disso, os clínicos estão inclinados a acredi- corretos.
tar que suas terapias têm sucesso. (A maioria dos
pacientes não iria querer médicos que pensassem
diferente.) Essa atitude, tão importante na práti-
ca da medicina, torna as observações clínicas espe-
EXEMPLO
cialmente vulneráveis ao viés. Os níveis da pressão arterial são preditores poderosos
Embora dezenas de vieses tenham sido defini- de doença cardiovascular. No entanto, múltiplos estu-
dos demonstraram que medir a pressão arterial não
dos (11), a maioria se enquadra em uma de três é tão simples quanto parece (12). Para aferi-la corre-
categorias amplas (Tabela 1.4). tamente, deve-se utilizar um tamanho de manguito
maior para adultos acima do peso e obesos, posicio-
nar o paciente de forma que o braço fique abaixo do
Viés de seleção nível do átrio direito e que ele não tenha que man-
ter o braço elevado, fazer a aferição em um ambien-
O viés de seleção ocorre quando são feitas com- te calmo e repeti-la várias vezes. Se qualquer desses
parações entre grupos de pacientes que diferem de procedimentos não for feito de modo correto, as afe-
outras maneiras que não os principais fatores sob rições provavelmente estarão incorretas e sistemati-
estudo, maneiras essas que afetam o desfecho. Os camente elevadas. Um outro fator que leva a leituras
de pressão arterial sistematicamente elevadas, algu-
grupos de pacientes frequentemente diferem de mas vezes chamadas de “hipertensão do jaleco bran-
muitas maneiras – idade, sexo, gravidade da doen- co” (Figura 1.3), ocorre quando a pressão é aferida
ça, presença de outras doenças, cuidado que rece- por médicos, sugerindo que a consulta médica cau-
bem e assim por diante. Caso se compare a expe- se ansiedade nos pacientes. No entanto, os clínicos
que esvaziam o manguito mais rápido que 2-3 mm/
riência de dois grupos que diferem quanto a uma seg irão provavelmente subestimar a pressão sistóli-
determinada característica de interesse (por exem-
plo, um tratamento ou uma causa que se suspei-
te ser a da doença), mas que são também diferen-
tes quanto a essas outras maneiras, e as diferenças
30
são relacionadas ao desfecho, a comparação esta-
Aumento na pressão sistólica (mmHg)

rá enviesada e pouco poderá ser concluído sobre


os efeitos independentes das características de in-
teresse. No exemplo da herniorrafia, o viés de se- 20
leção teria ocorrido se os pacientes submetidos ao
procedimento laparoscópico fossem mais saudá-
veis do que os que sofreram uma cirurgia aberta. Médico
10

TABELA 1.4 Enfermeiro

Viés em observações clínicas 0


0 5 10
Viés de Ocorre quando são feitas comparações
Duração da consulta (minutos)
seleção entre grupos de pacientes que diferem
em outros determinantes de desfecho,
além do que está sendo estudado.
FIGURA 1.3 Hipertensão do jaleco branco. Aumen-
to na pressão sistólica, determinado por monito-
Viés de Ocorre quando os métodos de aferição ração contínua da pressão intra-arterial, quando a
aferição são diferentes entre grupos de pressão é aferida manualmente por um médico ou
pacientes.
por enfermeiro sem vínculo prévio com o paciente.
Viés de Ocorre quando dois fatores estão (Redesenhada com permissão de Mancia G. Para-
confusão associados (andam juntos) e o efeito ti G, Pomidossi G, et al. “Alerting reaction and rise
de um se confunde com ou é distorcido in blood pressure during measurement by physician
pelo efeito do outro.
and nurse.” Hypertension 1987;9:209-215.)
Capítulo 1: Introdução 9

ca (mas superestimar a diastólica). Estudos também randomizados, capazes de evitar o viés de confusão,
demonstraram uma tendência de os clínicos registra- não mostraram grandes efeitos dos antioxidantes
rem valores que estejam no nível normal em pacien- (13, 14). De fato, quando os resultados desses estudos
tes no limite para pressão arterial alta. Erros sistemá- foram combinados, o uso de antioxidantes, especial-
ticos na aferição da pressão arterial podem, portanto, mente em altas doses, foi associado a um pequeno
levar a excesso ou falta de tratamento de pacientes aumento, não redução, nas taxas de mortalidade. Co-
na prática clínica. A pesquisa clínica baseada em afe- mo conciliar os resultados dos estudos iniciais com os
rições da pressão arterial feitas durante o cuidado ro- achados opostos dos ensaios clínicos posteriores, cui-
tineiro de pacientes pode levar a resultados engana- dadosamente controlados? Sugeriu-se que houve vi-
dores, a menos que procedimentos cuidadosamente és de confusão, como mostra a Figura 1.4. As pessoas
padronizados sejam usados. Esses tipos de vieses le- que ingerem antioxidantes por conta própria tendem
varam ao desenvolvimento de instrumentos de afe- a fazer outras coisas de forma diferente daqueles que
rição da pressão arterial que não envolvam ouvidos não tomam antioxidantes – como fazer mais exercí-
e mãos humanas. cios, cuidar do peso, comer mais vegetais e não fumar
– e podem ser essas atividades, não os antioxidantes,
que levaram a uma redução na taxa de mortalidade
nos estudos que não randomizaram a intervenção.
Viés de confusão (ou confundimento)
O viés de confusão (ou confundimento) pode
ocorrer quando se tenta descobrir se um fator, co- A maioria das pesquisas clínicas, sobretudo es-
mo um comportamento ou a exposição a um me- tudos que observam pessoas durante um perío-
dicamento, é, por si só, uma causa de doença. Se do de tempo, rotineiramente tentam evitar o viés
esse fator estiver associado ou “andar junto” com de confusão, “controlando” para possíveis variá-
outro fator, que está por sua vez relacionado ao veis confundidoras na análise (veja o Capítulo 5).
desfecho, o efeito de um pode ser confundido ou Variáveis como idade, sexo e raça quase sempre
distorcido pelo efeito do outro. são analisadas como potenciais confundidoras,
pois muitos desfechos de saúde variam de acordo
com elas. Estudos que envolvem comportamento
humano (como a ingestão regular de antioxidan-
EXEMPLO tes) são especialmente propensos a viés de con-
Suplementos de antioxidantes, como as vitaminas A, fusão, uma vez que o comportamento humano é
C e E, são populares entre o público leigo. Experimen- tão complexo que é difícil analisar todos os fato-
tos de laboratório e estudos realizados com pessoas
que escolhem ingerir antioxidantes sugeriram que
res que podem influenciá-lo.
eles previnem doenças cardiovasculares e alguns ti- Uma variável não precisa ser uma causa da doen­
pos de câncer. No entanto, cuidadosos ensaios clínicos ça ou outra condição de interesse para ser confun-
didora. Ela pode estar relacionada à condição, em

Prevenção
Ingestão de de doenças
Questão antioxidantes cardiovasculares
principal

Idade
Uso de aspirina
FIGURA 1.4 Viés de confusão. A Atividade física
Fatores potencialmente
relação entre a ingestão de antio- confundidores Índice de massa corporal
xidantes e o risco de doenças car- Tabagismo
diovasculares é potencialmente História familiar
confundida pelas características Dieta
do paciente e por comportamen-
tos relacionados tanto ao uso de
antioxidantes quanto ao desen-
volvimento de doenças cardio-
vasculares.
10 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

um determinado banco de dados, devido ao viés estiver, que teria um efeito suficientemente gran-
de seleção ou ao acaso, mas não relacionada na na- de nos resultados para ter relevância. Para um pes-
tureza. Seja a relação apenas nos dados ou na na- quisador ou um leitor lidar de forma adequada
tureza, a consequência é a mesma: a impressão er- com o viés, é necessário primeiro saber onde e co-
rônea de que o fator de interesse é uma causa real mo procurar por ele e o que pode ser feito. Mas
e independente quando, na verdade, não é. não se deve parar por aí. Também é necessário de-
O viés de seleção e o de confusão são relacio- terminar se o viés está de fato presente e qual é o
nados. Entretanto, eles são descritos separada- seu tamanho provável e, então, decidir se é impor-
mente, porque apresentam problemas em pontos tante o bastante para modificar as conclusões do
diferentes em um estudo clínico. O viés de sele- estudo de forma clinicamente relevante.
ção é relevante principalmente quando os pacien-
tes são escolhidos para a investigação e é impor- Acaso
tante no planejamento de um estudo. É necessário
tratar do viés de confusão durante a análise dos As observações sobre as doenças são normalmente
dados, após as observações já terem sido feitas. feitas em uma amostra de pacientes, uma vez que
Um mesmo estudo pode envolver diversos ti- não é possível estudar todos os pacientes que so-
pos de vieses ao mesmo tempo. frem da doença em questão. Os resultados de uma
amostra não enviesada tendem a se aproximar do
valor verdadeiro. No entanto, uma determinada
amostra, mesmo se selecionada sem viés, pode re-
EXEMPLO presentar erroneamente a situação na população
como um todo por causa do acaso. Se as obser-
Surgiram preocupações de que o consumo de cafeí-
na durante a gravidez pudesse levar a desfechos fe- vações fossem repetidas em mais amostras de pa-
tais adversos. Não seria ético determinar se a cafeína cientes da mesma população, os resultados iriam
é perigosa para fetos por meio de um experimento, se aglomerar em torno do valor verdadeiro, com
designando algumas gestantes para ingerir altas do-
ses de cafeína e outras não; portanto, pesquisadores
um número maior deles próximos, em vez de dis-
avaliaram os desfechos na gestação de acordo com a tantes, do valor verdadeiro. A divergência entre a
quantia de cafeína ingerida. No entanto, muitos des- observação em uma amostra e o valor verdadei-
ses estudos apresentaram diversos vieses (15). Pode ro na população, devida exclusivamente ao acaso,
ter ocorrido viés de aferição, uma vez que muitos es-
tudos se fizeram valer do relato das gestantes quan-
chama-se variação aleatória.
to ao consumo de cafeína. Um estudo demonstrou vi- Todos nós estamos familiarizados com o aca-
és recordatório, um tipo de viés de aferição que se so como uma explicação de por que uma moeda,
refere ao diferencial nas recordações de pessoas que
apresentaram um desfecho adverso, em comparação
quando jogada para o alto, digamos, cem vezes,
com aquelas que tiveram um desfecho normal. Des- não resulta em cara em 50% delas. O mesmo efei-
cobriu-se uma associação entre consumo de cafeína to, a variação aleatória, aplica-se quando se com-
e aborto espontâneo quando as mulheres foram en- param os efeitos do reparo laparoscópico e da ci-
trevistadas após o aborto, mas não quando elas fo-
ram questionadas sobre o consumo antes do aborto
rurgia aberta para hérnia inguinal, já discutidos.
(16). Se algumas mulheres foram recrutadas para os Suponha que todos os vieses tenham sido removi-
estudos sobre cafeína durante as consultas de pré-na- dos de um estudo sobre os efeitos dos dois proce-
tal (mulheres com maior probabilidade de serem par- dimentos. Suponha, também, que os dois proce-
ticularmente cuidadosas com a saúde) e outras recru-
tadas no final da gestação, as diferentes abordagens dimentos sejam, na verdade, igualmente eficazes
para recrutamento poderiam levar a viés de seleção, em termos de dor pós-operatória, cada um segui-
o que poderia invalidar os resultados. Por fim, sabe-se do por dor em 10% dos pacientes. Mesmo assim,
que o alto consumo de cafeína é associado ao hábi-
to do tabagismo, níveis socioeconômicos mais baixos,
exclusivamente em decorrência do acaso, um úni-
maior consumo de bebidas alcoólicas e geralmente co estudo com um número pequeno de pacientes
menor consciência com relação à saúde. Todos esses em cada grupo de tratamento poderia facilmente
itens poderiam confundir qualquer associação entre descobrir que os pacientes ficam melhores com a
cafeína e desfechos fetais adversos.
laparoscopia do que com a cirurgia aberta (ou vi-
ce-versa).
O acaso pode afetar todos os estágios envolvi-
O potencial para viés não significa que o vi- dos nas observações clínicas. Na avaliação das du-
és esteja realmente presente em um estudo ou, se as formas de reparo de hérnia inguinal, a variação
Capítulo 1: Introdução 11

aleatória ocorre na amostragem dos pacientes pa- ca em um único paciente é usada como exemplo;
ra o estudo, na seleção dos grupos de tratamen- cada ponto representa uma observação daque-
to e nas aferições de dor e de retorno ao trabalho. le paciente. A pressão arterial verdadeira, que é
Ao contrário do viés, que tende a distorcer de 80 mmHg para esse paciente, pode ser obti-
os resultados para uma direção ou outra, a varia- da por meio de uma cânula intra-arterial, mas
ção aleatória tem tanta probabilidade de resultar esse método não é factível para aferições de ro-
em observações acima do valor verdadeiro quan- tina. A pressão arterial é em geral medida indire-
to abaixo. Consequentemente, a média de mui- tamente, utilizando um esfigmomanômetro (um
tas observações não enviesadas em amostras tende manguito de pressão arterial). Como foi discuti-
a se aproximar do valor verdadeiro na população, do em um exemplo anterior, o instrumento mais
embora isso possa não ocorrer com os resultados simples é propenso a erro ou desvio do valor ver-
de amostras pequenas. No caso do reparo da hér- dadeiro. Na figura, o erro é representado por to-
nia inguinal, múltiplos estudos, quando avaliados das as leituras do esfigmomanômetro, que ficam à
em conjunto, mostraram que o reparo laparos- direita do valor verdadeiro. O desvio das leituras
cópico resulta em menos dor nos primeiros dias do esfigmomanômetro para valores mais elevados
após a cirurgia. ­(viés) pode ter diversas explicações (por exemplo,
A estatística pode ser utilizada para estimar um tamanho de manguito errado, paciente ansio-
até que ponto o acaso (variação aleatória) é res- so ou “hipertensão do jaleco branco”). As leituras
ponsável pelos resultados de um estudo clínico. O da pressão arterial individual também estão sujei-
conhecimento sobre estatística também pode au- tas a erro, devido à variação aleatória na medição,
xiliar a reduzir o papel do acaso ao ajudar a elabo- como ilustrado pela dispersão das leituras do es-
rar um melhor delineamento e plano de análises. figmomanômetro em torno do valor médio (90
Entretanto, a variação aleatória não pode jamais mmHg).
ser totalmente eliminada, de forma que o acaso A razão principal para a distinção entre viés
sempre precisa ser considerado quando se avaliam e acaso é que eles são tratados de forma diferen-
os resultados de observações clínicas. O papel do te. Em teoria, o viés pode ser evitado pela condu-
acaso em observações clínicas será discutido em ção de investigações clínicas apropriadas ou pode
mais detalhes no Capítulo 11. ser corrigido durante a análise dos dados. Se não
for eliminado, o viés pode ser frequentemente de-
Os efeitos do viés e tectado pelo leitor perspicaz. Grande parte deste
do acaso são cumulativos livro é sobre como reconhecer, evitar ou minimi-
As duas fontes de erro – viés e acaso – não são zar o viés. O acaso, no entanto, não pode ser eli-
mutuamente exclusivas. Na maioria das situações, minado, mas sua influência pode ser reduzida por
ambos estão presentes. A relação entre eles é ilus- meio de um delineamento de pesquisa apropria-
trada na Figura 1.5. A medida da pressão diastóli- do, e o efeito remanescente pode ser estimado pe-
la estatística. Não há tratamento estatístico capaz
Pressão arterial Medida da de corrigir os vieses desconhecidos nos dados. Al-
verdadeira (cânula pressão arterial guns estatísticos chegam a sugerir que a estatística
intra-arterial) (esfigmomanômetro) não deve ser aplicada a dados que sejam vulnerá-
veis ao viés em consequência de um mau planeja-
Número de observações

mento de pesquisa, para não dar uma falsa aura


de respeitabilidade a um trabalho fundamental-
mente enganoso.
Acaso

Validade interna e externa


Viés
Ao fazer inferências sobre uma população a par-
tir da observação de uma amostra, os clínicos pre-
80 90
Pressão diastólica (mmHg) cisam decidir sobre duas questões fundamentais.
FIGURA 1.5 Viés e acaso. Pressão arterial verdadei- Em primeiro lugar, as conclusões da pesquisa são
ra por cânula intra-arterial e medida clínica por es- corretas para as pessoas na amostra? Em segundo,
figmomanômetro. se são, a amostra representa de forma adequada os
12 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

pacientes que lhes interessam mais, o tipo de pa-


cientes que atendem ou, talvez, um paciente espe-
cífico (Figura 1.6)?
EXEMPLO
A validade interna é o grau em que os resulta- Qual é a taxa de morte a longo prazo da anorexia
dos de um estudo estão corretos para a amostra de nervosa, um transtorno alimentar que aflige prin-
cipalmente mulheres jovens? Em uma síntese de 42
pacientes sob análise. É “interna” porque se aplica estudos, a mortalidade estimada foi de 15% em 30
às condições do grupo específico de pacientes sen- anos (17). Esses estudos, como a maioria das pesqui-
do observado, e não necessariamente a outros. A sas clínicas, foram realizados com pacientes identifi-
validade interna da pesquisa clínica é determinada cados em centros de referência, onde os casos relati-
vamente graves são atendidos. Um estudo de todos
pela forma como o delineamento, a coleta de dados os pacientes que desenvolveram anorexia em uma
e as análises são conduzidos e é ameaçada por todos população definida forneceu uma visão diferente da
os vieses e variações aleatórias já discutidos. Para doença. Os pesquisadores da Mayo Clinic consegui-
ram detectar todos os pacientes que desenvolveram
que uma observação clínica seja útil, a validade in- a doença em sua cidade, Rochester, no estado norte-
terna é uma condição necessária, mas insuficiente. -americano de Minnesota, de 1935 a 1989 (Figura 1.7)
A validade externa é o quanto os resultados de (18). A mortalidade por todas as causas em 30 anos
um estudo se aplicam em outros cenários. Um ou- foi de 7%, a metade do que havia sido relatado nos
estudos. A mortalidade prevista em pessoas sem ano-
tro termo para isso é capacidade de generalização. rexia nervosa de mesma idade e sexo foi mais ou me-
Para um clínico, é a resposta à questão: “Presumin- nos a mesma, 6%. Portanto, embora alguns pacientes
do que os resultados de um estudo sejam verdadei- de fato morram de anorexia nervosa, a maioria dos
ros, eles podem ser aplicados aos meus pacientes estudos publicados superestima muito o risco, presu-
midamente porque relatam a experiência com casos
também?”. A capacidade de generalização expressa mais graves.
a validade de se presumir que os pacientes em um
estudo são semelhantes a outros pacientes.
Estudos com boa validade interna são genera-
lizáveis a pacientes muito parecidos com aqueles
do estudo. Entretanto, um estudo incontestável, 16
15
com validade interna alta, pode ser totalmente en-
14
ganoso se os resultados forem generalizados aos
pacientes errados.
Mortalidade em 30 anos (%)

12
A capacidade de generalização das observações
clínicas, mesmo daquelas com validade interna al- 10
ta, é uma questão de julgamento pessoal, sobre a
8
7

Todos os pacientes VALIDADE 6


com a condição clínica INTERNA
de interesse 4

2
Amostragem
AMOSTRA AMOSTRA
42 estudos com Estudo com base
base clínica populacional
Viés de
seleção
FIGURA 1.7 Viés de amostragem. Mortalidade em
30 anos por todas as causas em pacientes com ano-
rexia nervosa. A comparação entre uma síntese de
Viés de aferição 42 estudos publicados, principalmente de centros
e de confusão de referência, e um estudo de todos os pacientes
? com anorexia na população. (Fonte: Sullivan PF.
?? Acaso “Mortality in anorexia nervosa”. Am J Psychiatry.
VALIDADE EXTERNA 1995; 152:1073-1074; e Korndorfer SR, Lucan AR,
CONCLUSÃO
(capacidade de Suman VJ, et al. “Long-term survival of patients wi-
generalização) th anorexia nervosa: a population-based study in Ro-
chester, Minn”. Mayo Clinic Proc. 2003; 78: 278-284.)
FIGURA 1.6 Validade interna e externa.
Capítulo 1: Introdução 13

qual pessoas sensatas podem discordar. Frequen- sões em conjunto, um processo denominado to-
temente surge um dilema quando os clínicos pre- mada de decisão compartilhada, reconhecendo
cisam decidir sobre utilizar ou não os resultados que a experiência de ambas as partes são comple-
de um estudo bem conduzido para definir a con- mentares. Os pacientes são especialistas no que
duta para um paciente mais velho do que o grupo eles esperam obter de seu cuidado médico, devido
estudado, de um gênero diferente ou mais doen­ a suas experiências e preferências singulares. Eles
te. Por exemplo, pode ser que um tratamento que podem ter descoberto muitas informações sobre a
funcione bem em homens jovens e saudáveis fa- sua doença (por exemplo, pela internet), mas não
ça mais mal do que bem a mulheres mais velhas e estão certos de como separar as alegações verídi-
mais doentes. cas das errôneas. Os médicos são especialistas em
A capacidade de generalização raramente po- avaliar a possibilidade de atingir os objetivos dos
de ser tratada de forma satisfatória em qualquer pacientes e em como fazê-lo. Para isso, eles de-
estudo. Até mesmo uma população definida com pendem do corpo de evidências de pesquisa e da
base geográfica é uma amostra enviesada de po- capacidade, com base nos princípios da epidemio-
pulações maiores. Por exemplo, os pacientes hos- logia clínica, de distinguir as evidências fortes das
pitalizados são amostras enviesadas dos residentes fracas. É claro que os clínicos também trazem pa-
de uma cidade; cidades, de estados; estados, de re- ra a consulta sua experiência de como a doença se
giões e assim por diante. O melhor que o pesqui- apresenta e as consequências humanas do cuida-
sador pode fazer acerca da capacidade de generali- do, como a sensação de ser intubado ou de sofrer
zação é garantir a validade interna, atuar de forma uma amputação, com as quais os pacientes po-
que a população do estudo se enquadre na questão dem estar pouco familiarizados. Para que os clíni-
da pesquisa, descrever os pacientes do estudo cui- cos possam fazer sua parte nesse trabalho de equi-
dadosamente e evitar estudar pacientes que sejam pe, eles precisam ser especialistas na interpretação
tão incomuns que a experiência com eles possa ser das informações clinicamente relevantes.
generalizada somente para um número pequeno de As preferências dos pacientes e as evidências
pessoas. Cabe então a outros estudos, em outros ce- científicas sólidas são a base para a escolha entre as
nários, ampliar a capacidade de generalização. opções de cuidado à saúde. Por exemplo, um pa-
ciente que sofre de valvulopatia cardíaca pode pre-
ferir a possibilidade de uma vida saudável a lon-
INFORMAÇÕES E DECISÕES go prazo oferecida pela cirurgia, embora ela esteja
associada com desconforto e risco de morte a cur-
As principais preocupações deste livro são a quali- to prazo. O clínico, armado da leitura crítica e da
dade das informações clínicas e a sua correta inter- habilidade comunicativa, pode ajudar o paciente
pretação. A tomada de decisões é um outro assun- a entender a magnitude dos potenciais riscos e be-
to. É verdade que as boas decisões dependem de nefícios e com que grau de certeza eles foram es-
boas informações, mas elas envolvem muito mais, tabelecidos.
incluindo julgamentos de valor e o peso dos riscos Alguns aspectos da análise de decisão, como a
e dos benefícios, que competem entre si. avaliação dos testes diagnósticos, estão incluídos
Nos últimos anos, a tomada de decisão médi- neste livro. Entretanto, decidimos não nos apro-
ca vem se tornando uma disciplina valorizada por fundar na tomada de decisão. Nossa justificativa é
mérito próprio. O campo inclui estudos qualitati- que as decisões são tão boas quanto as informações
vos de como os clínicos tomam decisões e como o utilizadas para que sejam tomadas, e já encontra-
processo pode sofrer vieses e ser melhorado. Tam- mos conteúdo suficiente para ter o que falar sobre
bém inclui métodos quantitativos, como análise os elementos essenciais da coleta e interpretação de
de decisão, de custo-benefício e de custo-efetivi- informações clínicas para encher um livro.
dade, que colocam o processo de tomada de de-
cisão de uma forma explícita, de modo que seus
componentes e as consequências de se atribuir vá- A ORGANIZAÇÃO DESTE LIVRO
rias probabilidades e valores para eles possam ser
examinados. Na maioria dos livros-texto sobre medicina clíni-
Os pacientes e os clínicos tomam decisões clí- ca, as informações sobre cada doença estão apre-
nicas. Na melhor das hipóteses, eles tomam deci- sentadas como respostas às questões clínicas tra-
14 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

dicionais: diagnóstico, curso clínico, tratamento e Nós organizamos este livro principalmente de
assim por diante. Entretanto, a maioria dos livros acordo com as questões com que os clínicos se de-
sobre epidemiologia está organizada em torno das param quando cuidam dos pacientes (veja a Tabe-
estratégias de pesquisa, como ensaios clínicos, in- la 1.1). A Figura 1.8 ilustra como essas questões
quéritos, estudos de caso-controle, etc. Essa forma correspondem aos capítulos do livro, tomando o
de organizar um livro pode ser boa para aqueles vírus da imunodeficiência humana (HIV) como
que realizam pesquisas clínicas, mas é, em muitos exemplo. As questões se relacionam à história na-
casos, pouco útil para os clínicos. tural completa da doença, do momento em que

Título do
História natural capítulo Página

População
em risco

Fatores de risco Causa p. 208


Sexo sem proteção Risco p. 53, 66, 86
Compartilhar seringas Prevenção p. 163

Infecção Frequência p. 19
Anormalidade p. 34
Diagnóstico p. 116
Prevenção p. 163

Início da doença
Infecção primária
Doença definidora da aids
Sarcoma de Kaposi
Infecção por Pneumocystis
Infecção disseminada por
Mycobacterium avium

Tratamento Tratamento p. 140

Desfechos Prognóstico p. 100


Morte
Doente por causa
da aids
Bem

FIGURA 1.8 A organização deste livro em relação à história natural da infecção pelo vírus da imunodefi-
ciência humana (HIV). Os Capítulos 11, 13 e 14 descrevem temas transversais, que se relacionam a todos os
pontos na história natural de uma doença.
Capítulo 1: Introdução 15

as pessoas sem o vírus são expostas ao risco, pas- nicas do capítulo. Algumas estratégias, como estu-
sando por quando alguns adquirem a doença e se dos de coorte, são úteis para responder a diversos
tornam pacientes, por meio das complicações da tipos diferentes de questões clínicas. Por motivos
doença, doenças definidoras de aids, até a sobre- didáticos, discutimos cada estratégia com mais
vida ou a morte. detalhe em um capítulo e simplesmente nos re-
Em cada capítulo, descrevemos estratégias de ferimos à discussão quando o método é relevante
pesquisa utilizadas para responder às questões clí- para outras questões, em outros capítulos.

Q u e stõ e s d e re visã o

As questões 1.1 a 1.6 baseiam-se no caso C. Viés de confusão


clínico a seguir. D. Acaso
E. Validade externa (capacidade de gene-
Uma mulher de 37 anos, sofrendo de dor lom-
ralização)
bar nas últimas quatro semanas, quer saber se vo-
cê recomenda cirurgia. Você prefere embasar su- 1.3 Menos pacientes que não sofreram a cirur-
as recomendações de tratamento em evidências de gia permaneciam sob os cuidados da clíni-
pesquisas, sempre que possível. No melhor estudo ca dois meses após a cirurgia.
que você consegue encontrar, os pesquisadores re- A. Viés de seleção
visaram os registros médicos de 40 homens con- B. Viés de aferição
secutivos com dor lombar sob cuidados na clíni- C. Viés de confusão
ca. Destes, 22 foram encaminhados para cirurgia D. Acaso
e outros 18 permaneceram sob cuidados médicos E. Validade externa (capacidade de gene-
sem cirurgia. O estudo comparou as taxas de dor ralização)
incapacitante após dois meses. Todos os pacien-
tes tratados com cirurgia e dez dos que receberam 1.4 Os pacientes que foram indicados para ci-
tratamento médico continuaram consultando a rurgia eram mais jovens e estavam em me-
clínica durante esse período. As taxas de alívio da lhores condições físicas do que aqueles que
dor foram levemente mais altas nos pacientes sub- permaneceram sob cuidado médico.
metidos à cirurgia. A. Viés de seleção
B. Viés de aferição
Para cada uma das questões abaixo, escolha C. Viés de confusão
a resposta que mais bem representa a D. Acaso
ameaça à validade. E. Validade externa (capacidade de gene-
1.1 Uma vez que existem relativamente pou- ralização)
cos pacientes nesse estudo, ele pode passar 1.5 Em comparação com os pacientes que tive-
uma impressão errônea do efeito real da ci- ram somente o tratamento médico, os que
rurgia. foram submetidos à cirurgia podem ter esta-
A. Viés de seleção do menos propensos a relatar qualquer dor
B. Viés de aferição que tenham sentido e os médicos responsá-
C. Viés de confusão veis menos inclinados a registrar o fato.
D. Acaso A. Viés de seleção
E. Validade externa (capacidade de gene- B. Viés de aferição
ralização) C. Viés de confusão
1.2 Os resultados desse estudo podem não se D. Acaso
aplicar a seu paciente, uma mulher, porque E. Validade externa (capacidade de gene-
todos os pacientes do estudo eram homens. ralização)
A. Viés de seleção 1.6 Os pacientes que não apresentavam outras
B. Viés de aferição condições médicas tiveram maior probabi-
16 Epidemiologia clínica: elementos essenciais

lidade de recuperação e de ser encaminha- diversos estudos bons que demonstraram


dos para a cirurgia. que uma determinada combinação de fár-
A. Viés de seleção macos prolonga a vida dos pacientes que
B. Viés de aferição sofrem de câncer de colo. Entretanto, to-
C. Viés de confusão dos os pacientes nesses estudos eram mui-
D. Acaso to mais jovens. Qual das afirmações abai-
E. Validade externa (capacidade de gene- xo está correta?
ralização) A. Diante desses estudos, a decisão sobre
o tratamento é uma questão de julga-
Para as questões 1.7 a 1.11, mento pessoal.
selecione a melhor resposta. B. Basear-se nesses estudos para decidir
1.7 A histamina é um mediador inflamatório sobre seu paciente é chamado de vali-
em pacientes com rinite alérgica (“febre do dade interna.
feno”). Com base nesse fato, qual dos itens C. Os resultados nesses estudos são afeta-
a seguir é verdadeiro? dos pelo acaso, mas não por viés.
A. Os fármacos que bloqueiam os efeitos 1.10 Um estudo foi conduzido para determinar
das histaminas aliviarão os sintomas. se exercícios regulares reduzem o risco pa-
B. Uma queda nos níveis de histamina no ra doença coronariana. Um programa de
nariz é um marcador confiável do su- exercícios foi oferecido para funcionários
cesso clínico. de uma fábrica, e as taxas de eventos coro-
C. Os anti-histamínicos podem ser efe- narianos subsequentes foram comparadas
tivos, e seus efeitos sobre os sinto- em funcionários que se voluntariaram pa-
mas (como prurido no nariz, espirros ra o programa e aqueles que não se volun-
e congestão) devem ser estudados em tariaram. O desenvolvimento de doenças
pacientes com rinite alérgica. coronarianas foi determinado por meio de
D. Outros mediadores não são importan- check-ups regulares voluntários, incluindo
tes. uma anamnese cuidadosa, um eletrocardio-
E. Se os estudos de pesquisa básica sobre grama e uma revisão dos registros de saúde.
a doença forem convincentes, a pes- Surpreendentemente, os membros do gru-
quisa clínica será desnecessária. po de exercícios apresentaram maior taxa
1.8 Qual das seguintes afirmações sobre amos- de doença coronariana, mesmo que pou-
tras de populações está incorreta? cos fumassem cigarros. O resultado prova-
velmente não pode ser explicado por qual
A. As amostras de populações podem ter das seguintes afirmações?
características que diferem da popula-
ção, mesmo que os procedimentos de A. Os voluntários tinham mais risco de
amostragem corretos tenham sido se- desenvolver doença coronariana do
guidos. que aqueles que não se voluntariaram.
B. As amostras de populações são a úni- B. Na verdade, os voluntários não au-
ca forma plausível de estudar a popu- mentaram seus exercícios, e o volume
lação. de exercícios foi o mesmo para os dois
C. Quando a amostra da população é se- grupos.
lecionada corretamente, a validade ex- C. Os voluntários fizeram mais check-ups,
terna é assegurada. e, portanto, houve mais probabilidade
D. As amostras de populações devem ser de diagnosticar infartos do miocárdio
selecionadas de forma que cada mem- silenciosos no grupo de exercício.
bro da população tenha uma probabi- 1.11 Extrassístoles ventriculares estão associadas
lidade igual de ser escolhido. a um maior risco de morte súbita em de-
1.9 Você está tomando uma decisão sobre o tra- corrência de arritmia fatal, especialmente
tamento de um homem de 72 anos que so- em pessoas que apresentam outras evidên-
fre de câncer de colo. Você está ciente dos cias de doença cardíaca. Você leu que exis-
Capítulo 1: Introdução 17

te uma nova medicação para extrassístoles D. Acaso


ventriculares. Qual é a informação mais im- E. Validade externa (capacidade de gene-
portante que você gostaria de saber antes de ralização)
prescrever essa medicação a um paciente?
1.13 Os médicos podem ter questionado as mu-
A. O mecanismo de ação da medicação. lheres com tromboflebite mais cuidadosa-
B. Qual a eficácia da medicação na pre- mente sobre o uso de contraceptivos do que
venção de extrassístoles ventriculares as mulheres sem a doença (e registrado as
em pessoas que a utilizam, em compa- informações com mais cuidado no prontu-
ração com aquelas que não a utilizam? ário médico), pois sabiam que o estrogênio
C. A taxa de morte súbita em pessoas se- poderia causar coágulos.
melhantes que usam e que não usam a
A. Viés de seleção
medicação.
B. Viés de aferição
As questões 1.12 a 1.15 se C. Viés de confusão
baseiam no caso clínico a seguir. D. Acaso
E. Validade externa (capacidade de gene-
Uma vez que relatos sugeriram que estrogênios ralização)
aumentam o risco de coágulos, um estudo com-
parou a frequência do uso de contraceptivos orais 1.14 O número de mulheres no estudo era pe-
entre mulheres internadas em um hospital com queno.
tromboflebite e um grupo de mulheres interna- A. Viés de seleção
das por outras razões. Os registros médicos foram B. Viés de aferição
revisados em busca da indicação de uso de con- C. Viés de confusão
traceptivo oral nos dois grupos. Constatou-se que D. Acaso
as mulheres com tromboflebite estavam usando E. Validade externa (capacidade de gene-
mais contraceptivos orais que as mulheres inter- ralização)
nadas por outras razões.
1.15 As mulheres com tromboflebite foram in-
Para cada uma das afirmações abaixo, ternadas no hospital por médicos que traba-
escolha a resposta que mais bem representa lham em bairros diferentes dos médicos das
ameaça à validade. mulheres que não tinham tromboflebite.­
1.12 Mulheres com tromboflebite podem ter re- A. Viés de seleção
latado o uso de contraceptivos mais acurada- B. Viés de aferição
mente que mulheres sem a doença, pois elas C. Viés de confusão
se lembram de ter ouvido sobre a associação. D. Acaso
E. Validade externa (capacidade de gene-
A. Viés de seleção ralização)
B. Viés de aferição
C. Viés de confusão Respostas no Apêndice A.

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