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11. lIuminismo e educação em Portuqal. ..

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tória, seja pela prospecção com que credita suas expectativas perante o
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ILUMINISMO E EOY"CAÇÃO EM pORTUGAL: O configuração de um novo homem para uma pátria regenerada. A versão es-
LEGADO DO SECULO
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XVII'I
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AO XIX* colar do Iluminismo português fornece, em nosso entender, indícios fun-
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Carlota Boto idéias sobre o homem português no período em pauta.


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''''') /,.l Portugal pelo olhar estrangeirado. Os mais proeminentes iluministas lusi-
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tanos escreveram sobre a renovação da cultura portuguesa enquanto vi-
o século XVIII apresenta-se, aos olhos da História ela Educação, como viam no exterior. De um certo modo, teria havido diferentes níveis de apro-
um período privilegiado para pensar a pedagogia. Se o movimento ilumi- priação mental das idéias que circulavam pela Europa naqueles tempos en-
nista destaca-se pela proeminência que oferece ao primado da razão huma- ciclopedistas. No caso dos mais destacados iluministas portugueses, o re-
na, é pelo signo da educação que se dará o engendramento dessa racionali- conhecimento dessa confluência de pensamentos partilhados é oficio assu-
dade matricial, diretora do otimismo expresso em um século que se preten- mido. Desse modo, o atributo de estrangeirado aplica-se tanto a D. Luís da
Cunha quanto a Vemey ou Ribeiro Sanches, coincidindo, curiosamente,
dia veículo e condutor daquilo que se supunha ser a perfectibilidade do ho-
com matrizes intelectuais que marcaram presença pelo efeito irradiador
mem, Ora, nessa nova distribuição dos lugares sociais, o desenvolvimento
que obtiveram quanto a análises e sugestões para reconstruir a vocação -
da ciência adquire nítida coloração política. No caso português, o pensa-
perdida algures - da pátria decadente.
mento de Vemey, de Ribeiro Sanches, as próprias reformas pombalinas
em toda a sua complexidade, revelam logo uma configuração inaudita para A idéia da decadência, por sua vez, pauta a reflexão sobre o país e so-
a disposição e a tessitura da escola enquanto instituição que produz e re- bre a própria acepção de nacionalidade; e a intriga iluminista pretende em
compõe a sociabilidade desejada. As esperanças depositadas na escolari- Portugal inventariar causas e encontrar soluções para o enigma da deca-
zação, bem como o universo mental expresso pelas visões de mundo do dência c o impasse social que esse reconhecimento ocasionava. O movi-
lluminismo- a um só tempo, críticas e criativas -, produzirão, em toda a mento e a circulação das novas idéias que singularizavam o século XVIII
Europa, novas representações e práticas acerca da acepção de infância e de produziram maneiras de olhar o tema da nação direcionadas para aquilo
formação do homem no percurso do século XIX. que lhe teria sido subtraído a partir da colonização do mundo descoberto
pela aventura das navegações.
O estudo que aqui propomos pretende ser uma recomposição das estra-
tégias pedagógicas sugcridas pela reflexão ilustrada do século XVIII por- O Testamento político de D, Luis da Cunha, escrito entre 1747 e 1749
tuguês. Os saberes escolares, produzindo c reproduzindo uma trama de co- para o então herdeiro D. José, alerta o soberano para a questão populacio-
nhecimentos oficializados, recomendados e veiculados mediante obras di- nal como a "sangria" da nação. D. Luís da Cunha, ao pontuar o problema
dáticas, o idcário do discurso acerca da univcrsalização da escola e o pró- da decadência do reino, ao invés de nomeá-lo, opta por inventariar suas cau-
prio imaginário teórico face ao oficio da instrução serão os focos ela docu- sas. Sob tal diapasão, pretende apresentar diagnóstico:
mentação a ser analisada com vista a buscar alguns recortes do universo É constante que se não pode curar algum enfermo sem que o prudente
médico observe o seu aspecto, considerando os sintomas, a confor-
mação do seu corpo, a constituição dos seus humores, as suas forças e
tome todas as mais ind icaçõcs para vir, tanto quanto puder ser, no co-
nhecimento da causa do mal que o aflige, isto não só para remediar a
* Este texto foi anteriormente publ icado na Revista da Facul dadc de Educação. Uni vcrsidadc
sua queixa, mas para prevenir o de que podc estar ameaçado. Se o me-
de São Paulo. Vol. 22, n. I, 1996, p. 169-191. ISSN 0102-2555.
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dica examinar o aspecto e conformação de Portugal, verá logo que o Preocupado em recuperar o reino português daquela suposta era de deca-
seu primeiro mal é a estreiteza dos seus limites, mal, digo, incurável, dência, o pensamento de Ribeiro Sanches procurará expor estratégias para fo-
sem nos podermos queixar da Providência, que assim o permitiu, de mentar transformações na estrutura material e subjetiva do Estado. Os tempos
que resulta o seu mal, que é a debilidade das nossas forças à propor- requeriam dos govemantes que a instrução do povo passasse a ser matéria de
ção das dos seus vizinhos (Cunha, 1976, p. 43). Estado. Tratava-se de edificar a arquitetura de um estado-pedagogo, Na ver-
Por outro lado, aparentemente de maneira paradoxal, foi a mesma cir- dade, deveria ser reconstruído o Estado português, à luz de uma moderna idéia
cunscrição geográfica quem permitiu a Portugal a expansão ultramarina. de nação; que viabilizasse extirpar males que ocasionavam a degenerescência
D. Luis da Cunha - acerca disso - referia-se expressamente à "vizinhança do Reino. Na mesma trilha de D. Luís da Cunha, Ribeiro Sanches contrapu-
do mar e pelas frotas que lhe vêm das três partes do mundo" (Cunha, 1976, nha-se às excessivas prerrogativas do Clero. Nesse sentido, a Companhia de
p. 44). Opondo-se com frontalidade à perseguição dos cristãos novos, o Jesus é apresentada como um estado à margem do Estado, tendo, ainda, por
texto manifesta severa crítica às práticas inquisitoriais, inclusive por seu agravante, o controle estratégico sobre a formação da mocidade.
efeito econômico; dada a necessidade de incremento da manufatura nacio- Parecia ser imprescindível a reconstrução do pacto social à luz da acep-
nal e o movimento oposto de fuga dos acusados por crime de judaísmo. ção iluminista da idéia de perfectibilidade. O primeiro procedimento reco-
Acerca dessa questão, Luís da Cunha adverte: mendado era o de erradicar a escravatura negra e configurar dispositivos
A insensível c cruelissima sangria que o Estado leva é a que lhe dá a de distribuição demográfica das populações da metrópole e da colônia. No
lnquisição, porque diariamente com medo dela estão saindo de Portu- parecer do médico iluminista, essa seria mesmo a chave de manutenção do
gal com os seus eabedais os chamados cristãos-novos. Não é fácil es- império conquistado. Ribeiro Sanches alerta os conterrâneos para a pre-
tancar em Portugal este mau sangue, quando a mesma lnquisição o mência de se equacionar a questão da distribuição dos súditos e produção
vai nutrindo pelo mesmo meio que pretende querer vedá-Ia ou extin- de riquezas, em um país cujo potencial agrícola permanecia estacionário.
gui-Ia (lbid., p. 75). O vetor pedagógico do pensamento
de Ribeiro Sanches, expresso em
No parecer acima, ao pretender extirpar o judaísmo, a Inquisição obti- suas Cartas sobre a educação da mocidade, datadas de 1760, centra-se so-
nha com êxito a multipl icação de judeus, já que, ao prender O suspeito, fa- bre a organização de uma rede de escolas dirigidas pelo Estado, nesse pe-
bricava, por assim dizer, o cristão-novo. Somado a isso, havia o problema ríodo imediatamente subseqüente à Primeira Reforma Pombalina do Ensi-
da "sangria" ocasionada pela emigração voluntária, quer por atração pelo no I. Ribeiro Sanches era cristão-novo, o que pode ter sido um fator rele-
Brasil, quer pelas pessoas enviadas para as Índias. Havia de se povoar o
Brasil, sem, para tanto, despovoar a Metrópole, já que o tema do povoa-
mento de Portugal era recorrente na reflexão do iluminista Luís da Cunha. 1. Segundo Joaquim Fcrreira, foi a pedido do embaixador de Portugal em França - Pedro da
Em virtude de tal situação, o autor propõe estratégias para o incremento Costa e Almeida Salema - que Ribeiro Sanches escreveu as suas Cartas. Considerando-se o
demográfico. Entre elas, a sugestão de diminuir o número de religiosos fato de os jesuítas terem sido interditados em sua ação pedagógica no ano de 1759, caberia a
(padres e freiras) para aumentar o índice de matrimônio; no mesmo senti- hipótese, já aventada por vários autores, de o plano das Cartas ter sido concebido como uma
diretriz pedagógica voltada para essa esfera pública que efetivamente estaria priorizada desde
do, proibir aos soldados que se fizessem clérigos.
as primeiras medidas pombalinas. Como destaca o comentarista: "Nasceram assim as Cartas
O problema demográfico inquieta também Ribeiro Sanches, °
médico sobre a educação da mocidade. Gabando-se para Lisboa em ofício de 7 de Janeiro de 1760, di-
enciclopedista que julgará a questão pedagógica do ponto de vista do que zia Monsenhor Salema serem elas 'a matéria de várias conversações que tive com este douto e
prescrevia como medicina social a ser aplicada. Nas palavras desse outro honrado patriota'. A primeira edição restringiu-se a uns cinqüenta exemplares, todos entre-
gues ao ministro português na França. E indicava-se na frontaria o local da impressão em Co-
estrangeirado português: lónia, embora estampada em Paris. Sanches concluiu as Cartas em 19 de Dezembro de 1759.
Todos sabem que a mais sólida base de um poderoso Estado consiste Deduz-se dumas palavras suas a Monsenhor Salema, datadas de 7 de Janeiro de 1760, que to-
na multidão dos súditos e no seu aumento, e que desta origem resul- mara com ele o compromisso de não distribuir os vol umcs impressos sem o consentimento do
tam as SlIaS forças, poder, grandeza c majestade. Mas como poderá Marquês de Pombal, destruindo-os no caso de os reprovar o governo .. Se V. llustrissirna for
servido também de dar parte à nossa corte que a dita impressão ficará no seu poder até receber
aumentar-se sem leis c regramcntos a conservação da saúde dos po-
ordem para dispor dela, porque só deste modo ficará a nossa corte persuadida que, não sendo
vos, c curar as enfermidades a que estão expostos? (Sanches, 1996, do seu agrado este impresso, ninguém o lerá nem vcrá " (Joaquim Fcrrcira. Prefácio. In: San-
vol 2, p. 155-156). ches, s.d.Ia), p. 52).
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vante para sua veemente crítica à intolerância existente, a seu tempo, em
mestres: é necessário que no Estado existam leis que premeiem a
Portugal. A intolerância era, para ele, um muro que interditava a prosperi-
quem for mais bem criado e que castiguem a quem não quer ser útil
dade e a concórdia. A propósito disso, o autor também sublinha a inade-
nem a si nem à Sua pátria (Sanches, s.d.(a), p. 125-6).
quação dos modelos pedagógicos até então predominantes na nação portu-
guesa. Acerca do tema, ele declara: Tal consideração acerca dos limites da ação pedagógica é o recurso uti-
lizado pelo autor quando postula a restrição do ensino a algumas camadas
Nenhuma coisa faz os homens mais humanos e mais dóceis do que o
da sociedade. Em seu parecer- como já se expôs - escolas de aldeias deve-
interesse: o comércio traz consigo a justiça, a ordem e a liberdade; e
estes eram os meios, e o são ainda, de conservar as conquistas que te- riam ser suprimidas, tendo em vista a reprodução das gerações vindouras
mos. Agricultura e comércio são as mais indissolúveis forças para no oficio de seus pais. Ribeiro Sanches aqui se aproxima dos argumentos
sustentar e conservar o conquistado, mas esta vida de lavradores, de de Voltaire ao recordar que a instrução teria, por efeito imediato, o afasta-
oficiais, de mercadores, de marinheiros e soldados não se conserva mento das populações de quaisquer trabalhos manuais, o que prejudicaria,
com privilégios dos fidalgos, com imunidades e jurisdição civil dos no conjunto, o equilíbrio econômico necessário à organização da socieda-
eclesiásticos, com escravidão e com a intolerância civil. Não se con- de. Ao justificar o porquê da restrição do ensino a uma parcela privilegiada
serva com a educação de saber ler e escrever, as quatro regras de arit- da população, o autor subliminannente reconhece °
potencial transforma-
mética, latim e a língua pátria, e por toda a ciência o catecismo da dor contido no esquadro da cultura das letras. A própria questão é revela-
doutrina cristã. Não se conserva com o ócio, dissolução, montar a ca-
dora do intento de reprodução subjetiva da ordem material da sociedade.
valo, jogar a espada preta e ir à caça. E necessária já outra educação
Nesse sentido, leia-se a dúvida que o ilustrado a si próprio coloca: "o rapaz
porque o Estado tem maior necessidade de súditos instruídos em ou-
de doze ou quinze anos que chegou a saber escrever uma carta não quererá
tros conhecimentos: já não necessita em todos eles aquele ânimo alti-
vo, guerreiro, aspirando sempre a ser nobre e distinguido, até chegar a ganhar a sua vida a trazer uma ovelha cansada às costas, a roçar pela ma-
ser cavaleiro ou eclesiástico (Sanches, s.d.(a), p. 116). nhã até a noite, fiem a cavar" (Sanches, s.d.(a), p. 127). Além disso, para
Ribeiro Sanches o "povo", por si, procede por imitação "dos seus maiores"
Entende-se que o objeto da educação seria o de preparar súditos capa-
. (Sanches, s.d.(a), p. 131). A essa mocidade plebéia o Estado deveria garan-
zes de identificar e reconhecer como legítimos as leis e os costumes do
tir o trabalho,já que dele vêm as condições básicas de subsistência. Vale a
Estado. Veículo privilegiado para perpetuar tradições, a pedagogia é, en-
pena transcrever, ainda, o teor do seu alerta iluminista contra aquilo que
tão, vista como instrumento estratégico para acompanhar e consolidar as
acreditava ser o risco da irrestrita irradiação da cultura letrada:
mudanças no âmbito público. É nessa medida que o tratado de Ribeiro
Sanches pretende constituir o traçado do ensino coletivo, não havendo, as- Todo o rapaz ou rapariga que aprendeu a ler e a escrever, se há de ga-
sim, quaisquer considerações de ordem didática, atinentes à especificidade nhar o seu sustento com o seu trabalho, perde muito a força enquanto
aprende e adquire um hábito de preguiça e de liberdade desonesta.
da relação entre mestre e discípulo. Pretende-se - no discurso manifesto -
Como são os mestres de ler e escrever homens rudcs e ignorantes,
conformar a ordem política adequando cada um ao lugar social que lhe
sem criação nem conhecimento algum da natureza humana, têm
fora reservado por sua origem de classe. Nos terrnos desse enciclopedista,
aqueles meninos três horas pela manhã e três de tarde, assentados,
não se poderia confundir educação pública com democratização de oportu- sem bulir, sempre tremendo e temendo. Perdem a força dos membros,
nidades sociais, já que: aquela desenvoltura natural, porque a agitação, o movimento e a in-
[... ] nunca me sairá do pensamento formar um súdito obediente e dili- constância é própria da idade da meninice; e não convém uma educa-
gente a cumprir as suas obrigações c um cristão resignado a imitar ção tão mole a quem há-de servir à República, de pés e de mãos, por
sempre do modo que alcançamos aquelas imensas ações de bondade e toda a vida (Sanches, s.d.(a), p. 129).
de misericórdia. A educação da mocidade não é mais que aquele hábi- A escola projetada por Ribeiro Sanehes deveria conferir prioridade à
to adquirido pela cultura e direção dos mestres, para obrar com facili- capacitação do estudante para a viela civil, com o fito de conjugar a prepa-
dade e ale-gria ações úteis a si e ao Estado onde nasceu. Mas para se
ração do oficio de homem com o de cristão. Buscava-se a secularização de
cultivar o ânimo da mocidade, para adquirir a facilidade de obrar bem
práticas pedagógicas, anteriormente sob domínio exclusivo de ordens reli-
e com decência, não hasta o bom exemplo tios pais, nem o ensino elos
giosas; e, especialmente, da Companhia de Jesus. Para tal intento seria nc-
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cessário que, na nova escola do Estado, fossem adotados livros didáticos ches), consistiria em dezesseis cartas escritas em português c dirigidas pro-
positalmente aos padres da Companhia de Jesus, principais interlocutores
alternativos; a serem, desde então, elaborados:
da Ilustração lusitana. O autor, ao escrever do exterior, utilizou o pseu-
[...] compêndio impresso em português [...], onde se incluíssem os
princípios da vida civil de um modo tão claro, que fosse a doutrina dônimo de "Barbadinho", prevendo desde o princípio a polêmica que sua
compreendida por aquela idade [...]. No mesmo compêndio queria eu obra poderia desencadear. O Verdadeiro método de estudar parte da cons-
que estivessem escritas as obrigações com que nascemos: como deve- tatação do atraso português perante o avanço das ciências naquele século
mos amar a Deus; como somos obrigados a honrar noSSOSpais e a que pretendia espraiar as luzes, fornecendo, em função de tal diagnóstico,
quem tem o seu lugar; que temos a mesma obrigação de respeitar os sugestões para o estabelecimento de um programa curricular, político e
mais velhos; que devemos ser amigos fiéis - guardar-Ihes segredo, metodológico capaz de lutar contra tal estagnação no âmbito da cultura.
palavra, cuidar do seu bem como do nosso próprio; e como nós ama-
Considerado por muitos como autor da primeira obra em língua portu-
mos naturalmente a nossa pátria, assim devemos ser-lhe fiéis; cuidar
em tudo do seu bem, que é o nosso; e como cl-rei é a cabeça dela, que guesa cuja ambição foi a de traçar diretrizes para um sistema pedagógico
a este (como a nosso primeiro pai na terra) devemos respeitar e honrar completo, Verney - como D. Luís da Cunha e Ribeiro Sanches - irá atentar
(Sanches, s.d.(a), p. 133-135).
para os grandes óbices colocados à sociedade portuguesa pela ação da
Companhia de Jesus e pela tradição inquisitoriaI de intolerância religiosa.
Já que à escola caberia a tarefa de consolidação do sentimento de pá-
Sob tal perspectiva, ele sugere: secularização dos tribunais da Inquisição
tria, cumpriria ao Estado exercer sua função de organizador c inspetor das
pelo poder real; ampliação da defesa dos réus; restrição da tortura; aboli-
escolas do reino, para que a ninguém fosse facultada a prática do magisté-
rio em escola pública sem autorização do rei. Acerca disso, Ribeiro San- ção de autos-de-fé públicos; rejeição da crença na possibilidade de pactos
ches prescreve prática que Pombal veiculará. Ao concluir, o autor mani- demoníacos. Vemey manifestará, sob tal aspecto, nítidas preocupações
festa sua convicção de que o controle estatal da educação trariã como efei- quanto à necessidade de restrição da fiscalização eclesiástica a propósito
to precípuo o f0l1alecimento da monarquia e a conservação da paz. Havia da censura de livros.
de se reformar o Estado inclusive como estratégia de alerta contra possí- O trabalho de Luís Cabral Moncada - Um iluminista português do sécu-
veis ameaças de subversão. Para Ribeiro Sanches, assim como deveria lo XVIII.' Luiz Antonio Vemey (1941) - busca reconstituir o pensamento do
existir um tribunal médico que centralizasse - para o Estado português - referido expoente do Iluminismo português tanto em seus aspectos religio-
informações sobre demografia, sobre doenças endêmicas e epidêmicas da sos quanto em suas perspectivas econômico-sociais. Acerca do assunto, o
população de seu território, a Pedagogia deveria estar também submetida à autor salienta o projeto de Vemey voltado para transformação do Santo Ofi-
jurisdição de tribunal específico de responsabilidade governamental: cio em Tribunal meramente civil nas mãos do governo, por intermédio de
É da obrigação do Soberano cuidar da Educação da mocidade, desti- um novo regimento regulador da prática inquisitorial. Pombal, de fato, viria
nada a servir à pátria em casos de paz e guerra; destinada a servir os a elaborar tal regimento, cuja orientação acerca das práticas de bruxaria era a
cargos da religião, tanto para o bem dos povos como para a felicidade de desqualificar o discurso do suposto pacto com o demônio, no sentido de-
do mesmo Soberano. Daqui vem que ninguém deve ensinar legitima-
por tal dispositivo - "desprezar, ridicularizar e extinguir" (Moncada, 1941,
mente em escola pública sem autoridade Real; daqui se segue que um
p. 73) as supostas bruxas. Considerando o projeto de Vemey como pioneira
Secretário de Estado deveria presidir a todas as escolas tanto de ler
quanto de escrever (fundamentalmente só nas Vilas do Reino e proi- proposta reformista para melhorar as condições materiais da nação, Monca-
bidas nos lugares e Aldeias do Reino) como as escolas de línguas, da destaca as reformas ali consideradas imperiosas:
Aritmética, Geografia, Geometria, Colégios Seculares ou Eclesiásti- Resumem-se facilmente em meia dúzia de grandes diretrizes, todas
cos Seculares e Universidades (Sanches, s.d.(b), p. 107). elas partindo, pode-se dizer, do pensamento endemonista comum: o
do progresso material e o bem-estar coletivo de toda a nação corno
O Iluminisrno de Ribeiro Sanchcs tem como parceiro o pensamcnto de
um todo, aliccrçadn no derramamento das "luzes". Eram: laicizar a
Verney. Ambos os teóricos são considerados os suportes intelectuais das
estrutura da sociedade c abrir-lhe novas fontes de riqueza, combater
reformas pombaJinas. O Verdadeiro método de estudar, publicado pela
para isso os excessos da mão-morta, fazendo intervir o Estado na fis-
primei ra vez em 1746 (sendo, portanto, anterior ao tratado de Ribeiro San-
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calização do patrimônio eclesiástico; restringir os excessos da vida palmente deste reino. A qual provém ela grande ignorância em que se
monacal, limitando o número de profissões religiosas; atenuar as di- vive da história antiga e moderna, e dos estilos dos outros países, do
ferenças entre as classes sociais, preparando uma espécie de demo- pouco conhecimento que têm de livros; e finalmente de quererem ser
cracia do trabalho, no interesse e utilidade comum da nação; desen- mestres em uma matéria em que ainda não foram discípulos. Sei que a
volver o aumento da população, fomentar o comércio e a indústria maior parte dos homens vive mui satisfeita dos estilos e singularidades
[... ]; fomentar os hábitos de disciplina e higiene nacional; espalhar a do seu país; mas não sei se há quem requinte este prejuízo com tanto
assistência e a instrução entre o povo; aumentar a redc de comunica- excesso como os espanhóis e portugueses. Observo que os franceses,
ções e dos correios; e ainda levantar o nível de sociabilidade entre os ingleses, holandeses - que não são dos que têm pior opinião, e com ra-
portugueses, destruindo muitos preconceitos de classe (Moncada, 1941, zão, de si - aproveitam-se com todo o cuidado dos excessos que lhes le-
p.91-92). vam as outras nações [...]. Mas observo também que este método é ig-
Endereçadas supostamente a um reverendo doutor da Universidade de norado nas Espanhas e mui principalmente em Portugal, onde vejo des-
prezar todos os estudos estrangeiros, e com tal empenho como se fos-
Coimbra, as cartas que compõem o Verdadeiro método de estudar são apre-
sem maus costumes ou coisas muito nocivas (Verney, s.d., p. 11-12).
sentadas como um parecer sobre o "método dos estudos" do reino português
em suas relações com a formação de homens para a pátria e para a religião. Na l l" Carta, Verney aborda o tema da ética, justificando-o a partir da
Essa conjugação entre intentos civis e religiosos parece ser - como vimos - necessidade de proceder à distinção entre virtude e vício. Durante muito
a tônica predominante da Ilustração portuguesa. Não se pode confundir, en- tempo, a nobreza foi considerada hereditária. Ao se contrapor a essa práti-
tão, as severas críticas imputadas ao clero com apressadas e impróprias infe- ca, o iluminista recorda que ser filho de homem ilustre não equivale, por si,
rências acerca do cariz laico do movimento iluminista em Portugal. Já à par- a tomar-se ilustre; a não ser que tenha havido, no caso, um processo educa-
tida, demarca-se o território do discurso pedagógico, pontuando a diferença tivo de transmissão da honra. De outro modo, a virtude não pode ser decal-
em relação à metodologia do ensino jesuítico que acentuava, desde o princí- cada da hereditariedade; não se transmite a lisura pelo sangue.
pio do aprendizado, o latim como linguagem fundadora. A proposta de Ver- Verney acredita que a criança se assemelharia a uma tábula-rasa, sujei-
ney, pelo contrário, salienta o valor básico da gramática nacional: a língua ta ao meio e à educação: "[ ...] e ficaria ainda mais claro se quisessem fazer
de origem, como referência da comunicação verbal, deve constituir o princí- a experiência em um filho de um grande que acaba de nascer. Se conduzi-
pio dos estudos da gramática. Ao criticar os castigos corporais, os exercícios rem esta criança a um país incógnito, c for criada por vilões, há de ser vi-
de memória e as práticas afetadas da conversação em latim, Vemey aborda lão, e não príncipe, e, contudo, se parecerá com quem a criou" (Verney,
temas relativos ao aprendizado da retórica, de suas regras e a questões de es- s.d., p. 200). Acerca dessa dimensão concemente ao potencial da educa-
tilo como veículos privilegiados de expressão do discurso. A esse respeito, ção, Verncy aproxima-se dos mais avançados dos encic1opedistas, que su-
salienta a necessidade de dispor as figuras de linguagem de modo a não des- punham ser o talento a única fonte natural de distinção humana; sendo que
figurar a fisionomia das idéias veiculadas. o mesmo não está, por definição, impresso na condição de origem ou de
Após inúmeras considerações acerca de problemas de esti Ia e de retó- nascimento. A Ilustração, tanto em Portugal quanto em França, mostrou-
rica, Verney adentra o terreno da filosofia mediante a relação dos diversos se, pois, dividida quanto ao tópico de democratização do ensino como vei-
povos com a aquisição e multiplicação do conhecimento acumulado. Ao culo de equalização das oportunidades sociais e de diminuição dos desní-
passo que os outros povos europeus viriam acompanhando os progressos veis postos pelos privilégios do nascimento. A verdadeira nobreza estaria
da ciência moderna, os portugueses - apegados em demasia à autoridade destacada - para a vertente progressista do Iluminismo - não pelo título do
da tradição - manter-se-iam presos à paralisia da escolástica, sem recorrer cargo, pelo sangue ou pelo dinheiro; mas fundamentalmente pelo talento.
aos modelos analíticos de compreensão da natureza pela via do raciocínio De tal maneira que:
hipotético-dedutivo. Ao recordar que os catedráticos de Coirnbra ignora- [... ] os homens insignes é que são os verdadeiros nobres. Esta nobreza
vam os preceitos do cartesianismo e, mesmo assim, atreviam-se a desqua- é natural, de que ninguém os pode despojar. Respondeu com galanta-
lificá-Io, Verney éimpiedoso com seu país: ria urna ressoa a outra, que lhe perguntava como distinguiria um no-
Dizem mil falsidades que nunca sucederam; fingem definições, que bre de quem o não era, deste modo: Despi-Ias ambos nus, e ouvi-Ios
nunca sonharam ( ...]. Esta é a célebre cantilcna nestes mestres, princi- falar (Vcrney, s.d., p. 196-l97).
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Sobre a necessidade de extensão do processo pedagógico também às orientação pedagógica. Sem ferir os interesses da fé, porque foi com
mulheres, Verney recorda serem as mães de família as primeiras educado- os homens de maior expressão na vida religiosa portuguesa que D.
ras, responsáveis, nesse aspecto, pelo ensino da língua. Por outro lado, o José contou para a realização de seus fins políticos, a reforma pomba-
govemo da casa exige conhecimento de economia; e, finalmente, era reco- tina, moderada nos seus pruridos regalistas, visava a formar, na or-
mendável a instrução das mulheres para afastá-Ias de crendices e aproxi- dem civil, o cristão útil aos seus propósitos (Carvalho, 1978, p. 84).
má-Ias da senda da virtude a partir do próprio conteúdo civil e religioso da Em trabalho intitulado As Reformas pombalinas da instrução pública,
instrução ministrada. Aqui Verney revela toda a verve que o caracteriza Laerte Ramos de Carvalho (que caracterizou Vemey como o "arauto" do
como o precursor, em Portugal, ela proposta de universalização do ensino". pombalismo) destaca a preocupação de as primeiras medidas do ministério
No caso das mulheres: pombalino estarem voltadas fundamentalmente para a possibilidade de es-
[...] o estudo pode formar os costumes, dando belíssimos ditames para truturação de um trabalho pedagógico capaz de suprir a ausência do ensino
a vida; e uma mulher que tem alguma notícia deles pode, nas horas oci- jesuítico. Cabe recordar que a ação de Pombal apresentava-se com o fito de
osas, empregar-se em coisa útil e honesta, no mesmo tempo em que ou- "europeizar" Portugal. Nessa direção, como salienta Manuel Antunes:
tras se empregam em leviandades repreensíveis. Muito mais, porque europeizar significava, na ótica de Carvalho c MeIo, modernizar as
não acho texto algum da lei, ou sagrado ou profano, que obrigue as mu- artes e as indústrias, desenvolver e monopolizar o comércio pela cria-
lheres a serem tolas e não saberem falar (Vemey, s.d., p. 216). ção de grandes companhias [...], e !ast but not least, subordinar a Igre-
Essa sugestão de ensino feminino será coincidente com o Alvará Régio ja ao Estado, entretanto, poderosamente reforçado, autonomizando-a
de 17 de Agosto de 1758, por meio do qual D. José ordenava a criação nas o mais possível de Roma e fazendo-a reger-se pelas próprias estrutu-
povoações indígenas de duas escolas, uma para meninos e outra para meni- ras e meios nacionais (Antunes, 1983, p. 125-126).
nas. Logo a seguir, em 1759, os Jesuítas são expulsos e em seu lugar criou-se A vertente pedagógica dessa tentativa despoticamente esclareci da de
o sistema de aulas régias, coordenado pela Diretoria Geral dos Estudos. secularizar a nação portuguesa contou com o óbice das estruturas mentais
Acerca das especificidades das Reformas do Ministério de Pombal em sua extremamente arraigadas por séculos de devoção. Para contrapor-se às
intersecção com o modelo iluminista, Laerte Ramos de Carvalho analisa: práticas jesuíticas, o Marquês de Pombal toma atitudes frontais, como a
Se a conjuntura política impôs ao gabinete deD, José I a necessidade substituição da Cartilha por meio da qual quase todas as crianças portugue-
de uma reforma, a crise entre a tradição e a modernidade, em todos os sas aprendiam o a-b-c pela tradução do Catecismo de Montpellier, de auto-
setores por que se manifestou, deu-lhe o rumo inicial de uma política ria do jansenista Carlos Joaquim Colbert. Em seu trabalho integrante da
pedagógica que, se até agora se apresentou como um programa de re- coletânea intitulada Como interpretar Pombal", António Leite dirá que o
cuperação de um ideal perdido, a partir deste momento, foi aos pou- referido Catecismo:
cos se enriquecendo, por força das condições advindas da nova situa-
[...] estava eivado de doutrinas jansenistas e galicanas, pelo que veio a
ção econômico-social e das repercussões da ideologia iluminista na
ser incluído no lndex dos livros proibidos, por decreto de 20 de Janei-
mentalidade portuguesa. O conflito verificado nos últimos decênios,
ro de 1721. Foi encarregado por Pombal de mandar fazer a tradução
entre a tradição consciente e orgulhosa de seus direitos c o esforço
portuguesa deste catecismo, heterodoxo e condenado, o Cardeal D.
inovador de algumas figuras isoladas e grupos que nenhuma respon-
sabilidade tiveram na situação cultural então existente, foi o motivo Cosme da Cunha, arcebispo de Évora, que o mandou adotar na sua ar-
quidioccse para o ensino da doutrina às crianças. O mesmo fizeram
que conduziu a administração pombalina pelo caminho de uma nova
outros bispos, naturalmente sob a pressão do Marquês (Leite, apud
Antunes, 1983, p. 45).
2. A propósito dessa Carta 16, Rogério Fernandcs (1992, p. 63·4) dirá que seu texto examina Identificando - na trilha de Verney - a correção da língua nacional
alguns aspectos até então apenas sugeridos: "Advertia serem muitas as pessoas que, vestindo como condição inarrcdávcl para o vigor das leis, o próprio Alvará de D.
camisa lavada, não sabiam ler nem escrever entre nós [...]. A fim do pôr a instrução elementar
ao alcance de todas as classes [... ] aduzin () que observara no estrangeiro: escolas onde mulhe-
José situará o hábito da correção e da pureza da escrita como signos de
res ministravam o ensino separadamente a rapazes e raparigas, csco las-inrern.uos para meni- energia do pensamento. Isto posto, prescreve-se metodologias e recursos
nas" (Fcrnandcs, 1992, p. 63-4). didáticos:
170 Histórias e memórias da educação no Brasil - VaI. I 11. I/uminisma e educação em Portugal. .. 171
Conformando-me Eu com o exemplo destas e de outras nações ilumi-
mente, à astúcia de conjugação de fatores que permitiram o êxito das medi-
nadas, e desejando, quanto a Mim, adiantar a cultura da língua Portu-
guesa nestes Meus Reinos e Domínios, para que neles possa haver das implantadas: o interesse de acesso à escolarização por parte da burgue-
vassalos úteis ao Estado, Sou servido ordenar que os mestres da lín- sia mercantil e de funcionários do Estado; o desenvolvimento do aparato
gua latina, quando receberem nas suas classes os discípulos, para lhes estatal centralizado, com estruturas orgânicas de coordenação e inspeção;
ensinarem, os instruam previamente, por tempo de seis meses, se tan- o interesse corporativo dos professores, que desejavam o que Nóvoa quali-
tos forem necessários para a instrução dos alunos, na Gramática Por- fica como "profissionalização do ofício docente". Acerca das medidas da
tuguesa composta por António José dos Reis Lobato [...]. E, porquan- Reforma, António Nóvoa entende que os grandes alicerces da prática porn-
to Me constou que nas Escolas de ler e escrever se praticava até agora balina teriam sido: exame público para todos os candidatos ao magistério,
a lição dos processos litigiosos e sentenças, que somente servem para autorização e controle da Direção dos Estudos como "suporte legal ao
consumir o tempo e acostumar a mocidade ao orgulho e enleio do exercício da profissão de professor"; a concessão de privilégios de nobreza
foro, Hei por bem abolir para sempre um abuso tão prejudicial c man-
aos professores régios, o que lhes permitiria melhorar o lugar social por
do que, em lugar dos ditos processos e sentenças, se ensine aos meni-
eles ocupado. Nesse sentido, o autor conclui:
nos por impressos ou manuscritos de diferente natureza, especial-
mente pelo Catecismo pequeno do Bispo de Montpcllicr, Carlos Joa- Aí estão algumas das medidas tomadas pela Reforma de 1759, inseri-
quim Colbert, mandado traduzir pelo arcebispo de Évora (Alvará de' das em projeto de secularização e estatização do ensino. Elas criam as
D. José, apu d Andrade, 1980, p. 59-60). condições favoráveis à profissionalização da atividade docente e de-
finem um conjunto de normas de enquadrarnento da profissão de pro-
Segundo Ferreira Gomes, o Alvará de 28 de Junho de 1859 concomitan-
fessor, as quais prefigurarn já suas formas contemporâneas de desen-
temente expulsa os jesuítas do ensino - considerando "extintas" todas as es-
volvimento e organização. Quando da Reforma de 1772 esse quadro
colas e cadeiras pelas quais eles eram responsáveis - e decreta no Reino e
legal estender-se-à, praticamente sem alterações, aos mestres régios
em seus domínios uma reforma geral nos estudos. Essa reforma principia de primeiras letras (Nóvoa, 1987, vol. 1, p. 144).
pela criação da Diretoria dos Estudos e com a introdução de aulas de Gramá-
Foi a Reforma de 1772 que, de fato, instituiu um sistema de ensino ver-
tica Latina, Grego, Retórica, etc., apresentadas como substitutivas da instru-
dadeiramente estatal, por englobar, nas prescrições legais, os três níveis do
ção recém-suprimida, Ninguém poderia, a partir dali, ensinar sem aprovação
e licença do Diretor dos Estudos, que deveria examinar cada candidato ao aprendizado: primário, secundário e superior. Enquanto extensão das me-
Magistério à luz de critérios de "ciência e de prudência", dado que os requi- didas inauguradas em 1759,1772 representa +para Nóvoa -uma linha de
sitos de bons costumes eram essenciais para a avaliação do pretendente. No continuidade, cuja principal inovação estaria justamente na instituição de
parecer de Laerte Ramos de Carvalho, os objetivos da reforma pornbalina escolas estatais destinadas às primeiras letras. Por outro lado, Nóvoa des-
dos estudos menores teria sido o de proceder a uma adequação da instituição taca também a criação do subsídio literário, organizado enquanto tributo
escolar à nova configuração necessária ao Estado moderno e, nesse sentido, exclusivo para subvenção da rede de escolas então instituídas pelo Estado
agenciar o ensino de maneira a atender os interesses seculares da Coroa. português. Com essa medida, os professores teriam adquirido estatuto de
Para tanto, Pombal teria como referência o mesmo diagnóstico explicitado funcionários do Estado, pagos não mais pela sua clientela específica, mas
por Ribeiro Sanches, procurando "demonstrar que com um mínimo de esco- pelo poder público. Isso teria propiciado oportunidade de aumento da de-
las bem aparelhadas o Reino estará melhor servido do que com um grande manda por escola por parte da população contribuinte. Petições de diver-
número delas" (Carvalho, 1978, p. 139-140). sos matizes solicitavam criação de classe com mestre régio, o que teria
conduzido - de acordo com os dados apresentados pelo trabalho de Nóvoa
A obra de Antônio Nóvoa aprofundará a análise do pombalismo, recor-
- a uma acentuação de disparidadcs regionais,já que camadas urbanas e li-
dando que a consolidação de um sistema estatal de ensino em Portugal, em
torâneas teriam sido favoreci das em detrimento de meios rurais do interior
meados do século XVIII {e, portanto, precedendo a própria França revolu-
do país. Entre] 777 e 1781, as classes ele leitura e escrita teriam pratica-
cionária), exige a perspectiva da longa duração, enquanto categoria de
mente quadruplicado, ao passo que teria havido um decréscimo na propor-
compreensão das permanências e rupturas do referido objeto, O sucesso da
ção de professores secundários de Filosofia, Retórica c Grego (Nóvoa,
estratégia de Sebastião José de Carvalho c Mclo dever-se-i;" primordial-
1987, vaI. 1, p. 184). Pela pesquisa de Nóvoa, destaca-se, ainda, que, em
172 Histórias e memórias da educação no Brasil - Vol. I 11. lIuminismo e educação em Portugal ... 173
1777, havia proporcionalmente um mestre régio para uma população de
maior impacto nas representações, nos discursos e nas práticas escolares
20.800 habitantes. Em 1781 a proporção era de 1 para 4.680 (Nóvoa, 1987,
efetivas, é posterior ao movimento de Pombal. O mundo compreendido no
vol. 1, p. 224).
pacto colonial que atava Portugal e Brasil- cada país a seu modo - presen-
Finalmente, a respeito de possíveis conexões entre a prática pombalina ciará, no transcorrer do século XIX, desdobramentos e variantes daquele
e O pensamento do Iluminismo, Nóvoa distinguirá o período protagoniza- prospecto pombalino de organização da instrução pública.
do por Pombal daquele que imediatamente lhe sucedeu, apontando, para
Acerca das contradições expressas no próprio feitio ilustrado do Mar-
tanto, suas diferentes concepções educativas: quês de Pombal, cabe destacar alguns pontos bastante controversos a pro-
A mesma lógica que conduz os reformadores pombalinos a privilegi- pósito da circulação de idéias no período "iluminista". Já à partida, sabe-se
arem as regiões desenvolvidas os conduzirá a investir mais no ensino que, a despeito das supostas intenções secularizantes do Reformador, mes-
secundário do que na difusão do ensino de leitura e escrita. Pombal mo com a expulsão da Companhia de Jesus, outras ordens da Igreja não
necessitava formar, o mais rapidamente possível, uma elite culta ca-
perderam seu lugar. Por outro lado, a estratégia de censura de obras consi-
paz de substituir O clero, nomeadamente os jesuítas; para esse fim, ur-
deradas ímpias pelo Santo Oficio subsistiu, chegando mesmo a ser reforça-
gia, sobretudo, melhorar o ensino da filosofia, da retórica, do grego e
da em seus aspectos repressivos pela ação da Real Mesa Censória contro-
da gramática latina. Por seu turno, a rainha, que contava com o apoio
do clero, pôde inverter essa estratégia e favorecer as classes régias de lada por Pombal. Rómulo de Carvalho, a esse respeito, transcreve o Alvará
leitura e escrita em detrimento do ensino secundário. Tal opção não Régio datado de 10-6-1769: "fui [o rei] informado que neste Reino e seus
foi ditada por qualquer preocupação pela difusão do ensino à totalida- Domínios se introduziram [... ] vários livros corruptores da Religião e da
de dos grupos sociais, mas fundamentalmente pela vontade de trans- Moral, destrutivos dos Direitos e Regalias da Minha Coroa e opostos à
mitir ao maior número de crianças as regras de conduta e os preceitos conservação e sossego público desta Monarquia" (apud Carvalho, 1986, p.
morais e religiosos. Não se trata de uma simples divergência estraté- 46'-468).
gica, mas de um problema central no concernente às finalidades do
A propósito da contradição nos próprios cruzamentos das ações políti-
ensino: os reformadores pombalinos sublinham o aspeeto técnico, ou
cas engendradas por Pombal, Rómulo de Carvalho recorda que:
seja, a aquisição de um certo número de instrumentos culturais (dito
de outra forma, a aprendizagem de urna série de saberes e de saber-fa- [...] em 24 de Setembro de 1770, um edital da Real Mesa Censó-
zer); a entourage, de Maria I, reforça o aspecto moral, ou seja, a trans- ria torna pública uma lista de livros proibidos por conterem doutri-
missão de normas religiosas e de regras de conduta em vigor (Nóvoa, na "impia, falsa, temerária, blasfema, herética, cismática, sediciosa,
1987, vo1. 1, p. 229). ofensiva da paz e sossego público". Na longa lista figuram Hobbes,
Diderot, Rousseau, Vollaire, La Fontaine, Espinosa, etc. De todos os
Poderíamos, à guisa de inferência, estabelecer o seguinte paralelo en-
livros recolhidos e condenados mandou O Marquês de Pombal proce-
tre ação e intenção: se, num primeiro momento, a prática pedagógica agen-
der a grandes fogueiras no Terreiro do Paço e na Praça do Pclourinho,
ciada por Pombal orientou-se pelas mesmas diretrizes norte adoras do pen-
em Lisboa (Carvalho, 1986, p. 468).
samento de Ribeiro Sanches - para quem reerguer a nação exigia priorita-
riamente a preparação de uma elite ilustrada -, o período de Maria I diri- No mesmo trabalho, O autor salienta que teria havido um agravamento

giu-se, ainda que por razões outras, para perspectiva próxima da reflexão das práticas repressoras de vigilância e confisco de obras tidas por subver-
de Vemey, no sentido de multiplicar o acesso às primeiras letras. Vemos sivas, durante o governo da Rainha Dona Maria 1. Tal agravamento da cen-
aqui expressas as duas vertentes contemporâneas do discurso iluminista. sura decorreria fundamentalmente dos "rumores que vinham de França" e
Em Portugal- como nos demais países europeus - o julgamento acerca da da intenção de sustar a onda revolucionária capaz de subverter, à luz do
expansão do ensino engendrava polêmica e controvérsia. Vale recordar, modelo francês, a ordem nacional (Carvalho, J 986, p. 492-3).
porém, que o pornbalismo português e seu declarado intento de seculariza- Francisco José Calazans Falcon - por sua vez - remete-nos à complexa
ção do ensino constituíram inegavelmente um debate de vanguarda no que rede - oscilante entre a "hesitação e o compromisso" - do idcário pornbali-
diz respeito a políticas públicas de escolarização. Na França, o movimento no em suas aparentes contradições. Acerca elas obras proscritas, Falcon
de secularização aguardaria a Revolução de 1789 - a qual, embora de revela que muitos dos autores, ainda que tidos por heréticos, teriam sido
174 Histórias e memórias da educação no Brasil- VaI. I 11. lIuminismo e educação em PortugaL .. 175

tolerados. Para Faleon, tal incongruência era compatível com aquilo que lasse os danos que podiam nascer da variedade e da inconstância dos
ele caracteriza como "a consciência possível" (Falcon, 1982, p. 445) da juizos dos Mestres; que enfim, por disposições sábias e luminosas fi-
Ilustração no concemente aos parâmetros da sociedade portuguesa. Faleon xasse, por assim dizer, o gosto das Ciências; e obrigasse os Mestres e
adverte, ainda, para o fato de haver uma dissonância entre a atuação refor- os Discípulos a não procurar nelas senão o bom, o útil e o sólido
(Compêndio, 1972, p. 312-313).
madora ilustrada do ministério pombalino e o discurso que enunciava a
mesma prática. Poder-se-ia, assim, questionar, à guisa dos quadros concei- O lluminismo português, no que toca à educação, revela - como se
tuais adotados, a pertinência da expressão "despotismo ilustrado" para o procurou aqui evidenciar - muitas das perplexidades que também povoa-
caso do Marquês de Pombal, já que a representação desse protagonista vam o pensamento enciclopedista francês. Percebe-se, em ambos os casos,
acerca de seu governo não correspondia exatamente à filosofia das luzes hesitação semelhante no que diz respeito ao tema da universalização da es-
(Faleon, 1982, p. 361). Buscando a ponderação, Faleon conclui, salientan- cola. Evidentemente, é de se supor que as idéias circulavam nos países eu-
do que o século XVIII português caracterizou-se pelo "caráter ilustrado ropeus. Havia interlocução entre projetos e planos de políticas de Estado.
algo impreciso na teoria, mas inegável na prática, ainda que consideremos Portugal não esteve - como se poderia supor- especificamente no caso do
os limites no interior dos quais esta se desenvolveu" (Falcon, 1982, p. projeto pombalino de escolarização à deriva de outros países da Europa.
483). Havia no plano de ação de Pombal um propósito político que extrapolaria
aspectos meramente pedagógicos; e que interagia - no plano global- com
O pombalismo, enquanto dispositivo de síntese histórica do Iluminis-
mo português, em suas distintas expressões, colocou a público e contra- outros ideários de nação e de educação pública.
pôs-se com veemência às estruturas institucionais de poder controladas Diante das premissas assumidas pelo protagonismo político do Mar-
pela Companhia de Jesus. Os jesuítas, ao confundirem fé com dogma, te- quês de Pombal- estatizar, secularizar, uniformizar - e do ulterior desdo-
riam arruinado a própria autoridade da Igreja e a observância da moral. Ca- bramento de seus atos no sistema de ensino português até o final do século
bia pensar, pois, em uma razão de Estado que conduzisse à organização do XVIII, poder-se-ia destacar que, a despeito das intenções de conferir des-
sistema de ensino; até porque a intersecção entre o professor e seus alunos taque à formação de camadas restritas da sociedade, pelo caráter proemi-
deveria ser mediada, no âmbito da era moderna, pela prescrição da lei. nente do ensino secundário, houve paradoxalmente um refluxo quantitati-
Pombal rascunhava, em seu tempo, muitas das diretrizes nortcadoras dos vo dessas escolas, acompanhado pelo aumento significativo de classes ré-
sistemas públicos de escolarização. Dessa maneira, a visão de conjunto gias de primeiras letras. Essas últimas eram, por seu turno, freqüentadas
desse estrategista político é remarcável: fundamentalmente por crianças dc camadas populares. Tais escolas, agen-
Os Mestres sábios constituem um dos meios, que em todo o tempo se ciadas talvez para redistribuir o panorama social, continham em seu cotidi-
reconheceu ser o mais próprio para dirigir o espírito dos Discípulos e ano os germes da vida civil que a Ilustração portuguesa projetou desenhar.
fazê-los cultivar com fruto o estudo de qualquer Alie ou Ciência. Po- Nessa medida, com conteúdos, métodos e códigos de conduta estritamente
rém não é fácil achar sempre Mestres sábios, que unam ao profundo prescritos, a escola do Estado passa a falar aos futuros cidadãos (Gomes,
conhecimento da Disciplina que ensinam o zelo, o ardor e todas as
1989, p. 18-19).
mais disposições que se requerem para o bom aproveitamento dos
Discípulos. Achar essas qualidades unidas é achar um tesouro e des- O século XIX dará substrato histórico à utopia pombalina. A profusão
cobrir o verdadeiro caminho, por onde sem perigo de erro se dão pas- de preceitos legais, antecipando-se muitas vezes à própria realidade esco-
sos muito avançados para todas as Ciências. Sendo, pois, dificultoso lar, denota apenas variações tópicas da matriz pombalina, cujo suporte teó-
achar sempre esses sublimes espíritos, esses homens raros, que en- rico e político acompanhará as representações e práticas da escola em Por-
chem de luzes as Nações; era necessário que houvesse um meio que tugal do século XIX. Quer pelo tom do discurso político, quer pelo teor do
suprisse de algum modo essa falta. E esse meio não podia ser outro, pensamento pedagógico expresso em periódicos da época, quer pelo pró-
senão o de uma-boa Legislação, que mostrasse a estrada direita, por
prio conteúdo dos manuais c compêndios escolares, o rosto do Marquês
onde se deve caminhar no estudo de qualquer Faculdade; que pene-
ilumina a história da educação portuguesa na trajetória do século XIX;
trasse pelo interior das CIências, e que estabelecesse, como regras
sendo também referência necessária para o estudo (1<1 história da educação
inalteráveis, os Princípios certos em (lue elas se fundam; que acautc-
176
Histórias e memórias da educação no Brasil - Vai. I
11. Iluminismo e educação em Portugal ...
177
brasileira relativa aos períodos imediatamente anterior e posterior à nossa
Independência. Finalmente, a capacidade de resistência ao tempo é, talvez, CUNHA, Luís da. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D.
o maior legado que o Iluminismo pombalino perpetuou no lastro, talvez, Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José antes do seu governo. São Paulo:
do inconsciente coletivo da nação portugucsa; deixando - como não pode- Alfa-Ôrnega, 1976.
ria deixar de ser - algum rastro em terras brasileiras ...
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al (J 777-1808). São Paulo: Hucitec, 1985. Vivemos numa sociedade que considera a educação um fator de desen-
volvimento da cidadania e onde a escola figura como um local onde se
aprende a conquistá-Ia. Mas embora a idéia de uma educação para todos,
pública, seja uma herança do século XVIII, do Iluminismo, ainda hoje o
povo brasileiro luta para ter acesso a uma escola pública de boa qualidade.
Mas quando e como começa entre nós essa história da escola pública? •
É sobre esse tema que trata o presente capítulo, sobre o momento da
criação da escola pública em todo o reino português, no qual se incluía o
Brasil, e seu desenrolar durante o período de vigência do sistema de ensino
inaugurado com as Aulas Régias.
Segundo a historiografia da educação, o período compreendido entre
meados do século XVI (1549) e meados do século XVIII (1759) é conheci-
do como período "jesuítico", uma vez que o ensino ficava ao encargo da
Companhia de Jesus, instituição religiosa que ministrava um ensino básico
nas "escolas de ler, escrever e contar", como eram denominadas então as
escolas do ensino fundamental.
Embora gratuito, pois os padres da Companhia de Jesus eram remune-
rados por El-rei, o ensino destinava-se primordialmente aos filhos da clas-
se dominante, representada pelos donos de terras em geral, mas incluíam
também os índios, dentro dos objetivos práticos da ação missionária dos
jesuítas no Novo Mundo, ou seja, no sentido de recrutamento de fiéis e ser-
vidores, O saber era reservado à formação de religiosos, fossem do clero
secular ou conventual, ou então servia para encaminhar os alunos à Uni-
versidade de Coimbra. Excluídos da educação estavam os escravos, a po-
pulação desprovida de posses c 3S mulheres.
Entretanto, pela lei de 3 de setem bro de 1759, osjesuítas, cuja presença
foi marcante em todos os aspectos da vida portuguesa, são expulsos de
180 Histórias e memórias da educação no Brasil - VaI. I 12. As Aulas Régias no Brasil 181

todo o reino português. Havia um contexto de crise aguda nas relações da gios típicos do Antigo Regime, como uma educação especial para a nobre-
Companhia de Jesus com a Coroa portuguesa, que caminharam para diver- za, numa composição própria do despotismo esclarecido.
gências inconciliáveis. Além disso, os jesuítas estavam sofrendo, naquele Para a realização desse projeto político, capitaneado por Pombal, era
momento, rigorosa devassa por ordem do próprio Papa Benedito XIV. necessário um aparelho burocrático mais preparado para este fim, ou seja,
Mesmo na América portuguesa, os jesuítas já não contavam com o apoio tendo por corolário a centralização e a racionalização da estrutura fiscal e
de importantes setores da população, devido a muitos atritos, especialmen- administrativa, explicitando suas atribuições e fortalecendo a hierarquia
te com as autoridades governamentais (Cavalcanti, 2004). dentro dos órgãos encarregados de tais tarefas, com o emprego de quadros
A expulsão dos jesuítas faz parte das reformas do Estado promovidas funcionais especializados. Esta exigência pôs em evidência a necessidade
no reinado de D. José I e efetivadas pelo Ministro Sebastião de Carvalho e urgente de se promover uma cul tura de base, assentada na lei tura, na escri-
Meio, o Marquês de Pombal (1699-1782). Essa medida drástica simboliza ta, no cálculo elementar, sem esquecer os conhecimentos relacionados às
uma ruptura do governo português com o pensamento escolástico e com obrigações religiosas e civis, além de que, para aqueles funcionários que
uma tradição de dois séculos, dando espaço para a modernização que se ocupassem posições de maior destaque dentro da estrutura administrativa,
pretendia com a criação de um Estado secular e regalista, dentro de um era conveniente uma qualificação literária maior do que a necessária à mé-
projeto de rcfonnismo ilustrado de constituição de um vasto e poderoso dia do funcionalismo.
império (Lyra, 1994). Em tempos conturbados, de crise do sistema colonial e de expansão das
É nessa conjuntura que entra a criação de um novo sistema de ensino, idéias iluministas, essa reforma do Estado incluía um conjunto amplo de
que vai perdurar, no Brasil, de 1759 até 1834, e em Portugal até 1860. medidas culturais, com vistas a cooptar intelectuais ilustrados e onde a edu-
Inspirada no iluminismo português expressado nas obras de Vemey e Ri- cação tinha um papel de destaque. Havia a preocupação constante com a dis-
beiro Sanchez sobretudo, esta reforma dos estudos fazia parte de um con- seminação dos "abomináveis princípios franceses", levando o governo a ar-
junto de medidas mais profundas que devem ser compreendidas no con- quitetar minuciosamente os passos da reforma do ensino, desde o que devia
texto de implantação do despotismo esclarecido em Portugal, caminho po- ser lido, como se devia ensinar, proibindo qualquer iniciativa individual dos
lítico escolhido para conciliar a tarefa de modernizar o país, com a preser- agentes desse processo, a menos que fosse solicitada pelo próprio rei.
vação da monarquia absolutista. É importante destacar o pioneirismo de Portugal em relação aos países
do Ocidente, na implantação de um sistema escolar estatizado, como vá-
AS RAZÕES DA REFORMA DOS ESTUDOS rios historiadores da educação portuguesa já apontam. De fato, verifica-
mos que as reformas da educação promovidas na Europa no sentido de ins-
Em 1759, o governo português desmantelou toda uma estrutura admi- tituírem a escola pública deram-se na Prússia em 1763, na Saxônia em
nistrativa escolar baseada na educação religiosajesuítica, instituindo, em 177 3, na Áustria em 1774. T am bém em 1773, o processo de reformar a
seu lugar, as Aulas Régias. O Estado luso estatizou o ensino, ao constituir educação se inicia na Polônia e na Rússia (Cardoso, 2002).
um sistema determinado e controlado pelo Estado, que pela primeira vez
A Reforma dos Estudos não foi um processo linear. Ao contrário, foi mar-
assumia diretamente a responsabilidade da educação, tomando-a leiga,
cada por diferentes etapas de um longo processo de implantação e de consoli-
embora a religião católica continuasse obrigatoriamente presente.'.
dação da nova prática. A primeira fase, iniciada com o alvará de 28 de junho
No eampo ideológico, percebemos a influência do movimento ilustra- de 1759, caracterizou-se pela Reforma dos Estudos Menores em Portugal, que
do na proposta educacional então planejada, que pregava o progresso cien- eram os estudos das primeiras letras e das cadeiras de humanidades.
tífico e a difusão do saber, ao mesmo tempo em que tentava manter privilé-
A segunda fase deu-se com a Reforma cios Estudos Maiores, a partir da
______________________~--__---L---
lei de 6 de novembro de 1772, quando reformularam-sc os estudos especí-
1. De acordo com o dicionário de Moraes e tamhcm o Vocabulário Português c Latino de Blu- ficos da Universidade de Coimbra c quando oconeu também o primeiro
tcau, concluímos que não havia diferença entre leigo c laico naquela época, que possuíam, por- ajuste visando garantir o êxito nos Estudos Menores, reforçando e ampli-
tanto, o mesmo significado.
182 Histórias e memórias da educação no Brasil - VaI. I 12. As Aulas Régias no Brasil 183

ando as providências inicialmente ordenadas em 1759. Donde se depreen- A IMPLANTAÇÃO DAS AULAS RÉGIAS
de que os anos de 1759 e 1772 firmaram-se na historiografia como os dois
A primeira etapa da Reforma dos Estudos iniciou-se com o alvará de
momentos da mesma Reforma dos Estudos, os quais efetivaram a implan-
28 de junho de 1759, que continha Instruções minuciosas quanto à imple-
tação de um novo sistema escolar, o sistema das Aulas Régias.
mentação da reforma em todo o reino, e instituía, ao mesmo tempo, o cargo
de Diretor ele Estudos, a quem cabia cuidar do planejamento, execução e
o QUE ERAM AS AULAS RÉGIAS? controle dos professores na metrópole e colônias, inclusive das sanções a
que estavam sujeitos os mesmos, que em última instância seriam agentes
Na Reforma dos Estudos Menores de 1759, a designação de Estudos
dessa política centralizadora e estatizantc.
Menores, como aparece nos documentos oficiais deste período, do mesmo
modo que a de Escolas Menores, e de Primeiros Estudos, correspondia ao O primeiro concurso para professores públicos realizado no Brasil foi
ensino primário e ao ensino secundário, sem distinção. Depois de concluí- em Recife, a 20 de março de 1760. No mesmo ano, em 7 de maio, realiza-
dos os Estudos Menores, o estudante habilitava-se a cursar os Estudos ram-se os primeiros exames para professores régios de Gramática Latina
Maiores, ou seja, aqueles oferecidos pela universidade. no Rio de Janeiro. Entretanto, em 1765 não havia ainda sido nomeado ne-
nhum professor público no Brasil, embora os concursos já houvessem se
Os Estudos Menores eram fonnados pelas Aulas de ler, escrever e con- realizado. No Rio de Janeiro, o início oficial das Aulas Régias ocorreu em
tar, também chamadas de primeiras letras como, aliás, ficaram mais co- 28 de junho de 1774, com a Aula de Filosofia Racional e Moral, ministrada
nhecidas, e também pelas Aulas de humanidades, que abrangiam inicial- pelo professor régio Francisco Rodrigues Xavier Prates, presbítero secu-
mente as cadeiras de gramática latina, língua grega, língua hebraica, retóri- lar, à qual compareceram várias autoridades. Havia se passado exatamente
ca e poética, mas foram acrescidas ao longo dos anos com outras cadeiras, qu inze anos, desde o alvará de 28 de junho de 1759, quando fora implanta-
como por exemplo filosofia moral e racional, introduzida a partir de 1772.
••
do o novo sistema público de ensino, no Reino português.
Só mais tarde, após a Independência do Brasil, é que os Estudos Meno- Diante desse quadro, a população brasileira recorria às aulas particula-
res aparecem separados, nos documentos oficiais, em dois níveis distintos, res, ou à generosidade alheia, para suprir esse aspecto da ausência do Esta-
o primeiro com o título de ensino primário, instrução primária; e o segun- do. Não havia disputa entre a escola pública c a particular nesse contexto, o
do, referente à educação secundária, como ensino das humanidades, ou que não deixa de ser um paradoxo, porque a Coroa portuguesa teve um
Aulas de estudos menores, mantendo a denominação original. A partir de grande empenho em elaborar uma legislação bastante restritiva, minucio-
1835 no Brasil e 1836, em Portugal, é que o ensino secundário passou a re- sa, comprometida com uma idéia de progresso e de civilização, voltada
unir as Aulas, ou cadeiras avulsas, em estabelecimentos de instrução se- tanto para a implantação da escola pública quanto para o funcionamento da
cundária denominados de liceus, embora desde 1825 já houvesse uma pro- particular, sem no entanto promover condições reais de aplicabilidade da
posta aprovada pelo governo de implantar um liceu na capital da província mesma. Sequer durante o Império brasileiro se observa essa disputa, uma
de Pernambuco. vez que a escola pública nunca preencheu as necessidades da população,
portanto a escola particular mantinha um espaço de atuação que era com-
O sistema de ensino implantado com a Reforma dos Estudos Menores plementar e não concorrente.
de 1759 baseava-se, portanto, nas Aulas de primeiras letras e nas Aulas de
Aliás, merece registro que, no Brasil em geral, havia um incentivo do
humanidades, que eram denominadas de maneira geral de A li Ias Régias. É
Estado para a proliferação do ensino particular, tanto no período em que
oportuno assinalar que no Despotismo Ilustrado a palavra régio tem um
ainda era América Portuguesa ou já como país independente, durante o
caráter ambíguo, porque ao mesmo tempo em que remete à figura do mo-
lmpério. Traduzia-se essa política por diferentes meios, como por exemplo
narca, reiterando uma tradição absolutista, que persiste período afora, re-
o descaso e a omissão quanto aos assuntos ela educação pública, a necessi-
presenta também o avanço ÇIueo termo traz, pela contraposição à tradição
dade de dividir a tarefa com a sociedade, a prática das subscrições popula-
de ensino por parte da'Igreja. Nesse caso, as Aulas Régias significavam as res para arrecadar fundos, o incentivo c a parceria com as sociedades e as-
A li Ias que pertenciam ao Estado e que não pertenciam à Igreja. Também na sociações voltadas para a promoção ela instrução.
educação manifestava-se o Regalismo.
184 Histórias e memórias da educação no Brasil - VaI. I
12. As Aulas Régias no Brasil 185

Professores concursados mas não empossados, falta dos livros reco- Para a elaboração da lei de 6 de novembro de 1772, o rei nomeou "co-
mendados pelo Alvará de 1759, disputas políticas, enfim, os obstáculos rógrafos peritos", ou seja, especialistas no estudo ou descrição geográfica
para que as Aulas Régias se efetivassem na prática foram tantos, que em 4 de uma determinada região, e O resultado do trabalho que elaboraram vi-
de junho de 1771 um novo alvará passava para a Real Mesa Censória toda nha em anexo à citada lei, o "Mapa dos Professores e Mestres das Escolas
a administração e direção dos Estudos das Escolas Menores do Reino e Menores e das terras em que se acham estabelecidas as suas Aulas e esco-
seus domínios, extinguindo a Direção-Geral dos Estudos e marcando o iní- las neste reino de Portugal, e seus Domínios", que facilita a leitura dos da-
cio da segunda fase da Reforma dos Estudos. dos referentes às Aulas, com a localização das mesmas em todo o Reino,
O governo admitia o fracasso na implantação da primeira fase do siste- com seus domínios.
ma de ensino e se propunha, com a lei de 6 de novembro de 1772, a promo- Analisando, além deste "Mapa" que acompanhava a Lei, os outros da-
ver correções no sentido de incrementar a oferta escolar. Foram três os obje- dos referentes ao Ultramar e, especificamente, o item América, encontra-
tivos principais dessa segunda fase, os quais traduziam as preocupações cen- mos um levantamento total de 837 mestres necessários para as Aulas Ré-
trais do govemo pornbalino. O primeiro deles seria O esforço em reformar os gias para todo o Reino e seus domínios, e destes, quarenta e quatro eram
Estudos Maiores, substituindo os antigos Estatutos da Universidade de Co- indicados para exercerem suas funções na colônia brasileira, que foram as-
imbra, elaborados pelos jesuítas, por um novo Estatuto mais adequado ao
sim distribuídos:
moderno espírito científico, e redigido por intelectuais filiados ao pensa-
mento ilustrado. O segundo objetivo pretendido se traduz através da criação Quadro I - Distribuição das Escolas Menores no Brasil ordenada
de um imposto específico, o do Subsídio Literário, lançado em 10 de no- pela lei de 6 de novembro de 1772
vembro de 1772, para financiar as reformas então em andamento no campo
da educação, principalmente aquelas relacionadas aos Estudos Menores. Ler, escrever, Latim Grego Retórica Filosofia
No entanto é o terceiro objetivo, em relação à Reforma dos Estudos de contar
1772, o relançamento, na prática, das Aulas Régias, o que mais de perto Rio de Janeiro 2 2 1 1 1
nos interessa. A lei de 6 de novembro de 1772 ordenou efetivamente o es-
tabelecimento, nas principais cidades do país, das Aulas Régias de Primei- Bahia 4 3 1 1 1
ras Letras, de Gramática Latina e de Língua Grega, fundando novas Esco- Pernambuco 4 4 1 I 1
las de Estudos Menores.
Mariana 1 1 - 1 -
O preâmbulo desta lei deixa claro que a educação não era obrigatória c
que seu destino não era a população em geral, partindo o govemo de princí- São Paulo 1 1 - 1 -
pio de que era "impraticável" montar uma rede escolar que abrangesse todo Vila Rica 1 1 - - -
o território do reino luso e domínios. Portanto, visando o bem do "interesse
público" é que se classificavam os súditos em grupos diversos, ou seja, o go- S. João dei 1 1 - - -
verno considerava apenas, nesta Lei, o destino profissional dos estudantes Rei
em potencial que seriam beneficiados com o aumento da oferta escolar. Pará 1 1 - 1 -
Assim, havia súditos aos quais as "Instruções dos párocos" seriam su- Maranhão 1 1 - - -
ficientes, e que portanto permaneceriam dentro da cultura oral; ou aqueles
aos quais bastaria saber os "exercícios de ler, escrever e contar". Quanto às Total /7 /5 3 6 3
"outras pessoas hábeis para os estudos", chegariam "à precisa instrução da
Quadro elaborado a partir dos dados COI1 tidos em anexo à lei de 6 de novembro de /772.
Língua Latina", destinando-se, por fim, ao menor número deles, a univer-
sidade, 011 seja, "as Faculdades Acadêmicas que fazem figurar os homens
110S Estados" (Cardoso, 2002).
186 Histórias e memórias da educação no Brasil - VaI. I 12. As Aulas Régias no Brasil 187

Quanto à distribuição dos mestres pelas Aulas, deu-se conforme a ta- A VIGÊNCIA DAS AULAS RÉGIAS
bela abaixo:
As Aulas Régias abrangeram um período importante, durante o qual a
política do refonnismo ilustrado se firmou em Portugal. O Rio de Janeiro
Tabela 1 - Brasil: distribuição prevista das Aulas Régias
assumiu em 1763 a posição de sede do vice-reinado, consolidando-se no
Aulas Régias N° de classes previstas cenário político-cultural brasileiro, passando à condição de sede da monar-
quia portuguesa em 1808. Em 1822, o Brasil tornou-se nação independen-
Primeiras Letras 17 te, constituindo-se em Estado Imperial e Constitucional, e nesse quadro
Latim 15 conjuntural destaca-se, ainda, a abdicação do Imperador D. Pedra I, em
1831, em favor do imperador menino, D. Pedro Il, além da instalação dos
Grego 3 governos regenciais, quando o Brasil passava, pela primeira vez, a ser go-
.. "
Retórica 6 vernado por brasileiros natos. Só em 1834, por ocasião do Ato Adicional, é
que esse sistema foi extinto e substituído por outro, descentralizado.
Filosofia 3
Trata-se, portanto, de um longo período que abarca diferentes conjun-
Total 44 turas, durante o qual o sistema de ensino público, inaugurado com as Aulas
Régias, se manteve quase inalterado em suas características essenciais: o
caráter centralizador, a falta de autonomia pedagógica, a existência de dois
Estes dados apresentam de forma inequívoca a supremacia numérica
níveis de ensino - Estudos Menores e Estudos Maiores - e o acesso à edu-
das Aulas Régias destinadas à metrópole, 95%, ficando o Brasil, sua colô-
cação restrito a uma parcela da população. Por isso mesmo, manteve um
nia mais importante, em segundo lugar na distribuição do restante das Au- conjunto de elementos que funcionaram com uma estrutura organizada,
las pelos domínios lusos, com 5%. Em relação à distribuição interna, desti- pressupondo uma uni cidade, caracterizando-se como um sistema.
naram-se maior número de Aulas para Pernambuco, contemplado com a
A alteração desse sistema característico do ensino público, implantado
criação de onze delas, depois a Bahia, com dez, e em terceiro lugar vinha o
com as Aulas Régias, ocorreu em 1834, com a Lei de 12 de agosto, que o
Rio de Janeiro, com sete Aulas.
substituiu por um outro sistema de ensino, caracterizado pela dcscentraliza-
Em li de novembro de 1773, um novo alvará aumentava o número das ção, uma vez que tanto o ensino fundamental de ler, escrever e contar, quan-
Escolas Menores, entretanto no item América encontramos a permissão to o ensino médio das humanidades ficaram a cargo das Assembléias Legis-
para apenas duas novas Aulas, uma de Gramática Latina e a outra de ler, lativas provinciais. Dessa forma, o poder central limitava-se a promover a
escrever e contar, ambas para a localidade de Rio das Mortes, erl) Minas educação no Município Neutro e a educação superior (Sucupira, 1996).
Gerais, mantendo-se, portanto, praticamente inalterado o quadro anterior.
Com o passar dos anos novas Aulas foram sendo criadas, como filoso- AULAS RÉGIAS: ALGUNS ASPECTOS
fia Racional e Moral, Desenho e Figura, Língua Inglesa, Língua Francesa e
até Aula de Comércio. A escola era uma unidade de ensino com um professor. O termo escola
era utilizado com o mesmo sentido de cadeira, ou seja, uma Aula Régia de
Só com a lei de 15 de outubro de 1827, que tornou obrigatória a instala-
Gramática Latina, ou uma Aula de Primeiras Letras, correspondia, cada
ção de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais
uma, a uma cadeira específica, o que representava uma unidade escolar, uma
populosos do Império brasileiro, o governo imperial sinaliza com uma pre-
escola. Cada aluno freqüentava as A ulas que quisesse, não havendo articula-
ocupação em ampliar o acesso escolar. Entretanto a educação ainda não
ção entre as mesmas. De modo geral, chamavam-se mestres aos que ensina-
era obrigatória e conforme o artigo 179, § 32 da Constituição de 1824, des-
vam as primeiras letras e professores aos de todas as demais cadeiras.
tinava-se apenas aoscidadãos livres. Uma situação muito comum encon-
trada na documentação era a falta de aulas em escolas criadas por vezes há As aulas eram dadas na casa do próprio professor e apenas eventual-
muitos anos. mente aproveitou-se um prédio anteriormente ocupado pelos jesuítas ou
188 Histórias e memórias da educação no Brasil - Vol. I
12. As Aulas Régias no Brasil 189
outro tipo de convento, para local de ensino. Assim, não era preciso haver
radas faziam parte os nobres, que se dividiam em "principal nobreza do
um edifício escolar para que a escola existisse. Foi só na década de 1870
reino", "nobreza distinta" e "nobreza ordinária". Os plebeus estavam ex-
que se construíram os primeiros edificios escolares para funcionarem
cluídos desse universo. Na relação das honras concedidas aos súditos, ca-
como escolas públicas no Brasil, sendo o primeiro deles no Rio de Janeiro.
bia à categoria dos letrados, constituída por doutores, licenciados e bacha-
Quanto ao processo de seleção dos professores denominados de régios réis formados, o grau de nobreza ordinária, que era o mais baixo.
a partir de 1759, fez-se sempre através de concurso, e em geral pelos se-
Entretanto, para os plebeus, principalmente os das colônias, cujo cami-
guintes motivos: abertura de novas Aulas, aposentadoria, morte ou afasta-
nho da ascensão social era ainda mais reduzido do que para os da metrópo-
mento do professor que ocupava a cadeira.
le, esta poderia representar uma oportunidade única, menos por qualquer
Publicava-se então um edital, na cidade ou vila onde haveria o exame, benefício pecuniário e mais pela carga simbólica que a condecoração tra-
vinculando o cargo à vaga, ou seja, o professor era nomeado para uma de- zia. Outros caminhos para obter distinção podiam ser também o diploma
terminada vaga e, em geral, nos requerimentos de inscrição para o exame de Coimbra ou uma das condecorações concedidas pelo rei.
público, o candidato indicava a vaga que pretendia ocupar. Não havia a
Os professores públicos eram obrigados a cumprir certos compromis-
transferência de lugar, só em casos excepcionais.
sos, entre os quais estavam: financiar o oficio - a escola era em sua própria
O processo de exame para professores régios ficou a cargo, inicialmen- casa e a compra do material necessário às aulas também ficava a seu encar-
te, dos comissários de estudo nomeados pelo Diretor geral dos Estudos, go; levar os meninos à missa ao menos em um domingo ao mês; promover
passando, com a extinção deste cargo, à competência dos vice-reis, gover- a educação cívica; arcar com as despesas relativas ao seu treinamento.
nadores e bispos, e, depois da Independência, aos governadores e presi-
O ordenado era pago adiantado, aos quartéis, ou seja, recebido em três
dentes das Assembléias Provinciais. Uma vez aprovados nos exames, os
parcelas no ano e variava muito, em função da localização'da escola, ou seja,
professores recebiam um documento que os autorizava a lecionar.
as localidades de maior população em cidades de maior porte recebiam
O concurso para professor público não estabelecia um limite mínimo de mais, decrescendo essa quantia para as localidades de menor porte. Um pro-
idade para o candidato ao cargo, pelo menos até a decisão de 10 de dezem- fessor de ler, escrever e contar, por exemplo, podia receber entre 80$000 e
bro de 1830, quando o governo declarou de maneira clara que os menores de 150$000. Mas também dependia da cadeira que lecionavam, podendo variar
25 anos não poderiam ser nomeados professores de primeiras letras. no período colonial, por exemplo, entre 80$000 réis para um substituto de
Os exames eram gratuitos e não se exigia dos candidatos a professor primeiras letras, até 460$000rs, para um professor de Filosofia. Entretanto,
régio ou ao ensino particular qualquer diploma ou comprovante de habili- mestres e mestras recebiam salários iguais, desde 1759 até 1834, garantidos
tação para o cargo pretendido. Como não havia prova de aula, somente um na legislação e que comprovamos em inúmeros documentos.
exame de gramática e outro de matemática, quem já lecionava não levava Aliás, o salário foi alvo de reclamações constantes durante todo o perío-
nenhuma vantagem. O concurso funcionava, ao mesmo tempo, como ga- do das A ulas Régias, não apenas no Brasil, mas também em Portugal. Os au-
rantia da qualidade do ensino, além de fornecer um estatuto profissional mentos de salário não eram dados ao mesmo tempo para todos os professo-
para o mestre. res públicos, e nem mesmo dentro de uma mesma região, ou ainda cidade.
No alvará de 1759, El-rei estabelece que os professores "terão o privi- Além disso, o pagamento atrasava muito, em certos casos até anos, trazendo
légio de nobres, incorporados em direito comum, e especialmente no Có- muitas dificuldades aos professores, que no entanto persistiam no oficio.
digo Título de professoribus et medicis". Isto significava passar da condi- Quanto à avaliação de desempenho dos professores, para conferir o
ção de plebeu à de pessoa honrada, ou seja, ganhar um título de distinção cumprimento de suas obrigações, até a Independência a preocupação, em
social e política, que trazia vantagens na ascensão social, além de garantir geral, era observar apenas a sua conduta pessoal. Nesse caso, o pároco, o
certos privilégios, como a isenção de determinados impostos, a possibili- chefe de polícia e os pais dos alunos eram as principais fontes de informa-
dade de ocupar postos destinados à nobreza, a exclusão de penas infames, ção de que dispunha o poder do Estado, representado nesse caso pela Real
ou ainda o privilégio de não ir para a prisão. Do universo das pessoas hon- Mesa Censória.
190 Histórias e memórias da educação no Brasil- Vai. I 12. As Aulas Régias no Brasil 191

Depois da Independência, essa responsabilidade passou a ser das Câ- o Ato Adicional à Constituição, promulgado em 1834, que conferiu
maras Municipais, que continuaram responsáveis por esta tarefa principal- maiores poderes às províncias, também Ihes permitiu a gerência do próprio
mente depois de 1834, quando outro sistema de ensino, descentralizado, sistema de ensino, deixando a cargo das oligarquias locais o exercício ou
foi implantado. não da educação, que aqui deve ser entendida como possibilidade de liber-
Na tentativa de padronizar os procedimentos de avaliação destinados tação do homem ou, em sentido oposto, como forma de sua dominação pe-
não só às escolas públicas, mas também às particulares, o governo munici- los setores políticos locais.
palizou, com uma lei específica sobre a matéria, a Lei de 1 de outubro de
0

1828, a fiscalização da casa-escola, que compreendia, entre outros itens, o REFERÊNCIAS


exame do estado físico de suas instalações. E foi reforçada posteriormente
por outras medidas legais que visavam manter o cumprimento dos interes- CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As luzes da educação: fundamentos,
ses públicos que o Estado representava, dentro da escola-residência, local raÍzes históricas e prática das Aulas Régias no Rio de Janeiro: 1759-
da vida privada do professor, de sua família e por vezes até de alunos que, 1834. Bragança Paulista: Edusf, 2002.
vindos de outras localidades, moravam em pensões que alguns professores
CARVALHO, Laerte Ramos. As reformas pombalinas da educação. São
mantinham na mesma residência.
Paulo: Saraiva/Edusp, 1978.
Quanto à avaliação de desempenho dos professores e das aulas públi-
CA V ALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Za-
cas, também ficou ao encargo das Câmaras Municipais, a quem competia
har, 2004.
"vigiar sobre as escolas de instrução primária da mocidade", conforme
determinado na mesma Lei de 1828. FALCON, Francisco. As reformas pombalinas e a educação no Brasil.
Estudos ibero-americanos, n. 18, n. 2, dez./1992. Porto Alegre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS FERJ"TANDES, Rogério. Os caminhos do ABC - Sociedade portuguesa e
ensino das Primeiras Letras. Porto: Porto Ed., 1994.
A implantação das Aulas Régias representou a imposição de um proje-
LYRA, M. de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Rio de J anei-
to, que fazia parte do sistema de dominação do reino de Portugal, mas no
qual se engajaram os intelectuais luso-brasileiros comprometidos com no- ro: Sette Letras, 1994.
vas idéias surgidas com a Revolução Científica e a Ilustração. De qualquer MOACYR, Primitivo. A instrução e o império: subsídios para a história
forma, a instituição das Aulas Régias representou um avanço em sua época da educação no Brasil. 3 vol. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1936-1938.
por procurar contemplar novos referenciais dentro de uma perspectiva que ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petró-
seu tempo reclamava.
polis: Vozes, 1983.
Entretanto, tais avanços encontraram seus limites naqueles mesmos
SUCUPlRA, Newton. O Ato Adicional de 1834 e a descentralização da
em que esbarrou o pensamento iluminista na cultura política portuguesa,
Educação. 111: FÁ VERO, Osmar (org.). A educação nas Constituintes
que buscava absorver tais princípios filosóficos em seu funcionamento,
brasileiras. Campinas: Autores Associados, 1996.
sem alterar, porém, as formas tradicionais de dominação e de exploração.
WEHLING, Amo. História administrativa do Brasil: administração por-
A permanência praticamente inalterada do sistema das Aulas Régias no
Brasil da virada do século XVIII para o seguinte, estendendo-se ainda du-
tuguesa no Brasil, de Pombal aD. João (1777-1808). Brasília: Funcep,
rante todo o primeiro reinado, deveu-se à continuidade dos modelos de pen- 1986.
samento em nossa elite cultural. Existiu um grande descompasso entre o
pretendido pelo governo monárquico - tanto o português quanto o brasilei-
ro, após a Independência .- e aquilo que as condições sociais e econômicas
viriam a permitir, dentro de um modelo produtivo cxcludente, cscravista e
pautado numa mentalidade que contribuía para se perpetrar tal situação.

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