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O OLHAR DOS ÍNDIOS (José Ribamar Bessa Freire)

– Atira! Atira! – lhe dizia o índio Parakanã, apontando a caça. O antropólogo


Carlos Fausto, com a arma na mão, olhava na direção indicada e não via bulhufas. Só
árvores.
– Ali, ali, naquele galho – suplicava em voz baixa o índio, sinalizando o alvo com o
dedo.
– Onde? Onde? – perguntava o antropólogo, atônito. Via apenas uma mancha
verde formada por um emaranhado de troncos, folhas, cipós, raízes, musgos, liquens,
sombras, tudo da mesma cor, mas nem sinal do animal. O bicho, que para ele
continuava invisível, aproveitou a hesitação e se escafedeu, sem nem ao menos declinar
sua identidade ao ofuscado caçador.
Foi ali, naquele momento, que Carlos Fausto, sem disparar um tiro, acertou o que não
viu, ao suspeitar que seus olhos estivessem incapacitados de ver, dentro da floresta,
aquilo que os índios viam. Estávamos no final da década de 1980, ele começava seu
mestrado em Antropologia Social com os índios Parakanã, orientado por Eduardo
Viveiros de Castro e não era, ainda, capaz de ler a floresta.
Essa história, com riquezas de detalhes, foi contada pelo próprio Carlos Fausto,
pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social do Museu
Nacional. Ele lembrou o fato estimulado pela tese de Viviam Secin ‘Ortóptica,
Oralidade e Letramento: a visão binocular dos indígenas Guarani Mbya da Aldeia
Sapukai (RJ)’ do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ.
Os ceguetas
A tese da doutora Viviam Secin, que é ortoptista com mais de vinte anos de prática
clínica em seu consultório no Rio de Janeiro, parte de duas situações exemplares vividas
por sujeitos cuja demanda visual foi alterada por mudanças na rotina profissional ou no
estilo de vida. A primeira ocorreu com uma médica, nascida e criada no Rio de Janeiro,
que foi trabalhar em aldeias indígenas do Amazonas, onde viveu quatro anos. Ela fez
percurso similar ao de Fausto, saindo da cidade para a floresta, encontrando um novo
ambiente visual distinto dos espaços letrados urbanos, o que gerou problemas de
adaptação.
A médica conta que ficou impressionada com a percepção visual dos índios que viam
tudo, mesmo de noite, enquanto ela “não via da mesma forma que os indígenas”.
Percebeu que “sua condição biológica não se ajustava àquele ambiente novo, que
exigia compreender novos índices visuais e uma nova lógica interpretativa”. Quando
andava na floresta, tropeçava, caía, se sentia uma “cegueta”. Descobriu que “o uso da
lanterna, à noite, mais atrapalha do que ajuda”. Com o tempo, aprendeu a exercitar um
novo olhar, mas “mesmo assim, quando eu andava com eles, observava o quanto eles
enxergavam o que eu não era capaz de ver”.
A segunda situação foi vivida por uma estudante de graduação em enfermagem, de 38
anos, que fez o caminho inverso. Nascida e criada em uma comunidade indígena no
interior do Maranhão, onde não havia escola, ela migrou para a cidade, em busca de
educação formal, mas enfrentou enormes dificuldades para se adaptar às novas
demandas psicomotoras da leitura. As letras eram, para ela, o que a caça foi para Carlos
Fausto: difíceis de ver, provocando embaçamento de imagens. “Não conseguia ler
porque me dava muita dor de cabeça. Eu via às vezes como se as letras fossem assim
saindo do livro. Tinha letra no meio daquelas frases que eu não via, a coisa ficava sem
sentido, porque eu pulava as linhas. Repeti muitas vezes a oitava série. Meus irmãos,
que não concluíram o segundo grau, se queixam da mesma coisa: muita dor de cabeça,
enjoo, tonteira… Eu ia ao oftalmologista e ele falava que eu não precisava usar óculos,
eu enxergava muito bem, mas eu tinha alguma deficiência”.
Idêntica situação é confirmada por um índio Marubo, da aldeia Alegria, no Javari (AM)
para quem “o papel também estraga os olhos. No início, o seu olho fica vacilante, você
não enxerga, fica com dor de cabeça, você fica assim. Assim faz o papel, ele dá
tontura”.
Os profissionais de ortóptica – uma ciência que estuda a visão binocular em seus
aspectos sensoriais e motores – costumam diagnosticar essa inadequação visual de
quem sai do mundo da oralidade para o da escrita como uma deficiência, uma
incapacidade. Viviam Secim desconfiou disso. Suspeitou da interferência de fatores
ambientais e culturais no processo de desenvolvimento visual e decidiu conferir, a partir
de uma pergunta que formulou: será que todos nós, brasileiros, estamos igualmente
aptos, em termos funcionais binoculares, para desenvolver a leitura e a escrita? Ou
igualmente aptos para caçar na floresta?
Miopia
Ela pesquisou dois grupos populacionais escolhidos por seus distintos perfis culturais:
um formado por 99 índios Guarani Mbya da Aldeia Sapukai, de Angra dos Reis (RJ), de
cultura predominantemente oral; o outro por 59 universitários não-indígenas, de cultura
predominantemente letrada. Entrevistou, filmou, fotografou e aplicou testes para avaliar
as funções visuais dos integrantes dos dois grupos. Concluiu que existem diferenças
significativas, o primeiro grupo emprega mais o campo binocular periférico, enquanto o
segundo usa predominantemente o campo binocular central.
As evidências apresentadas pela tese de Viviam demonstram que não existe um sujeito
idealizado, dotado de uma fisiologia única e comum, e que as condições visuais são
socialmente determinadas não apenas por fatores inatos, mas pela cultura e pela história.
Quem é capaz de ler a floresta tem um olhar diferente de quem foi treinado para ler
livros e vice-versa. Portanto, não é cientificamente correto considerar a cultura urbana
como “padrão”, como condição binocular “normal” ou “universal”. Nessa perspectiva,
as diversidades visuais deixam de ser vistas como “deficiências” ou “distúrbios” para
serem consideradas como diferenças visuais culturalmente possíveis.
Essa conclusão, que tem consequências sobre o processo de escolarização indígena e de
indivíduos do meio rural, pode contribuir decisivamente para o planejamento escolar e a
formulação de políticas públicas. A busca pelo conhecimento através da leitura e da
escrita exige, entre outros aspectos, um controle adequado da motricidade ocular, que é
fundamental para o desempenho escolar. Um total de dezoito músculos oculares se
orquestra durante a leitura, entrando em ação um verdadeiro jogo de forças – escreve
Viviam. Por isso, no caso de povos da floresta e do campo, a autora propõe algumas
estratégias de exercícios visuais e de aprestamento que facilitem “a transição de outros
modos ecológicos de ver para o modo de ver necessário à cultura escrita”.
Durante cinco séculos, no Brasil, quando se tentou alfabetizar os índios, se usou a
língua portuguesa, com resultados desastrosos. Essa prática de ensinar alguém a ler uma
língua que não fala, foi apontada como irracional pela Linguística Aplicada. A partir da
Constituição de 1988, os índios passaram a ter o direito de serem alfabetizados em suas
línguas maternas, corrigindo uma distorção secular monstruosa. A tese de Viviam Secin
nos chama a atenção para a existência de outra irracionalidade, que é desconsiderar a
existência da diversidade visual. Durante a defesa da qual participei como membro da
banca, lembrei um personagem de Guimarães Rosa, Miguilim, um menino de oito anos,
que vive com sua família no sertão do Mutum. Ele sofre tanto que amadurece, bebendo
assim “um golinho de velhice”. No finalzinho da narrativa, chegam ao Mutum para
caçar, vindos da cidade, dois homens, um deles é um médico, “um certo Doutor José
Lourenço”, que estranha o olhar de Miguilim e faz nele alguns testes de visão. Descobre
o que ninguém sabia, nem o menino, nem os outros personagens e muito menos os
leitores: Miguilim era míope.
Essa é a chave para explicar muitos dos sofrimentos de Miguilim, alguns dos quais
poderiam ter sido evitados se fosse feito um diagnóstico a tempo. O médico convida o
menino para ir morar com ele na cidade, onde pode estudar. A família concorda. Antes
de partir, Miguilim pede os óculos do médico emprestados e vê o Mutum, com outros
olhos, pela primeira vez. Encantado, enxerga o sertão como um lugar bonito, vê os
familiares, admira a beleza da mãe, os traços do tio. A miopia não é apenas de
Miguilim, mas do seu entorno, que não foi capaz de ver o que
acontecia com o menino. No momento em que celebramos a Semana do Índio, a tese de
Viviam Secin nos ajuda a corrigir a nossa miopia e nos possibilita ver um Miguilim
coletivo. Trata-se de leitura prazerosa e necessária, que vai interessar a todos aqueles
que trabalham com educação.
Fonte: FREIRE. Ribamar Bessa. A nossa Miopia e o olhar dos índios. Disponível em:
<https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ribamar-bessa-freire-a-nossa-miopia-e-
o-olhar- dos-indios.html>. Acesso em 05.jun.2018.
Questão reflexiva (individual)

1) A partir de sua leitura do livro “Cultura: um conceito antropológico”, apresente um


texto entre 25 a 30 linhas sobre como o texto acima dialoga sobre o conceito de
alteridade e a contribuição da antropologia na constituição do pensamento sobre “o
outro” (Utilize as regras da ABNT). Obs: enviar para o email da professora até dia
07.12 antes da aula, em formato PDF ou Word.

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