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INTRODUÇÃO
Este trabalho é voltado basicamente para os principiantes e alunos ligados à chamada “área psi”
(psicologia, psicopatologia, psiquiatria), inclusive aos que se iniciam no estudo do amplo campo da
saúde mental, ou mesmo àqueles pertencentes a outras áreas do saber, mas que desejam ter
conhecimento sobre psicopatologia. Essa nossa intenção pode ser observada nas exposições,
comentários e citações que fazemos de forma bem simples e que talvez soem como algo por demais
explicativo ou mesmo elementar para os mais eruditos ou em estágio de maior adiantamento no
conhecimento psicopatológico/psiquiátrico. Durante os anos em que nos dedicamos ao ensino da
psicopatologia, foi com os alunos que compreendemos e aprendemos a necessidade da comunicação
clara e simples. Quanto mais utilizarmos uma linguagem accessível, mais compreendidos ficaremos
no aprofundamento de cada tema abordado, e por um maior número de pessoas. Para um principiante,
nada mais desestimulador do que um discurso um tanto hermético ou que pressupõe que ele já tenha
um conhecimento básico sobre psicopatologia. Certa feita, um aluno nos disse que inicialmente
pensava não gostar de psicopatologia, até que começou a entendê-la e a perceber que não gostava era
da forma com que lhe era transmitida e do como tentava estudá-la.

O que escrevemos neste trabalho não tem propósito de substituir os textos dos livros de
psicopatologia, muitos deles já clássicos, e dos quais fazemos citações e transcrevemos alguns
exemplos. A intenção é de abordarmos o que consideramos como os seis principais temas da
psicopatologia, em um trabalho que possa inclusive contribuir para o incentivo à leitura daqueles
clássicos.

Sempre achamos muito importante para a compreensão e o deleite da psicopatologia a presença de


exemplos que venham facilitar o entendimento da teoria. Assim, trazemos casos clínicos de nossa
experiência pessoal, exemplos dos livros técnicos, textos de contos e romances da literatura, filmes
que ilustrem assuntos da psicopatologia e outras formas de mostrar a existência prática de um
conhecimento teórico.

Aqui utilizamos filmes apenas como mais uma fonte de exemplos dos distúrbios mentais que estamos
nos dedicando, mas não se trata de um trabalho que tenha como propósito principal enumerar e
comentar filmes à luz da psicopatologia ou psiquiatria. Livros interessantes que têm esse objetivo
existem, como Cinema e Loucura – Conhecendo os Transtornos Mentais Através dos Filmes, de Elie
Cheniaux e Landeira-Fernandez. É importante pontuar, todavia, que nem todos os comentários e
citações que fazemos acerca de filmes quer dizer que estes correspondam e mostrem o que se passa
na realidade prática. Algumas vezes, nos servimos de determinadas cenas e enredos que não
correspondem exatamente à apresentação correta de um distúrbio, com a intenção de contrastar o que
é mostrado no filme com o mesmo fenômeno na prática clínica real. Assim, a produção “Como se
Fosse a Primeira Vez”, onde em seu desenrolar é citada uma fictícia “síndrome de Goldfield” que na
realidade não existe, nos mostra a apresentação clínica de como seria uma amnésia de fixação, embora
com um desenrolar evolutivo que não corresponde bem ao que ocorre na realidade.

Da mesma forma, utilizamos também trechos de contos ou romances da literatura para ilustrar os
fenômenos que vão sendo estudados. Assim, na obra clássica de Thomas Mann, “A Montanha
Mágica”, encontra-se uma interessante passagem em que uma ilusão auditiva se nos apresenta quando
as personagens atentam para o ruído do jorrar de uma cachoeira que parece se transformar em vozes.
Uma descrição do que vem ser a desagradável experiência de quem está ansioso para dormir e não o
consegue é encontrada no conto “Insônia”, de Graciliano Ramos, através da personagem que entra
pela madrugada com digressões do pensamento e outras experiências que faz o insone chegar às raias
do desespero.
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Oliver Sacks, como humanista e neurologista, nos deixou alguns livros em que expõe estudo de casos
em forma de contos literários. Uma de suas obras, “Despertares”, foi filmada com o título “Tempo de
Despertar” e a narrativa “O Marinheiro Perdido” faz parte de um conjunto de casos clínicos escritos
em agradável narrativa, onde é mostrada não só a descrição de uma clássica amnésia de base orgânica,
mas observações e reflexões acerca de um paciente, Jimmie, mostrando aspectos existenciais e
filosóficos por trás do que poderia ser apenas mais um “caso clínico”, narrativa inclusive enxertada
com correspondências escritas entre o autor e Alexandre Luria, um neurologista de renome que
comunga com a percepção humanista da medicina. No nosso capítulo sobre amnésia, traremos com
mais detalhes o caso de Jimmie, contido no livro “O Homem que Confundiu sua Mulher com um
Chapéu”, “casos-contos” de Oliver Sacks.

E por que não nos reportarmos a acontecimentos que nos cercam e até passagens históricas, como a
crise psicótica do alemão Harry Berger, preso com o revolucionário Luiz Carlos Prestes em uma
pequena e apertada cela, passagem do livro “Aos Trancos e Barrancos” de Darcy Ribeiro? A
psicopatologia não está apenas nos livros técnicos ou nos contextos clínicos, mas na história, na arte
e na vida.

Mas, um livro que se propõe a abordar a psicopatologia deve, antes de tudo, refletir sobre o que vem
a ser esse constructo científico, muitas vezes sendo confundido com a psiquiatria. A psicopatologia
abrange as alterações das funções psíquicas, entendendo-se estas últimas como os diversos
seguimentos ou aspectos do funcionamento da mente. Percepção, pensamento, sentimentos, juízo
crítico da realidade, memória, inteligência, linguagem, são algumas das funções psíquicas. Assim,
quando falamos de alterações da percepção, podemos nos remeter, por exemplo, ao estudo das
alucinações, das ilusões perceptivas, e outras relacionadas àquela atividade funcional; ao nos
referirmos ao comprometimento na área da vida afetiva (ou seja, sentimentos, emoções e estados de
ânimo), poderemos exemplificar tipos de depressão ou euforia patológica; caso a função
comprometida seja a memória, teremos o fenômeno da amnésia como principal alteração. Se a
psicologia geral engloba o estudo dos processos psíquicos em seu funcionamento saudável e em
equilíbrio, a psicopatologia vai estudar essas mesmas funções em seus aspectos alterados, em
desequilíbrio. É claro que, na prática, os processos mentais estão entrelaçados, mas para fins didáticos
é válido que sejam estudados salientando-se e circunscrevendo cada um deles, sem perder, no entanto,
a noção de conjunto integrado.

Ao examinarmos os livros de psicopatologia constataremos que têm seus capítulos sequenciados em


alterações da percepção, alterações do pensamento, da vida afetiva, da memória, e assim por diante.
Todavia, o estudo sistemático das chamadas doenças mentais, hipóteses etiológicas, prática do
diagnóstico e tratamento delas, pertence mais ao campo da psiquiatria. E como capítulos desta, estão
a esquizofrenia, o transtorno bipolar, doença de pânico, transtorno obsessivo compulsivo (TOC),
dependência a drogas e outras entidades mórbidas.

De certa forma, pode-se dizer que a psicopatologia se concentra mais no estudo e aprofundamento
dos sintomas que vão formar as diversas doenças mentais. Assim, alucinação, além de ser uma
alteração da função psíquica percepção, é também um sintoma que comumente está presente na
doença chamada esquizofrenia ou na depressão psicótica recorrente; e amnésia, embora seja alteração
do funcionamento da memória, é achado sintomatológico encontrado em diversas doenças mentais,
como alcoolismo, doença de Alzheimer e transtorno dissociativo (neurose histérica).

Sintoma e doença são fenômenos diferentes, pois o primeiro vai formar e compor o segundo. Febre é
um sintoma que pode ser observado em diversas doenças. Delírio (de perseguição, de conteúdo
místico, grandeza) é sintoma encontrado em várias enfermidades mentais (esquizofrenia, certos casos
de psicose alcoólica, transtorno bipolar, etc.).
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Mas quando se diz que a psicopatologia “só” estuda ou se interessa pelos sintomas está se incorrendo
em comentário reducionista e simplista. Compreender sintomas não é só descrevê-los e dizer em que
doenças estão presentes, mas o aprofundamento no estudo deles, inclusive com o propósito de
entendê-los à luz dos conceitos e métodos atuais de investigação, como as teorias psicológicas,
neurociências e ciências sociais, incluindo questões socioculturais. É necessário refletir sobre os
eventuais significados do sintoma, as possíveis causas do fenômeno, suas relações com o meio
ambiente, fatores desencadeantes, formas práticas de avaliar se uma pessoa tem mesmo um distúrbio,
e, se o tem, como diagnosticá-lo para que se chegue a uma abordagem adequada e direcionada a um
tratamento mais holístico, observando que fatores psicológicos, orgânicos ou socioculturais podem
estar contribuindo para a manifestação do fenômeno.

No delírio de perseguição, por exemplo, estuda-se não só como ele se apresenta, sua descrição através
do contato e diálogo com a pessoa que delira, colhendo-se inclusive informações dos familiares, mas
também se deve observar se há outros sintomas associados, averiguar possíveis dados que ajudem no
entendimento do porquê aquele delírio surge, se existe clara relação de causa e efeito entre os fatos
da vida da pessoa e a crença delirante (incluindo evidentes eventos traumáticos) ou se é observado
certa incompreensibilidade psicológica para o surgimento do delírio. Quando entrarmos no capítulo
dedicado a tal distúrbio, veremos que é importante averiguar se o fenômeno é realmente uma crença
delirante ou se fantasias exacerbadas, ou, ainda, ser uma crença sociocultural, e não delirante. Esses
aprofundamentos vão ser importantes na conclusão do que está ocorrendo com a pessoa e na possível
intervenção terapêutica da mesma.

O gráfico abaixo resume o que dissemos em relação às diversas disciplinas e objetivos básicos das
mesmas, exemplificando alguns de seus conteúdos:

PSICOLOGIA GERAL PSICOPATOLOGIA PSIQUIATRIA

Estuda basicamente as Estuda basicamente as funções Estuda basicamente as


funções psíquicas em seus psíquicas em seus aspectos chamadas doenças mentais
aspectos não disfuncionais, disfuncionais, alterados, (hoje denominadas também
deixando suas alterações para comprometidos de “transtornos” mentais)
a psicopatologia psicopatologicamente

Conteúdo: Conteúdo: Conteúdo:


Percepção, Alterações da percepção Esquizofrenia,
Pensamento, Alterações do pensamento Transtorno bipolar,
Linguagem, Alterações da linguagem Doença de pânico,
Juízo de realidade Alterações do juízo de realidade TOC,
(consciência crítica), (delírios) Dependência a drogas,
Memória, etc. Alterações da memória, etc. Autismo infantil, etc.

Pode também ser considerada É também, além de conjunto


como estudo dos sintomas que integrado de saber científico,
formam as doenças mentais uma especialidade médica

O fato de elegermos seis temas de psicopatologia não quer dizer que deixaremos de nos referir a
outros
estuddistúrbios mentais. Quando nos concentramos no capítulo “Alucinações”, por exemplo,
fazemos diferenciação e relação dessas alterações com outras afins, como ilusões perceptivas,
alterações na intensidade do percebido e pseudoalucinações, o que nos possibilita a abordagem do
que vem a ser esses três fenômenos, até porque a comparação de semelhanças e diferenças entre eles
e alucinações é importante para o diagnóstico de alguma possível enfermidade mental. Assim, o
estudo de seis dos principais tópicos da psicopatologia, que são os capítulos deste livro –
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alucinações, delírios, depressão, amnésia, impulsos e compulsões e consciência – pode nos levar
a compreensão de outras alterações psíquicas não diretamente abordadas.

Diagnóstico é assunto que mobiliza certa polêmica em torno dele. Todavia, desde logo queremos
esclarecer que não estamos nos referindo àquela ideia de algo semelhante a um mero “rotular” estados
psíquicos de cada pessoa. Diagnosticar deve ser entendido como um processo de identificar o
transtorno mental básico de alguém, com finalidade de ajudar a compreender melhor o que ele sente
e elaborar um planejamento terapêutico para o mesmo. Uma pessoa com toda a sintomatologia de
psicose esquizofrênica vivencia seu transtorno mental de uma forma diferente a de alguém com
doença de pânico ou com depressão. E o como lidar e agir terapeuticamente com cada uma dessas
condições tem particularidades diferentes para o restabelecimento da pessoa em situação mentalmente
crítica.

A psicopatologia pode ser considerada disciplina científica que, não só contribui para a
fundamentação de grande parte da psiquiatria, como pode ser aplicada também ao estudo e prática de
outros ramos da saúde mental, incluindo a psicologia. Embora o termo psicopatologia já existisse
desde a primeira metade do século XIX, foi sistematizado e aprofundado por Karl Jaspers, em torno
de 1913, com seu livro “Psicopatologia Geral”, que teve várias reedições até nossos dias.

A figura seguinte sempre nos facilitou, junto aos alunos, a discussão acerca de alguns conceitos
introdutórios sobre psicopatologia

NORMAL

Presença
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - -
das

Alterações

Psíquicas
PATOLÓGICO

O gráfico nos lembra duas questões. A primeira é que os limites entre o normal (saudável) e o
patológico não são muros estanques, bem delimitados, mas têm passagem de uma estância para outra
como um dégradé de cor. As situações extremas são facilmente identificadas, como o lado escuro e
o lado claro do desenho. Uma pessoa que praticamente não ingere álcool, só o fazendo socialmente,
não tem dependência dessa droga; no outro extremo o homem que “bebe” bastante e diariamente, já
estando com cirrose hepática e não conseguindo viver sem a bebida, evidentemente apresenta
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diagnóstico de dependência alcoólica (alcoolismo). Mas entre esses dois extremos há uma região
intermediária onde é difícil identificar até onde vai um “beber” prejudicial e começa um distúrbio
mental e comportamental ligado ao álcool. Um homem que “bebe” quase que diariamente ainda é
bebedor saudável ou já começa a ser alcoolista? Não tem cirrose nem gastrite, não falta ao trabalho,
mas ingere quase todo dia suas duas doses de whisky, apesar das admoestações da esposa. Numa
determinada semana aparece com fortes queimores no estômago. É a partir daí que se consideram os
primeiros sinais de alcoolismo, ou, antes da possível gastrite, já poderíamos dizer que o homem estava
no terreno patológico da dependência?

A segunda questão que o gráfico nos traz é a presença das alterações mentais (ou sintomas) dentro do
campo do psiquismo. O desenho sugere que elas se colocam, em sua maior parte, abrangendo o
universo do patológico. Mas mostra também que uma pequena porcentagem de alterações se faz
presente ainda no campo do normal (saudável), não patológico. De fato, na prática, alguns fenômenos
estudados em psicopatologia podem estar presentes também nos limites do não doentio, apesar do
componente “patologia” na palavra. Ou seja, aqueles fenômenos podem eventualmente ser
encontrados nas pessoas psiquicamente sadias. Por isso, o termo estudo das alterações das funções
psíquicas nos parece melhor e mais preciso, como conceito de psicopatologia, do que sintomas de
doenças mentais, embora este último não esteja errado. Uma alteração da percepção, por exemplo,
pode ocorrer numa pessoa sem ser necessariamente algo indicativo de doença mental, como as ilusões
perceptivas, conforme veremos no capítulo dedicado às alucinações. Até as imagens alucinatórias
não indicam obrigatoriamente perturbação mental, a exemplo das alucinações hipnagógicas, que às
vezes surgem na passagem da vigília ao sono e que podem ocorrer com qualquer pessoa. Fenômeno
do já visto (déjà vu), interceptação do pensamento, estranheza do percebido, certas hipercinesias
(exacerbação dos movimentos), impulsos agressivos, o solilóquio (falar sozinho), ilusões mnêmicas
(lembrar algo de forma distorcida) são alguns dos fenômenos estudados em psicopatologia e que
podem ocorrer circunstancialmente na pessoa sem transtorno mental.

Ainda enfatizando a importância desse assunto, vez por outra, quando estamos discutindo com os
alunos acerca das alterações estudadas na psicopatologia, alguns às vezes indagam: “Isso é doença?”
“Quem tem esse comportamento é doente mental?” “Mas eu já experimentei isso... é patológico?”
Pontuamos então essas questões que envolvem o normal e o psicopatológico, mostrando que embora
a maior parte das alterações psíquicas recaia no campo da morbidade, nem sempre isso ocorre. Em
muitos casos temos que levar em consideração também o contexto em que acontecem, a frequência
de aparecimento, os fatores socioculturais envolvidos e outras possíveis variantes de cada exemplo.
Até porque, não podemos cair no risco de “patologisar” muitos dos comportamentos, pensamentos e
sentimentos incomuns que apenas vão de encontro a ideias normativas de julgamento. É claro que o
inverso também nos parece sectarismo, considerar que tudo é normal e que a patologia mental não
existe. Nunca a negação da doença mental, com suas repercussões práticas decorrentes da ideia de
inexistência dela, foi benéfica para o homem, assim como também não o foi a ânsia em ver
psicopatologia por todos os lados.

CAPÍTULO 1
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ALUCINAÇÕES

1. ALUCINAÇÕES - COMPREENSÃO DO FENÔMENO

2. REAÇÕES EMOCIONAIS LIGADAS ÀS ALUCINAÇÕES

3. AS IMAGENS REAIS E ALGUMAS ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO

4. AS IMAGENS MENTAIS – IMAGENS NO PENSAMENTO

5. A PROJEÇÃO EXTERIOR DA ALUCINAÇÃO

6. OUTRAS CARACTERÍSTICAS DAS IMAGENS ALUCINATÓRIAS

7. CONVICÇÃO NA “REALIDADE” DA ALUCINAÇÃO

8. ALUCINAÇÕES E ILUSÕES – UMA DIFERENÇA IMPORTANTE

9. CLASSIFICAÇÃO DAS ALUCINAÇÕES POR SISTEMAS SENSORIAIS

10. PSEUDOALUCINAÇÕES

11. ETIOLOGIA E CONTEÚDO DAS ALUCINAÇÕES

12. INVESTIGAÇÃO CLÍNICA DAS ALUCINAÇÕES E O LIDAR COM A


PESSOA QUE ALUCINA

1. ALUCINAÇÕES – COMPREENSÃO DO FENÔMENO


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As alucinações podem ser entendidas como fenômenos semelhantes às percepções, em que a pessoa
vivencia no campo de sua consciência a presença de “imagens” (com características auditivas, visuais,
tácteis ou outras relativas à sensorialidade) experimentadas como verdadeiras percepções localizadas
fora de sua mente ou imaginação, quando na verdade não há nenhum objeto real presente. Na prática,
a pessoa ouve vozes ou sons precisos, vê imagens em sua frente, sente mãos lhe tocando ou outras
experiências com características próximas às da percepção que, por serem tão realistas, tende a
acreditar que tais “imagens” existem de fato, geralmente não aceitando que se trate de falsas
percepções.

Uma definição muito divulgada e criticada é a que diz ser a alucinação, uma “percepção sem objeto”.
Ela é simples e objetiva, transmitindo o que observamos quando estamos em contato com a pessoa
que alucina. Mas, tecnicamente, é incorreta, porque o conceito de percepção é inerente à presença
de objeto estímulo real, além da existência do sujeito que experimenta a presença desse objeto. Falar
em “percepção sem objeto” equivaleria a falar em “hemorragia sem sangue” ou “praticar ciclismo
sem bicicleta”... Fica um raciocínio ilógico. Mas achamos válido o sentido que a definição quer nos
transmitir, passando inclusive essa ilogicidade de raciocínio, como é ilógico, de certa forma, o
fenômeno da alucinação.

A experiência de estar junto e em contato com a pessoa que está verdadeiramente alucinando é estranha
e intrigante para aquele que deseja e tenta compreender o psiquismo humano. É, de certa forma, a
vivência de algo formalmente irracional. Um de nossos primeiros contatos com o sujeito que alucina, e
que já nos indicava esse aspecto ilógico do fenômeno, refere-se a uma situação ocorrida em hospital
psiquiátrico, quando uma paciente, há anos sofrendo de um quadro psicótico decorrente de uma
disfunção cerebral, nos apontava o canto de uma parede e referia estar vendo a imagem de uma santa
que surgia e descia do alto para o chão, lentamente e de forma bastante nítida, ao ponto de “perceber”
um sorriso na face da figura que ela “via”. Os olhos daquela mulher que alucinava se moviam
acompanhando a suposta “imagem”, de forma a parecer, para quem não estivesse olhando para o canto
de parede vazio, que algo realmente se mexia no sentido de cima para baixo.

Muitos outros pacientes com alucinações iríamos observar; e um aspecto que nos chamava atenção
era a reação emocional que eles apresentavam diante de tal experiência. Esse é um tópico importante
para quem tem, também, a intenção de compreender e ajudar, além de observar aquele que apresenta
sintomas de transtornos mentais.

2. REAÇÕES EMOCIONAIS LIGADAS ÀS ALUCINAÇÕES

Geralmente, as pessoas que alucinam sofrem com o fenômeno. Mas, via de regra, tal sofrimento não
é por achar que estão loucas ou pela consciência de estar vendo ou ouvindo coisas inexistentes, apesar
de que essas possibilidades não são tão difíceis de ocorrer. Assim, por exemplo, num serviço de
emergência psiquiátrica, um homem chorava demonstrando medo com o que poderia estar
acontecendo com ele, pois referia constantemente ouvir vozes e diversos outros sons que lhe
perturbavam (inclusive no momento daquele atendimento), dizendo, também, que todas as pessoas a
que ele indagava sobre tais vozes ou sons afirmavam não escutar nada daquilo. Nesse caso, era a
consciência de estar alucinando, a vivência do absurdo que se passava com ele que estava lhe
desesperando.

Mas, como dizíamos, comumente o sofrimento daquele que alucina não é pelo desespero de estar
ciente do estado psicopatológico. A irritação, o medo, a angústia ou outros sentimentos semelhantes
estão ligados ao conteúdo da alucinação e sua relação com o contexto de vida do indivíduo. Ele
geralmente não coloca em dúvida a existência real das “vozes” ou “imagens” que vivencia,
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acreditando que são verdadeiras. Todavia, lhe perturbam porque são “vizinhos que falam o tempo
todo” de sua vida, “pessoas na rua” que lhe acusam de ser homossexual ou fazem outros comentários
desagradáveis para ele, imagens de “cobras” ou outros “bichos” perigosos que “vê” ali em frente e
lhe ameaçam, “unhas que arranham” suas costas, não conseguindo se defender nem encontrar as
pessoas que lhe fazem isso. Um homem foi à polícia denunciar que desconhecidos iam, diariamente,
bater em sua porta e gritar “palavrões” para lhe perturbar, quando, na verdade tratava-se de
experiências alucinatórias; mas, era o “desrespeito” com ele e o “barulho” que as “pessoas” faziam
que estavam lhe proporcionando sofrimento (não via ninguém, mas ouvia vozes e batidas na porta –
as alucinações não eram visuais, mas auditivas).

Às vezes, podem acontecer ocorrências desastrosas ligadas às reações emocionais produzidas pelas
alucinações. O desespero por não suportar a presença das imagens e das “vozes”, em alguns casos,
pode levar à tentativa de suicídio. É possível haver agressão a pessoas que o paciente julga serem as
autoras dos insultos que ele “ouve”, embora agressividade seja algo que foi por demais associado, de
forma incorreta e exagerada, ao indivíduo possuidor de transtorno mental. Há, também, as
alucinações de vozes imperativas, que podem causar transtornos ao paciente e aos que com ele
convivem. São vozes que a pessoa “ouve” lhe ordenando que façam determinado ato, tendo um poder
de deixar o paciente com sentimento de impotência e passividade em relação a elas, muitas vezes
obedecendo a tais ordens. Assim, um homem empurra a televisão de sua casa derrubando-a ao chão,
afirmando que estava ouvindo constantemente “alguém” lhe mandando fazer o que fez - esse tipo de
alucinação será detalhado mais adiante.

Todavia, as alucinações podem produzir reações emocionais agradáveis. A mulher que dizia ver a
santa num canto da parede da sala sentia-se bem e até feliz porque fora escolhida para ser visitada por
aquela entidade celestial. Os momentos de surgimento das falsas percepções, no caso, eram instantes
de prazer. É o que vemos também em pacientes que referem ouvir “a voz” de Deus ou de personagens
importantes da vida política lhe elogiando.

Mas, podem também as alucinações, ao longo do tempo, levar quem as vivencia a reações de
indiferença e desprezo em relação a essas vivências. Uma mulher dizia que constantemente escutava
vozes comentando sobre as atitudes que ela tomava. “Lá vai atravessar a rua”, ouvia, quando de fato
o ia fazer. “Agora está pegando o ônibus”, “está indo comprar verduras na feira”, “chegou em casa e
está tomando banho” e assim por diante, sempre comentando as ações que ela estava a fazer ou iria
executar. Essa mulher contava que, no início de sua enfermidade, ficava muito agoniada com tais
“vozes”, todavia, com o tempo, passou a “não ligar” para a presença delas e, às vezes, até caçoava
das mesmas. Dizia por exemplo, em resposta às alucinações: “Não é de sua conta se vou tomar banho
ou não”, ou “Você é muito besta, só diz o que eu já estou fazendo...”

Aqueles que estão começando a aprofundar-se no estudo das alucinações, indagam, muitas vezes,
sobre como devemos lidar com a pessoa que alucina. Não há receitas prontas; a prática nos vai
fazendo saber o que falar ou como agir diante de tais pacientes, e o uso do bom senso, muitas vezes,
é a melhor maneira de lidar com tal situação. Mais adiante dedicaremos um tópico desse trabalho a
algumas reflexões sobre a questão. Por enquanto, é válido lembrar que, geralmente, nos momentos
mais agudos de um transtorno mental com alucinações proeminentes, não funciona insistir que
“aquilo” que a pessoa diz ver, ouvir ou sentir, não é verdade ou que se trata de produto de sua
imaginação e outros comentários desse tipo. Muitas vezes isso pode piorar seu estado emocional e
fazê-la sentir-se incompreendida, chamada de louca ou desconsiderada.

Antes de prosseguirmos com o estudo das alucinações, torna-se necessário tecermos algumas
considerações sobre o tema das imagens reais e imagens mentais presentes na experiência de todos
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nós. Vamos, também, abordar algumas importantes alterações da sensopercepção, mas que não
podem ser consideradas ou classificadas como alucinações.

3. AS IMAGENS REAIS E ALGUMAS ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO

Desde já, queremos esclarecer que o termo “imagem” não se refere, necessariamente, apenas ao
sentido visual, apesar de corriqueiramente associarmos essa palavra à visão de algo. Mas, podemos
nos referir, também, a imagens auditivas quando escutamos os sons de uma música ou voz real de
uma pessoa, ou imagens no campo da sensorialidade olfativa, como o cheiro de rosas que é percebido
por qualquer pessoa que delas se aproximem. A palavra imagem pode, então, ser usada para diversos
sistemas sensoriais.

O ser humano, então, apreende as diversas imagens reais captadas pelos órgãos dos sentidos, através
dos quais a mente entra em contato com o mundo exterior. Isso seria o que chamamos de percepção
- uma das funções psicofisiológicas existentes no homem. O termo sensopercepção talvez seja mais
exato, já que a percepção implica na existência do processo que a antecede, ou seja, a sensação.
Quando ouvimos um estímulo auditivo que nos chega aos ouvidos, isso ocorreu por um encadeamento
fisiológico através de fibras nervosas, onde as impressões captadas no mundo exterior vão até o
cérebro e nos faz tomar consciência que entramos em contato com um estímulo sensorial, processo
denominado de sensação. Mas, imediatamente, identificamos essa impressão como o som de uma
música, voz, um trovão ou outra percepção auditiva específica. A essa integração em nível cerebral-
psicológico, chamamos de percepção. Sensação e percepção comumente não são processos
vivenciados pela consciência como algo separado. Não posso dizer que “estou vivenciando uma
sensação de sons e depois vivencio a percepção de uma música que corresponde àqueles sons”. O que
vivencio é a sensopercepção de uma música. Em um mesmo raciocínio, não temos a sensação de um
estímulo visual que vem de um animal e em seguida a percepção visual daquilo que entendemos por
cachorro. É um processo único, sensoperceptivo: simplesmente vemos um cachorro, sensação e
percepção integradas. Em mais um exemplo, quando seguro um objeto, estímulos são captados pelas
terminações nervosas tácteis e, por vias específicas, recebo tais impressões no cérebro (sensação); de
imediato, ocorre o processo de decodificação e identifico o objeto como uma caneta ou um livro
através do tato (percepção). Na prática, tenho a experiência de “sensoperceber” uma caneta ou um
livro em minhas mãos. A divisão sensação-percepção é didática e serve para a compreensão de
mecanismos psicofisiológicos que se passam em frações de segundos, bem como nos faz entender
certos distúrbios da sensopercepção.

Ocorre que, em certas situações psicopatológicas, a sensação é experimentada de forma dissociada


da percepção. No fenômeno chamado agnosia, a pessoa pode, por exemplo, dizer que sente tocar em
diversos objetos que lhe chegam às mãos; todavia, mesmo segurando-os e experimentando sensações
detalhadas e múltiplas, não consegue perceber (identificar, decodificar) o objeto. Só olhando para o
que suas mãos seguram é que identifica que segurava um copo ou uma colher. É que, devido
comprometimento cerebral em áreas relacionadas ao tato, só está havendo a captação da sensação,
mas não a integração psicofisiológica da percepção. Esse fenômeno da agnosia pode ser entendido
como uma “sensação sem percepção”, encontrado em distúrbios psiconeurológicos, em que há
patologia organocerebral subjacente (acidente vascular cerebral, traumatismo craniano, doença de
Alzheimer, etc.). O exemplo dado aqui foi de agnosia táctil, a pessoa não percebia/identificava pelo
tato (função comprometida), mas percebeu/identificou pela visão (função não comprometida).
Todavia, pode haver também agnosias visuais, auditivas, as que envolvem mais de uma área sensorial,
etc. Uma pessoa com agnosia auditiva, por exemplo, diz ouvir sons e ruídos, mas não consegue
identificar neles o característico jorrar da água numa torneira aberta ou a sirene de uma ambulância,
ou ainda, praticamente não compreender as frases que lhe são faladas. É claro que o fenômeno da
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agnosia não pode ser considerado alucinação, já que a pessoa está sentindo um objeto verdadeiro, que
realmente existe; apenas não consegue identificá-lo perceptivamente.

Mas, falávamos de imagens reais sensoperceptivas, sejam visuais, auditivas, tácteis, ou


correspondentes a outros sentidos. Essas imagens reais são percebidas com clareza e nitidez mais ou
menos comuns aos indivíduos que as captam, com variações individuais dentro do campo da
eficiência das funções sensoperceptivas de cada um. Uma pessoa pode ter a capacidade auditiva ou
visual mais aguçada que outra, e isso, obviamente, não constituir nenhuma “alteração” ou “distúrbio”.
Todavia, já no campo do patológico, alguém que tenha problemas nos ouvidos ou nos olhos, por
exemplo, poderá perceber as imagens reais “borradas”, sem nitidez ou como se os sons estivessem
muito baixos. Comprometimentos orgânico-cerebrais podem também prejudicar a sensorialidade
táctil, olfativa ou outras, de acordo com a área cortical atingida. Mas, essa intensidade de percepção
diminuída pode ainda ter causas psicopatológicas. Na depressão profunda, várias pessoas referem que
veem as imagens descoloridas, “apagadas”, “sem brilho”. Também, em certos casos de traumas
psicológicos, pode-se ficar quase que praticamente sem enxergar (cegueira psicógena) ou com a
sensibilidade nas pernas bastante diminuída (comprometimento no sentido do tato, muitas vezes
associado à paralisia de origem psíquica). Por outro lado, alterações perceptivas inversas podem
ocorrer, ou seja, a intensidade dos objetos-estímulos parecer anormalmente elevada, incomodando e
até fazendo a pessoa sofrer. Isaías Paim (1982) cita o caso do paciente que, após ter sofrido ferimento
na cabeça, passou a ter frequentes momentos nos quais os sons corriqueiros (tique-taque do relógio
na mesa de cabeceira, ruídos de carros na rua) eram percebidos de forma bastante intensificada e até
como “ruídos estrondosos”. Uma pessoa que tenha ansiedade anormalmente exacerbada e constante
poderá referir que “vive com os nervos à flor da pele”, inclusive no sentido de ter a sensibilidade
táctil tão sensível que qualquer objeto que aperte um pouco alguma parte de seu corpo (colar, pulseira,
camisa justa) a faz ficar agoniada e sentindo os estímulos tácteis como que “pesando”, “irritando” ou
“ferindo” a pele.

Esses fenômenos não são alucinatórios, pois os objetos sensoriais existem na realidade, embora
percebidos com a intensidade significativamente menor ou maior do que na verdade é. Podem ser
classificados como alterações na intensidade da sensopercepção.

Outra alteração da sensopercepção estudada em psicopatologia é a chamada estranheza do percebido.


Para entendermos esse fenômeno, lembremos que estamos em constante relação com os objetos do
mundo que nos cerca, suas imagens fazem parte do cotidiano da vida, são o cenário de nossa existência,
sejam visuais, auditivas, tácteis, cheiros, sabores ou tudo que está contatando com nossa mente através
dos órgãos sensoriais. E vivenciamos isso com naturalidade. Embora a criança possa se espantar com
muitas imagens que lhe são novas, aos poucos vai absorvendo os objetos de seu dia a dia como algo
comum e natural. No fenômeno da “estranheza do percebido” essa vivência de naturalidade em relação
aos objetos corriqueiramente percebidos está comprometida, ou seja, constantemente o indivíduo
experimenta estranheza inexplicável ao olhar para as mãos, seu corpo, pessoas e outras imagens ao
redor (inclusive a sua própria, refletida no espelho) ou quando ouve sua voz ou demais estímulos
acústicos cotidianos. Isso pode ocorrer mediante o uso de certas drogas, em estados prolongados de
ansiedade, depressão ou mesmo como sintoma de esquizofrenia (associado a outros distúrbios dessa
doença). São várias as palavras e formas que o indivíduo utiliza para expressar a experiência de
estranheza do percebido, muitas vezes bastante angustiante. Pode dizer que acha os objetos “estranhos”
ou “diferentes”, não sabendo em quê; falar que eles lhe deixam “espantado”, não conseguindo explicar
essa vivência; referir “sensação de desligamento” em relação ao mundo; ou fazer outras tentativas de
comunicar tal experiência. Um aspecto de perplexidade mediante as imagens que o cercam é comum.
Todavia, a pessoa não perde a consciência crítica de que as percepções ao seu redor lhe são conhecidas
e que algo de estranho se passa é com ela. Como nos lembra Karl Jaspers, as pessoas que experimentam
tal fenômeno (1973, p.81) “Não pensam que o mundo realmente se transformou. Apenas se lhe afiguram
como se tudo fosse diferente”.
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Em exemplo dado por Honório Delgado (1969, p.37) , uma pessoa vivencia sua experiência com a
descrição:

Estou diante de um espelho... Pouco a pouco me interessa a imagem que se move sobre o
cristal, é de todo semelhante a mim, porém me vejo desligado dela como se não fosse eu.
Observo a cor da pele, aquela ruga da frente, e logo meu pensamento faz um inventário desse
sujeito pequeno que, agora, quieto, olha de maneira estranha, como que assustado, do fundo
do espelho... É um momento penoso. Logo falo em voz alta para romper o encanto: que
curioso, esse sou eu! [tradução nossa].

A estranheza do percebido não é uma alucinação, pois o sujeito não está vendo, ouvindo, percebendo
algo inexistente. A imagem do próprio corpo, de uma pessoa, de objetos outros, a voz de alguém,
existem de fato, são estímulos reais, apenas percebidos com a vivência de intensa estranheza.

Agnosias, alterações na intensidade dos estímulos percebidos (para mais ou para menos) e estranheza
do percebido são três alterações não alucinatórias da sensopercepção. Estamos trazendo-as para este
estudo com a finalidade de pontuar outros distúrbios dessa função psicofisiológica, bem como para,
estabelecendo as diferenças com as alucinações, ressaltar os limites e conceito dessas últimas.

PRINCIPAIS ALTERAÇÕES DA SENSOPERCEPÇÃO

 Agnosias

 Alterações na intensidade dos estímulos percebidos

 Estranheza do percebido.

 Pseudopercepções ou Falsas Percepções


(aqui se encontram as alucinações, juntamente com outros fenômenos similares que abordaremos
adiante).

Concluindo este tópico, é importante pontuar que as imagens reais têm determinadas características
básicas que inclusive nos são conhecidas através de nossas percepções do dia a dia: localização no
espaço objetivo-exterior, corporeidade, nitidez, constância (ou estabilidade) e independência da
vontade.

A imagem real, seja de qualquer sistema sensorial, é percebida com localização do espaço exterior
ou objetivo. Isso significa que quando vemos ou ouvimos algo, estamos percebendo o objeto no
espaço externo à nossa mente, situado no mundo exterior. Podemos, inclusive, até apontar o lugar de
onde vem o estímulo visual, auditivo ou de outra área da percepção. Percebemos a voz que escutamos
vinda de um rádio ou da pessoa que nos fala, os estrondos de fogos vêm do lado de fora da janela ou
de outro determinado espaço, a imagem de um cachorro está ali em nossa frente, o encosto da cadeira
é percebido situado bem atrás de nós e tocando em nossas costas.

As imagens reais têm corporeidade, ou seja, são percebidas como algo corpóreo, físico, com
dimensões, podendo, inclusive, nos conferir percepção de volume ou até de peso.

Também se considera que a nitidez é outra característica da imagem real, em que a percebemos com
contornos bem definidos e frescor sensorial. A imagem é clara, bem delimitada, podemos perceber
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brilho, timbre, aspereza, macieza. É possível identificar onde uma parte da imagem termina e outra
começa, quando, por exemplo, um som agudo se transforma em grave ou, diante de um objeto branco,
precisamos nele uma linha preta. Quando seguramos uma caneta, percebemos, com nitidez táctil, a
superfície lisa e comprida, mas pontiaguda numa extremidade, com locais de espessura diferentes e
outros detalhes. Graças à nitidez, identificamos também a passagem gradativa entre características
perceptivas, como quando um som em baixo volume vai paulatinamente se elevando.

A imagem real é algo constante. Enquanto estiver olhando a cadeira que está em minha frente e ali
permanece, a mesma continuará como imagem viva da percepção no campo da consciência. Ela não
se “evapora” ou se dissipa como as imagens que formamos em nossa mente. O som de um rádio, por
mais que nos incomode, permanecerá existindo enquanto o aparelho estiver ligado. A isso
denominamos de constância ou estabilidade, outra característica da imagem real.

Uma quinta característica é a não dependência da vontade, ou seja, por ter a imagem real existência
própria e no mundo exterior, independente de nosso querer, ela existe e a vontade não vai fazê-la
desaparecer enquanto nosso campo perceptivo estiver a englobando, sejam imagens visuais, sons,
objetos que nos tocam o corpo ou outros tipos de imagens da sensopercepção.

AS IMAGENS MENTAIS – IMAGENS NO PENSAMENTO

É relevante, para compreendermos o fenômeno das alucinações, que também teçamos comentários
sobre as chamadas imagens mentais, em contraposição às imagens reais que percebemos no mundo
exterior-objetivo. Porque se olho e vejo uma cadeira em minha frente, objeto que é percebido por
todos que para ele olhar, estou tendo a experiência duma imagem real, mas, se fecho os olhos e penso
naquele móvel, estou formando agora uma representação mental dele em minha mente. Dias depois
posso voltar a pensar na cadeira que achei interessante e, novamente, estou fazendo, naquele
momento, uma imagem mental, inclusive com o objeto real não estando mais por perto. Ouvir uma
música ou a voz de pessoa existente no mundo exterior é sensopercepção, mas “reproduzir”
mentalmente os detalhes da melodia ou da fala de alguém é fazer uma representação mental do que
anteriormente ouvi. Podemos, também, menos corriqueiramente, fazer imagens mentais tácteis,
olfativas e gustativas, quando, por exemplo, nosso pensamento se volta aguçadamente para as
lembranças de percepções vividas envolvendo essas áreas sensoriais; se bem que talvez a formação
destas imagens mentais não se faça tão clara e facilmente quanto às imagens mentais visuais e
auditivas.

Uma imagem mental pode ser uma representação de algo que foi anteriormente percebido em sua
totalidade, como nos exemplos das formações mentais da cadeira ou da fala de determinada pessoa,
mas pode ser uma construção fantástica, ou seja, criada pela imaginação. É o que ocorre quando
formamos em nossa mente a imagem de um paraíso, ser extraterrestre ou monstro que nunca vimos
em lugar algum, nem mesmo no cinema, televisão ou revista. Também podemos imaginar os detalhes
sonoros de uma melodia sendo cantada por uma menina de uns cinco anos de idade, quando na
verdade nunca ouvimos realmente essa música numa voz infantil. Mas, a imagem fantástica parece
ser, em sua gênese, resultado da composição de várias imagens mentais relativas a estímulos colhidos
pela percepção. O monstro que eu formo em minha mente, pode ser todo vermelho, ter três olhos,
aparência pastosa e soltar ruído de trovão. Mas, cor vermelha, olhos, consistência pastosa e som de
trovão são elementos que já percebi no mundo real e já fazia representações mentais deles.

As características básicas das imagens mentais são opostas às das imagens perceptivas: localização
no espaço subjetivo-interior, ausência de corporeidade, ausência de nitidez, inconstância e
dependência da vontade.
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Quando falamos em localização no espaço subjetivo-interior, estamos nos reportando ao fato de


que, ao pensarmos na imagem de uma pessoa conhecida ou nos acordes de uma melodia, vivenciamos
isso como algo mental, subjetivo, no campo do pensamento, sem que localizemos nenhum objeto-
estímulo no mundo externo a nós, nenhuma imagem “vinda de fora”, situada ao nosso lado ou à nossa
frente. A música existe na minha mente, diferentemente daquela que vem do aparelho de som ou de
qualquer outro ponto do mundo exterior.

O mesmo raciocínio é feito em relação à ausência de corporeidade das imagens mentais, pois estas,
ao contrário das percepções reais, não são vivenciadas como algo corpóreo, físico, que tem volume,
ou outros elementos de objeto estímulo real; vivenciamos a imagem mental como algo “etéreo”,
abstrato, sem presença física.

Uma imagem mental não tem nitidez, ou seja, contornos bem definidos, clareza sensorial, detalhes,
audibilidade. Há quem prefira dizer que a imagem mental teria pouca nitidez (ao invés de ausência
dessa qualidade). Seja como for, se há alguma nitidez nas imagens que construímos em nosso interior
mental, comumente esta não chega a ser comparável à nitidez duma imagem real.

A inconstância ou instabilidade duma imagem mental, em oposição à constância-estabilidade da


imagem real, é evidente no momento em que, ao estarmos pensando no rosto ou fala de alguém,
prontamente tais imagens de dissipam ou se modificam quando algum estímulo externo ou outro
pensamento entra em nossa consciência e faz desaparecer a “figuração” mental que formávamos. A
imagem mental é instável, dissipa-se, modifica-se; a imagem real é existência concreta.

Podemos comandar a formação das imagens mentais, as quais, por conseguinte, têm dependência da
vontade, característica oposta da que observamos na imagem real. Formamos a imagem daquele
castelo que vimos numa revista ou em um filme, mas logo em seguida modificamos as cores e alturas
de suas torres, bem como colocamos portas levadiças e um fosso em redor dele, detalhes que não
havia na imagem original. De pronto, não queremos mais pensar no castelo, pois nos motivamos a
formar a imagem de um cavaleiro medieval, talvez da mesma época do castelo agora extinto no nosso
jogo de imaginação. E logo relaxamos para nos deixar enlevar pela formação mental duma romântica
música brasileira, que não tem muito a ver com o castelo ou cavaleiro, já afastados da consciência
devido nossa vontade de “ouvir mentalmente” a melodia.

Essas características devem ser consideradas como uma regra geral, um esboço prático e válido acerca
das imagens mentais, mas não como algo sem exceções ou variações. As configurações produzidas
na mente podem ter, vez por outra, características um pouco diferentes das listadas acima. Por
exemplo, a chamada imagem eidética, apesar de ser uma construção mental, tem uma nitidez e riqueza
de detalhes bastante elevadas (pelo menos bem superiores às das formações mentais em geral). O
eidetismo, muitas vezes chamado de “memória fotográfica”, é aquele fenômeno em que a pessoa com
predisposição especial para o mesmo, pode dar uma rápida olhada em um quadro rico em detalhes,
fechar os olhos e, pensando agora na obra que foi vista, produzir uma configuração interior tão precisa
que é capaz de descrever minuciosamente as figuras e pormenores existentes no quadro, como se o
estivesse vendo novamente. Todavia, o indivíduo eidético sabe que a imagem por ele voluntariamente
produzida é uma formação mental, embora bastante nítida.

Outro exemplo em que uma daquelas características das configurações mentais não está tão presente
é a chamada imagem obsessiva. Apesar de ser uma formação em nossa mente, não conseguimos
controlá-la, ou seja, a dependência da vontade, elemento comum às imagens subjetivas, acha-se total
ou parcialmente ausente. Às vezes, aquela música que está o tempo todo em nosso pensamento,
continua “soando” sem que consigamos fazê-la desaparecer como as demais imagens mentais. Após
uma experiência traumática, a imagem duma dolorosa cena vivenciada pode continuar se impondo
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na consciência da pessoa que sofreu o trauma sem que ela consiga a afastar ou controlar seu
ressurgimento no campo mental.

Mas, apesar destas exceções, a regra geral é a presença daqueles cinco pontos especificados,
caracterizando a produção das imagens mentais, elementos que nos vão ser importante para o
entendimento das alucinações e fenômenos afins.

Resumindo o que foi dito, temos no quadro abaixo, as cinco características das imagens reais e
mentais, agora colocadas de forma comparativa.

IMAGEM REAL IMAGEM MENTAL


(SENSOPERCEPÇÃO) (REPRESENTAÇÃO MENTAL)

 Localização no espaço objetivo  Localização no espaço subjetivo


(dimensão exterior à mente) (dimensão interior à mente)
 Presença de corporeidade.  Ausência de corporeidade.
 Elevada nitidez.  Pouca nitidez.
 Estabilidade (constância).  Instabilidade (inconstância).
 Independência da vontade.  Dependência da vontade.

No que diz respeito às alucinações, conforme vimos, são “percepções sem objeto”, e em que pese às
críticas a tal conceito, ele nos lembra que a imagem alucinatória é, para a pessoa que alucina, algo
semelhante a uma percepção, ou seja, com as características bem próximas às de uma imagem real.
A frase de um paciente sujeito a alucinações visuais ilustra bem isso: num dado momento, com o
olhar voltado para o espaço exterior, dizia estar vendo ali uma cobra cinzenta, cuja presença lhe
perturbava; quando alguém quis lhe tranquilizar falando que a mesma era de sua imaginação, de
pronto contestou: “Eu não estou pensando em nenhuma cobra, eu estou vendo ela na minha frente”.

5. A PROJEÇÃO EXTERIOR DA ALUCINAÇÃO

Os psicopatólogos ressaltam que um elemento decisivo na determinação de uma alucinação é a


projeção exterior. Para que consideremos que ocorre uma alucinação, além da inexistência do objeto
estímulo, é necessário que a pessoa vivencie (veja, ouça, sinta) a presença de algo como que
localizado no mundo exterior (como uma percepção real), ou seja, a imagem alucinatória não é uma
experiência vivenciada como um pensamento ou imagem mental. Para quem alucina, ela surge
juntamente com as imagens reais, localizada no espaço da realidade, espaço exterior à nossa mente.
A pessoa refere esta experiência quer seja em relação a vozes, sons variados, imagens visuais, contato
táctil, cheiros, odores, que, para ela, vêm e estão em seu redor, na dimensão do mundo objetivo. É
claro que a alucinação é gerada em nosso psiquismo e a “matéria prima” para suas imagens é retirada
do número incontável de conteúdos que armazenamos na mente; todavia, no momento em que se dá
o fenômeno alucinatório esses conteúdos são vivenciados como que projetados para o mundo exterior
e “percebidos” não mais como construtos mentais, mas como imagens reais. Como a vivência de
localização no espaço exterior está intimamente ligada à corporeidade, é surpreendente como, na
alucinação, muitas vezes pode-se ter a experiência de presença corporal muito semelhante a que existe
nas imagens reais, ou seja, a pessoa alucina “percebendo” algo com dimensões, volume, presença
física.
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Às vezes, tal projeção exterior é até apontada e bem localizada em algum ponto determinado do
espaço circundante. Um alcoolista com delirium tremens (quadro de desorganização mental
produzido pelo álcool), ficava em cima da cama atemorizado com ratos e aranhas que ele afirmava
estarem “situados” (na vivência de percepção dele) no chão do quarto, próximo ao leito. Um paciente
esquizofrênico referia ouvir, constantemente, vozes lhe atormentando, vindas dos móveis da casa, de
tal forma que, abria gavetas, portinholas, armários e até quebrava partes deles para encontrar algum
“ponto de som” que poderia, segundo acreditava, estar instalado naqueles locais.

Da mesma forma, esse fenômeno da projeção exterior é observado em pacientes com outros tipos de
alucinações. A pessoa que tem alucinação olfativa pode referir, por exemplo, que está “sentindo”, no
mundo circundante, o forte odor de substância podre, podendo até perguntar se não tem nenhuma
comida estragada na cozinha, no refrigerador, no armário... Em um exemplo de alucinação táctil, o
indivíduo não vai comunicar que está lembrando-se ou tentando imaginar a mão de uma pessoa
tocando nele, mas vai dizer que está “sentindo mesmo”, em suas costas ou outra parte do corpo, mãos
que estão naquele momento, sobre sua pele, tocando-lhe, acariciando, arranhando, mesmo que ele
não veja ninguém. Pode até achar estranho não ver quem lhe toca (a alucinação não é visual), mas a
vivência de perceber estímulos tácteis é bem precisa e isso ele comunica como algo real.

6. OUTRAS CARACTERÍSTICAS DAS IMAGENS ALUCINATÓRIAS

Embora a projeção exterior – vivência do “perceber” as imagens alucinatórias como que situadas no
mundo objetivo – seja um elemento indispensável para afirmarmos que existe alucinação, na prática
podemos observar outras características presentes nessa alteração da sensopercepção, características
essas que podem variar em gradações, tendo elas um valor teórico e prático que justificam serem
pontuadas.

As alucinações têm, em algum grau, nitidez de imagem. Podem ser bastante nítidas, com a pessoa
identificando, por exemplo, se a voz alucinatória que ouve é de homem, mulher ou criança; às vezes,
até especificando ser ela de alguém conhecido ou não. Mas, podem surgir, apesar da projeção exterior,
como vozes pouco nítidas, com o paciente comunicando não entender a maioria das frases que dizem.
Uma coisa é aquela alucinação visual, clara, com a imagem de uma criança, santa ou animal
apresentando contornos e conteúdos bem definidos; outra é a de um vulto impreciso que, embora
“percebido” no espaço objetivo e com elevada frequência de aparecimento, não tem a nitidez do
exemplo anterior.

E aqui já estamos falando de outra característica com suas variantes em graus: a frequência com que
surgem as alucinações. Podem ocorrer quase todos os dias, diversas vezes em um mesmo dia, estarem
presentes quase que constantemente (inclusive no momento da entrevista de avaliação), todavia, por
outro lado, podem ter baixa frequência de surgimento, tendo ocorrido apenas algumas vezes em toda
a vida de uma pessoa.

A complexidade é outra característica que também pode variar em diversos graus, entendendo-se
isso pela riqueza de detalhes contida nas imagens alucinatórias. Uma alucinação visual pode
apresentar muitos pormenores, como diversas imagens de pessoas ou animais, cada uma com
aparência diferente, muitas cores, às vezes abrangendo todo o campo visual-alucinatório, que fica
então preenchido com inúmeros detalhes. Ao contrário, uma outra pessoa pode se restringir apenas
a “visão” de fios de nylon pendendo do teto ou pontos luminosos amarelados. A complexidade de
alucinações em forma de distintas vozes que dialogam entre si é diferente daquela em que se ouvem
apenas ruídos imprecisos.
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Nitidez, frequência e complexidade são, portanto, aspectos fenomenológicos que nos ajudam a avaliar
a dimensão duma alucinação em cada caso particular, bem como nos possibilitam uma maior
compreensão da vivência pela qual o paciente está passando, apesar de não terem, conforme já
dissemos, o “peso” da projeção exterior para determinação de uma experiência alucinatória.

Há, todavia, outra importante característica nas alucinações que, muitas vezes, é alvo de controvérsias
conceituais. Trata-se da convicção, certeza interior de que aquilo que se está “percebendo” é algo
real, e não criação alucinatória da mente.

7. A CONVICÇÃO NA “REALIDADE” DA ALUCINAÇÃO

Essa é uma questão sempre trazida quando se estuda as alucinações: a crença que a pessoa tem na
veracidade da imagem alucinatória, ou seja, a mente tende a aceitar tal imagem como se fosse algo
verdadeiro, acreditando estar tendo uma percepção real. E, na prática, com frequência, é isso que se
observa. No momento em que o indivíduo “percebe” vozes ou visões projetadas no mundo
circundante, como se fossem verdadeiros objetos-estímulos dotados de certa corporeidade, é
esperável que acredite naquilo que está vendo, ouvindo ou sentindo. A projeção exterior e a vivência
de corporeidade dão realismo à imagem alucinatória, fazendo-a bem semelhante à imagem real.
Reforçando isto, as alucinações são dotadas, muitas vezes, de elevada nitidez, independem da vontade
para seu aparecimento e têm estabilidade, o que as aproxima ainda mais das imagens
sensoperceptivas.

Certa feita, uma pessoa com distúrbios mentais, já fora de uma crise aguda, falando acerca do porquê
acreditava nas alucinações como se fossem algo verdadeiro nos momentos do auge do quadro
psicótico, expressou-se mais ou menos com essas palavras, dirigindo-se ao seu terapeuta: “Se o
senhor está com uma pessoa em sua frente e eu chegar e disser que não existe ninguém ali, e que está
é falando sozinho, não vai acreditar no que estou dizendo, não é? Porque o senhor está vendo que
tem uma pessoa ao seu lado, ou está ouvindo de verdade alguém falando... Como vou achar que não
tem ninguém junto a mim, se estou vendo ou ouvindo, mesmo?”. Já nos referimos a outros exemplos
que mostram esse “realismo” das imagens alucinatórias.

Mas não parece ser apenas o fato das características da alucinação estarem bem próximas da imagem
real que explicaria essa crença na “veracidade” do fenômeno. É que a estrutura do Ego da pessoa no
estado psicótico está desorganizada, debilitada como um todo, daí ela geralmente apresentar também
outros sintomas, indicando que não é só a sensopercepção que está comprometida, mas também outras
funções que formam o conjunto psíquico. A capacidade de ajuizar a realidade, o senso crítico, o
processo do pensamento, a lógica racional interior, a vivência das emoções, ficam funcionalmente
desestruturadas com o processo da doença mental grave. Alguns pacientes chegam a acreditar mais
em suas alucinações que nas imagens reais concomitantes. Dão argumentos irracionais para explicar
a “veracidade” das imagens alucinatórias. As vozes vêm do chão ou das pedras porque existem
pessoas ali enterradas ou escondidas. Vêm-se imagens que ninguém percebe por se possuir algo
especial implantado no olho que permite ver “coisas” invisíveis para todo mundo. Os familiares e
vizinhos estão mentindo ao dizer que nada vêm ou ouvem no intuito de perturbar o paciente.

Enfim, o realismo das imagens alucinatórias em si, em consequência e juntamente com a


desorganização das funções psíquicas do psicótico, são fatores que parecem explicar, pelo menos em
parte, a crença convicta de que as alucinações são percepções verdadeiras.

Todavia, há alguns casos em a pessoa que alucina apresenta senso crítico acerca do fenômeno, ou
seja, apesar de haver projeção exterior e corporeidade no que vê, ouve ou sente, ela reconhece e aceita
a natureza alucinatória e irreal da vivência. Assim, alguns esquizofrênicos que já têm consciência de
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sua condição mórbida, podem admitir estar alucinando e “ouvir vozes” que as outras pessoas não
referem perceber. Em certos casos de psicose alcoólica, o paciente mostra-se bastante ansioso ao
referir que vê imagens aterrorizantes em sua frente ou ouve vozes bem projetadas no exterior,
reconhecendo, todavia, serem produtos de sua imaginação. Pessoas sob efeito de drogas
alucinógenas, como a dietilamida do ácido lisérgico (LSD), podem referir “perceber” nítidas imagens
no mundo circundante e ter consciência que está alucinando. Um jovem que fazia uso freqüente de
maconha, dizia sentir prazer com as alucinações cinestésicas (ligadas aos movimentos do corpo),
pois, quando fumava a droga, fechando os olhos, sentia-se claramente leve como uma pluma,
pairando no ar, levitando e com movimentos no espaço, mas sabendo da natureza alucinatória da
vivência.

Sobre essa questão, Vallejo-Nagera (1970, p.72) se expressa e exemplifica:

Independentemente da intensidade e inclusive corporeidade da alucinação, o sujeito pode


estar consciente do caráter alucinatório do percebido. Ouve as vozes ou vê as imagens com
sensação total de realidade, porém sabe que são alucinações e assim o expressa. Essa
situação é frequente nas intoxicações experimentais com as chamadas drogas alucinógenas
(produtoras de alucinações, das quais as principais são a dietilamida do ácido lisérgico,
mescalina e opuntia cilíndrica), e tem certa semelhança com o que às vezes ocorre em
sonhos, em que o conteúdo onírico se vive com certa consciência de que se está sonhando.
Para aclarar esse ponto é muito demonstrativo um caso publicado de intoxicação
experimental com os alcaloides da opuntia. O sujeito do experimento é um estudante de
medicina que, uma vez administrada a droga, assiste a uma aula na faculdade. Durante a
aula começa o efeito alucinógeno, e vê com toda a clareza, no espaço da sala que está entre
a mesa do professor e as primeiras cadeiras, uma velha, com aparência de bruxa de conto
infantil, que faz uma fogueira sobre o solo da classe. O intoxicado vê a velha e a fogueira
com a mesma clareza que o professor e seus companheiros (a alucinação tem
“corporeidade”); estranha a sua presença, e contemplando a seus colegas e refletindo
sobre o fato de que nenhum deles, nem tampouco o professor, dão mostras de notar a
presença da velha, “compreende” que esta é puramente alucinatória, assim como a fogueira
[tradução nossa].

Ressaltamos, todavia, que esses exemplos não são a regra, mas exceções. No momento em que a
alucinação surge com características semelhantes às das configurações sensoperceptivas reais,
fazendo a pessoa que alucina “perceber” vozes, formações visuais, sensações táctil ou outras variantes
de imagens com um realismo bem próximo às percepções verdadeiras, havendo também
comprometimento da estrutura do Ego devido processo psicótico, a tendência é que ela acredite que
tais imagens sejam reais, e não produtos de sua mente.

Essa crença na veracidade das alucinações, da parte de quem as vivencia, é um elemento tão forte e
presente na prática clínica que muitos autores colocam esse item – crença interior de realidade – como
uma característica essencial para o diagnóstico de alucinações. Preferem chamar de alucinose àquela
variação de alucinação em que a pessoa tem consciência crítica de que o fenômeno não é verdadeiro,
mas uma falsa percepção.

O termo alucinose, todavia, é controverso porque, atualmente, pode ter outros sentidos dentro das
modernas classificações psiquiátricas e prestar-se a confusão de conceitos. Preferimos manter a
expressão alucinações, de forma genérica, pontuando a presença de senso crítico quando este ocorrer,
apesar da existência de projeção exterior/corporeidade.

A perda do senso crítico e consequente crença na veracidade da falsa percepção, inclusive, não é um
elemento decisivo na diferenciação da alucinação para com outras alterações da sensopercepção.
Veremos, a seguir, que nas chamadas ilusões perceptivas, a pessoa pode, pelo menos
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momentaneamente, acreditar na veracidade do conteúdo da falsa percepção que está tendo. No


fenômeno da pseudoalucinação, estudado mais adiante, também pode estar presente essa crença de
realidade no que é visto ou ouvido.

8. ALUCINAÇÕES E ILUSÕES – UMA DIFERENÇA IMPORTANTE

Alguém pode relatar que estava só, em casa, quando, no final da tarde, ao entrar no quarto, assustou-
se ao ver um homem ali sentado; mas, ao acender a luz, quebrando a penumbra, percebeu o engano
perceptivo, pois havia na cadeira um casaco com capuz que foi confundido com a figura de uma
pessoa. Isso pode ser considerado uma alucinação? Não, pois há a presença de um objeto real que
apenas foi alterado, deformado e percebido como uma outra coisa.

A alucinação, como vimos, é “percepção sem objeto”, enquanto aqui, no fenômeno que vamos
chamar de ilusão perceptiva, havia o casaco que foi “visto” como se fosse um homem. Na
alucinação, a pessoa vê, ouve, sente-se tocada sem que haja nenhum objeto sendo “deformado”,
confundido com outro. Na ilusão perceptiva a pessoa distorce um objeto real, que existe, está
presente, “trocando-o” por outro. Ilusão é “deformação” de imagem real e presente; alucinação é
“criação” de imagem onde não há nenhum objeto.

Ver a imagem de uma santa, quando na verdade o que há, num canto da sala, é uma planta em local
pouco iluminado que confunde nossos sentidos, é ter ilusão perceptiva. Ao invés da percepção correta
(a planta) vejo no lugar dela “outra coisa” (a santa). A imagem real foi apenas “deformada”.
Alucinação seria perceber a figura da santa sem nenhum objeto que estivesse sendo confundindo com
ela. O fenômeno da ilusão pode se dar em outras áreas sensoriais, além da visual. Ouvir algumas
vozes à noite, quando na verdade ocorreu o barulho de animais na rua, é ilusão auditiva.

As ilusões são alterações da percepção, mas têm um valor e significado psicopatológico diferente das
alucinações. Qualquer pessoa já experimentou esse erro sensorial, seja por conta da tensão
emocional, falta de atenção ou ambiente propício às ilusões. Podemos reconhecer, num grupo de
passageiros que desembarcam de um avião, uma pessoa que estamos ansiosamente esperando, mas,
quando nos aproximamos constatamos que ali não se encontra quem aguardávamos, e sim, outro
rosto, na verdade desconhecido para nós. Também, por falta de atenção, podemos, na leitura de um
documento, trocar uma palavra por outra e nos surpreender quando constatamos o engano. Às vezes,
ouvimos alguém chamar nosso nome e, no entanto, não percebemos que na verdade o barulho do
trânsito ou outro ruído qualquer nos provocou essa distorção auditiva. São vários os exemplos de
ilusões que ocorrem na nossa vida cotidiana.

Na verdade, as ilusões, exceto quando são muito frequentes e aberrantes, comumente não têm o peso
indicativo de comprometimento mental que as alucinações verdadeiras podem ter. Nossos sentidos
não são perfeitos, à prova de “enganos”, e então podemos confundir estímulos percebidos e
“trocarmos” um objeto real por uma imagem ilusória. É interessante notar que, no momento em que
estamos tendo uma ilusão perceptiva, geralmente não temos consciência crítica que estamos
deformando a percepção. Quando a pessoa “vê” alguém sentado na cadeira de seu quarto, se assusta
e pode até fazer menção de correr, ou seja, naquele instante, está achando que a imagem de um homem
ali é real, verdadeira. Ao acender a luz ou prestar mais atenção à cadeira, constata tratar-se apenas de
um casaco. Quando vemos a pessoa conhecida no grupo de passageiros recém-chegados, nos
dirigimos a ela para abraçá-la, pois acreditamos que a estamos vendo. Com a aproximação e
raciocínio é que nos conscientizamos do engano sensorial.

Mas, mesmo posteriormente, nem sempre tomamos consciência que tivemos uma ilusão. Por
exemplo, vamos supor que uma mulher vá andando, à noite, numa rua escura, estando muito temerosa
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de assalto. Percebe então, do outro lado da calçada, um homem armado movimentando-se em sua
direção, quando entende que se trata de um assaltante, e logo corre desesperadamente para sua casa.
Essa mulher ficará acreditando que ia sendo assaltada, contará às pessoas como o fato ocorreu, poderá,
inclusive, durante toda a vida, considerar que escapara da experiência desagradável de um assalto e
que havia mesmo um homem na rua escura, sem nunca poder ter a consciência de que, naquela noite,
na verdade, o que havia no lugar do pretenso ladrão era um arbusto balançado pelo vento.

Há, todavia, um tipo de ilusão perceptiva em que, mesmo no momento do fenômeno, estamos
conscientes da deformação. Podemos até autoprovocá-la. São as chamadas ilusões pareidólicas ou
pareidolias. O exemplo clássico é aquele que pode ocorrer quando olhamos as nuvens no céu.
Sabemos que são nuvens, mas vemos também, nessas nuvens, nítidas imagens de carneiros, outros
animais ou figuras. Às vezes nos surpreendemos com a nitidez da imagem que estamos vendo ali sob
o azul do céu e, até achamos estranho que outra pessoa ao nosso lado não esteja a “percebendo”. É
o que se passa também quando olhamos manchas de tinta desbotadas numa parede e reconhecemos o
desenho de rostos. O Rorschach é um teste projetivo que utiliza também o fenômeno da pareidolia:
uma série de lâminas-manchas é mostrada a pessoa que está se submetendo a tal teste, pedindo-se
para que deixe a imaginação fluir e diga o que está vendo nelas. É interessante como, mediante tais
manchas, cada indivíduo pode “sobrepor” conteúdos diferentes. No contato com uma mesma lâmina,
por exemplo, uma pessoa pode perceber um gigante, outra um leão, uma terceira encontra a imagem
de uma torre. Comumente estão conscientes e sabem que vêm manchas, mas, percebem também
“outra coisa” no lugar delas, no caso, as figuras referidas.

Vejamos um trecho do clássico “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann (2000, p. 851), onde o autor
descreve um exemplo de pareidolia auditiva:

Numa curva descortinava-se o panorama do desfiladeiro penhascoso que se abria no meio do


bosque e era atravessado por uma ponte. No seu fundo caia a catarata. No momento em que
os excursionistas depararam com ela, chegavam ao auge os efeitos acústicos. Era um barulho
infernal. A massa d’água precipitava-se verticalmente, num único salto, de sete ou oito metros
de extensão e de considerável largura, e em seguida se lançava, branca, por sobre os
rochedos. Sua queda produzia um estrépito medonho, no qual pareciam mesclar-se todos os
tipos de ruídos e de tonalidades possíveis, trovões e silvos, bramidos, berros, fanfarras,
estouros, estalidos, ribombos e badaladas de sinos. Realmente, aquilo era capaz de aturdir
os sentidos. Os visitantes tinham-se adiantado muito sobre as rochas escorregadias, para
chegar bem perto. Açoitados e salpicados por um sopro úmido, envoltos no vapor d’água,
com os ouvidos abarrotados e obstruídos pelo fragor, trocavam olhares e sacudiam a cabeça,
sorrindo timidamente, ao contemplarem esse espetáculo, essa catástrofe contínua, formada
de espuma e de alarido, cujo marulhar insensato e excessivo os estonteava, lhes causava medo
e provocava ilusões acústicas. Tinham a impressão de ouvir de trás, de cima, de todos os
lados, gritos de ameaça ou de advertência, clarinadas ou vozes rudes de homens.

Todavia, conforme foi dito, embora as ilusões perceptivas comumente não tenham o peso indicativo
de desorganização mental que as alucinações frequentemente têm, elas podem ter significado
psicopatológico, caso sejam muito frequentes e aberrantes dentro do contexto de surgimento. Porque,
uma coisa é se experimentar a distorção ilusória algumas vezes, outra é estar tendo o fenômeno de
forma constante. Um homem pode mostrar-se frequentemente atemorizado com os rostos
ameaçadores que ele sempre vê no lugar das manchas de tinta desbotada nos muros de sua casa.
Também é diferente se a distorção é muito aberrante dentro de um contexto, ou seja, ao invés de se
trocar a imagem de um casaco pela de um homem no ambiente de penumbra e solidão do quarto, ver
a figura de um animal feroz no lugar de um banco de praça, quando este está claramente iluminado
pela luz do dia. Um paciente referia ouvir gente falando mal dele, mas seus familiares contavam que
era quando um cachorro do vizinho latia que ele queixava-se que as pessoas estavam lhe difamando;
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em seu estado de desequilíbrio psíquico, não percebia os notórios latidos, mas, no lugar dessa
percepção real, escutava com clareza vozes que lhe perturbavam.

Existe, na literatura, um exemplo de ilusão que pode ser considerada tão patológica quanto uma
alucinação, devido à aberração no contexto do fenômeno e, provavelmente, a frequência de
aparecimento da distorção perceptiva. Trata-se da conhecida história de D. Quixote de La Mancha,
do escritor espanhol Miguel de Cervantes, romance já trazido várias vezes para o teatro e cinema. A
narrativa é sobre um ancião do século XVII que resolve sair pelo mundo a fim de ter aventuras e lutar
em favor dos fracos e oprimidos, acreditando ser corajoso cavaleiro da justiça. Arranja um velho
cavalo, recruta um homem para acompanhá-lo pelas suas andanças e diz que o mesmo será seu fiel
escudeiro e ajudante, chamado Sancho Pança. Num dado momento da história, D.Quixote diz ver,
em plena luz do dia, um gigante em sua frente o desafiando para a luta. Não adianta o pobre Sancho
Pança lhe alertar que não há gigante, mas apenas um moinho de vento adiante, pois seu senhor
continua insistindo que vê o inimigo movendo os braços. E então, lançando-se para a luta do alto de
seu cavalo, é jogado ao chão pelos braços do moinho movidos pelo vento. Mais adiante, D.Quixote
diz avistar um exército de soldados, quando na verdade o que existe é uma fileira de carneiros. E por
ai vai o herói da história “vendo coisas” inexistentes, tendo, todavia, não propriamente alucinações,
mas ilusões da percepção.

9. CLASSIFICAÇÃO DAS ALUCINAÇÕES POR SISTEMAS SENSORIAIS

1) ALUCINAÇÕES VISUAIS

As alucinações visuais podem ser simples, chamadas fotopsias, em que a pessoa refere ver manchas,
faíscas, clarões, fios imprecisos ou outras imagens com pouca complexidade, como em certos casos
de epilepsia, traumatismo craniano ou mesmo em algumas crises de enxaqueca. E era durante as
agudizações dessa enfermidade que uma mulher referia ver nítidos pontos luminosos ao seu lado,
próximos a região dolorida da cabeça em que as crises se manifestavam.

Mas, as alucinações visuais podem ser complexas, às vezes com bastante riqueza de detalhes, sendo
essas as que têm maior importância em psicopatologia. Há aquelas em que o paciente “vê” imagens
de pessoas. Essas podem ser desconhecidas, muitas vezes com aspecto ameaçador. Mas podem ser
de alguém que se conhece pessoalmente (parentes, amigos) ou personagens conhecidos por jornais,
televisão, fotos, gravuras. Assim, um paciente dizia ver uma popular apresentadora de televisão surgir
em sua frente e insinuar-se sexualmente para ele. Às vezes as imagens alucinatórias são de rostos
aterrorizando a pessoa que alucina.

Há também as alucinações chamadas zoopsias, em que a imagem alucinatória assume formas de


animais, geralmente rasteiros, perigosos ou asquerosos. Na psicose alcóolica, tal tipo de alucinação
é muito comum, não havendo uma explicação plausível do porquê ela costuma surgir nesse tipo de
doença. O paciente olha para algum ponto do espaço circundante e, muitas vezes demonstrando
inquietação e temor, refere estar vendo cobras, ratos, baratas ou outras imagens deste tipo. Mas outros
animais podem ser “vistos”. Um paciente em delirium tremens (psicose aguda devido ao uso contínuo
do álcool) “mostrava” insistentemente, ao seu lado, a “presença” de um cachorro.

Um tipo curioso de alucinação são as alucinações autoscópicas (ou autoscopia), em que a pessoa
“vê” em sua frente, não outra imagem senão a dele mesmo. Seria mais ou menos como se auto-
observar frente a um espelho, só que sem a presença do espelho... Essa alucinação é também chamada
“visão do duplo”, ou seja, a imagem da própria pessoa, projetada no mundo exterior. É clássico o
exemplo do escritor francês Guy de Maupassant, que sofria de paralisia geral e via a imagem de si
mesmo entrando pela porta de seus aposentos, postando-se em frente a ele. Uma pessoa em estado
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febril ou muito debilitada por alguma doença ou outra condição física crítica, pode alucinar vendo a
imagem dela própria se separando ou saindo de seu corpo, ou mesmo ver-se deitada na cama,
caminhando ou fazendo alguma outra atividade. Goethe, escritor alemão, relata em seus escritos que,
numa ocasião, viu a imagem dele mesmo, cavalgando. Longe de querer questionar as crenças
religiosas e transcendentais de algumas pessoas, é possível que muitos relatos ligados à experiência
do “espírito saindo do corpo”, acompanhada da “visão” de si própria, sejam, na verdade, este
fenômeno da autoscopia.

Outra modalidade de alucinação visual é a chamada alucinação liliputiana, em que o indivíduo vê


pessoas, animais ou outras figuras, mas, com a particularidade de serem em tamanho diminuto,
imagens minúsculas, vistas isoladas ou por entre os objetos e pessoas reais que cercam o indivíduo
que alucina. O termo vem de Lilliput, país imaginário do conto infantil sobre as viagens de Guliver,
uma civilização miniaturizada, onde os personagens mediam apenas algumas polegadas de altura.
Tais alucinações liliputianas, podem, às vezes, ser encontradas nas psicoses produzidas por tóxicos,
como a cocaína, por exemplo.

As chamadas alucinações extracampinas constituem uma modalidade discutida dessas alterações


sensoperceptivas que estamos estudando. A princípio, tratar-se-iam de “visões” que a pessoa teria
fora do alcance natural do campo sensorial. Assim, pacientes referem “ver”, de forma clara e
externamente projetada, um homem gesticulando atrás de si, uma cruz aparecer e desaparecer do lado
de fora de seu quarto, ou aranhas negras dentro duma gaveta fechada. A ênfase dada por parte dos
pacientes, de ser uma experiência de caráter sensoperceptivo, fez com que tal fenômeno fosse
considerado alucinação. Mas é uma modalidade que pode ser questionada se seria realmente uma
vivência alucinatória ou apenas crença na existência de objetos (nos exemplos, um homem
gesticulando, a cruz, as aranhas), ou seja, cairia mais no conceito de ideia delirante. Mesmo
admitindo-se a existência da modalidade de alucinações extracampinas, nem sempre será fácil
distingui-las das experiências delirantes, fenômeno que se passa no campo do pensamento.

As alucinações visuais não são comuns na esquizofrenia, mas encontradas com frequência nas
intoxicações por certas drogas (LSD, mescalina, cocaína) ou quadros psicóticos devido ao uso
contínuo delas (inclusive o álcool). Enfermidades com comprometimento cerebral bem estabelecido
(epilepsia, tumores cerebrais, traumatismos cranianos) podem também originar alucinações visuais.

2) ALUCINAÇÕES AUDITIVAS

De uma maneira geral podem também ser classificadas em elementares, simples, com pouca
complexidade (ruídos imprecisos, zumbidos, estalidos, sons que lembram campainhas) ou
complexas, com um grau maior de diferenciação e elaboração. Essas últimas podem ser “percebidas”
como melodias, sons metálicos de correntes entrechocando-se e sendo arrastadas, nítidos latidos de
cães. Um paciente dizia não suportar as persistentes músicas, em alto som, que ele ouvia com toda
clareza e projeção exterior, perturbando-lhe o sono e seu dia a dia; inclusive durante o atendimento
de avaliação chegou a referir que em alguns momentos elas se faziam presentes, atrapalhando a
conversação.

Entre essas alucinações auditivas de maior complexidade, destacam-se as de vozes, também


chamadas, alucinações acústico-verbais. Aqui o indivíduo refere ouvir “alguém” falando, muitas
vezes com bastante nitidez. Pode ser de uma só “pessoa”, mas há referências a várias falas
simultâneas. Seja uma ou mais “vozes”, elas podem elogiar, criticar, comentar comportamentos do
paciente, insultar, dar ordens, entre outras formas de conteúdo. Todavia essas alucinações podem
não ser tão claras, mas pouco nítidas, como a “percepção” de vozes confusas e imprecisas que vêm
do chão ou de uma parede, por exemplo, ou murmúrios e cochichos ininteligíveis ao lado do ouvido
da pessoa.
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Como são alucinações, tais “vozes” são vivenciadas com a localização no espaço exterior-objetivo e
não como se fossem imagens mentais ou persistente pensamento. Um paciente apontava para um
rádio de onde dizia que vinham comentários vergonhosos e mentirosos dirigidos a ele, e não
acreditava quando se lhe dizia que o aparelho estava desligado e até com o fio fora da tomada. Nesse
último exemplo se destaca mais uma vez a convicção que quase sempre os pacientes apresentam em
relação à “veracidade” do fenômeno, ou seja, o acreditar que aquelas vozes existem mesmo, apesar
de toda argumentação lógica contrária e a absurdidade de seu raciocínio.

Às vezes, os pacientes não só creem que as “vozes” são reais, como também ficam submissos à
orientação ou ordens que elas possam lhe dar. Temos, então, o que é chamado de alucinações de
vozes imperativas. Uma mulher referia ouvir “pessoas” lhe mandando ficar quieta, parada num
canto, não conversar, e todo um conjunto de ordens que faziam com que seu comportamento fosse de
uma pessoa isolada e quase sem comunicação com os outros. Um adolescente em surto psicótico,
após quebrar um copo jogando-o ao chão, explicou que, há vários minutos, vinha ouvindo vozes lhe
mandando fazer isso; a princípio, tentou reagir, mas compreendeu que elas não lhe deixariam em paz
se não executasse o que mandavam. Embora os pacientes nem sempre executem as ordens dessas
alucinações ouvidas de forma imperativa, na maioria dos casos tendem a obedecê-las, sem ficar em
dúvida quanto à execução da ação nem tentar reagir aos mandatos. Assim, um paciente tentou explicar
o porquê cedia a tais “vozes” imperativas dizendo que se sentia como uma criança submissa
recebendo ordens de um pai autoritário. Em linguagem psicodinâmica, isso poderia ser traduzido
como um ego fragilizado recebendo ordens de um id ou superego opressivo. Porque, não esqueçamos
que a produção das alucinações vem de nossa mente, seja do consciente ou inconsciente, e somos nós
mesmo que, no caso das alucinações imperativas, damos as ordens que são vivenciadas como que
vindas “de fora”.

Uma modalidade de alucinação auditiva que mostra a vinculação do fenômeno alucinatório com
nosso processo de pensar é a chamada “sonorização do pensamento” ou “eco do pensamento”.
Aqui, a pessoa refere ouvir uma voz falando o que acabara de pensar ou o que vai sendo pensado
naquele momento. Por exemplo, um paciente refletiria mentalmente: “amanhã vou receber visita” ou
“o que o médico vai me perguntar?” e logo em seguida ou simultaneamente a estas frases pensadas,
“ouviria” uma voz “pronunciando” as mesmas palavras. Muitas vezes a presença da sonorização do
pensamento nos é comunicada de forma indireta; por exemplo, um paciente pode dizer que quando
escreve ou lê algo, ouve uma voz repetindo o que está escrevendo ou lendo.

Há, também, as alucinações de vozes que acompanham as ações do paciente. Já citamos aquele
exemplo da mulher que constantemente ouvia vozes falando sobre as atitudes que ela tomava: “Lá
vai atravessar a rua”, “Agora está pegando o ônibus”, “Está indo comprar verduras na feira” e frases
desse tipo.

As alucinações de vozes dialogantes, como o nome já indica, são aquelas em que a pessoa vivencia
a audição de duas ou mais “vozes” que falam entre si, frequentemente se referindo ao paciente,
comentando sobre ele e colocando-o, quase sempre, direta ou indiretamente, como o assunto central
do “diálogo”.

Ressalte-se que o termo alucinação de vozes dialogantes não é a mesma coisa que diálogo
alucinatório. Este se trata do fenômeno em que a pessoa fica falando sozinha, mas acreditando estar
“conversando”, “dialogando” com a voz que ele ouve (diálogo com a alucinação). Às vezes, durante
entrevista com a pessoa que alucina, observamos que ela se porta como se estivesse falando com
alguém ao seu lado, fazendo pausas próprias duma conversação e demonstrando “escutar” um
“alguém” com quem “dialoga”. O “falar sozinho” (solilóquio), tratando-se de uma pessoa psicótica,
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pode indicar atividade alucinatória, mas tal conclusão só deverá ser estabelecida após avaliação global
do caso.

Aproveitemos esse contexto para ressaltar a questão da relatividade de um comportamento específico


como indicador de patologia. Falar sozinho, obviamente, não é por si só, indicativo de alucinação ou
outro distúrbio mental. Algumas pessoas, estando a sós em casa ou mesmo caminhando na rua, podem
fazer devaneios ou estar raciocinando e falar sem notar; talvez estejam “desabafando” algo para si
próprio ou simplesmente tenham o hábito de “pensar em voz alta” e isso não deve ser visto, é claro,
como um sintoma psicopatológico. Estamos fazendo essa ressalva a fim de lembrar o cuidado que
devemos ter para não ficarmos precipitadamente vendo “distúrbios” nas pessoas com quem
contatamos ou acharmos que comportamentos diferentes do comum já indicam perturbações mentais.

Voltando às alucinações de vozes dialogantes, vejamos um exemplo que nos mostra tal distúrbio
numa pessoa com quadro psicótico alucinatório (ÜSTUN, 1998, p. 59-60):

A Sra. Nicolet foi trazida ao setor de emergência por seu médico da família, que explicou ter
tentado durante anos convencê-la a ver um psiquiatra. Desta vez ele queria ter certeza de que
sua paciente seria hospitalizada e que receberia finalmente o tratamento adequado. A Sra.
Nicolet lhe telefonara no meio da noite queixando-se de que a situação havia se tornado
incontrolável, que “elas” estavam realmente se comportando muito mal agora, e alguma coisa
tinha que ser feito para pôr um fim naquilo. “Elas” estavam usando algum tipo de raio
invisível, rindo todo o tempo e fazendo comentários obscenos, enquanto davam choques
elétricos em sua genitália e tentavam excitá-la sexualmente.

O médico de família da Sra. Nicolet explicou que nos últimos três anos sua paciente vinha
ouvindo vozes quase que continuamente, mas até agora ela tinha se recusado obstinadamente
a tomar qualquer droga ou ver um especialista.

Sobre o início das alucinações na paciente, o texto nos relata:

Ela percebeu um dia que duas vozes em sua cabeça estavam comentando sobre o que estava
fazendo. Ficou muito aborrecida com isso a princípio, concluindo que aquilo obviamente
tinha a ver com a antena parabólica que seus vizinhos haviam recentemente instalado perto
de sua janela.

O relato nos dá mais detalhes acerca das alucinações da Sra. Nicolet:

A Sra. Nicolet estava orientada em relação a tempo, lugar e pessoa. Ela ficava irritada com
as vozes, dizendo-lhes de tempos em tempos: “por favor, parem agora”, mas ela falava de
forma perfeitamente coerente. [...] geralmente [as vozes] limitavam-se a comentar seus
pensamentos e ações, ou falavam sobre ela entre si. Às vezes elas lhe davam conselhos ou até
instruções ou colocavam pensamentos em sua mente que sabia não serem seus. Entretanto,
visto que na maior parte do tempo tais instruções eram bastante sensatas, ela não fazia
objeções a isso. Em algumas ocasiões, as vozes foram desagradáveis, e ela teve que lhes
chamar atenção.

Vemos, nesse exemplo, não só alucinações de vozes dialogantes, mas outros sintomas que nos
mostram que o psiquismo da pessoa está comprometido em diversas áreas (sentir choques elétricos,
achar que pensamentos estão sendo colocados na sua mente, diálogo alucinatório).

Outro tipo especial de alucinação auditiva é a chamada alucinação funcional. Aqui, o fenômeno
alucinatório necessita de um determinado estímulo real para ser desencadeado. A pessoa não
confunde esse estímulo com a alucinação, mas ambos são conscientemente experimentados e
referidos como duas “percepções”, uma ao lado da outra. Um homem portador de doença mental
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residia próximo a uma estrada de ferro; todas as vezes que um trem passava e o ruído dele chegava a
seus ouvidos, paralelamente referia ouvir também nítidas vozes. Não se tratava de distorção de um
barulho (ouvir vozes quando na verdade existe o ruído da máquina passando, isto recairia no conceito
de ilusão), mas de ouvir o trem e, ao mesmo tempo, escutar as alucinações auditivas, sem que a pessoa
tenha domínio ou controle sobre tal fenômeno. O próprio paciente chegava a comunicar que quando
o ruído característico do comboio se iniciava e aproximava, começavam também as vozes que lhe
perturbavam. A distinção entre alucinação funcional e ilusão é importante porque os dois fenômenos
têm significado e peso diferentes numa avaliação clínica. Num outro exemplo desse tipo de
alucinação, um paciente, todas as vezes que abria a torneira da pia, ouvia o jato d’água e “escutava”
também vozes lhe falando; ao fechar a torneira fazendo cessar a saída e o ruído da água, as “vozes”
desapareciam.

3) ALUCINAÇÕES TACTEIS

Sem que haja estímulo real sobre sua pele, a pessoa refere sentir claramente mãos que a tocam,
navalhas que lhe cortam as costas, insetos ou pequenos animais repugnantes que caminham pelo seu
corpo, choques elétricos que lhe queimam a pele. Nesses exemplos, podemos dizer que temos
alucinações tácteis passivas, pois dizem respeito à vivência que a pessoa tem de estar sendo tocada
por algo. É o tipo mais frequente. Mas, há também as alucinações tácteis ativas, em que o indivíduo
sente que está tocando em algum objeto (na realidade inexistente), como se “perceber” segurando
uma laranja na palma da mão ou empurrando uma parede que ele localiza em sua frente. Ressalte-se
que a pessoa vivencia essas experiências pelo tato, não pela visão, considerando-se que a alucinação
não está abrangendo a área visual. E então é curioso o fenômeno do paciente referir convictamente
que está sendo tocado por algo “palpável”, “corpóreo” e não ver esse objeto que diz “sentir” sobre
sua pele. Poderíamos nos perguntar como uma pessoa pode acreditar na veracidade de tais objetos-
estímulos tácteis se não está vendo nada que comprove a existência deles? Como veremos em tópico
mais adiante, a lógica que rege o pensamento de uma pessoa em estado psicótico (onde há profunda
desorganização mental) não é a mesma do processo lógico formal que conhecemos em nosso
cotidiano, lógica existente no raciocínio do adulto em estado de equilíbrio mental e ligada ao mundo
da realidade objetiva.

Alucinações tácteis, principalmente ligadas a sentir insetos, cobras ou outros animais rasteiros por
sobre a pele, podem ser comumente observadas nos estados psicóticos agudos produzidos pela
dependência ao álcool ou cocaína. Também na esquizofrenia podem surgir alucinações tácteis, às
vezes associadas a ideias delirantes e com grau significativo de complexidade. Um paciente que
começara o surto psicótico com delírio de perseguição passou a sentir que “mãos invisíveis” tentavam
lhe segurar pelos braços e arranhar suas costas. Existem também as alucinações tácteis com caráter
erótico, em que a pessoa refere sentir mãos que lhe acariciam ou masturbam, vivências de estar sendo
violentada, estuprada ou abusada sexualmente, podendo inclusive sentir alguém lhe penetrar
eroticamente, embora não veja quem está lhe segurando.

As alucinações podem envolver mais de um sentido sensorial, simultaneamente. Uma associação


muitas vezes encontrada na prática é a da alucinação táctil com a visual. Assim, um paciente com
psicose alcóolica afirmava sentir percevejos pela sua pele, apontava-os e os descrevia também
visualmente, afirmando vê-los sobre seus braços, chegando até a “pegar” um punhado deles para
mostrá-los ao entrevistador.

4) ALUCINAÇÕES OLFATIVAS E GUSTATIVAS

São, muitas vezes, encontradas associadas. Um epiléptico referia sentir, em determinados momentos,
intenso cheiro de gasolina, bem como o gosto de tal substância em sua boca, apesar de não haver por
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perto nenhum derivado de petróleo. Na epilepsia com foco no lobo temporal esses tipos de
alucinações podem ser observados.

A alucinação olfativa, isolada, pode estar inter-relacionada com ideias delirantes de perseguição,
como em surtos esquizofrênicos. Assim, pacientes podem referir que o forte odor de “coisa podre”
ou éter que sente em todo lugar que chega, são “gases venenosos” que certas pessoas estão colocando
nos locais em que ele vai estar, pois querem a sua morte. Odores de fezes, urina, material queimando,
lixo podre, podem ser também “percebidos”. Às vezes, o paciente atribui ao seu próprio corpo a
origem do mau cheiro, podendo assim, até “explicar” o porquê de sentir o odor em qualquer canto
que estiver.

5) ALUCINAÇÕES CENESTÉSICAS.

Sabemos que existem terminações nervosas sensitivas localizadas nas vísceras, que levam até o
cérebro as impressões oriundas desses órgãos internos, produzindo as sensações e percepções
denominadas de cenestésicas (ou viscerais). Essas são as que experimentamos quando, por exemplo,
após uma corrida puxada ou um susto, percebemos nosso coração bater fortemente, ou depois da
ingestão excessiva de comida pesada ou de alimento apimentado, sentimos o peso ou queimor no
estômago. O perceber a bexiga cheia, algumas impressões intestinais desagradáveis, a “sensação de
estômago vazio”, as cólicas abdominais, são outros exemplos da sensibilidade cenestésica. Mas são
sensações e percepções que não estão sendo vivenciadas constantemente. Por exemplo, não estamos
percebendo continuamente o coração batendo, mas geralmente o sentimos quando a frequência
cardíaca está acelerada.

Alucinações cenestésicas, então, seriam aquelas referentes a esse sistema visceral. A pessoa pode
referir estar sentindo uma lâmina ou faca cortando-lhe internamente o peito e o coração, pequenos
répteis se movendo no estômago ou intestinos, a nítida presença de uma criança mexendo-se em seu
ventre (quando na verdade não há gravidez). H. Delgado (1969) nos dá o exemplo de uma pessoa
que sente dores e sensações de quem está tendo contrações de um parto; curiosamente, trata-se de
alguém do sexo masculino tendo a vivência sensorial de que está saindo uma criança de seu ventre
(no exemplo, todavia, parece haver também componentes ilusórios, além de alucinatórios). Em um
caso de Nobre de Melo (1981), uma paciente sentia constantemente a presença de uma serpente em
seu estômago, tentando sair pela boca.

Um paciente esquizofrênico com alucinações cenestésicas chorava porque sentia pequenos ratos
mexendo-se no seu cérebro, mordendo e comendo-lhe o crânio “por dentro”. Mas dizia sentir também
que alguns desses bichos estavam por cima do couro cabeludo, ferindo sua cabeça “por fora”, o que
sugeria haver comprometimento alucinatório também no sentido do tacto. A associação de
alucinações cenestésicas com alucinações tácteis, pode, às vezes, ocorrer. Uma mulher sente, por
exemplo, que está sendo estuprada, percebendo mãos que lhe tocam (sentido do tato) e um pênis
penetrando em sua vagina e útero, rasgando-lhe as vísceras (sentido cenestésico).

Ao falarmos de alucinações cenestésicas, cabe uma observação sobre os termos “interior” e “exterior”
no estudo dos fenômenos alucinatórios nessa área sensorial. Às vezes, quando um estudante inicia
o aprendizado da psicopatologia, indaga se não haveria contradição em se falar de alucinações
cenestésicas como algo “percebido” no interior do corpo, já que o conceito de alucinação fala em
“localização no espaço exterior-objetivo”. É importante ressaltar que quando falamos em espaços
“interior-subjetivo” e “exterior-objetivo”, não se trata de interior ou exterior do corpo, mas uma
referência ao que é mental, subjetivo, imagem no psiquismo, em oposição ao que é corpóreo,
localizado no mundo das percepções reais, situado fora da nossa mente. Uma coisa é pensar e
imaginar meu estômago sendo cortado (fantasia experimentada no espaço subjetivo-interior), outra é
sentir corporalmente, no caso da alucinação, uma faca ou objeto semelhante tocar e cortar meu
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estômago no campo do mundo concreto, como algo real, semelhante a uma verdadeira azia ou dor
estomacal (vivência no espaço objetivo-exterior). É que o termo “espaço” está sendo utilizado no
sentido de dimensão existencial. A alucinação é vivenciada, semelhantemente a uma percepção, na
dimensão do mundo objetivo (seja através do sentido visual, táctil, cenestésico), ao contrário da
imagem mental, vivenciada na dimensão do pensamento, do subjetivo.

6) ALUCINAÇÕES CINESTÉSICAS

Existem terminações nervosas situadas nas articulações, tendões e musculatura, que levam até o
encéfalo, através de fibras de condução, informações sobre a posição e movimentos de segmentos do
corpo e de sua totalidade. Este sistema neurofisiológico configura a chamada sensibilidade
cinestésica, responsável, inclusive, pela consciência que temos de nossa postura e peso dos membros.
Assim, de olhos fechados e sem tocar o corpo com as mãos, temos consciência se nosso braço
esquerdo ou direito está imóvel ou em movimento; se imóvel, em que posição (estirado, flexionado);
se em movimento, de que tipo (giratório, de extensão horizontal). Também sabemos se o corpo como
um todo está parado de pé, curvado para frente, de cócoras ou em movimento. Somos capazes de
sentir tudo isso sem olhar nem nada tocar, pois todas essas impressões reais de uma modalidade de
percepção nos chegam ao cérebro graças ao sistema cinestésico.

Por conseguinte, alucinações cinestésicas são vivências de posição, movimento e peso dos
seguimentos do corpo ou de seu todo que não correspondem à realidade. Alguns pacientes referem
sentir claramente que seus braços estão girando rapidamente ou que o corpo está correndo numa
grande velocidade, quando na verdade membros e corpo estão parados, às vezes até em imobilidade
prolongada. Podem também, ao contrário, “perceber” o corpo ou parte dele, estático, embora esteja,
de fato, em movimento. Há referências a nítidas sensações de se estar pairando no ar, leve, sem peso
ou, ao contrário, sensação de corpo enormemente pesado e afundando no chão.

Vale ressaltar que, excetuando-se os casos de alucinações visuais associadas, a pessoa com
alucinações cinestésicas não refere estar vendo aquilo que está sentindo acontecer. Quando afirma
“perceber” os braços girando intensamente, por exemplo, não diz também os “ver” rodando. O
paciente que se percebe com uma leveza intensa, pairando no ar e sentindo-se afastado do solo, não
fala estar vendo isto, como a razão poderia nos fazer supor. Novamente, aqui, observamos a lógica
do psiquismo psicótico como algo diferente do nosso pensamento racional: naquela, pode-se sentir
claramente os braços girando, e mesmo que ao olhá-los, sejam vistos parados, não se encontra
contradição nisto, reafirmando-se que estão em movimento... Há certa semelhança com os “absurdos”
da lógica dos sonhos, onde não há impossibilidade de algo estar em movimento e parado ao mesmo
tempo ou, nos encontrarmos num local e simultaneamente não estarmos ali.

7) ALUCINAÇÕES DO ESQUEMA CORPORAL

A integração dos sistemas sensoriais, talvez com importância maior para os sentidos do tato e
cinestésico, configuram o que se chama de esquema corporal, que é a imagem córporo-espacial que
cada indivíduo possui de seu ser físico. Temos então, no campo mental, a noção dos nossos limites
corporais no espaço, de nossa forma e tamanho, da localização espacial das partes do corpo, da
consistência física que possuímos, enfim, a vivência integrada do que experimentamos como nosso
existir corporal. Com isso, sentimos, por exemplo, que nossos braços e pernas têm uma extensão e
alcance limitados no espaço, de forma que temos consciência de poder tocar num objeto perto, mas
sabemos não ser possível estender os braços e alcançar algo que está há uns 3 metros. Vivenciamos
a existência do número de determinadas partes do corpo, como dois braços e duas pernas que fazem
parte do nosso EU físico. Sentimos perfeitamente a distribuição espacial dos segmentos do corpo, de
forma que nossa cabeça é percebida numa parte superior, em contraposição aos pés, sentidos em outro
27

extremo. Temos a vivência da consistência do corpo, que não é experimentado como algo aquoso ou
petrificado, mas com a particular estrutura material que nos é conhecida.

Essa vivência do esquema corporal está tão arraigada em nossa autopercepção física, que pode ocorrer
o fenômeno chamado “alucinação dos amputados”. Uma pessoa tem, durante muitos anos, as
sensações e vivências da presença das pernas como algo real e presente. Se ocorrer um acidente e ela
perder um desses membros, poderá continuar a sentir a presença dele, ainda como percepção de seu
esquema corporal. Só com o tempo é que irá tendo uma nova configuração de sua imagem físico-
espacial sem uma das pernas.

Exemplos de alucinações do esquema corporal são aqueles em que a pessoa sente-se tão grande a
ponto de achar que teria dificuldade em passar pelas portas, ou tem a vivência física de ser muito
pequeno, do tamanho de uma barata, como se expressa um paciente citado por Vallejo-Nagera (1970),
acreditando, inclusive, poder meter-se por debaixo dos armários. O mesmo autor nos dá outro
exemplo de alucinação do esquema corporal em que o indivíduo dizia sentir cinco mãos fazendo parte
de seu corpo. Há casos em que a pessoa alucina percebendo-se com o físico pastoso, se derretendo,
ou intensamente duro, com a consistência de pedra. Um jovem que fez uso de substância alucinógena
sentiu que seu corpo tinha se desintegrado, de forma que percebia braços, pernas, cabeça, separados
no espaço. Comumente os pacientes não referem “ver” essas experiências, mas as vivencia
corporalmente (a não ser que tenham também alucinações no campo visual).

Na chamada Anorexia Nervosa, que ocorre principalmente em mulheres, há distorções corporais, mas
geralmente sem chegar a verdadeiras alucinações. Na maioria das vezes, o que se observa nas
pacientes são preocupações e vivências de “estar começando a engordar”, sentir-se sempre com peso
superior ao ideal para ela, achar que possui alguma “gordura localizada” e outras queixas desse tipo
que as levam sempre a tomar medidas compensatórias para perder “alguns quilos” (exercícios e dietas
exageradas, provocar vômitos, fazer uso de laxativos), apesar das evidências objetivas e ausência de
fundamentação para a ideia de estar com “peso a mais”. Todavia, em alguns casos mais graves pode-
se chegar às alucinações do esquema corporal, onde a pessoa, já bastante e notoriamente emagrecida,
às vezes até hospitalizada em consequência da extrema debilidade física, continua afirmando sentir-
se muito gorda e com o corpo volumoso.

10. PSEUDOALUCINAÇÕES

Muitas vezes, a pessoa refere estar ouvindo vozes ou vendo imagens inexistentes, todavia, não são
autênticas alucinações, pois falta a projeção exterior objetiva, elemento essencial à caracterização
desses distúrbios. Comenta Jaspers (1973) que, durante muito tempo, confundiu-se com alucinação
esse tipo de fenômeno que a investigação mais precisa demonstra não ser uma verdadeira experiência
alucinatória. Os psicopatólogos o chamam de pseudoalucinação ou alucinação psíquica, com este
último termo ressaltando o caráter de vivência mais subjetiva do fenômeno.

Trata-se então, as pseudoalucinações, de imagens que a pessoa refere lhe surgir, todavia não são
“percebidas” como que situadas no espaço exterior-objetivo, mas no interior-subjetivo, além de não
possuírem a corporeidade das percepções, presentes em muitas alucinações. Enfim, não têm o
realismo destas, sendo vivenciadas mais como uma imagem mental do que real, embora, com
frequência, a pessoa utilize os termos “ver”, “ouvir”, “sentir”, pois as pseudoalucinações podem ter
outras características da imagem perceptiva, inclusive nitidez, independência da vontade e até
estabilidade, o que as diferenciam duma imagem mental comum. Didaticamente, podemos dizer que
as pseudoalucinações estariam entre as imagens mentais e as imagens alucinatórias.
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Um homem referia estar ouvindo vozes a lhe perturbar, mas quando perguntado como eram elas, o
que falavam, de onde vinham, respondeu que lhe chamavam de “covarde”, “fraco” e outras palavras
difamadoras, mas, embora nítidas, eram como “uma voz no pensamento”, algo vivenciado
mentalmente, se bem que surgiam como “uma coisa muito forte” (dando a entender que não era um
simples pensamento ou imagem mental corriqueira). Outra pessoa, também sobre as “vozes” que
escutava, dizia não serem como as de “alguém falando com a gente”, nem como aquelas “que vem
de um rádio ou da televisão”, mas algo como que “dentro da cabeça”. Esta última expressão, muitos
pacientes a empregam para referir-se ao que tecnicamente seria a localização no mundo interior, na
dimensão do subjetivo. Alguns chegam mesmo a apontar o dedo para a cabeça: “falam aqui de
dentro”, “estão na minha cabeça”, dizem, querendo se referir a sua mente ou pensamento. Por outro
lado, as pessoas desses exemplos não controlavam o aparecimento das “vozes”, estas tinham
estabilidade no momento em que surgiam (com permanência perturbadora) e, também, pelo menos
no primeiro caso, apresentavam certa nitidez (o homem entendia claramente as palavras que “ouvia”).

Sobre essa clareza das imagens pseudoalucinatórias, embora possa de fato estar presente, na prática
observamos que em muitos casos, a nitidez da “percepção” relatada está baixa, e a pessoa diz não
entender direito o que as “vozes” falam ou não precisar ao certo o que está “vendo”. Também a
complexidade geralmente não chega a um nível de muita riqueza de detalhes. Ou seja, conforme já
pontuamos, a experiência como um todo, não tem o realismo e a carga perceptiva que as verdadeiras
alucinações têm. É o que vemos no relato de uma mulher que afirmava “ver” vultos, imprecisos e
pouco nítidos lhe “aparecer e desaparecer” de repente, sem saber se estavam mesmo em sua frente ou
no pensamento, demonstrando imprecisão quanto a localização no espaço exterior, inclusive dizendo
não se tratar de imagens “como as coisas que a gente vê mesmo”, embora não tivesse controle sobre
o aparecimento desses vultos. Aqui, além da ausência de projeção ao espaço exterior-objetivo e
corporeidade, também a nitidez está baixa e imprecisa, mas é inegável que não se trata de uma simples
imagem mental, justificando ser considerada pseudoalucinação.

Da mesma forma, aquela característica quase sempre presente nas alucinações e que chamamos de
“crença de realidade”, em que a pessoa acredita na veracidade daquilo que “vê”, “ouve” ou “sente”
como se fossem objetos-estímulos verdadeiros, tende a não existir nas pseudoalucinações. Porque,
como vimos, o que leva o indivíduo a crer nas alucinações é, em grande parte, sua semelhança com
as percepções reais através da projeção exterior e da vivência de corporeidade, características que dão
o realismo e impacto à experiência alucinatória. Estando estas características ausentes, a pessoa não
vai ter tantos elementos ligados à sensorialidade para propiciar a crença de que são imagens
verdadeiras. Pode, então, reconhecer que se trata de “coisas de sua imaginação” ou “vozes” e “visões“
que “não existem de verdade”. Às vezes, sem muita firmeza, ela acredita na veracidade da
experiência, todavia, mediante apoio compreensivo, informações e argumentos racionais em relação
a tais vivências pseudoalucinatórias, poderá admitir a improbabilidade de serem imagens reais.

Porém, é importante lembrar que não é a perda do senso crítico e crença na veracidade das imagens
“percebidas” que vai ser o dado diferencial entre alucinações e pseudoalucinações. O que estamos
dizendo é que estas tendem a não ser acompanhadas de forte e irredutível convicção de veracidade
das experiências, quando as comparamos com as verdadeiras alucinações. Todavia, apesar das
ausências de projeção no espaço exterior e corporeidade, certas pseudoalucinações podem exercer,
na pessoa que a experimenta, forte crença na realidade das imagens. Por exemplo, naquele caso de
pseudoalucinação, em que a mulher via vultos imprecisos, ela poderia acreditar que eram “almas
penadas”, e não alterações sensoperceptivas produtos de sua imaginação, talvez devido a estórias de
fantasmas e “mal-assombrados” que ouvia desde criança na cidade interiorana onde nasceu.

Existe uma modalidade dessa alteração sensoperceptiva chamada de pseudoalucinação


hipnagógica, que, frequentemente, é acompanhada de crença em sua realidade no momento em que
é vivenciada. Trata-se de imagens que, às vezes, surgem no período de tempo entre a vigília e o sono,
29

quando não estamos nem dormindo nem totalmente acordados e, então, vemos ou ouvimos pessoas
ou outras imagens, geralmente com características pseudoalucinatórias, mas que aceitamos, naquele
instante, como sendo reais. Um jovem relatou que estava na cama e, antes de adormecer, viu sua mãe
entrar no quarto, parecendo-lhe que mexia no guarda-roupa ou noutros lugares, incomodando o filho
que tentava dormir. Embora sua imagem não fosse muita clara, não conseguindo saber ao certo onde
ela ficara ou mexera, atribuiu essa imprecisão ao fato de estar um pouco sonolento. Reclamou e
resmungou um pouco, dirigindo-se ao seu irmão mais novo, que lia numa cama ao lado. No dia
seguinte, ao perguntar à genitora porque tinha ido a seu quarto tão tarde para mexer nas roupas (pois
estava certo que isto acontecera), ficou surpreso ao saber que ela não estivera nos seus aposentos,
nem o irmão tinha entendido porque reclamara a ele, num momento em que só os dois estavam no
quarto, ainda acordados. Não são infrequentes os relatos desse tipo de pseudoalucinação. Há, todavia,
autores que admitem a existência, em certos casos, de verdadeiras alucinações hipnagógicas, tamanho
é o realismo com que algumas vezes as imagens se apresentam. Vale ressaltar que o último exemplo
nos lembra também que determinadas alucinações e pseudoalucinações podem, eventualmente,
ocorrer em pessoas sem distúrbios mentais. Aliás, nesse estado entre a vigília e o sono, quando nossa
clareza da consciência está diminuída, várias experiências podem ser vivenciadas (impressão de estar
caindo, querer se mover sem conseguir, sensação de que algo está nos puxando, etc.). O termo
pseudoalucinação (ou alucinação) hipnagógica é utilizado mais para o estágio inicial do adormecer
(da vigília para o sono), enquanto que se nomeia pseudoalucinação (ou alucinação) hipnopômpica
para o estágio do despertar (do sono para a vigília), mas ambos têm a característica de ocorrer sob
estados de diminuição da clareza da consciência ligados ao ciclo do sono.

Em resumo, a experiência de estar ouvindo ou vendo imagens na realidade inexistentes, mas


“percebidas” sem projeção exterior nem corporeidade (diferentemente da verdadeira alucinação),
com variados graus de nitidez, comumente sem firme crença da veracidade delas, eis o que consiste
o fenômeno da pseudoalucinação. Embora quase sempre descrito nas áreas visuais e auditivas, é
possível que ocorra em outros campos sensoriais.

Vale ressaltar que alucinações, pseudoalucinações e ilusões podem estar presentes de forma isolada ou
combinada num mesmo indivíduo. Os três fenômenos são classificados, quando se estuda alterações da
sensopercepção, com o nome genérico de pseudopercepções ou falsas percepções.

Pseudopercepções Ilusões
Alucinações
(Falsas Percepções)
PseudoAlucinações

É Jaspers (1973, p. 90) que nos lembra um dado importante para a observação clínica:

Nossa exposição da vida dos sentidos nas falsas percepções introduziu por toda parte
distinções; assim entre ilusões e alucinações, entre fenômenos dos sentidos e da representação
(isto é, entre alucinações e pseudoalucinação). Isto não impede que haja na realidade,
“transições”, na medida em que uma pseudoalucinação se transforma em alucinação, ou
ocorra uma vida patológica rica onde os fenômenos se combinam. Todavia, só se obtém
análises claras quando se fazem distinções precisas, as únicas que subministram critérios.

11. ETIOLOGIA E CONTEÚDO DAS ALUCINAÇÕES


30

A etiologia das alucinações é algo ainda não esclarecido de todo, mas alguns dados práticos,
evidências clínicas, pesquisas e achados experimentais lançam alguma luz na compreensão das causas
desse intrigante fenômeno.

Sabemos que diversos fatores físico-orgânicos podem produzir alucinações. Assim, o efeito de certas
drogas que atingem o cérebro e altera sua fisiologia e bioquímica, é o surgimento de tais fenômenos,
mesmo em pessoas que não têm doenças mentais. Ao cessar sua ação, após serem metabolizadas pelo
organismo (o que comumente ocorre horas depois), desaparecem as alucinações. Pesquisas têm
mostrado que essas drogas interferem na bioquímica de neurotransmissores do sistema nervoso
central, basicamente a dopamina e a serotonina. Alguns exemplos dessas substâncias são o LSD
(preparado sintético), a psilocibina, a mescalina (presentes em determinados cogumelos e tipos de
cactos) ou a harmina (encontrada em certas plantas da Amazônia e utilizada nas cerimônias da seita
do “Santo Daime”). Os estudos nessa linha teórica deram margem à hipótese de que haveria, nas
doenças mentais psicóticas (onde há alucinações proeminentes), uma desregulação naqueles
neurotransmissores cerebrais. Inclusive, sabe-se que as chamadas medicações antipsicóticas agem
regulando o metabolismo da serotonina e dopamina, reduzindo ou até fazendo cessar as alucinações
e outros sintomas perturbadores que ocorrem em vários distúrbios mentais, inclusive esquizofrenia.

As alucinações também podem ocorrer em casos de epilepsia e outros distúrbios organocerebrais


(tumores do encéfalo, acidente vascular cerebral, traumatismos cranianos), quando então pode haver
comprometimento neurológico cortical. Existem, inclusive, registros de pessoas que, durante leve
estimulação do córtex cerebral (enquanto submetidas a cirurgias em áreas centrais neurológicas),
referem experiências alucinatórias. O neurocirurgião Wilder Penfield, cujas pesquisas se
concentraram nos meados do século XX, deixou detalhadas descrições de alucinações que surgiam
em pacientes submetidos a neurocirurgias, nas quais a anestesia não era geral, de forma que eles
permaneciam conscientes enquanto o córtex cerebral, principalmente lobo temporal, era estimulado.
Além da “percepção” de imagens de pessoas, cenas e vozes, Penfield se surpreendeu com frequentes
alucinações auditivas em forma de músicas, como “audição” de um piano tocando, coro de pessoas
cantando, canções que “tocam em rádio”, orquestra executando melodias, etc. (WIDER PENFIELD
apud SACKS, 2007). Sabe-se que o lobo temporal, quando afetado, é uma das regiões que mais
comumente produzem alucinações como sintomas. Tal área cerebral parece ter significativa
complexidade de funções e relação com diversos fenômenos psíquicos, além das alucinações.

Outra condição que pode produzir vivências alucinatórias são certas situações de privação sensorial.
Observam-se casos de alucinações (e outras perturbações mentais) em náufragos, exploradores de
locais desertos ou prisioneiros em confinamento solitário, situações em que se pode ficar muito tempo
isolado e com pobreza de estímulos sensoriais. É igualmente sabido que alucinações podem ser
encontradas nos idosos, quando, além de possíveis fatores organocerebrais ligados a idade, houver
também isolamento social, principalmente se existir déficit auditivo ou visual concomitante. Todavia,
em todas essas circunstâncias, os efeitos da privação sensorial e isolamento se atenuam ou
desaparecem quando a pessoa restabelece um melhor contato com os estímulos externos reais.
Experiências nessa linha foram feitas com voluntários que, em laboratório, ficavam sob condições de
privação sensorial visual, auditiva e táctil por vários dias (submersos em tanques de água a prova de
som, respirando através de tubos e com máscaras escuras, observados e monitorados por um técnico
participante da pesquisa). Entre outras vivências, surgia ansiedade, tensão emocional, incapacidade
de concentração, dificuldade de organização do pensamento e imagens sensoriais vívidas, inclusive
alucinações. Novamente essas alterações cessavam quando a experiência era interrompida e a pessoa
submersa no tanque retornava ao contato com a percepção da realidade circundante. Tem sido
levantada uma hipótese para a produção das alucinações que ocorrem nas situações de privação
sensorial e isolamento: o sistema nervoso, sendo impedido de ter contato com os estímulos reais
31

necessários para a homeostase e equilíbrio de seu funcionamento, se autoativaria e “produziria a


percepção”, na ausência de objeto real.

Casos de intenso trauma emocional podem também apresentar sintomas de perturbações mentais,
inclusive alucinações. Isto é observado nas chamadas psicoses reativas (ou transtornos psicóticos
agudos e transitórios, como são denominadas nas classificações atuais). Pessoas que são submetidas
à tortura, estupro, catástrofes coletivas ou outras situações deste tipo, podem ficar temporariamente
transtornadas psiquicamente e ouvir vozes ou ver imagens relacionadas às experiências traumáticas
pelas quais passaram.

São conhecidos, como causadores de alucinações, os estados de diminuição da clareza da consciência.


Trata-se de determinadas situações psíquicas prolongadas em que a pessoa não está bem desperta e
sua consciência não se acha clara, ficando comprometida a apreensão precisa dos estímulos que a
cercam, havendo déficit de atenção e certa dispersão mental. O indivíduo, frequentemente, apresenta-
se sonolento, embora não esteja adormecido, mas numa situação intermediária em que não está nem
dormindo nem plenamente acordado, semelhante ao já referido estado hipnagógico; então, distorções
perceptivas e experiências alucinatórias podem ocorrer. A diminuição da clareza da consciência é
geralmente decorrente de alguma alteração fisiológica sistêmica que comprometa o funcionamento
cerebral, geralmente de forma transitória. Uma pessoa com febre muito alta, por exemplo, pode
apresentar essa condição psíquica e referir estar “ouvindo” ou “vendo” imagens, na realidade não
existentes, além de outros sintomas (popularmente, se diz que ela está “delirando”, sendo, o termo
científico, delirium febril). Mas, outras circunstâncias, além da febre alta, podem produzir esse estado
de alteração da consciência. Uma mulher, depois de demorada cirurgia com anestesia geral, ao
acordar parcialmente, mas ficando nessa situação de consciência alterada, referia ver roupas
estendidas num varal ao lado da cama, sem que isso na verdade existisse. Febre alta, estados pós-
operatórios, insuficiência renal ou hepática (em que substâncias tóxicas do sangue não são eliminadas
ou metabolizadas), o delirium tremens do alcoolismo, são exemplos de condições que podem produzir
diminuição da clareza da consciência com consequentes alucinações.

Recentemente, vêm sendo utilizadas técnicas de neuroimagem funcional (PET, SPEC, RMN) para se
estudar o cérebro em funcionamento no início e no desenrolar de alucinações, orientando-se os
pacientes dos experimentos a acionar um botão no momento que começassem a ter alucinações
auditivas verbais. Alguns segundos antes do início delas, geralmente observava-se ativação de áreas
cerebrais frontais à esquerda, correspondendo à chamada região de Broca. No prosseguimento das
vivências alucinatórias, quando o paciente referia “perceber” melhor as “vozes”, estavam ativadas
áreas temporais à esquerda, incluindo a região de Wernicke. Sabe-se que essas duas regiões cerebrais
têm intima relação com a linguagem. Segundo Dalgalarrondo (2008), estudos como esses indicam
que a alucinação audioverbal parece começar com a produção interna de “vozes” pelo lobo frontal,
mas, com a ativação das áreas temporais, elas passam a ser vivenciadas como sendo de algo externo.
“Tal trabalho reforça e revela aspectos neurofuncionais da hipótese da alucinação audioverbal como
decorrente de falsa apreensão da linguagem interna” (DALGALARRONDO, 2008, p. 134). O
indivíduo que alucina poderia então ter uma falha ou diminuição na capacidade de diferenciar imagem
mental de imagem perceptiva, até porque, “imaginação e percepção partilham basicamente das
mesmas estruturas de processamento no cérebro” (KOSSLYN apud KNAPP, 2008, p.110).

Enfim, diversos são os fatores que possibilitam o surgimento das alucinações – intoxicação por
determinadas drogas, prováveis alterações neurofisiológicas existentes na esquizofrenia e outras
psicoses, foco epiléptico, lesões ou tumores cerebrais, privação sensorial, intensos traumas
emocionais, alterações na clareza da consciência, falhas na diferenciação da natureza das imagens
(mental/perceptiva) seriam os mais conhecidos, havendo casos de combinação de mais de um deles.
Todavia, provavelmente todas essas possibilidades convergiriam para um mecanismo fisiológico
comum, ou seja, tanto um trauma emocional quanto o uso de uma determinada droga, iriam ativar,
32

estimular ou modificar alguma parte do processo de funcionamento cerebral, provocando a vivência


alucinatória.

Até aqui estamos refletindo sobre as diversas condições que podem gerar alucinações, ou seja, sobre
etiologia das alucinações. O que é diferente da questão do conteúdo delas.

Etiologia diz respeito às causas de um fenômeno. Conteúdo são os elementos que o compõem. Trata-
se de conceitos distintos, mas que podem se inter-relacionar. Se três pessoas tomam uma mesma dose
de LSD (droga alucinógena) em quantidade significativa, provavelmente as três vão ter alucinações.
Uma poderá “ver” imagens de rostos aterrorizantes, outra, a imagem de seu próprio pai, e a terceira
a “visão” de uma santa. A causa, o que provocou a alteração da sensopercepção nas três pessoas, foi
a atuação bioquímica da droga na fisiologia do cérebro delas. Mas o conteúdo das alucinações variou,
provavelmente com temas relacionados com as experiências, lembranças, conflitos ou traumas de
cada pessoa. A etiologia das alucinações, conforme já vimos, pode ser de várias naturezas, incluindo
fatores orgânicos e psicológicos. Já o conteúdo delas relaciona-se com o subjetivo, com a experiência
pessoal e vivências de cada pessoa. Muitos comparam o conteúdo das alucinações com os dos sonhos,
pois ambas as circunstâncias podem estar trazendo questões ligadas à história e a vida da pessoa
(SADOCK, B e SADOCK, V, 2007).

A importância prática de atentarmos para os conteúdos mentais que os pacientes nos trazem através
dos sintomas está na possibilidade de termos um maior entendimento do que eles sentem e pensam,
possibilitando melhor empatia e, consequentemente, relação terapeuta-paciente mais sólida. Uma
pessoa com transtornos mentais pode estar nos comunicando sentimentos, pensamentos, problemas
pessoais ou conflitos, através das vivências alucinatórias. Dar relevância e refletir sobre o conteúdo
das alucinações de um indivíduo poderá não estar nos levando às causas delas, mas, certamente, estará
enriquecendo o contato com o outro, compreendendo-o um pouco mais, o que vai contribuir para um
melhor planejamento terapêutico. Num determinado paciente com esquizofrenia, o fato de ter
alucinações ligadas à temática sexual (conteúdo das “vozes”, alucinações tácteis genitais, etc.), não
significa que a causa de suas alucinações e de uma doença tão complexa como aquela seja conflitos
sexuais. Mas nos dirá que, aquele indivíduo tem o problema da sexualidade como algo significativo
e talvez conflitante em sua vida; e isso terá importância para o trabalho terapêutico.

Um paciente em surto, com sintomas psicóticos, dizia-se aterrorizado e perturbado pela “visão” de
uma pessoa negra que ele “via” frequentemente. Uma conversa mais apurada com ele revelou
associação e semelhança dessa imagem alucinatória com um homem pertencente à mesma seita
religiosa do paciente, também de cor negra, pessoa esta que ele suspeitava estar tendo relações sexuais
com sua esposa. Na conversa com esta última, observou-se de fato haver desejo e talvez até mesmo
algum contato sexual entre ela e aquele homem. De posse desses dados, inclusive conteúdo
alucinatório e contexto realmente existente duma relação triangular erotizada, foi possível trabalhar
tal questão com a mulher e tentar resolução satisfatória para a situação, que estava obviamente
perturbando e agravando o quadro psicopatológico do esposo.

Em discussões de casos clínicos (inclusive na literatura psicanalítica) pode-se tentar estabelecer a


relação da sintomatologia psicótica – incluindo alucinações – com traumas e conflitos da pessoa
enferma, bem como a compreensão de mecanismos psicodinâmicos. Todavia, mais uma vez
lembramos, não devemos confundir conteúdo com etiologia. A enfermidade grave desses pacientes,
como a esquizofrenia, por exemplo, não existe apenas por causa de possíveis fatos traumáticos,
experiências e situações conflitantes, raciocínio que poderia levar a concepção simplista de que,
trabalhando psicoterapicamente esses elementos, se chegaria as causas da doença e esta seria
resolvida como um todo. Não é o que a prática tem mostrado. O que acreditamos é que, trabalhar com
os conteúdos dos sintomas psicóticos vai ajudar o paciente, juntamente com outras formas
indispensáveis de procedimento (incluindo a intervenção medicamentosa) na melhora de seu estado
33

mórbido. Voltando ao último exemplo, uma possível relação triangular entre o paciente, um outro
homem e a mulher, não era a causa de sua psicose, com alucinações, outros sintomas e toda uma
complexidade de desorganização mental desse transtorno psicopatológico. Mas, negar a importância
dos dados trazidos pelo conteúdo da alucinação para o manejo e estratégia do tratamento como um
todo, seria uma falta prejudicial à boa prática do trabalho terapêutico.

E aqui é válido fazermos algumas considerações sobre o aspecto muitas vezes bizarro e
incompreensível com os quais se apresentam várias das alucinações nos pacientes que têm
esquizofrenia ou outros distúrbios que comprometam gravemente as funções psíquicas. Quando
falamos em exemplos como aquele citado no item de alucinações cinestésicas, onde o paciente sentia
seus braços girando, mas dizia que, olhando, eles estavam também imóveis, achamos estranho como
é possível alguém acreditar que algo pode, nesse contexto, estar parado e simultaneamente em
movimento, já que se trata de fatos que não coexistem na realidade. Esse e outros exemplos servem
também para introduzirmos a questão de que, nem sempre podemos empregar o raciocínio formal
para entendermos o funcionamento mental na psicose. Isso nos remete a reflexão sobre a lógica
presente nesse estado (onde há profunda desorganização psicológica), em contraposição à do homem
em equilíbrio psíquico, a fim de podermos compreender um pouco a mente daqueles que sofrem com
transtornos psicopatológicos graves. Na condição psicótica a lógica racional parece não reger o
processo do pensamento, e o encadeamento psíquico se assemelha ao que vivenciamos no momento
em que sonhamos (inexistem os conceitos racionais e formais, o sentido de tempo, o princípio de que
há fatos opostos e impossíveis de coexistirem, não existem impossibilidades práticas, pode haver
construções não objetivadas pelo princípio de realidade, etc.). Nos sonhos, as imagens aparecem e
desaparecem como por encanto, estamos num lugar e ao mesmo tempo não estamos, voamos e talvez
tenhamos asas, podemos conversar sem estar falando, pessoas desconhecidas são nossos pais e assim
por diante. E se perguntarmos como pudemos pensar ser possível todas essas coisas com a certeza e
naturalidade que estávamos enquanto vivenciávamos o sonho e participávamos dele, a resposta seria
que, durante o estado onírico, tudo é possível pela lógica não formal que rege o mundo do sonhar. O
raciocínio e os processos subjetivos do estado psicótico seriam semelhantes a esse processo mental
que a psicologia chama de processo primário do pensamento, existente nos sonhos e na mente
primitiva da criança, em contraposição ao processo lógico formal do pensamento, encontrado no
adulto diante do mundo da realidade objetiva.

Nos seus primeiros anos de vida, a criança não possui conceitos formados, não tem desenvolvido
ainda as capacidades de abstração e generalização, as noções de tempo são imprecisas, as imagens
mentais tomam boa parte do pensamento e são confundidas com as da percepção, o raciocínio é
baseado em comparações simplistas e ainda não está sedimentada pela prática a ideia de que certos
fatos não coexistem na realidade. Isso seria o pensamento primário, que, gradativamente, com as
experiências de vida e a maturação do indivíduo, passaria, aos poucos, ao pensamento lógico-formal
da vida adulta. Em algumas circunstâncias, todavia, no homem já crescido, pode haver uma regressão
ao processo primário do pensamento, como nos sonhos (conforme já vimos) e em algumas fantasias.
Mas são reversões momentâneas. Já nos surtos psicóticos, a regressão seria maciça e predominante,
abrangendo uma maior parte do existir, em pleno estado de vigília. Assim, uma pessoa com
alucinações tácteis pode sentir mãos tocarem no seu rosto ou em outras partes do corpo e, mesmo que
elas não possam ser vistas, acreditar em sua existência, pois a lógica de que o objeto real sentido pelo
tato consequentemente será visto pelos olhos, não é o que predomina no processo do pensamento
psicótico. Da mesma forma, um paciente com alucinações cenestésicas poderia afirmar
convictamente estar percebendo ratos mexendo-se no interior de seu corpo, roendo-lhe o coração, o
cérebro e outras vísceras, não pesando a lógica e o conhecimento racional de que ratos não podem
entrar dessa forma no cérebro nem no sistema cardiovascular das pessoas, bem como ser impossível
alguém que tenha seus órgãos vitais roídos e destruídos, continuar viva.
34

12. INVESTIGAÇÃO CLÍNICA DAS ALUCINAÇÕES E O LIDAR COM A PESSOA QUE


ALUCINA

Quando se começa a estudar o fenômeno das alucinações, aos poucos vão surgindo algumas
indagações sobre como lidar com a pessoa que apresenta essa alteração. Como sabermos se está de
fato alucinando? Como investigar a presença de alucinações em alguém que estamos avaliando
clinicamente? Porque muitas vezes o paciente não se apresenta queixando-se de que “ouve vozes” ou
“vê coisas” inexistentes, pois, para ele, essas “percepções” são verdadeiras e não queixas
psicopatológicas. E quando nos afirma estar vendo ou ouvindo algo que inexiste na realidade,
devemos lhe dizer que, na verdade, não há nenhuma imagem real ali, ou, ao contrário, não discordar
e até simularmos que estamos acreditando no que ele diz existir? O que vai significar, em termos de
diagnóstico e desorganização do psiquismo, a presença de alucinações naquela pessoa com quem
estamos contatando. Se ele for praticante de determinada religião e começar a dar explicações
místicas para suas “visões” ou “mensagens” ouvidas, como devemos nos portar? Como falar-lhe sem
ferir suas crenças filosóficas?

Antes de tudo, precisamos estar certos de que há correta comunicação e entendimento entre o
profissional em saúde mental e seu paciente. Uma estória anedótica, mas baseada em acontecimento
real, é a do estudante que, averiguando prováveis alucinações auditivas em um paciente internado
numa clínica, indagou ao mesmo se de fato ele “ouvia vozes”. Ao obter resposta positiva, continuou
pesquisando as características do que poderia ser o distúrbio sensoperceptivo daquele indivíduo.
Queria saber a frequência com que ele ouvia as vozes, se essas se localizavam no espaço exterior-
objetivo, se eram nítidas e bem audíveis, se acompanhadas de crença na veracidade delas e por aí
adiante. O paciente informou que as ouvia a qualquer momento, vinham de “fora” de sua mente,
entendia com clareza as palavras ditas e acreditava que elas eram verdadeiras. Enfim, nosso estudante
concluiu que o homem tinha nítidas e frequentes alucinações. Resolveu seguir adiante na avaliação e
passou a pesquisar o conteúdo delas, indagando sobre o que falavam as vozes referidas. E aí surgiu
a surpresa: o paciente respondeu que dependia do que a pessoa falava... Por exemplo, naquele
momento estava ouvindo a voz do estudante lhe fazendo perguntas; quando estava em seu quarto
conversando com um companheiro internado na clínica, então ouvia o assunto do diálogo... E ainda
acrescentou: “é verdade doutor, ouço bem, não sou surdo...”. Foi quando o estudante entendeu que
não estava havendo correta comunicação entre ele e o paciente, desde o início, quando perguntara se
o mesmo “ouvia vozes”. Ele se referia a vozes alucinatórias, mas o homem entendeu a pergunta
voltada a vozes do dia a dia e, como não era surdo, ouvia com projeção exterior, nitidez, freqüência,
pois afinal, estes são os atributos das percepções reais. Na verdade, aquele paciente estava internado
com outros sintomas psicopatológicos, mas não apresentava alucinações. Temos que nos certificar se
nosso diálogo com o paciente está sendo entendido igualmente por ambos os lados, sob pena de
chegarmos a “conclusões” errôneas e até absurdas. A indagação inicial correta daquele estudante
poderia ser: “Quando você está sozinho, sem ninguém por perto, acontece de ouvir vozes lhe
falando?” ou, “Escuta vozes que outras pessoas, junto a você, dizem não ouvir?” Com perguntas deste
tipo, procurando-se não deixar margens a mal-entendidos, poderia ser iniciada uma melhor
comunicação. E, nessa mesma linha de raciocínio, nunca é demais lembrar que devemos estar atentos
aos termos que utilizamos, a fim de que sejam adequados ao nível sociocultural da pessoa com quem
falamos. Da mesma forma, o uso de muitas palavras técnicas pode dificultar a comunicação, mas se
forem usadas, devem ser acompanhadas da explicação de seus significados.

Outro pormenor que precisamos ter cuidado no momento de uma entrevista de avaliação é o sentido
simbólico e figurativo de certas afirmações que, se tomadas de forma concreta e dentro de um
enquadramento de “encontrar sintomas”, também podem levar a conclusões incorretas. Quando uma
pessoa fala: “algo me diz” que não devo trabalhar na função de secretária, muito provavelmente não
está se referindo literalmente a “ouvir vozes” alucinatórias, mas apenas usando uma “força de
expressão” comum. Se alguém afirma que, quando recebeu uma má notícia, a sentiu como “uma
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punhalada no peito”, ou ficou com o “coração despedaçado” após ser deixado pela namorada, também
não deverá estar tendo alucinações corporais tácteis ou cenestésicas. Dificilmente essas formas de
expressar-se estarão significando distúrbios da sensopercepção, todavia, na dúvida, pode-se pedir
esclarecimento sobre o que a pessoa está querendo dizer com tais frases, mas nunca se concluir,
apenas por essas expressões, que estão ocorrendo alucinações.

Informações adicionais por parte de um familiar da pessoa examinada muitas vezes ajudam na
avaliação. Este pode contar que ela frequentemente diz ouvir vozes que lhe falam ou ver imagens
perturbadoras, sem que tais “percepções” sejam verdadeiras. Mas não é recomendável concluir que
alguém apresenta alucinações apenas por informações de familiares. A conversação com o próprio
paciente e observação de seu comportamento nesse momento é algo indispensável para se chegar a
um diagnóstico.

Na avaliação clínica, devemos também nos lembrar que, mesmo quando alguém diz estar,
concretamente, ouvindo ou vendo imagens na realidade inexistentes (inclusive confirmado por
parentes) nem sempre significa que esteja tendo verdadeiras alucinações. Durante entrevista de
avaliação, uma pessoa dizia “ouvir vozes”. Mas eram pouco nítidas, ela não tinha certeza da
veracidade do que escutava e, principalmente, não estava presente a projeção para o espaço exterior,
ou seja, tratava-se mais de pseudoalucinações. Outra alegava ver vultos passando pela janela de seu
quarto, à noite; mas depois constatou que uma cortina lhe dava estas vivências ilusórias. As
pseudoalucinações e ilusões, ao contrário das verdadeiras alucinações, não têm o nível de realismo
comparável ao da autêntica percepção, o que geralmente não acarreta firmeza de convicção nelas. A
importância disso é que, comumente, podemos questionar e argumentar melhor sobre a irrealidade da
falsa percepção com uma pessoa que está tendo uma experiência pseudoalucinatória ou ilusória, já
que o senso de realidade tende a não estar tão comprometido nesses casos. A presença de consciência
crítica em relação aos sintomas geralmente se relaciona com uma melhor integração do psiquismo.

Na prática, a diferenciação entre alucinação e pseudoalucinação pode ser feita averiguando-se a


presença ou ausência da projeção exterior da imagem que a pessoa diz “ver”, “ouvir” ou “perceber”.
Por exemplo, após ficar evidente que estamos lidando com falsas percepções, pode-se indagar: “A
voz que você diz ouvir vem de fora de sua mente, de algum lugar em seu redor ou é uma coisa mais
em seu pensamento, vinda de dentro de sua cabeça?” Ou: “O que você vê está em algum lugar da sala
ou quarto, em sua frente, em seu redor, como está me vendo agora, ou é como uma imagem muito
forte ou muito rápida que passa em sua cabeça?”. Às vezes, todavia, não são necessárias essas
perguntas, pois o próprio relato espontâneo do paciente já nos mostra o caráter alucinatório ou
pseudoalucinatório da vivência.

Quanto ao saber se há consciência crítica ou não em relação à experiência vivida, embora isso não
seja a principal diferença entre alucinação e pseudoalucinação, a constatação da presença ou ausência
do senso crítico, como vimos, é significativa e útil. Algumas perguntas podem ser feitas: “Quando
você ouve as vozes a que se referiu, acha que elas são o que? São verdadeiras, de pessoas reais? Ou
são produtos de sua imaginação, apenas ‘impressão’ de estar escutando algo?”. “Essas coisas (ou
pessoas, animais) que você diz estar vendo, mas os outros falam não ver, são mesmo reais ou criadas
pela sua mente?”. Observe-se que com essas perguntas não estamos averiguando propriamente a
projeção no espaço exterior, mas a convicção na “realidade” da alucinação.

Se quisermos aprofundar a avaliação clínica com a pessoa examinada, podemos também indagar sobre a
nitidez da falsa percepção: “Dá pra entender o que as vozes lhe dizem? São de homem, de mulher, de
criança? Ou são falas confusas, difíceis de compreender”? No caso da área visual, pode-se pedir para que
ela descreva o que diz perceber e averiguar como está a clareza dessa imagem. Poderemos saber se é
nítida, com contornos bem definidos, apresentando cores, ou apenas um vulto impreciso.
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A frequência com que ocorre o fenômeno e o contexto em que surge são outros dados que podem ser
significativos. A “percepção” referida acontece constantemente, diariamente, a qualquer hora do dia?
Ou surgiu apenas uma ou outra vez de forma esporádica, apenas ao anoitecer? É diferente se houve
alucinação ou pseudoalucinação apenas à noite, perto do dormir ou se ocorreu durante o dia, com a
pessoa plenamente desperta. No primeiro caso, o fenômeno pode ter se passado naquele estado
hipnagógico (em que o indivíduo está entre o sono e a vigília) e não ter muito valor psicopatológico.
Além disso, à noite e a falta de luminosidade podem facilitar fenômenos ilusórios.

Essas informações possibilitam não só esclarecer se estão ocorrendo, na pessoa examinada,


alucinações ou pseudoalucinações (ou até ilusões), mas também podem nos dar uma idéia da
dimensão e extensão dessas vivências para com o todo do psiquismo, o que vai ajudar na avaliação
de um maior ou menor comprometimento psicopatológico.

Várias pessoas referem, em algum momento de sua vida, experiência de ter “ouvido”, “visto” ou “ser
tocada” por algo sem haver presença real de objeto estímulo. Algumas podem contar que em
momento de desespero ou de muita tensão “viram” imagens ou “escutaram” vozes que só a pessoa
“percebeu”, outras relatam ter tido vivências perceptivas dessa ordem durante atividades ligadas a
práticas religiosas; não é tão incomum encontrarmos pessoas que dizem já ter ouvido nitidamente seu
nome ser chamado e logo depois constatar não haver ninguém por perto; também as falsas percepções
hipnagógicas não são experiências raras. Há indivíduos que juram ter visto “assombrações” ou
personagens do folclore fantástico. Numa cidadezinha interiorana, conhecemos uma mulher, não
possuidora de doença mental, que afirmava ter visto um lobisomem em madrugada de lua cheia,
tentando arrombar a porta de sua casa; era ela uma pessoa respeitada e sem fama de ser “contadora
de estórias” mentirosas, relatando essa experiência sem sensacionalismo, mas com seriedade e
sinceridade.

Muitos desses fenômenos tratam-se de ilusões ou pseudoalucinações. Alguns talvez possam ser
verdadeiras alucinações, é difícil determinar isso quando a pessoa está envolvida em suas crenças e
emoções, ou quando já se passou muito tempo do ocorrido, ficando quase impossível saber de forma
fidedigna os detalhes reais da vivência. Mas não será por uma ou outra experiência isolada
(alucinatória ou não) que se chegará a um diagnóstico de esquizofrenia, psicose bipolar ou outra
doença mental. O diagnóstico será dado pelo conjunto de sintomas apresentados e pela história da
pessoa avaliada. Quando a mente adoece, vários processos mentais vão se mostrando comprometidos:
pensamento (que pode estar desconexo, bloqueado, com ideias obsessivas ou outros sintomas),
sentimentos e emoções (surgindo depressão, euforia patológica, pânico desmotivado, etc.),
sensopercepção (podendo ser observadas alucinações ou fenômenos afins), linguagem,
psicomotricidade, memória, capacidade de orientação são algumas das chamadas funções psíquicas,
onde comumente, em mais de uma delas, surgem distúrbios quando há doença mental. A constatação
dessas alterações é feita através da conversação com a pessoa e observação de seu comportamento,
num registro que chamamos de exame mental. Para se chegar a um diagnóstico, colhem-se, também,
informações sobre a história de vida dessa pessoa (quando e como começaram as alterações psíquicas,
em que contextos surgiram, acontecimentos importantes da infância e adolescência, interações sociais
na escola ou trabalho, doenças na família e outros dados dessa ordem). Essa história de vida, também
chamada de anamnese, pode ser obtida inclusive com informações de familiares. Na doença mental
observa-se que o todo está comprometido e não será apenas uma falsa percepção como fenômeno
eventual que vai nos fazer concluir a existência de enfermidade psíquica. É importante que isso seja
ressaltado, até para desmistificar uma ideia erroneamente propalada de que, comportamentos
excêntricos, diferentes ou incomuns que uma pessoa apresente, fazem com que seja considerada pela
psiquiatria como louca ou portadora de doença mental.

Outra questão que consideramos relevante quando se aborda o tema das alucinações e fenômenos
afins é sua ligação com interpretações místicas e religiosas, assunto que tem importância na relação
37

com certos pacientes. Às vezes, em nosso meio sociocultural, mesmo estando clara a existência de
um quadro psicótico alucinatório, pacientes e familiares podem atribuir às falsas percepções
explicações ligadas a crenças religiosas, o que reforça a convicção nas imagens “percebidas”,
podendo contribuir tanto para a persistência do fenômeno, quanto a não aceitação de tratamento do
transtorno mental como um todo. Como lidar com tal questão?

Em primeiro lugar, ainda que seja evidente tratar-se de fenômeno alucinatório ou similar, não temos
o direito de ir de encontro às crenças do paciente. Mas podemos conversar sobre a possibilidade
daquele fenômeno em particular - as vozes ou imagens visuais que ele vem experimentando - não ter
caráter transcendental, mas estar relacionado a alguma alteração psíquica que possa apresentar. É
diferente de questionar sua religião, seu modelo existencial filosófico. Até porque, às vezes, certos
pais-de-santo ou outras autoridades religiosas encaminham “filhos” ou “irmãos” de fé a um serviço
ambulatorial ou emergencial de psiquiatria, dizendo que aquela pessoa apresenta distúrbios mentais
e não fenômenos espirituais. Se a opinião da autoridade que compartilha o mesmo credo religioso do
paciente não entra em choque com o profissional que o atende, isso pode ajudar na instauração de um
tratamento e contribuir para que a pessoa com falsas percepções tenha consciência da natureza do
fenômeno.

Todavia, sem ir de encontro à fé e sistema de crenças da pessoa, há outras formas de lidar com esse
problema, sem que haja receitas ou frases prontas para tal e qual situação, mas que variam de caso
para caso e com o momento em que se dialoga. A título de exemplo, citamos uma mulher praticante
de sua religião que, estando em evidente processo psicótico (reconhecido como perturbação mental
inclusive pelas pessoas do centro religioso do qual fazia parte), acreditava que as “vozes” que ouvia
eram de natureza espiritual, de “obsessores” que lhe atormentavam. O quadro era claramente doentio
e a paciente concordava parcialmente com isso, até porque outros sintomas lhe perturbavam
(impulsividade, irritabilidade fácil, medos imprecisos, insônia, depressão). O argumento utilizado
pelo seu psiquiatra para que aderisse ao tratamento foi que a mente dela poderia ser “fortalecida” com
esse procedimento, e, talvez, aquelas “vozes” que atribuía a “espíritos obsessores” pudessem cessar
ou diminuir, no momento em que seu cérebro estivesse em melhores condições de funcionamento,
ficando menos passivo a tais “influências” nas quais acreditava. Portanto, não se entrou em choque
com a crença que trazia para a origem das “vozes”, mas foi proposto um procedimento em que ambas
as partes, ela e o terapeuta, iriam trabalhar contra os fenômenos perturbadores. Através da medicação
e psicoterapia, a paciente teve melhora significativa, inclusive das alucinações, apesar de continuar
acreditando na natureza “espiritual” delas. Todavia, aceitava que o tratamento era válido porque,
concordando com o terapeuta, a medicação proporcionava um melhor funcionamento das células de
seu cérebro, tornando-o mais fortalecido e, acreditava ela, menos vulnerável e receptivo aos
“espíritos” perturbadores, daí porque não mais os ouvia, já que a manifestação deles estaria sendo
“controlada” com a ajuda do tratamento. Formou-se uma aliança terapêutica, sem detrimento da
crença religiosa da pessoa que sofria com seus sintomas.

Quanto à pergunta por vezes feita pelo estudante de psicopatologia sobre o que fazer ou dizer diante
do paciente que alucina, no sentido de negar, ou não, a veracidade das imagens que ele afirma estar
“percebendo”, conforme já dissemos em tópico anterior, não há roteiros prontos e o uso do bom senso
e conhecimento que cada terapeuta tem de seu paciente é o que deve ser considerado. Nos momentos
mais intensos de um transtorno mental, geralmente não se obtém êxito dizer ao paciente que ele está
tendo alucinações criadas em sua mente e tentar argumentar sobre a irrealidade delas (isso talvez
possa ser possível em outros estágios menos comprometidos do quadro, quando o tratamento já
estiver se consolidando). Mais útil é comunicar estarmos compreendendo que ele está de fato,
ouvindo, vendo ou sentido as imagens que diz perceber e não se acha “inventando”, mas sendo sincero
no que fala. Mesmo se tratando de experiências estranhas e inusitadas para nós, devemos procurar
nos colocar no lugar do outro e tentar um entendimento aproximativo de suas vivências
psicopatológicas, o que poderá ajudar na formação de vínculo facilitador de um processo terapêutico.
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Assim, é importante demonstrar ao paciente que empatizamos com ele, o compreendemos em seu
sofrimento e vivências, mas não dizer que estamos ouvindo, vendo ou percebendo suas imagens
alucinatórias ou que elas existem de fato (no intuito talvez de tranquilizá-lo ou diminuir-lhe a
ansiedade), pois isso poderá confundir ainda mais sua frágil capacidade de discernimento entre a
realidade e a imaginação, além de poder levar a cobranças futuras sobre a sinceridade de nossas falas.
Após o contato de avaliação diagnóstica, parece ser conduta válida, pelo menos no início do
tratamento, não dar ênfase e não dedicar muito tempo a falar sobre as alucinações do paciente,
evitando ruminações sobre sintomas, mas levar a conversação para outras questões e aspectos mais
saudáveis de sua personalidade.

Alguns filmes procuram, entre outros propósitos, nos fazer “vivenciar” o fenômeno da alucinação
através de personagens que apresentam essa modalidade de falsas percepções, com os diretores
muitas vezes conseguindo êxito nessa intenção, apesar de alguns exageros cinematográficos.

O filme Imagens (Images, 1972), do consagrado cineasta Robert Altman, não só nos apresenta
fenômenos alucinatórios de diversos tipos, mas também frequentes ilusões com caráter
psicopatológico. Por exemplo, a personagem central, Cathryn, ao invés de ouvir o que uma amiga
está lhe falando ao telefone, ouve outra voz de mulher lhe dizendo que seu marido está em
envolvimento sexual com alguém naquele momento. Em outras cenas, vê a imagem de um amante
falecido há anos atrás, ora no lugar do esposo em sua frente, ora sobrepondo-se ilusoriamente a
imagem de uma antiga câmera fotográfica (com tripés). Mas há também nítidas alucinações, como
as visuais (inclusive autoscópicas), auditivas e tácteis. Sob ponto de vista clínico aí há certo exagero,
pois há cenas em que Cathryn vê, ouve (conversa) e percebe-se tocada por alguém inexistente,
conjunto de três alucinações simultâneas que dificilmente se encontram na realidade prática de forma
concomitante. Mas um aspecto interessante que o diretor focaliza é a angústia da personagem à
medida que vai perdendo o discernimento do que são imagens verdadeiras ou falsas, bem como as
tentativas que faz para lidar com essas últimas e procurar anulá-las.

Outro filme onde também encontramos vivências alucinatórias é Uma Mente Brilhante (A Beautiful
Mind, 2001), dirigido por Ron Howard, abordando a vida de John Nash, matemático norte americano
que, apesar de sua doença mental (provavelmente esquizofrenia), ganhou o premio Nobel de
Economia em 1994. Novamente temos que lembrar os artifícios de cinema que não correspondem
muito bem à realidade da história verdadeira do cientista. No filme, fica também demonstrada, assim
como em Imagens, a projeção do que se “vê” ou “ouve” para o espaço objetivo, fenômeno presente
nas alucinações, de forma que a personagem as experimenta na dimensão das imagens reais, vendo e
ouvindo pessoas inexistentes localizadas ao seu redor, nos jardins, em salas e outros locais bem
definidos. No caso de Uma Mente Brilhante, as alucinações auditivas e visuais durante anos são
aceitas pelo paciente como algo real. Com o tempo, sendo submetido a tratamento, ele vai passando
a duvidar e finalmente entender que não são verdadeiras, sem que, no entanto, deixe de existir o
realismo de uma imagem próxima à percepção real, continuando a se situarem como que no espaço
objetivo das percepções.
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CAPÍTULO 2

DELÍRIOS

1. DELÍRIOS – CONCEITO E COMENTÁRIOS BÁSICOS

2. DIFERENCIAÇÃO DOS DELÍRIOS PARA COM OUTROS FENÔMENOS


PSICOPATOLÓGICOS

3. CONCEITOS DE DELÍRIOS SECUNDÁRIOS E DELÍRIOS PRIMÁRIOS

4. ESTUDO DOS DELÍRIOS SECUNDÁRIOS


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5. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS DELÍRIOS PRIMÁRIOS

6. TIPOS DE APRESENTAÇÃO DOS DELÍRIOS PRIMÁRIOS

7. VARIAÇÕES DIDÁTICAS EM TORNO DE UM EXEMPLO DE DELÍRIO –


A ATIVIDADE DELIRANTE NO CONTEXTO DA DOENÇA MENTAL

8. A ELABORAÇÃO DELIRANTE - O DELÍRIO SISTEMATIZADO

9. TEMAS DOS DELÍRIOS

10. EVOLUÇÃO DO DELÍRIO NA MENTE DA PESSOA – DELÍRIOS AGUDOS


E CRÔNICOS

11. CLASSIFICAÇÃO GERAL DOS DELÍRIOS

1. DELÍRIOS – CONCEITO E COMENTÁRIOS BÁSICOS

Os delírios são alterações do juízo de realidade; mas há quem os considere, também, como alterações
do conteúdo do pensamento. Fala-se, então, de juízos delirantes, pensamentos delirantes ou deias
delirantes, todos os termos referindo-se ao mesmo fenômeno.

Quando falamos em juízo de realidade como um processo psíquico, algumas considerações precisam
ser feitas. Essa operação mental nos possibilita avaliar, corretamente, o lado objetivo da realidade, ou
seja, aqueles aspectos do mundo ao nosso redor que podem ser constatados racionalmente. É o que
ocorre quando pensamos: “vejo minha família ao meu redor e constato que estão vivos”, “pertenço à
classe média e não sou um dos homens mais ricos do país”, “alimento-me diariamente e sei que não
é colocado veneno em minha comida”, “minha cidade não está sendo destruída por uma 3ª Guerra
Mundial”. É claro que não há verdade absoluta. Existe o lado relativo em toda realidade. Na
afirmativa acima, por exemplo, quando ajuízo que não há veneno em minha comida, alguém poderia
argumentar que, com tantos agrotóxicos e transformações industriais dos alimentos, quem garante
que, de certa forma, eles não contenham “venenos” para a saúde. Ou, diante da certeza que a cidade
não está sendo destruída por uma Guerra Mundial, poderia se relativizar isto, pois, vemos tantos
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conflitos armados e tanta violência nas ruas de inúmeras cidades que, de certa forma, podemos nos
indagar se não estaríamos numa “verdadeira guerra” em quase toda parte do mundo. Mas, apesar
dessas ponderações, objetivamente, podemos dizer que a comida não está envenenada no sentido de
conter arsênico, veneno de rato ou outro tóxico letal colocado por pessoas que querem nos matar,
bem como fazer a assertiva de que a cidade em que vivemos não está sendo bombardeada e destruída
pela eclosão de uma 3ª Guerra Mundial, não havendo declarações de autoridades ou qualquer indício
que objetivamente nos faça concluir isso (mísseis, bombardeios, cidades destruídas, etc.). Podemos
ajuizar corretamente esses aspectos objetivos da realidade graças às associações lógicas de nosso
pensamento, conhecimentos armazenados, vivências anteriores e outros processos psíquicos que
contribuam para o funcionamento do juízo de realidade. E quando uma pessoa afirma que está sendo
perseguida por inimigos que colocam veneno em sua comida ou entra em pânico dizendo ter certeza
de que uma guerra mundial eclodiu e fará toda a cidade ficar em ruínas, sem nenhum dado objetivo
que possa comprovar a veracidade desses juízos, então podemos estar passando para o campo dos
delírios.

É importante também lembrar que nem todo juízo é passível de comprovação prática com a realidade.
Por exemplo, vejam-se juízos do tipo “Deus existe”, “o homem é naturalmente bom”, “vale a pena
ter filhos”, “possuir um curso universitário não é necessário ao ser humano”, “ser vegetariano não é
uma virtude”... Sobre esses juízos não se pode falar em termos de verdadeiro ou falso, pois envolvem
não a realidade objetiva que nos cerca, mas opiniões de caráter pessoal sobre fenômenos que não são
passíveis de comprovação prática, mas sim, juízos que envolvem afirmações ou negações de valores.
Os delírios vão abranger aqueles juízos sobre a realidade objetiva, que se referem aos acontecimentos
e aspectos constatáveis do mundo que nos envolve.

Podemos definir delírios como juízos falsos, carregados de intensa convicção interior, que possuem
irredutibilidade e que são distúrbios psicológicos. Reflitamos um pouco sobre cada uma dessas quatro
características.

Em princípio, e como regra geral, são juízos falsos, ou seja, convicções surgidas no pensamento, mas
que não correspondem à realidade dos fatos que nos cercam, onde até aqueles aspectos bem objetivos
e universais da realidade são ignorados. A pessoa acredita que toda sua família está morta, que é um
dos homens mais poderosos e ricos do país ou que está sendo perseguido para ser assassinado, sendo
estas crenças inverídicas.

A segunda característica nos diz que tais juízos, além de falsos, são carregados de intensa convicção
interior, por parte da pessoa, de que são fatos verdadeiros. Delírios não são dúvidas, vagas
desconfianças, meras “impressões” ou desejos. Um homem ciumento pode ter dúvidas sobre a
fidelidade de sua esposa, sem nenhum fato que comprove isso. Outro pode desconfiar que seu sócio
esteja querendo “lhe passar pra trás” ou mesmo lhe afastar da empresa, sem dados objetivos e
consistentes para tal desconfiança. Uma pessoa que sempre possuiu sentimentos de inferioridade pode
ter a constante “impressão” de que os amigos lhe desprezam ou rejeitam. Muita gente tem persistente
desejo de ganhar o grande prêmio no jogo da loteria, achar que isso “um dia vai acontecer” e até
fantasiar planos para esse acontecimento que o fará rico. Nada disso é delírio. Neste, há a certeza
subjetiva do “fato”, com forte convicção. O delirante acredita firmemente que sua esposa o está
traindo, que alguém quer lhe prejudicar ou matar, que todas as pessoas estão fazendo um “complô”
para que seja rejeitado e perseguido em qualquer lugar que chegue ou que é o homem mais rico do
país, sendo todos esses juízos inverídicos. E aqui cabe a questão importante da diferenciação entre
delírios e fantasias exacerbadas. Essas últimas também são ideações não verdadeiras, todavia, o
sujeito que as elabora sabe que são apenas criações de sua mente, intimamente tem consciência crítica
que está “sonhando acordado”, sabe serem fantasias as elucubrações que é poderoso e rico, por
exemplo. A distinção entre delírio e fantasia exacerbada é de suma importância para a avaliação
clínica e a terapia do paciente. Sobre tal diferença voltaremos a falar mais adiante.
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Outra característica presente na definição do delírio é que possuem irredutibilidade, ou seja, há


impossibilidade, durante um período de tempo variável, de se convencer a pessoa que aquilo em que
ela crê não é verdade. Dão-se argumentos lógicos, mostram-se evidências objetivas, pode até serem
feitas experiências comprovativas da não veracidade das ideias emergentes e nada modifica a crença
arraigada do delirante. Muitos chegam a contrapor explicações das mais absurdas, e se concentram
mais nelas do que nas evidências objetivas e lógicas. Um homem afirma que toda sua família está
morta e ninguém lhe convence do contrário, apesar dos próprios familiares, que ele diz terem morrido,
falarem que estão ali ao seu lado. O delirante pode até contra argumentar que aquelas pessoas são
impostores “disfarçados” para lhe enganar... Outro acredita que existem “inimigos” querendo lhe
envenenar, chegando a não comer nada que não seja preparado por ele, mesmo que outras pessoas
experimentem a mesma comida sem nada sofrer ou que exames laboratoriais comprovem a
inexistência de qualquer veneno em seus alimentos. Todavia, não é delírio o caso do velho eremita
que há anos vivia numa floresta e afastado da civilização, tendo convicção de que a guerra mundial
que envolvera seu país estava em pleno andamento, sendo ele um soldado desertor. Quando foi
encontrado, argumentou-se com o mesmo que a Grande Guerra há muito tinha terminado, todavia,
continuou convicto de que a verdade era outra, até que, trazido para a civilização, diante das
evidências objetivas, compreendeu seu engano. Observamos nesse caso que, apesar de uma crença
inverídica e da certeza nela, não havia o elemento “irredutibilidade” do delírio, já que a pessoa
admitia, mediante comprovação prática aliada a argumentos lógicos, o erro de julgamento.

Esse último exemplo nos remete à quarta característica do juízo delirante: são distúrbios
psicológicos. Pode parecer evidente e óbvio este enunciado que, em outras palavras, diz que delírio
é algo psicopatológico. Mas é indispensável não confundirmos delírio com crenças socioculturais,
convicções coletivas pertencentes a uma seita ou religião, ideologias políticas de um povo, por mais
absurdas que possam parecer. Também não são psicopatológicos os falsos juízos frutos do
desconhecimento ou ignorância sobre determinados assuntos por parte de uma pessoa ou grupo de
pessoas dentro de um contexto social. Voltando ao exemplo do eremita citado acima, não se trata de
delírio porque, não só falta a característica de irredutibilidade, como também por não ser um distúrbio
psicológico, mas uma crença embasada na falta de conhecimento e informações sobre um fato ampla
e socialmente comprovado.

Mas, continuemos ainda trabalhando nesse quarto item do delírio e vamos ver situações em que ele
é o único elemento que faz não caracterizarmos um exemplo como juízo delirante. No romance
histórico do escritor Márcio Souza, Mad Maria (1980), em que se aborda a época da construção da
estrada de ferro Madeira-Mamoré na Amazônia, projeto que ocasionou centenas de mortes por
acidente devido às condições precárias e desumanas de trabalho, há uma passagem curiosa. Muitos
estrangeiros de várias partes do mundo eram recrutados a salários miseráveis para ali trabalharem, e
o personagem Jonathan, espécie de líder dos trabalhadores negros oriundos de Barbados (região das
Antilhas), ao observar que o médico da empresa ia fazer autópsia de rotina nos cadáveres de alguns
pretos que haviam morrido, tentou agredir e matar o clínico. Alegava que o doutor tinha a intenção
de violentar os cadáveres com a finalidade de fazer os mesmos transformarem-se em escravos
“zumbis”, “mortos vivos” que poderiam ficar a serviço e sob o domínio dele. Acreditava
convictamente nisso e ninguém conseguia demovê-lo dessa certeza. Apesar de ser uma crença falsa
(não verídica), carregada de convicção interior e irredutível, não pode ser considerada delírio por
faltar justamente a quarta característica da definição. Aqui não se trata de um distúrbio psicológico.
Não era só o negro Jonathan que acreditava em “zumbis” e que o médico tinha poderes para
transformar seus companheiros falecidos em “mortos vivos”. Os outros barbadianos que ali
trabalhavam também acreditavam nisso (inclusive reúnem-se para ameaçar o médico caso persistisse
em seu intento de executar a autópsia). Muitas outras pessoas que viviam em determinadas
localidades primitivas de Barbados, no início do século passado, igualmente teriam essa mesma
convicção, pois isto fazia parte de um conjunto de crenças e rituais que formavam a seita em que
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nasceram e foram educadas desde crianças. Portanto, trata-se, aqui, de um fenômeno sociocultural
místico-religioso, e não psicopatológico.

Esse mesmo raciocínio pode ser feito para milhares de pessoas que, em nosso mundo atual acreditam
em coisas objetivamente sem comprovação prática ou científica, às vezes até fruto de um fanatismo
e ignorância sociocultural, crenças que podemos até criticá-las e talvez condená-las, mas não
considerá-las como delírios, pois isso fugiria ao conceito de tal sintoma psicopatológico. Assim são
as crenças coletivas e fanáticas de determinados fundamentalismos religiosos. De forma semelhante,
tivemos a concepção da “raça” ariana do nazismo, onde toda uma elite intelectual, juntamente com
grande parcela da população alemã, acreditava na pureza étnica ideal de um povo sobre outros, tidos
como “inferiores” (negros, judeus, ciganos). Aqui, não exatamente uma questão religiosa, mas
ideológico-social, fazia com que milhares de pessoas adeptas ao nazismo acreditassem num juízo
falso, sem comprovação científica, de forma convicta e irredutível perante contra-argumentos lógicos.
Embora se possa, nesses casos, encontrar as três primeiras características do delírio, não se trata de
distúrbio psicológico individual, mas crenças ideológicas coletivas inseridas num contexto histórico.
Nessa mesma linha de raciocínio, podemos lembrar que certos preconceitos e superstições podem
também falsear o julgamento da realidade, mas também são fenômenos que têm dimensões e aspectos
sociais, pertencendo ao âmbito das crenças enraizadas na cultura de grupos, não se enquadrando na
concepção psicopatológica de delírio. Não se pode “psicopatologizar” o social e o cultural.

Mas aqui cabe uma advertência: se é verdade que a fé e a crença num conjunto religioso ou ideológico
de vida, por mais absurdas que pareçam, são fenômenos socioculturais compartilhados por muitas
pessoas (e não um delírio), por outro lado, há de se tomar o cuidado para não considerar todo
indivíduo que estiver fervorosamente dentro duma seita ou movimento ideológico, como não
possuidor de atividade delirante. Porque, às vezes, a “capa” de uma seita ou religião encobre um
verdadeiro quadro psicótico delirante em determinada pessoa. É o caso da freira que passa a delirar
dizendo convictamente que está sendo orientada por Deus para destruir todas as outras religiões que
não seja a católica, única doutrina que deverá existir na face da terra, fato esse que se concretizará
dentro de alguns anos com sua liderança, ideias essas não compartilhadas pelas demais freiras
católicas. Ou então do adepto de seita afro-brasileira que cai num surto psicótico e começa a delirar
dizendo que todos os “terreiros” do país estão trabalhando contra ele, mesmo que seus irmãos de
crença tentem demovê-lo dessa ideia. Esses são exemplos de evidentes ideias delirantes com temática
relacionada ao contexto religioso e ideológico em que o indivíduo vive, mas numa amplitude e
qualidade que vão além das crenças e dogmas compartilhados num conjunto cultural. Todavia, há de
se reconhecer que existem casos em que fica difícil separar até onde vai a possibilidade de já se tratar
de um delírio ou apenas de uma fé mais exagerada e fanática. Precisamos sempre, então, observar
não só a crença de um indivíduo, mas um possível desligamento dela do conjunto que forma a
estrutura religiosa coletiva, bem como todo o contexto comportamental e sintomatológico da história
e da personalidade desse indivíduo.

2. DIFERENCIAÇÃO DOS DELÍRIOS PARA COM OUTROS FENÔMENOS


PSICOPATOLÓGICOS

Além da diferenciação do delírio para crenças coletivas de caráter socioculturais, bem como para
juízos incorretos decorrentes de desconhecimentos e ignorância em relação a informações que seriam
necessárias para uma melhor avaliação da realidade (situações já mencionadas no item anterior), é
necessário ainda estabelecer distinção entre o delírio e outros fenômenos psicopatológicos, mais
especificamente, alucinações, fantasias exacerbadas e pensamentos obsessivos. Tais diferenciações
têm suma importância teórica e prática, pois nos ajudarão na avaliação diagnóstica correta do
transtorno mental de uma pessoa, levando a diretrizes de tratamento clínico muitas vezes diferentes.
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O desconhecimento, por exemplo, da diferença entre o delirar e o fantasiar de forma exacerbada, ou


entre o delírio e o pensamento obsessivo, pode acarretar significativos erros de diagnóstico e de
conduta terapêutica. Somente estudando e compreendendo outros fenômenos psicopatológicos que
possam ter algumas semelhanças com o delírio é que podemos estabelecer as necessárias
diferenciações.

ALUCINAÇÕES VS DELÍRIOS

Quando abordamos o tema da alucinação no capítulo anterior, dissemos que se tratava de uma
experiência de percepção, mas sem o objeto estimulo, ou seja, a pessoa “vê”, “ouve”, “sente através
do tato” ou “percebe” em outros campos sensoriais, imagens com características muito próximas às
percepções reais, embora na verdade não existam. São falsas percepções. O fenômeno se passa na
área da sensopercepção. Delírios, ideias ou juízos delirantes, são vivências experimentadas no campo
do pensamento, elaborações vivenciadas no mundo interior da pessoa. No delírio, o indivíduo não
está “vendo”, “ouvindo”, “sentindo” estímulos inexistentes. Ele não está “percebendo” algo irreal,
mas ajuizando, acreditando em fatos que não são verdadeiros. Por exemplo, um homem com delírio
de perseguição afirma que sua casa está cercada por pistoleiros escondidos e prontos para matá-lo.
Ele não diz que está vendo ou ouvindo homens armados, mas tem a certeza que estão ali por perto,
podendo até argumentar que não os vê nem os ouve justamente por estarem escondidos e em silêncio
para aproveitar qualquer descuido seu e executá-lo. Caso passe posteriormente também a “ouvir”
vozes ameaçadoras, então estaremos diante de dois sintomas, um delírio e uma alucinação auditiva,
o que não é tão incomum, como se observa na esquizofrenia paranoide.

FANTASIAS EXACERBADAS VS DELÍRIOS.

Todo ser humano tem suas fantasias, seu “sonhar acordado”, faz “castelos no ar”, principalmente na
infância e adolescência. Com o amadurecimento psicológico, essa prática mental tende a diminuir
bastante, mas não se extingue. Quantos adultos não já imaginaram o que fariam se ganhassem um
grande prêmio na loteria? As fantasias podem até ter uma função saudável de aliviar um pouco as
tensões e frustrações inerentes ao existir humano. Podem também ajudar na evolução das possibilidades
sociais e técnicas do homem. Veja-se o voar, por exemplo. Desde épocas bem remotas que a fantasia
de conseguir esse atributo observado nos pássaros estava presente nas aspirações humanas, sendo vista
na mitologia grega (o personagem Ícaro voa com asas de penas coladas com cera), atravessando os
milênios e tornando-se realidade no século XX (aviões, ultraleves, asas delta), e até evoluindo com os
astronautas. Certamente, Santos Dumont, antes da realidade de sua invenção, sonhara também com o
voar.

O sonhar acordado patológico, como foi denominado por Vallejo-Nagera (1970), podendo ser
chamado de pensamento fantástico exacerbado ou simplesmente fantasias exacerbadas, é um
exagero significativo dessas produções subjetivas. A enorme importância que o indivíduo dá aos
conteúdos desses devaneios e o tempo dedicado a eles, em detrimento de suas atividades reais (trabalho,
estudo, deveres do dia-a-dia, lazer), que passam a ficar em segundo plano e comumente prejudicadas
em sua efetivação, caracterizam o fenômeno psicopatológico. Mas, a pessoa que tem esse tipo de
alteração geralmente não se sente “escravizada” pela tendência a fantasiar. Pelo contrário, abraça esta
atividade mental com prazer, a despeito de evidente psicopatologia subjacente. Sua atração pelo mundo
fantástico tende a ser superior ao interesse pelo mundo real, do qual deseja muitas vezes se afastar.
Todavia, ao contrário dos delírios, nas fantasias exacerbadas há consciência crítica do caráter irreal dos
devaneios exagerados. “Infelizmente, não são verdadeiros” ou “é pena ser tudo imaginação”, chegam a
lamentar.

Uma mulher de 35 anos, bastante tímida e introvertida, com dificuldades nos relacionamentos
interpessoais, morava sozinha e era propensa a fantasias exacerbadas. Confidenciara a uma das
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poucas amigas, que passava horas imaginando um romance com o homem da casa vizinha à sua, do
qual nunca tivera coragem de se aproximar além dos cumprimentos formais. Imaginava encontros,
declarações de amor, passeios a dois, carinhos mútuos, relações sexuais e até a vinda de filhos como
resultado do casamento entre eles. A intensa inibição social, sentimentos de inferioridade e
insegurança contribuíam para a vida de fantasias dessa mulher.

Às vezes, a pessoa prefere ficar imaginando a realização de desejos ao invés de tentar obtê-los na
vida real. A mulher do caso acima, por exemplo, teria comentado para a amiga que preferia continuar
“curtindo” suas fantasias, pois o contato verdadeiro com o vizinho poderia decepcioná-la ou não ser
bem sucedido, fazendo “cair por terra” sua vida imaginária. Nesse exemplo, fica também evidente a
capacidade da pessoa distinguir a realidade da fantasia.

Uma variante especial do pensamento fantástico exacerbado é a chamada mitomania (ou, segundo
alguns, mentira patológica). Aqui, além das fantasias terem grande importância para o indivíduo, ele
as verbaliza para as outras pessoas como verdades (embora necessariamente não passe tanto tempo
dedicado a pensar nelas quando está sozinho). Intimamente, desejaria que fossem realidade, mas
também, no íntimo, permanece a consciência crítica que são irreais, diferindo da atividade delirante.
É possível que o sujeito, ao contar as estórias e perceber as pessoas acreditando nele (pelo menos
parcialmente, mesmo que desconfiadas), consiga momentaneamente “viver”, além do subjetivo, suas
fantasias. Mas, se confrontado efetivamente com a realidade, sendo suas estórias “desmascaradas”,
tende a admitir que não dizia a verdade, tenta “esquivar-se” ou desculpar-se de alguma forma,
alegando “ter se enganado” no que falou, estar apenas “brincando” ao inventar estórias, ter sido “mal
interpretado” ou coisa parecida, não sem antes aproveitar dos momentos vividos com as fantasias
contadas como reais. A tendência, todavia, é mais adiante, em novos contatos, repetir a estória ou
outra similar, pois a mitomania não é um episódio isolado, uma mentira circunstancial, mas uma
tendência ou necessidade de fazê-lo constantemente.

Um jovem dizia, em mesas de bares e em festas que procurava frequentar, conhecer muito bem um
famoso artista plástico da região. Contava que esse profissional o estimava muito e sempre respeitava
suas sugestões e reflexões, eram amigos íntimos e, dizia o jovem, chegava a opinar nas produções do
escultor, que em parte eram criações dele sugeridas ao artista. Afirmava ser também um dos empresários
do mesmo, já tendo, por diversas vezes, acertado algumas exposições e encontros com a imprensa. Na
verdade, era tudo fantasia e os dois mal se conheciam. Certa feita, numa conversa em grupo, o jovem
não percebeu que o personagem de suas estórias estava presente e passou a falar como sempre. Quando
confrontado com a realidade, desculpou-se dizendo que não era bem àquele artista que ele se referia,
não estava “juntando o nome exato à pessoa correta”, tinha se “confundido” e, embaraçado, pouco
tempo depois, retirou-se do grupo.

Às vezes, determinados casos chegam à área jurídica, como o da jovem que tem frequentes fantasias
de envolvimento afetivo-sexual com o chefe, falando às outras colegas sobre seu “romance” com ele
e chegando até a acusá-lo de assédio sexual, embora intimamente saiba não ser nada disso verdade.

Mas, como vemos, em todas essas circunstâncias, a pessoa distingue, nem que seja intimamente, o
real da fantasia, não transpõe os limites da quebra da realidade, como observamos nos delírios.

FANTASIAS

EXACERBADAS

(Pensamento

Fantástico
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As fantasias exacerbadas estão muitas vezes ligadas a pessoas excessivamente retraídas e com receios
de relacionamentos interpessoais. Na variante mitomaníaca, elas podem ocorrer nos indivíduos com
sérios problemas de autoafirmação e sentimentos de inferioridade, ficando dedicados a “inventar
estórias” como uma forma de compensação. É geralmente um sintoma neurótico ou indicativo de
distúrbios de personalidade.

PENSAMENTOS OBSESSIVOS VS DELÍRIOS.

Na prática clínica, em determinadas pessoas encontramos pensamentos persistentes cujos conteúdos


não são verdadeiros (às vezes são até absurdos) e que causam sofrimento em quem os vivenciam,
inclusive por não conseguirem livrar-se deles. Também os argumentos lógicos de que são inverídicos
ou absurdos não ajudam a deixar de pensá-los. A frequência e a constância desses pensamentos
perturbadores comprometem a qualidade de vida da pessoa e evidenciam a existência de um quadro
psicopatológico. Todavia, não devem ser considerados delírios porque está presente a consciência
crítica, ou seja, as pessoas que têm tais sintomas reconhecem o conteúdo falso dessas ideias, embora
haja impotência da vontade para controlá-las. São chamadas de ideias ou pensamentos obsessivos,
significando talvez uma desestruturação menor no psiquismo, já que a pessoa não mistura a realidade
com o imaginário, como se dá no delírio.

No antigo Hospital Pedro II do Recife, setor de psiquiatria, tomamos contato com uma paciente que
ilustra bem os graves pensamentos obsessivos, num quadro hoje chamado de Transtorno Obsessivo-
Compulsivo (TOC), anteriormente conhecido também por “neurose obsessivo-compulsiva”.
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Tratava-se de uma paciente do sexo feminino, idade por volta dos 30 anos, casada há uns 10, que veio
ao serviço psiquiátrico ambulatorial apresentando choros frequentes e desproporcionais aos motivos,
bem como irritabilidade fácil e insônia. Há vários meses vinha se recusando a manter relações sexuais
com o marido, alegando um medo muito grande de engravidar. Antes era uma pessoa relativamente
calma e que não apresentava nenhum transtorno psiquiátrico que pudesse chamar atenção, até quando,
notando que “as regras estavam atrasadas”, tomou “remédios para abortar”. Estes lhe fizeram sentir-
se muito mal, provocando uma “menstruação com bastante sangue”, vômitos e dores pelo corpo. Daí
em diante foi ficando excessivamente “nervosa” e com enorme medo de estar grávida, embora ela e
o marido seguissem rigorosamente e de forma alargada, a “tabela” dos dias não férteis, o que
restringia o contato sexual entre os dois. Paciente dizia que não se importava de ter poucas relações
por mês, pois não se sentia mais motivada nem atraída para isto, tamanha a angústia e apreensão no
momento do ato sexual. Como o medo de engravidar aumentasse, passou também a tomar
anticoncepcionais orais, continuando a exigir do marido que continuassem tendo relações apenas nos
dias de não fertilidade da “tabela”, pois, com essas duas medidas associadas, reduziria o risco de
gravidez. Mesmo assim, ainda temia que ambas pudessem falhar, embora, no íntimo, reconhecesse
que essas ideias eram descabidas. Os pensamentos de poder estar grávida tomavam grande parte de
seu tempo nos dias anteriores à menstruação, e enquanto essa não surgia, mesmo com as precauções
tomadas, o medo de que surgisse um “imprevisto” (paciente procurava evitar o termo “gravidez”), a
fazia ficar desesperada. Ideias de suicídio para se ver livre de tal sofrimento, bem como o agravamento
dos sintomas e a falta de resposta favorável no tratamento ambulatorial, fizeram com que o
profissional que lhe atendia, optasse por uma internação na enfermaria psiquiátrica do hospital.

Posteriormente, na enfermaria, se queixava de não conseguir dormir satisfatoriamente, pois temia que
algum homem pudesse ali entrar, ter relações sexuais com ela e, então, engravidar. Pensava também
nessa possibilidade caso algum funcionário se masturbasse perto de suas roupas de cama e ela entrasse
em contato com o esperma. Quando falava sobre tais ideias ficava constrangida, reconhecia a
absurdidade delas, mas não conseguia afastá-las da mente. No momento de ir ao banheiro, lavava o
vaso sanitário com sabão, esfregando-o com muita força, e só sentava nele colocando panos ou grande
quantidade de papéis higiênicos nas suas bordas, pois dizia temer que algum homem tivesse se
masturbado ali, e já ouvira falar que ficar grávida dessa maneira é possível, embora seja uma
ocorrência rara. Todo o quadro se exacerbava nos dias próximos à menstruação, pois enquanto essa
não chegava, ficava frequentemente chorando pelas enfermarias, andando de forma inquieta, não
participava das atividades terapêuticas da clínica e lamentava não conseguir afastar da mente o
pensamento de poder estar grávida, embora, nunca perdesse o senso crítico de que todos esses receios
e ideias eram produtos de sua mente. Dizia: “esses pensamentos não me deixam em paz”, “não têm
sentido”, “não consigo tirá-los de minha cabeça”. O quadro só apresentava alguma melhora quando
menstruava.

Todavia, embora o tema relacionado à gravidez fosse o principal campo de abrangência das ideias
obsessivas dessa mulher, ela também apresentava outros pensamentos com características
semelhantes. Por exemplo, uma vez o marido veio lhe visitar com dois dos três filhos. Ao perguntar
pelo terceiro, não se satisfez com a justificativa que esse não quis vir e tinha ficado na casa de uma
tia. Na saída das visitas, ficou a imaginar se o filho não estaria doente, que talvez tivesse se acidentado
ou acontecido “coisa pior”, passando a noite com tais pensamentos e sem conseguir dormir. Outro
fenômeno observado era uma compulsão para pedir desculpas repetidamente e lavar a boca, quando
falava alguma palavra ou frase considerada por ela como uma grosseria (que, às vezes, saíam num
momento de irritação, como “me deixe em paz!”, “não quero conversar!” ou “o tratamento aqui não
serve de nada!”).

Nesse exemplo, vemos pensamentos persistentes (em alguns momentos absurdos), que provocam
sofrimento psíquico e fazem a pessoa que os vivencia sentir impotência da vontade em relação a
afastá-los da mente, mas sem perder a consciência crítica da natureza psicopatológica do sintoma.
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Quando esses fenômenos se expandem ao comportamento, denominam-se atos compulsivos.


Comumente, no Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), eles estão associados aos pensamentos
obsessivos. No caso da paciente do Hospital Pedro II, vemos o comportamento compulsivo de
colocar panos de proteção no vaso sanitário (para evitar gravidez), bem como lavar a boca e ter que
pedir repetidas desculpas quando dizia algo que considerava grosseria.

Os pensamentos obsessivos são fenômenos diferentes das fantasias exacerbadas que vimos
anteriormente, na medida em que aqui a experiência subjetiva traz sofrimento, com a pessoa tentando
livrar-se das ideias perturbadoras, enquanto nas fantasias, como pontuamos, ela não se sente
“escravizada” pela tendência a imaginar cenas, estórias e acontecimentos, e até abraça esta atividade
mental com prazer.

3. CONCEITOS DE DELÍRIOS SECUNDÁRIOS E DELÍRIOS PRIMÁRIOS

Uma vez estabelecido o conceito de delírio, bem como sua diferenciação para com outros fenômenos
(psicopatológicos ou não), cabe agora começarmos a aprofundar o estudo desse distúrbio.

Costuma-se dividir as ideias delirantes em secundárias e primárias. As primeiras são também


chamadas de ideias deliroides e as segundas de ideias delirantes verdadeiras. Quando o delírio se
origina compreensivamente de outras vivências, sejam marcantes experiências que possam nos fazer
compreender o falseamento do juízo, sejam outros sintomas que estão produzindo tal falseamento,
temos então um delírio secundário. Essa compreensibilidade psicológica – o entendimento do
processo de como está se formando o juízo delirante, o caráter de ser derivado de experiências ou
sintomas que nos dão uma compreensão do porquê de seu aparecimento – é a característica básica do
delírio secundário. Já o delírio primário é uma grande interrogação em termos do entendimento de
sua formação. Não são encontradas nem marcantes experiências nem outros sintomas que possam dar
compreensibilidade ao seu surgimento, não se conhece um processo claro que nos faça entender o
encadeamento de sua instalação. Há então o que os autores chamam de incompreensibilidade
psicológica. O termo “primário” comunica a ideia de ser algo que não se deriva de outro fenômeno
conhecido. Como diz Nobre de Melo acerca desses delírios (1981, p.459):

Esses modos de experiência resultam para nós totalmente estranhos e são, por isso,
impenetráveis, ou apenas, quando muito, fragmentariamente inteligíveis, como concepções
bizarras ou singulares da realidade, comunicada através de juízos, patologicamente
falseados.

Sobre os dois grandes grupos dos delírios, comenta Jaspers (1973, p.118):

[...] quanto à origem dos delírios devem-se distinguir duas grandes classes: uns se originam,
de modo compreensível para nós, de afetos, de vivências afetivas, que abalam e produzem
sentimentos de culpa, e de outras vivências, de percepções falsas ou de vivências de
alheamento do mundo da percepção em alterações da consciência, etc. Outros não são
suscetíveis de serem seguidos psicologicamente, são do ponto de vista fenomenológico algo
de último e derradeiro. Os primeiros chamamos ideias deliroides, os últimos, autênticas ideias
delirantes. Quanto a estas últimas temos de tentar acercar-nos do dado propriamente dito das
vivências delirantes, embora não consigamos apresentar clara e concretamente esse processo
tão estranho.

4. ESTUDO DOS DELÍRIOS SECUNDÁRIOS


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Por tudo que foi dito, é válida a formulação didática de que os delírios secundários (ideias deliroides)
podem ser derivados e compreendidos a partir de (1) outros sintomas e/ou (2) marcantes
experiências que possam nos fazer compreender a formação do delírio.

Entendamos, primeiramente, como seria um delírio secundário (que se deriva) de outro sintoma que
está produzindo a alteração do juízo. Os delírios que surgem nos distúrbios do humor são bons
exemplos de ideias deliroides ou delírios secundários.

Os estudiosos e pesquisadores em psicopatologia nos mostram que, seja em um estado depressivo


ou estado maníaco-eufórico, quando surgem ideias delirantes, estas se derivam do sintoma básico
do distúrbio do humor. Este sim, seja depressão ou elação (euforia patológica) é primário, estado
afetivo que até hoje não está bem compreendido e explicado em suas causas, parecendo haver
componentes biológicos e psicológicos. Assim, a depressão grave pode originar pensamento e
linguagem lentificados, psicomotricidade diminuída, perda de apetite, baixa autoestima, ideias
suicidas e, muitas vezes, delírios, comumente de ruína, culpabilidade, destruição coletiva ou temas
similares. Da mesma forma, a euforia patológica da fase maníaca do transtorno bipolar, por exemplo,
pode produzir pensamento intensamente acelerado, linguagem logorreica (falar demais e depressa),
inquietação, aumento do apetite, autoestima exageradamente elevada, ideias irrealisticamente
otimistas e, muitas vezes, também delírios, geralmente de grandeza ou outros de conteúdos ligados à
exacerbação do humor. Mas, quando o sintoma básico, primário, seja a depressão ou elação, melhora
ou desaparece por tratamento e o estado de humor volta ao normal, os outros sintomas, secundários
(que se derivam do primário), tendem a reduzir-se ou desaparecer, inclusive os juízos delirantes.
Assim sendo, tais ideias são compreensíveis psicologicamente a partir de um estado depressivo ou
maníaco eufórico, ocorrendo em um ego fragilizado que aceita as ideias de ruína ou grandeza como
verdadeiras.

Vallejo-Nagera (1970), de forma bem didática, nos fala de um paciente que inicia sua grave depressão
demonstrando estar mergulhado numa vivência de profunda tristeza e desconsolo, com frequência
chorando amargamente. No princípio, não apresentava nenhuma alteração do juízo de realidade,
porém, com o passar dos dias começa a afirmar que está arruinado e seus filhos vão morrer de fome.
Embora essa não seja a realidade, pois seus negócios vão bem e goza de boa posição social, inclusive
com seus familiares testemunhando-lhe isso, continua convencido da ruína e miséria em que se
encontra. Trata-se de um juízo falso, carregado de convicção, irrebatível pelas argumentações lógicas
e experiências comprovativas, configurando um delírio. O autor acrescenta que o processo de
formação dessas crenças delirantes é o seguinte: o paciente, por sua psicopatologia básica (a
depressão), vivencia forte tristeza e desespero; esse estado o deixa surpreso, não o compreende e tenta
inconscientemente explicá-lo a si mesmo. Com sua mente buscando motivo para todas essas vivências
e não encontrando, “descobre” sua ruína. Surgiu então um delírio que se deriva (é secundário) de
outro sintoma, nesse caso a profunda depressão do enfermo.

Em outro caso clínico, acompanhado por um nosso colega, uma mulher que já tivera, no passado,
episódios depressivos, começou a ficar inquieta, insone, falando constantemente, mexendo com
frequência nos móveis da casa a qualquer hora do dia ou da noite dizendo querer “arrumá-los”,
apresentando estado de ânimo exaltado e intensa irritação quando alguém falava sobre o exagero de
seu comportamento. Tratava-se, evidentemente, de um quadro maníaco, caracterizando um transtorno
bipolar (fases depressivas seguidas de episódio eufórico). A autoestima estava elevada, com a
paciente afirmando ter condições físicas e psicológicas para, sozinha, executar suas inúmeras tarefas
de casa e resolver todas as responsabilidades e problemas da família. Essas ideias megalomaníacas
foram se cristalizando numa atividade delirante de grandeza. Passou a afirmar, demonstrando
convicção, que ela era a “Mulher Maravilha”, personagem de filmes de televisão (espécie de super-
heroína), tendo então poderes extraordinários, elevadas forças físicas e mentais. Só com o
restabelecimento do equilíbrio do humor básico, com a euforia patológica regredindo, é que o delírio,
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bem como os outros sintomas derivados desse estado emocional, foi remitindo. Nesses dois exemplos
vemos o que se convencionou chamar de delírios humor-congruentes, ou seja, o estado de ânimo
depressivo produzindo ideias delirantes de ruína, culpa, destruição, envenenamento; e a vivência
prolongada de euforia levando a delírios de grandeza ou similares.

Vejamos mais um exemplo de delírio secundário (que se deriva) de outro sintoma. A diminuição da
clareza da consciência, sintoma que frequentemente surge em diversos quadros tóxicos (como a
dependência e uso excessivo de certas drogas, principalmente se há uma parada brusca do consumo,
caracterizando a chamada síndrome de abstinência), pode produzir um falseamento delirante do juízo.
Aos poucos, o toxicômano vai perdendo a clareza da consciência, ou seja, ficando continuamente
com sonolência patológica, atenção prejudicada, desorientado, com apreensão defeituosa do mundo
que o cerca e associações das ideias confusas e fragilizadas. O paciente pode passar a ouvir vozes que
lhe ameaçam e também acreditar que existem pessoas querendo lhe matar, crença esta, com
características delirantes. Chega a tentar agredir quem se aproxima dele para “se defender” dos
supostos “perseguidores”. Mas, vamos supor que seja levado para tratamento de desintoxicação e
apoio psicológico e, dentro de um período suficiente para isso, a clareza da consciência vá retornando,
bem como a tranquilidade psíquica. A contínua sonolência vai desaparecendo, assim como a
desorientação e a apreensão comprometida do mundo em seu redor, enquanto as associações das
ideias vão se organizando. Cessa também a atividade delirante. O que significa que esta existia por
conta da diminuição significativa da clareza da consciência. Quando esse sintoma desapareceu,
remitiu também o delírio que dele se derivava. Há em tudo isso a compreensibilidade psicológica do
processo que o originou. Tal sintoma, o déficit prolongado da clareza da consciência, ocorre também
em outras situações clínicas, podendo produzir delírios, da mesma forma que na intoxicação por
drogas. Assim, numa pessoa com febre alta, por exemplo, onde aquele declínio da consciência
também muitas vezes se faz presente (com a capacidade de orientação, apreensão da realidade
circundante, lucidez comprometidas), o falseamento do juízo com idéias delirantes pode surgir. É
bastante conhecido o fato de que a pessoa com febre é passível de delirar. Certos quadros pós-
operatórios, devido um possível efeito residual de anestésicos e debilitação física e mental do
paciente, também podem produzir estados de diminuição da clareza da consciência, sendo, às vezes,
observado atividade delirante, que cessará com a normalização desses estados.

Vimos, então, como determinados sintomas – depressão, elação, diminuição da clareza da consciência
– podem nos fazer compreender o aparecimento de delírios que se derivam e são compreensíveis a
partir deles. Portanto, delírios secundários.

Mas os delírios secundários podem também ser derivados de marcantes experiências que possam nos
fazer compreender a formação do delírio.

Vallejo-Nagera (1970) relata o caso de um paciente que alegava estarem, todos os juízes do país,
articulados para lhe prejudicar. Não só estava convencido disto, como eram inúteis os argumentos e
provas que lhe eram dadas para fazê-lo compreender a absurdidade de suas ideias. Há uns 10 anos atrás,
esse homem teve sérias desavenças sobre os limites de um seu terreno com um vizinho da mesma região
em que sempre vivera. Embora não tivesse razão na questão, um advogado o estimulou a levá-la à
justiça. Perdeu a disputa, mas começou a achar que se tratava de erro judicial e passou a fazer apelações
a instâncias jurídicas superiores, chegando até o Supremo Tribunal. Durante os anos que durou o
processo viveu dedicado intensamente ao mesmo, para que “se fizesse justiça”, perturbando-se cada
vez mais com os pormenores que lhe eram adversos e não ouvindo as opiniões e orientações de amigos
e outros profissionais da área. Chegou a um ponto em que suas acusações aos promotores e juízes foram
ficando claramente descabidas, não admitindo o menor comentário contrário às suas ideias. A cada
pessoa que tentava convencer-lhe do erro e absurdo delas, a acusava de ser “cúmplice” dos que
“tramavam” contra ele ou de estar “vendida”. Nesse exemplo, vemos surgir em uma pessoa, ideias
delirantes que estão em relação compreensível com seus pleitos, fracassos, reivindicações, decepções
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dos últimos anos, derivando-se, então, destas marcantes experiências. Obviamente nem toda pessoa
nessas circunstâncias desenvolveria um delírio, mas este ocorreria naqueles indivíduos com
determinadas características de personalidade, como desconfiança para com os outros, tendência a
guardar ressentimentos e hipersensibilidade a críticas.

Tivemos conhecimento de outro caso de atividade delirante secundária a marcantes experiências que
ilustra bem o fenômeno da compreensibilidade psicológica. Um professor, com muita sensibilidade
humanística, durante a ditadura militar em seu país, devido opiniões contrárias ao regime dominante
que ele algumas vezes expressara sutilmente em sala de aula, foi chamado e admoestado pelos
censores da época. Isso o deixou apreensivo, até porque alguns de seus amigos, militantes políticos,
tinham sido presos e as famílias sofrido pressões e ameaças. Algumas semanas depois, um parente
que ele muito estimava, foi preso por atividade “subversiva”, ficando na condição de não receber
visitas nem ter qualquer tipo de comunicação com os familiares, imposição comum em épocas de
ditadura. A vivência de impotência e revolta do professor, bem como a incerteza e dor pelo que
ocorreu ao familiar, o deixou notoriamente perturbado. A apreensão do que ocorreria com sua mulher
e filha se ele viesse a ser preso começou a lhe preocupar, até porque, devido suas concepções
humanistas de não achar correto se omitir num contexto político dessa espécie, passou a participar de
algumas reuniões com intelectuais contrários ao regime. Mas então começou a se instalar nesse
homem outra fonte de inquietação e angustia: se, por um lado, resolvesse se resguardar e não
frequentar os encontros de cunho político, por outro, se sentiria omisso e “covarde” por essa postura.
Quando não ia a tais reuniões, posteriormente, ao encontrar os amigos contestadores, sentia-se
constrangido e envergonhado por sua atitude. Em um determinado dia de indecisão, resolveu
participar de um dos encontros, mas foi com desespero que viu o local ser invadido pela polícia, que
prendeu parte dos presentes, enquanto outros conseguiram escapar. O professor foi levado,
interrogado e torturado durante dias nos porões da ditadura, a fim de que delatasse amigos e
fornecesse informações sobre movimentos revolucionários existentes. Passou a sofrer também
torturas psicológicas, com afirmações que sua mulher e a filha de 10 anos estavam presas e que elas
também seriam torturadas caso ele não “confessasse” o que sabia. Só após vários dias nesse intenso
sofrimento, quando foi ficando evidente que ele não tinha conhecimento do que os investigadores
queriam saber e que não se tratava de um “perigoso subversivo” é que foi libertado. Ficou algumas
horas na casa de um amigo, onde se encontrou com a esposa e filha. Então começou a afirmar que
os três seriam presos e elas, desta feita, sofreriam torturas. Não mais saía de casa e se desesperava
quando as mesmas o faziam, pois acreditava convictamente que agentes da polícia disfarçados
estavam nas redondezas para lhe prender (o que não era verdade). “Por que estão fazendo isto
comigo?”, repetia diversas vezes em desespero. A atividade delirante estava caracterizada: crenças
falsas, carregadas de convicção, irredutibilidade aos argumentos e experiências comprovativas, além
de ser um fenômeno resultante de profundo abalo traumático emocional. As ideias delirantes só
foram cedendo após algumas semanas, através da presença e apoio da esposa e filha, bem como do
tratamento para o quadro de desorganização psicológica que o homem estava apresentando. Tratava-
se de juízos delirantes, mas possíveis de serem entendidos em sua formação, ou seja, derivados dos
momentos de conflitos e traumas pelos qual esse homem passou. Há em tudo isso, mais uma vez, a
chamada “compreensibilidade psicológica”, que podemos sentir ao observamos
fenomenologicamente o processo de vivências que levaram o indivíduo ao delírio. Alguém poderia
indagar se não é esperável que uma pessoa submetida a tamanhas experiências traumáticas venha a
apresentar aquele quadro de distorção da realidade. Sim, é compreensível o processo (daí o termo
compreensibilidade psicológica), mas não podemos dizer que isso não é um distúrbio psicológico,
precisando inclusive de tratamento. Numa analogia didática, é esperável e compreensível que a perna
de um homem seja fraturada se um pesado poste cair sobre ela, mas não podemos dizer que, pelo fato
de se compreender o motivo da fratura, esta não seja um distúrbio na área da traumatologia óssea,
precisando de tratamento.
52

Mas aqui algumas palavras devem ser ditas sobre o aparecimento de delírios mediante experiência
traumática. Nós compreendemos a formação dessas ideias delirantes, acompanhamos como se
estruturou a crença arraigada num falseamento da realidade. Empatizamos com o homem torturado
do exemplo. Podemos nos imaginar no lugar dele e o compreendermos em suas ideias delirantes
dentro duma lógica dos sofrimentos e desesperos humanos. Mas isto não é a totalidade da causa do
delírio. Precisamos não confundir causa com compreensibilidade psicológica. Embora
compreendamos o processo de sofrimento e formação do delírio daquele homem, não podemos dizer
que está explicada a totalidade da origem do fenômeno. Por que não foi unicamente o que a pessoa
sofreu que causou o quadro delirante. Vários indivíduos passam por intensas experiências traumáticas
e não deliram. Isso porque outros fatores, talvez de estrutura e de constituição da personalidade, ou
ligados a sua formação desde a mais remota infância, possam explicar o porquê em certos indivíduos
surgem delírios mediante situações traumáticas e noutros não. A propósito, Darcy Ribeiro, renomado
historiador e antropólogo, escrevendo sobre a história contemporânea do Brasil, narra alguns
episódios sobre os anos de prisão e tortura de Luiz Carlos Prestes, personagem contrário ao período
de ditadura de Getúlio Vargas. Prestes é colocado, em 1935, numa pequena cela por ordem de Filinto
Müller (um dos chefes policiais da ditadura), sendo enclausurado juntamente com outro preso, o
alemão Harry Berger. Em um desses episódios, Darcy Ribeiro (1986) conta:

Prestes é encarcerado numa cela tumular junto com Berger, louco, que gritava a noite inteira.
Passa os anos seguintes sob total isolamento e debaixo do regime carcerário mais duro, tomando
diariamente uma tigela de leite e comendo salada com pão. Filinto Müller queria mais
enlouquecê-lo do que matá-lo, mas Prestes, duro de roer, aguenta, sustentando-se em si e em
pequenos gestos de solidariedade de soldados que lhe davam, escondido, um jornal ou um bilhete.
Assim se mantém vivo e lúcido.

Aumentando o sofrimento, sua mulher, Olga Benário, grávida, é entregue por Filinto Müller para os
campos de concentração nazistas, aonde viria a ser assassinada. Apesar de todas essas intensas
experiências traumáticas, a estrutura psicológica de Prestes não descompensou para um quadro
delirante ou outro estado psicopatológico.

5. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS DELÍRIOS PRIMÁRIOS

Cabe agora nos voltarmos para as reflexões e estudos acerca dos delírios primários. Sua conceituação
já ficou assentada nas passagens anteriores e, como vimos, a incompreensibilidade psicológica é um
ponto básico em sua estrutura. Algumas escolas teóricas levantam hipóteses sobre o que poderia
provocar tais delírios, tentativas de encontrar alguma luz de compreensão para tão enigmático
fenômeno. Mas não há um consenso ou entendimento como existe acerca dos delírios secundários, e
as poucas formulações são apenas especulações teóricas.

É importante, antes de tudo, não confundir fator desencadeante com compreensibilidade psicológica.
Quando, por exemplo, um homem assiste a um filme de guerra, sai um tanto chocado com as cenas
que viu e cai em franco delírio afirmando convictamente que a 3ª guerra mundial começara e toda a
cidade iria ser bombardeada, isto não é delírio secundário, porque assistir a um filme e ficar
impressionado com o mesmo não é marcante experiência que se considere como de magnitude
suficiente para possibilitar o aparecimento de um fenômeno tão complexo quanto o delírio. Esse
homem não viveu experiências de traumas de guerra, não apresenta em sua anamnese e exame mental
dados significativos que justifiquem a instalação do delírio, não há nada de marcante
psicologicamente em sua história de vida ao ponto de se entender o porquê da formação de tal crença
relacionada à guerra e destruição da cidade. O filme de guerra serviu apenas como tema do conteúdo
do delírio e, no máximo, podemos considerá-lo como uma espécie de fator desencadeante do mesmo.
Da mesma forma, o caso do adolescente que está estudando bastante para o vestibular ao ponto de
53

ficar um tanto estafado e, em seguida, passa a delirar dizendo que a polícia está lhe procurando para
prendê-lo, não se trata de delírio secundário, uma vez que em sua história não há marcantes
experiências nem sintomas que nos faça compreender a estruturação do fenômeno, pois “estudar
demais”, até poderia ser algo como experiência desencadeante, mas não o fator que nos leve a um
entendimento da construção desse delírio, no sentido da compreensibilidade psicológica a que
estamos nos referindo.

Nobre de Melo descreve um interessante exemplo onde podemos ver o aparecimento de um delírio
primário, com sua incompreensibilidade psicológica característica, que pela originalidade e descrição
didática, aqui transcrevemos. Trata-se de um paciente de 34 anos, casado, advogado, não
apresentando história psiquiátrica anterior (1981, p. 463).

Sem antecedentes familiares, pessoais e sociais, que fizessem suspeitar quaisquer disposições
anormais de personalidade. Casara-se casto, conforme os mandamentos da Igreja, há cerca
de 10 anos, e seu matrimônio vinha transcorrendo sem incidentes, animado por forte afeição
e vivo interesse sexual recíproco. A esposa, cerca de 5 anos mais velha, era tranquila e
compreensiva. Com dois filhos sadios e em idade escolar, viviam em harmonia, sem problemas
econômicos ou quaisquer outros, mantendo boas relações com as famílias respectivas. De
temperamento predominantemente introvertido e supersensível, não teria sido fácil aos
circunstantes desavisados apurar, com precisão quando e como as coisas haviam começado
a mudar. A princípio, ao que observara a esposa, dava apenas a impressão de achar-se
preocupado e tenso, mas interrogado, respondia sempre com evasivas, mais ou menos
aceitáveis. Depois, tornara-se excessivamente inquieto, áspero, impaciente. Em público,
mostrava-se taciturno, afetando um ar de alheamento e fumando incessantemente. Outras
vezes, permanecia de olhar atento e fisionomia indagadora, refletindo certo grau de
ansiedade. Já a essa altura, é claro que não lhe era possível esconder que algo de estranho
vinha ocorrendo. Mas, a “chave do enigma”, a espantosa e aterradora de toda a “infame
verdade”, ele só viera a tê-la, quando, ao anoitecer de um domingo, estando em visita ao
sogro, percebera que este, que sempre julgara um respeitável ancião, de setenta e tantos anos,
transmitia “sinais convencionais” ao filho da cozinheira, um garoto de não mais de onze anos
de idade, que, descobriu-o então, achava-se a serviço dos “apetites libidinosos" do velho!...
Começara agora, finalmente, a entender o que sempre, ingenuamente, ignorara: existia, de
fato, um verdadeiro “código secreto internacional”, através do qual, a “extensa e ignóbil
confraria da homossexualidade” se comunicava e graças ao qual se reconheciam os seus
membros, uns aos outros, “à maneira de como fazem os maçons”, em qualquer parte onde
estivessem. Era uma espécie de “código Morse”, explica, mas muito mais rico e complicado,
incluindo, ao um só tempo, sinais semafóricos e acústicos, certo jeito “inocente” de passar a
mão pelo rosto, como para certificar-se de que fora bem barbeado, ou de enxugar com o lenço
o suor da testa, como há muito tempo vinha observando, sem compreender, no trabalho, no
ônibus, nos cafés, nos restaurante; o modo de cruzar a perna ou de bater com o pé no chão,
repetidamente, mas com determinado ritmo, como o fizera um militar, havia pouco, na sala
de espera de um cinema; certa gesticulação, aparentemente natural, em meio de uma
conversação, como tantas vezes vira e ouvira, sem suspeitar de nada; e até mesmo tais ou
quais posições da mão e dos dedos, quando em repouso sobre os braços de uma poltrona,
digamos, ou tamborilando displicentemente sobre um tampo de mesa, eis aí, alguns dos
numerosíssimos sinais de que se valem os pervertidos de todos os países para a difusão de seu
“vício nefando”. Admite, com desgosto que, por desconhecer, até então, o significado destas
coisas, talvez houvesse também emitido, sem querer, sinais de resposta a insinuações e
estivesse passando assim por homossexual. Mas o que mais o desesperou foi comprovar que
a depravação atingira a própria família da esposa (pai e irmãos) e talvez esta mesma...
Decididamente, o mundo inteiro estava a converter-se em uma “nova e imensa Sodoma”. A
humanidade chafurdava no lodo, pois acabara de descobrir que nem a própria Igreja
escapara à ação daquele “proselitismo sórdido”: os padres de uma catedral se comunicavam
com os de outra, através dos sinos, que faziam tanger, espécie de “telégrafo sonoro”, que
utilizavam para sugestões e convites mútuos a toda sorte de práticas obscenas...
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Após a apresentação desse caso, o autor não só ressalta que ele exemplifica o início de um delírio
primário, mas acrescenta, sobre a evolução do estado psicopatológico do paciente, que outros
sintomas iriam aparecendo, como alucinações auditivas, solilóquio, risos imotivados, estereotipias de
movimentos, etc., justificando-se o diagnóstico de esquizofrenia paranoide.

Mas, o caso nos possibilita também fazer uma diferenciação importante entre o conceito de
compreensão psicológica para o que chamamos, em psicopatologia, de explicação de um fenômeno.
Para nos aprofundarmos um pouco mais nessas questões, é importante saber o que se entende por
método fenomenológico em psicopatologia, pois a ele estão ligados os conceitos de
compreensibilidade e incompreensibilidade psicológica, empatia e explicação.

Para muitos, Edmund Husserl (1859–1938) teria sido o iniciador da corrente filosófica denominada
fenomenologia, com um método de estudo descritivo, apriorístico e baseado na apreensão dos
fenômenos psíquicos vivenciados na consciência do indivíduo. A fenomenologia descreve
experiências psicológicas subjetivas e enfatiza o que aparece na consciência, priorizando a vivência
do mundo pelo sujeito, e não do mundo em si. O observador deve deixar de lado as teorias, para
evitar que distorçam o trabalho de observação. Neste, é necessário a compreensão empática das
vivências, entendendo-se por empatia a capacidade de colocar-se e sentir-se na posição da outra
pessoa. Foi Karl Jaspers (1883–1969), filósofo e psicopatólogo alemão, quem fez a transposição do
método fenomenológico para a investigação dos pacientes com transtornos psíquicos. Esse autor
ressaltava que as vivências dos pacientes não podiam ser observadas diretamente como os fenômenos
físicos. Mas, após o relato do paciente sobre suas experiências subjetivas, poderíamos fazer, por meio
da empatia, uma comparação com as nossas próprias vivências, e assim poder tornar possível a
compreensão da vivência do outro, bem como o encadeamento compreensível dos fatos. Apenas a
observação objetiva do comportamento do paciente não permitiria um aprofundamento no fenômeno
psicopatológico. Portanto, um dos pontos centrais da psicopatologia fenomenológica são as vivências
subjetivas dos pacientes, descritas por eles próprios, no campo da consciência. O método
fenomenológico tem também como instrumento, a mente do entrevistador, com seus conteúdos
emocionais e cognitivos. Não dá ênfase a possíveis mecanismos inconscientes (extraconscientes),
nem tem preocupação com a busca de explicações teóricas para os acontecimentos psicológicos. Na
observação fenomenológica enfatizam-se as vivências em si, sem se voltar muito ao estudo de suas
possíveis origens.

Passemos a situações práticas para ilustrar essas questões. Imaginemos que uma mulher, casada há
uns 15 anos, após passar pelo impacto emocional de ser rejeitada e deixada pelo marido, com o qual
nunca conseguiu ter filhos, logo vem também a ter conhecimento que ele possui outra família paralela,
com mulher e filhos há quase 10 anos, com quem passa agora a morar. Dentro de um padrão de
mulher bastante dedicada ao casamento, mediante tais acontecimentos, cai em estado de depressão,
com baixa da autoestima, perda de motivação para suas atividades, tristeza constante e outros sintomas
comuns neste estado psicológico. Podemos compreender, inclusive baseado em nossas experiências de
perdas, a instalação desse quadro depressivo a partir das vivências dolorosas experimentadas por essa
pessoa. Dizemos que tal depressão se trata de algo psicologicamente compreensível, onde podemos
empatizar com o sofrimento dessa mulher, que não nos é impenetrável em um entendimento
fenomenológico. É diferente quando, sem acontecimentos ou vivências significativas, a pessoa entra
em um estado depressivo de forma intensa e prolongada, ao ponto inclusive de tentar suicídio. Neste
caso a experiência da depressão sem um motivo plausível, nos é enigmática, não podemos acompanhar
sua instalação com a compreensão empática que temos mediante as vivências da mulher do exemplo
anterior. Naquele, compreendemos a depressão como algo que surgiu secundariamente a experiências
claramente traumáticas (daí poder-se usar o termo “depressão secundária”), ao contrário do outro caso,
onde não há elementos psicológicos que nos façam compreender o surgimento da depressão (fala-se
então de “depressão primária”), quando então é utilizado o termo “incompreensibilidade psicológica”.
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Com isso, não estamos dizendo que, nesse último exemplo, não existam causas para a instalação da
depressão. Estas podem ser especuladas e procuradas nas tentativas de explicações, baseadas em teorias
psicanalíticas, neurofisiológicas ou outras que procuram encontrar a origem de fenômenos
incompreensíveis psicologicamente.

O mesmo raciocínio se aplica ao tema dos delírios. Quando mencionamos o exemplo daquele homem
que, após sofrer prolongada tensão emocional frente ao perigo de ser preso por agentes da ditadura,
é de fato encarcerado e submetido a torturas (tanto físicas quanto psicológicas), passando por
experiências de isolamento em relação aos familiares e, em seguida, começa a apresentar ideias
delirantes ligadas a perseguições e prisões, inclusive relativas à esposa e filha, pudemos compreender
psicologicamente a formação do delírio. Pelo desenrolar das ocorrências, poderíamos inclusive nos
imaginar na experiência de intenso sofrimento pelo qual aquele homem passou e termos a posição
empática para com ele e suas vivências. Estamos novamente no processo de compreensão do
fenômeno. Mas, não se passa o mesmo quando nos voltamos para o caso narrado por Nobre de Melo,
em que o paciente, ao ver o sogro fazer um gesto qualquer, conclui que aquilo significa convite a
práticas sexuais com uma criança e, em seguida, acredita-se perseguido por homossexuais, passando
a observar em toda parte comunicações entre eles através de gestos e acontecimentos triviais, pois
aqui fica evidente o que chamamos de incompreensibilidade psicológica. Não podemos compreender,
no sentido da psicopatologia fenomenológica, o processo de formação dessa atividade delirante,
tornando-se difícil empatizar com as vivências daquele homem. Todavia, outra coisa é fazermos
especulações acerca das causas do delírio e tentar dar explicações para possíveis origens dele. É muito
tentador relacionarmos todo aquele discurso delirante com pressupostos psicanalíticos de
homossexualismo latente inconsciente. Por outro lado, um pesquisador da linha neurobiológica
poderá argumentar que quando uma pessoa delirante é submetida ao tratamento com medicação
reguladora de certos neurotransmissores cerebrais, o delírio tende a diminuir ou desaparecer e, assim,
tentar explicar sua causa através de desequilíbrios neurofisiológicos. Vejamos aqui que já saímos do
campo da compreensibilidade psicológica a que nos referimos e passamos à área das hipóteses, das
aplicações de modelos teóricos e, enfim, das tentativas de explicação das causas dos fenômenos.

6. TIPOS DE APRESENTAÇÃO DOS DELÍRIOS PRIMÁRIOS

Continuando o estudo dos delírios primários, segundo Jaspers (1973), existem três formas de
apresentação desses delírios: percepção delirante, representação delirante e cognição delirante,
classificação essa adotada pelos diversos autores de obras clássicas e recentes de psicopatologia.

A) PERCEPÇÃO DELIRANTE

Aqui, o delírio primário se inicia através duma percepção real. Quando uma mulher viu no varal de
estender roupas da vizinha uma camisa preta, concluiu que aquela roupa estava ali para que ela
entendesse que seria morta e sua casa ficaria de luto. Observe-se como a crença delirante se instala a
partir de um sentido anômalo que é atribuído a uma percepção, uma “leitura” psicopatológica do objeto
real, no caso a roupa preta. Não há aqui alucinação e nem mesmo ilusão. Qualquer pessoa pode constatar
de fato a existência daquela camisa num varal. A mulher não está deformando a percepção do objeto,
pois caso contrário seria ilusão (olhar, por exemplo, a camisa e achar estar vendo um homem). Ela vê,
como todo mundo, a camisa preta tal qual de fato é. O patológico está no significado que dá àquela
camisa estendida: uma espécie de “sinal” para que entenda que vai ser morta.

Percepção
Delirante

ideia delirante
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Didaticamente, como mostra o gráfico acima, considera-se que a vivência da percepção delirante
compõe-se de dois membros. O primeiro vai do sujeito ao objeto percebido (a mulher vê uma camisa
preta), e o segundo, desse objeto à significação psicopatológica (a camisa indica que ela vai ser
morta).

Na percepção delirante, para a pessoa que delira, a percepção real tem um significado dirigido
direta ou indiretamente a ela, ou seja, aquilo que vê, ouve, percebe, de imediato é vivenciado
como “um sinal”, “um aviso” para que compreenda a “verdade” que se impõe. Inúmeros exemplos
podem ser dados. Um paciente vê uma corda no chão e passa a delirar dizendo que aquele objeto
foi ali colocado para ele saber que vai ser traído pela esposa; outro, ao ver uma pessoa correndo
na chuva acredita que aquilo significa que o mundo vai acabar naquele momento ; um terceiro, ao
ouvir no rádio a introdução musical de um programa semanal, conclui, com isto, que ele está
sendo perseguido pela polícia.
Um aspecto básico dessa forma de delírio é o que alguns autores chamam de tendência a “viver
significações”, fenômeno pelo qual frequentemente se inicia a percepção delirante, consistindo em
uma tendência interna e incontrolável a atribuir significados anômalos às percepções que nos cercam.
Essa experiência psicopatológica de viver significações fenomenologicamente incompreensíveis
parece ocorrer simultaneamente ao momento da percepção. No caso clínico visto anteriormente, um
gesto qualquer feito pelo sogro do paciente foi imediatamente entendido como um convite ao filho
da cozinheira para práticas sexuais, o badalar dos sinos das catedrais significava que os padres se
convidavam para atos obscenos, e assim por diante.

Ressalte-se que não é necessário, para a instalação da percepção delirante, apenas percepções visuais,
mas o som de uma música no rádio, o badalar dos sinos, uma palavra ou frase ouvida, um odor, o
tocar das mãos de uma pessoa, qualquer estímulo perceptivo pode adquirir uma significação
psicopatológica.

Kurt Schneider (1968), psicopatólogo alemão, descreveu a percepção delirante como sintoma de
suma importância para o diagnóstico de esquizofrenia. Argumentava que essa forma de delírio faz
parte de um grupo de sintomas que, quando surgem em pacientes psiquiátricos, constituem passo
significativo para se estabelecer a existência daquela doença. A esse grupo chamou de “sintomas de
1ª ordem” no diagnóstico de esquizofrenia, onde, além da percepção delirante, agrupou outros, como
determinadas alucinações auditivas, vivências de que os pensamentos estão controlados por forças
externas e mais alguns que, até hoje, são adotado pelas classificações modernas dos transtornos
mentais para caracterização clínica da esquizofrenia.

Mas não esqueçamos que estamos nos referindo a delírios primários, onde há a incompreensibilidade
psicológica e não existem dados que possam fazer com que compreendamos o mecanismo formativo
da ideia delirante. Todavia, não podemos falar de percepção delirante (tipo de delírio primário)
quando uma percepção é interpretada delirantemente, mas com dados que nos faça compreender o
processo da formação do delírio (que nesse caso será secundário). Um exemplo pode aclarar isso.
Um homem conhecido por ser muito “machista” e desconfiado em relação às outras pessoas vinha
sendo bastante criticado por amigos devido uso abusivo de bebida alcoólica, motivo pelo qual bateu
com o carro por dirigir embriagado, tendo elevado prejuízo e até perda do veículo que não estava no
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seguro. Paralelamente, é demitido de seu emprego e a esposa sai de casa com as filhas dizendo que
só voltaria quando ele abandonasse por completo a bebida, que já estava até prejudicando o
relacionamento sexual do casal. É quando então, um tanto desesperado e com o intuito de trazer a
esposa de volta para casa, telefona para ela. Todavia, não a encontra onde está morando
temporariamente e, no momento que o telefone dispara e cessa de tocar, refletindo ansiosamente sobre
os últimos acontecimentos, lhe vem a certeza de que a mulher o está “traindo”, já que, sozinha, devia
achava-se “insatisfeita sexualmente” e, não se encontrando na atual moradia, “certamente”
deveria estar com um outro homem. Reflete ainda que, como recentemente ela de fato comentara a
amigos do casal sobre suas dificuldades conjugais com o marido, isso pode ter estimulado algum
homem a “aproveitar a situação”. Não admite para si mesmo a possibilidade lógica de,
coincidentemente, ela ter apenas saído de casa no momento da ligação. A convicção surgiu a partir do
telefone tocando sem que ninguém o atendesse. Todavia, há uma série de elementos na história desse
homem que nos faz compreender o processo de formação da crença de estar sendo “traído”. Apesar de
haver uma percepção interpretada erroneamente, trata-se, de ideia deliroide, secundária, e o termo
“percepção delirante”, um tipo de delírio primário, não deve ser aplicado aqui.

Vejamos mais um exemplo de percepção delirante, desta feita citado por Isaías Paim (GOÁS apud
PAIM, 1982, p. 103), onde se ressalta certo aspecto particular que dará continuidade ao estudo dos
delírios primários. Um paciente assim se expressou:

Ao me aproximar hoje da porta de minha casa, verifiquei que, no chão, estava uma garrafa
quebrada em vários pedaços, que havia contido vinho tinto, e este se derramara, formando
uma poça grande. Naquele instante tudo se tornou perfeitamente claro. Toda minha depressão
e minha angústia desses últimos tempos, que tanto me faziam sofrer, ficaram esclarecidas
naquele momento. Não era mais um pressentimento de algo do qual eu não me havia dado
conta. Aquilo que acabava de ver na porta de minha casa foi uma revelação. Em poucos
segundos ficou para mim bem esclarecido, sem lugar a dúvidas, que o meu sofrimento desses
meses não era outra coisa que um pressentimento de algo terrível que me vai suceder. Vão me
aniquilar, vão acabar com a minha vida, partindo-a, como fizeram com a garrafa, até
dessangrar-me, como a poça de vinho tinto me revelou. Tudo está perfeitamente claro. É
desumano e criminoso o que vão fazer comigo para destruir-me moral e fisicamente. É um
crime!

Na prática clínica, um fenômeno que muitas vezes precede o delírio primário é o que se chama de
humor delirante ou estado de ânimo delirante, presente no relato acima. Trata-se de vivências
imprecisas de inquietação sem que se saiba ao certo o porquê delas, de “pressentimentos” que algo
de “ruim” está para acontecer, angústia ou medos vagos voltados para “alguma coisa” ao redor, mas
que não se consegue ao certo precisar. Muitos falam de uma vivência angustiante de estranheza do
mundo circundante. Às vezes adquirem uma “impressão de fim de mundo” ou algo experimentado
como catástrofe iminente. A duração deste estado é variável, podendo ser de horas, dias ou semanas.
Sobre o humor delirante, assim escreve Nobre de Melo (1981 p. 464-465):

[O humor delirante] é vivido pelo doente como uma experiência indescritível, em que se mesclam
o espanto, a incerteza, a intranquilidade, a confusão a perplexidade. Com frequência nos dizem:
“Há qualquer coisa no ar”... “Essa luz, essa claridade, positivamente, não são comuns, tudo está
agora mudado”. E indagam, de súbito, aflita e reiteradamente: “Que é hein ? Que está havendo
?” “Parece tudo tão estranho aqui e diferente”... E, por fim, revelando a crescente ansiedade de
que se acham possuídos, o pressentimento de um grave perigo que se aproxima, ameaça oculta,
cheia de sombrios presságios, algo que, entretanto, não sabem ao certo o que seja, de onde vem
e o que significa, exclamam, não raro, ora para o médico, ora para os seus familiares mais
chegados: “É impossível, eu sei, inteiramente impossível que alguma coisa não venha a
acontecer!... Não é mesmo? Mas, que coisa será essa, afinal?” Eis, em linhas gerais, o que se
entende e como se manifesta o humor delirante, algo que é, como um “esquema mental”, uma
estrutura ainda vazia e oca, sem conteúdos ideativos definidos, mero estado-de-espírito que tende
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a atenuar-se, senão mesmo a diluir-se com o aparecimento das vivências delirantes primárias,
que se cristalizam e se expressam então através de palavras e atos, na chamada - temática
delirante.

De fato, com a eclosão plena do delírio, de certo modo há um alívio para o paciente, onde as primeiras
“certezas” parecem preencher a interrogação torturante do humor delirante. É o que sugere o caso de
Goás, citado por Isaías Paim, em que se percebe certo alívio no paciente quando ele sente que o vazio
angustiante de alguma incerteza é preenchido por uma convicção de que será destruído por
perseguidores, a partir do momento em que vê a garrafa de vinho quebrada.

O humor delirante parece também achar-se presente no caso daquele paciente que “constata” estar
rodeado por um mundo homossexual, “percebendo” gestos, comportamentos e acontecimentos
ligados a códigos secretos de convites a práticas sexuais. Antes, todavia, sua esposa vinha observando
que se achava preocupado e tenso, mas, justificava seu estado com evasivas mais ou menos aceitáveis,
no entanto, foi se tornando excessivamente áspero e impaciente, com aspecto de alheamento,
fumando incessantemente, por vezes permanecendo com olhar atento e fisionomia indagadora, já não
podendo ocultar que algo de estranho estava lhe ocorrendo. É quando, em seguida, surge a eclosão
das vivências delirantes primárias.

Muitos psicopatólogos consideram o humor delirante como que um preâmbulo da eclosão do delírio
primário, mas, embora seja fenômeno frequente antes dessa modalidade de delírio, não é sempre
observado e nem é condição necessária para seu diagnóstico.

Mas é importante não confundir o humor delirante com outros fenômenos que ocorrem no
psiquismo humano, inclusive fenômenos não necessariamente psicopatológicos. Humor delirante
é uma experiência complexa que envolve diversos sentimentos e vivências, geralmente muito
dolorosa e prolongada, como estamos procurando mostrar através de descrições e exemplos. A
intensa e persistente angustia, a inquietação ansiosa, a vivência de catástrofe iminente, uma
profunda sensação de estranheza do mundo exterior, os sentimentos de perplexidade subjetiva,
são experiências de magnitude significativa para quem as experimenta. Humor delirante não é
apenas uma angustia imprecisa, um sentimento de “pressentimento ruim”, ou ainda certos estados
de ânimo um tanto desagradáveis, vivências que todos nós podemos experimentar ao longo de
nossas vidas e que desaparecem sem deixar problemas mentais nem enveredar por quadros
psicopatológicos. Na chamada “doença ou síndrome de pânico” pode ocorrer ataque agudo de
ansiedade, em que o indivíduo repentinamente e de forma momentânea vivencia medo impreciso,
estranheza do percebido, “impressão” de que vai enlouquecer ou morrer, apresenta suor frio,
sudorese, taquicardia (muitas vezes é levado para emergência cardiológica), e apesar desse ataque
ser muito angustiante, não tem nada a ver com humor delirante, até porque essa crise de pânico
não culmina em delírio.

É importante ressaltar que o humor delirante está ligado ou precede ao delírio primário, não sendo
fenômeno ou termo concernente às ideias deliroides ou delírios secundários. Todavia, tal estado de
ânimo delirante não está ligado apenas às percepções delirantes, mas também a outras formas de
idéias delirantes primárias, que passaremos a descrevê-las.

B) REPRESENTAÇÃO DELIRANTE

Essa variação de delírio primário consiste na atribuição de significações inverídicas a certas


representações mentais que vêm repentinamente à mente da pessoa delirante, representações em forma
de lembranças verdadeiras ou possíveis de serem reais, embora possam ser também reminiscências
deformadas em relação a como os fatos realmente se passaram. Ou seja, uma crença delirante se instala
não a partir de uma percepção, mas de uma representação mental (recordação verdadeira ou não).
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Num exemplo dado por Jaspers (1973), um paciente passou a delirar dizendo-se descendente herdeiro
do rei Luiz da Baviera, monarca de sua época. Essa ideia delirante surgiu no momento em que
recordava ter assistido, quando criança, um desfile militar onde se fazia presente o referido rei, que
até olhara para o menino de uma “maneira especial”, segundo ele lembrava. O delírio não aconteceu
no passado, quando o paciente era criança, mas ele traz a lembrança de um fato – o desfile com o
monarca – e na eclosão de um quadro psicótico na vida adulta atribui um significado delirante àquela
recordação. Esse exemplo presta-se também para vermos que as recordações, nesse tipo de delírio,
nem sempre são de todo verdadeiras, pois se o desfile que o paciente vira foi acontecimento real, a
recordação do monarca olhando para o menino de forma especial pode ter sido uma criação-
deformação da lembrança.

Outra pessoa, entrando em surto psicótico, ao se recordar que há anos atrás ganhara uma caneta com
o mapa de seu país gravado nela, começa a delirar afirmando que aquele presente era uma informação
para que hoje entendesse ser ele o presidente da nação.

Evidentemente que essas pessoas não deliraram no passado, no momento do desfile militar ou do
recebimento duma determinada caneta, mas tomaram uma representação mental (imagem mental de
acontecimentos ocorridos) e lhe deram um significado delirante. Como diz Othon Bastos (1986) “a
representação delirante é sempre algo retrospectivo, que se refere a uma experiência do passado”. É
claro que a recordação em si pode estar presente ao longo dos anos sem assumir caráter de delírio,
mas com o surgimento da desorganização psicótica, aquela lembrança vem agora com um
direcionamento para a certeza psicopatológica.

Representação
Delirante
ideia delirante

sujeito representação
(recordação)

Como mostra o gráfico, podemos dizer que nas representações delirantes, vemos também, delírios
formados por dois membros: o primeiro vai do sujeito à configuração de uma representação ou
recordação (acontecimento do desfile militar ou do recebimento da caneta); o segundo se dirige desta
formação psíquica à significação psicopatológica (a lembrança indica que o indivíduo, hoje, é
herdeiro do rei ou o presidente do país).

C) COGNIÇÃO DELIRANTE

Nesse terceiro tipo de delírio primário, a atividade delirante surge através de convicções intuitivas,
que vêm à mente do paciente como uma certeza espontânea, principalmente no início de quadros
psicóticos agudos. Um paciente se diz repentinamente tomado pela convicção de que sua mulher está
traindo-o com vários homens da mesma rua onde mora, delírio que se instala como uma certeza
interna e, como todo delírio primário, não se deriva de marcantes experiências nem de outros sintomas
que possam nos fazer compreender o falseamento do juízo.
60

Cognição
Delirante

ideia delirante

sujeito

Diferentemente das duas formas anteriores, a cognição delirante não possui conexões intermediárias
com percepções ou representações, ocorrendo como intuições atuais. Diz-se que a cognição delirante
possui apenas um membro, que vai diretamente do indivíduo para a crença intuitiva delirante,
conforme o esquema acima.

Em outro exemplo, um camponês vinha caminhando do trabalho na roça em direção a sua casa
quando, de súbito, lhe surgiu a ideia de que pistoleiros iriam matá-lo, bem como assassinar toda sua
família, crença esta em que passa a acreditar com características de delírio primário.
7. VARIAÇÕES DIDÁTICAS EM TORNO DE UM EXEMPLO DE DELÍRIO – A ATIVIDADE
DELIRANTE NO CONTEXTO DA DOENÇA MENTAL

Aproveitemos esse exemplo do camponês para um exercício de reflexão acerca dos tipos de delírios
que estamos vendo até aqui e suas implicações práticas. No momento, lidamos com cognição
delirante, tipo de ideias delirantes primárias. Mas o quadro seria diferente se o referido homem fosse
amigo íntimo de um líder sindical que estivesse defendendo seus companheiros da exploração dos
latifundiários, líder este ameaçado de morte, estando o nosso camponês do exemplo há semanas
insone e bastante amedrontado com todas essas intrigas em seu meio, já tendo inclusive presenciado,
recentemente, o espancamento de outro colega por gente ligada aos patrões. Ao caminhar para casa,
no cair da noite, está sentindo-se sozinho e desamparado, com o pensamento voltado para a situação
difícil em que vive, quando surge então a certeza de que pistoleiros estão seguindo-lhe para matá-lo.
Aí recairíamos nas ideias deliroides, existindo a compreensibilidade psicológica para a instalação do
fenômeno.

Mas, ficando com a versão inicial do exemplo, trata-se de delírio primário tipo cognição delirante
porque se pode observar, na história do camponês, que apesar do meio em que ele vive ser tranquilo
em termos de tensões sociais, não havendo violências e conflitos graves entre trabalhadores e
patrões, nem ele tampouco ter vivenciado experiências pessoais traumáticas ligadas a essas
questões ou apresentado sintomas que pudesse produzir o delírio, teve a certeza interior subjetiva e
continuou a acreditar que iria ser morto juntamente com sua família, mesmo mediante evidências
contrárias a esses juízos. E aqui queremos lembrar que outros sintomas significativos de sério
comprometimento de personalidade tendem a ir surgindo nesses casos. O paciente passa a “ouvir”
vozes que lhe ameaçam, sentir “forças” externas controlando suas ações, apresentar falhas na
organização do pensamento, experimentar emoções em desconexão com a realidade do ambiente
circundante e outros possíveis distúrbios psíquicos. Como nesse momento estamos direcionando
nosso estudo para o tema dos delírios primários, em muitos dos exemplos dados não se fez menção
a outros sintomas associados. Mas, como desejamos passar uma visão integrada da psicopatologia
das funções psíquicas, fica aqui o registro que é comum o surgimento de outros distúrbios ao lado
do delírio primário, mostrando que a personalidade como um todo está bastante desorganizada
nessas pessoas, exteriorizando-se essa desorganização através da sintomatologia em diversas áreas
do psiquismo.
61

A questão da doença mental como um conjunto complexo de fenômenos que vem tomando forma
e finalmente eclode num quadro agudo é algo que precisa ser sempre pontuado. Porque quando o
iniciante à psicopatologia lê em algum texto ou estudo de caso que uma pessoa, muitas vezes até
sem passado psiquiátrico, entra em surto e repentinamente começa a delirar em franco processo
de desorganização psíquica, pode ficar com a falsa impressão que o delírio e a doença mental
surgem espontaneamente, sem passado sugestivo de que algo não estava bem em termos
psicopatológicos. Na verdade, a desestruturação do psiquismo já vinha ocorrendo ao longo do
tempo. O fato da pessoa não ter histórico psiquiátrico pode significar apenas que ainda não
estavam surgindo notórios sintomas psicopatológicos. Nenhuma doença mental, nenhuma
atividade delirante acontece sem um terreno psíquico predisposto ou sem um processo de
desorganização em curso. Este, já existia antes da eclosão do chamado surto, que é apenas a
agudização, a descompensação do quadro.

Mas, vamos ainda aproveitar o exemplo do camponês para outras digressões e reflexões didáticas.
Imaginemos que, ao invés da cognição delirante, certeza subjetiva em forma de intuição, o homem
contasse que a convicção de que iria ser morto instalou-se subitamente por ter visto no chão do
caminho para casa, dois gravetos caídos em forma de um “X”, significando este sinal, um “aviso”,
uma “evidencia” de sua morte. Agora teríamos um exemplo de percepção delirante (desde que
continuemos com as características do delírio primário). E indo mais além no exercício didático,
podemos transformar esse exemplo numa representação delirante. Suponhamos que, quando
indagado sobre como surgiu a crença de estar sendo perseguido, o camponês dissesse que vinha
caminhando e se recordando de alguns fatos do passado quando, ao lembrar que em criança tinha
um revólver de brinquedo, a imagem dessa reminiscência lhe deu a certeza que agora iria ser
executado.

Observe-se que em todas essas variações de delírios primários, há instalação súbita da crença
delirante, lembrando que tal subtaneidade é característica comumente presente em seus três tipos, e
não apenas da cognição delirante, como talvez pudesse parecer. A diferença entre eles está na forma
da configuração no que se refere à existência de um ou dois membros no processo delirante, e,
havendo dois, saber se o segundo membro parte de uma percepção ou representação mental.

A importância clínica e prática da classificação dos delírios primários em percepção, representação e


cognição delirante é que, conforme já vimos, a identificação de uma verdadeira percepção delirante indica
uma grande possibilidade do caso se tratar de psicose esquizofrênica (é um dos sintomas de 1ª. ordem
para esquizofrenia), com suas desorganizações psíquicas próprias e todas as consequências que essa
doença mental pode acarretar, sendo importante o diagnóstico e tratamento precoce, até para se tentar
evitar um pior prognóstico na continuidade da doença. Já as representações e cognições delirantes não
têm tanto peso para diagnóstico de esquizofrenia quanto o tem a percepção delirante.

É sempre importante frisar que, embora os delírios primários estejam muito relacionados com a
esquizofrenia, nem sempre sua ocorrência significa tal doença. Houve época em que apenas a
presença de delírio primário – principalmente percepção delirante – levava muitos clínicos a fazer
o diagnóstico de esquizofrenia. Hoje se sabe que vários quadros delirantes agudos, reconhecidos
como primários, mostram, na evolução, não serem esquizofrênicos, podendo ser encontrados em
outras doenças mentais. É possível se observar o delírio primário em certos casos de psicose
epiléptica, psicoses ligadas ao uso de determinadas drogas (como a anfetamina, um estimulante),
transtornos delirantes persistentes (outrora conhecidos como paranoia) e até em alguns casos dos
chamados transtornos psicóticos agudos e transitórios. Com isso queremos lembrar que, mesmo
existindo sintoma significativo de determinada doença numa pessoa, não é prudente, apenas pela
sua constatação, precipitar um diagnóstico. Deve-se pesquisar a presença de outras alterações,
saber a história dessa pessoa (anamnese), averiguar suas funções psíquicas no momento da
entrevista (exame mental) para então se chegar a uma conclusão diagnóstica.
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Lembramos que após a instalação de um delírio primário através de um dos três tipos, ao longo
do tempo, novas percepções, representações e cognições delirantes podem ir surgindo, como se
constata no caso do paciente citado por Nobre de Melo, de 34 anos, advogado, que passa a “perceber”
em seu redor “sinais” de que o mundo estava a se transformar em uma sociedade de homossexuais
com propósito de difundir tal prática sexual, iniciando o delírio observando um gesto que o sogro
fizera, com a crença se expandindo a diversas outras ocorrências visuais e auditivos ao seu redor.

8. A ELABORAÇÃO DELIRANTE - O DELÍRIO SISTEMATIZADO

Ao começar a delirar, uma pessoa pode simplesmente não tentar “entender” ou “explicar” o porquê
daquela crença patológica. Ou, se o faz, as conexões não têm muita coerência lógica entre elas. Por
exemplo, um psicótico tem a convicção de que o mundo está se acabando pela terceira guerra mundial
ao ver pessoas correndo na chuva para apanhar um ônibus, podendo dizer que a guerra eclodiu porque
tem “este conhecimento” ou “esta é a verdade”, a partir do significado que assumiu para ele aquela
percepção, todavia, além disso, não elabora nada em termos de relações com um sistema organizado de
fatos e construções lógicas, ficando um delírio desarticulado e pobre em sua estrutura. Isto é
denominado de delírio não sistematizado. Pela ausência de consistência e organização em seus
elementos constitutivos, os conteúdos e detalhes que o compõe podem variar a cada momento.

Todavia, pode ocorrer o que chamamos elaboração delirante. A partir da instalação das primeiras
ideias delirantes, a pessoa vai organizando-as em conexões com seus conhecimentos, fatos que o
circundam, com construções lógicas e até com outros sintomas que vão surgindo, formando relações
articuladas, de forma que se estruturam no chamado delírio sistematizado. Neste, há uma rede mais
ou menos coerente de ideias que se organizam junto à atividade delirante. O paciente com delírios
persecutórios, por exemplo, pode dizer quem o persegue, como está se dando essa perseguição, por
que está sendo atormentado, apontar relações com dados da realidade, formando assim, um conjunto
estruturado que reforça ainda mais sua convicção delirante.

Vamos supor que aquela pessoa que começou a delirar a partir da percepção de indivíduos
correndo na rua, dando a isso o significado do início de uma guerra mundial, sistematizasse sua
atividade delirante. Passasse a dizer, por exemplo, que as pessoas estão agitadas pela cidade
por que muitas têm também o conhecimento da eclosão da guerra, e policiais se acham nas ruas
não para o policiamento do dia a dia, mas para dar proteção aos dirigentes municipais e começar
os treinamentos para o conflito armado. Mostra que as tensões entre países ár abes e os EUA,
como noticia a imprensa, estão se acentuando (fato real) e acredita que o país em que vive fez
a opção de alinhar-se ao lado dos árabes nessa guerra mundial porque as relações comerciais
entre eles estão em pleno crescimento, mas, em represália, sofrerá ataque de mísseis inimigos.
Com o passar dos dias, a pessoa delirante reflete que os primeiros bombarde ios ainda não se
deram porque a “organização dos países árabes” está esperando que seus agentes saiam da
cidade, pois não faria sentido tal organização internacional matar seus próprios funcionários
infiltrados. Pode até relacionar o sistema delirante com outros sintomas, por exemplo, alegar
que as alucinações auditivas (que começaram a surgir) são “vozes” dos agentes de ambos os
lados inimigos articulando planos de destruição e fuga, o que confirmaria ainda mais seu delírio.

Vejamos um relato retirado de dados da anamnese e exame mental de uma paciente internada em
clínica psiquiátrica por volta de 1974, onde se observa um exemplo da elaboração delirante, formando
um coerente delírio sistematizado.

A paciente, cujo primeiro nome é Maria, 28 anos de idade, tendo o 2º grau completo, foi internada
devido sintomatologia psicótica, heteroagressividade e estado de desnutrição, pois se alimentava
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muito pouco, alegando ter que fazer jejum. Tratava-se de seu segundo internamento, sendo que o
primeiro ocorreu há um ano. Acreditava ser Maria Santíssima, predestinada a dar a luz a Jesus
Cristo em sua segunda vinda ao mundo e que José, pai de Cristo, era um residente de medicina,
plantonista que conheceu por ocasião de seu primeiro internamento. Dizia que vivenciava “forças
do bem” e “forças do mal” agindo dentro do cérebro, interferindo em seus pensamentos e
comportamentos. Referia também ouvir a “voz” do “Espírito Santo” lhe dando orientações. Conta
que a certeza de ser “Maria Santíssima” lhe surgiu no ano passado. Estava muito “agoniada sem
saber por que”, sentindo que “alguma coisa” significativa iria lhe acontecer na vida, não
conseguindo se concentrar em suas atividades e se isolando com medos imprecisos, quando,
refletindo sobre o passado, procurando encontrar alguma razão para tanta angústia, lembrou -se
que nasceu e morou algum tempo em um bairro chamado São José. Imediatamente concluiu que
era Maria Santíssima. Compreendeu que o fato de ter nascido e vivido na referida localidade só
podia significar que era na verdade a mãe de Cristo, pois a junção de José (bairro) e Maria (seu
nome) seria a preparação para o nascimento de Jesus. Dizia que nunca se apercebera deste fato
tão óbvio, cuja clareza e certeza só surgiram a partir da lembrança. Todavia, além disto, paciente
passou a organizar as ideias delirantes estruturando-as em associação com seus conhecimentos
(inclusive religiosos), fatos verdadeiros que lhes cercavam, raciocínios lógicos e com outros
sintomas que iam surgindo, conseguindo elaborar, assim, um complexo delirante coeso. Contava
que a partir do momento que se instalou nela a crença de que era Maria Santíssima, passou a falar
isso em casa, pelas ruas, e em todos os lugares aonde chegava, explicando que na Bíblia há muitas
passagens que indicam que Cristo virá mais uma vez ao mundo para tentar salvar a humanidade.
Argumentava em seus discursos que para isso acontecer, ele teria novamente de ser gerado por
“Maria”, por isso, esta precisaria vir antes, não só para dar-lhe a luz, mas também preparar o
mundo para esse grande acontecimento. Dizia que era natural que as pessoas rissem dela e a
chamassem de “louca”, mas, no entanto, não esperava que “alguma coisa” se apoderasse de seu
corpo e a fizesse agredir tais “incrédulos”. Só depois é que entendeu tratar-se de “forças do mal”
que agiam por ela, tentando desacreditá-la perante o mundo. Essas mesmas “forças”, que até hoje
lhe perturbam e tentam impedir seu trabalho, lhe faziam gritar palavras obscenas, ficar violenta,
tomar condutas descabidas. Felizmente existem também “forças do bem” que, por inúmeras
vezes, “travam” as do mal, fazendo com que fale e aja de acordo com os princípios cristãos e
prepare a vinda de seu “Filho”. Foram estas últimas que fizeram com que fosse encaminhada, em
seu primeiro internamento, para uma determinada clínica. Na verdade, diz que o internamento foi
provocado pelas “forças do mal” quando a fizeram ficar agitada e violenta, no intuito de atrapalhar
seu trabalho, desacreditando-a perante o mundo, fazendo-a passar por “louca” e ser internada.
Todavia, as “forças do bem” interferiram e fizeram com que fosse encaminhada para a clínica
onde havia um residente plantonista que era a encarnação atual do “José”, esposo de “Maria” no
passado. Concluiu isso pelo modo cuidadoso e olhar compreensivo com que tal plantonista lhe
atendeu. Nunca soube se ele já possuía o conhecimento de sua missão divina de se unir a ela, mas
pretende algum dia encontrá-lo para perguntar-lhe isso. Teve alta após alguns meses de
internamento.

Há cerca de uma semana, recebeu um “comunicado” através da “voz do Espírito Santo”


(ultimamente vem “ouvindo” mensagens desse “Espírito”) para se encontrar com “José” n uma
determinada praça da cidade para onde ele iria ser conduzido pelas “forças do bem”. Mas lá
chegando, ao ver vazio o banco da praça onde deveria estar, concluiu que as “forças do mal”
provocaram o desencontro. Naquele momento, então, foi tomada por essas forças, que a fizeram
novamente tomar atitudes agressivas para com as pessoas que passavam, para que ficasse
“desacreditada” e mais uma vez fosse internada como “louca”, mesmo explicando com detalhes
toda essa trama contra sua “missão”. Já na clínica pela segunda vez, dizia admirar a “sabedoria”
das “forças do bem”: não só fizeram-lhe entender que era a “Virgem Santa” dando-lhe o nome
de Maria e colocando-a no bairro de São José, mas “prepararam” o próprio José para nascer no
Brasil, estudar medicina e ir trabalhar exatamente na clínica para onde ela seria levada. Co ntava
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que nunca teve namorado e sempre se sentiu enormemente bloqueada para relacionamentos
afetivos, entendendo então que esse impedimento era para que ficasse preparada para o encontro
com “José”. Explicava ainda que o Brasil foi o país escolhido para a segunda vinda de Cristo
devido à semelhança com a localidade em que Jesus nasceu há séculos atrás: um lugar pobre,
subdesenvolvido e oprimido por grandes potências (Roma no passado e os Estados Unidos na
época atual). Sobre o porquê de não querer comer, dizia ter “ordens do Espírito Santo” para
jejuar e purificar-se, enquanto aguardava a chegada de Jesus.

Abaixo, esquema ilustrativo do que vem a ser um delírio sistematizado, estruturado, com ligações
a outros elementos constitutivos do complexo delirante.

Experiências
práticas Fatos
verídicos

DELÍRIO
SISTEMATIZADO Outros
Raciocínios sintomas
lógicos

Conhecimentos
teóricos

9. TEMAS DOS DELÍRIOS

Os temas dos delírios, sejam primários ou secundários, abrangem uma variação muito grande em seus
conteúdos. Os principais são os de perseguição, autorreferência, reivindicação, influência externa,
grandeza, invenção, místico, ruína, somático, culpa, ciúme, erotomaníaco.

O conteúdo pode ser influenciado pelas vivências pessoais, culturais e do contexto histórico-
geográfico do paciente. Por exemplo, um psicótico religioso, em fase maníaca do distúrbio bipolar
pode acreditar que ele próprio é o verdadeiro Papa e o homem que está em seu lugar no Vaticano é
um impostor, mas se não for ligado a religiões pode crer que é um cientista famoso que acabou de
inventar uma máquina que transforma qualquer lixo em alimentos para os pobres. No Brasil, alguém
delirante pode acreditar ser o presidente da nação, enquanto num país monarquista achar
convictamente que é o rei ou a rainha do mesmo. Nos dias atuais, dificilmente encontramos psicóticos
que dizem ser Napoleão ou um exímio duelista do século XIX, mas podemos observar pacientes que
acreditam ter poderes do “super-homem”, ser um artista, apresentador de televisão ou namorado de
uma famosa cantora internacional. Os “perseguidores” dos delírios atuais não são bruxas, feiticeiros
ou monarcas tiranos, mas a polícia, traficantes, sequestradores, “esquadrões da morte” ou outros
representantes do mundo agressivo de hoje. Pode-se delirar envolvendo fatos políticos, sociais ou
históricos do meio em que se vive, como ter sido o responsável pela nomeação de um ministro ou ter
liderado um assalto de banco noticiado nos jornais. No Egito, um homem começou a delirar
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afirmando ser Tutankhamon, um famoso faraó da história antiga daquele país, tendo sua múmia e
enorme tesouro sido encontrados no início do século XX. Dificilmente tal conteúdo delirante seria
observado em um país sul-americano. Um grande número de delírios envolve temas do dia-a-dia da
vida do paciente, podendo ter ligações com pessoas que lhe são próximas, como estar sendo
perseguido pelos familiares ou vizinhos, traído pela mulher, criticado e caluniado pelas pessoas na
rua, estar convicto que a esposa e filhos estão mortos ou vivendo na miséria, etc.

Vejamos algumas considerações sobre cada um dos principais conteúdos dos delírios, lembrando que,
muitas vezes, mais de um deles se combinam no universo delirante do paciente, como acreditar que
está sendo perseguido por ser Jesus Cristo em sua segunda vinda ao mundo (conteúdos de perseguição
e místico).

1) DELÍRIO DE PERSEGUIÇÃO

É um dos temas mais frequentes de delírios. A pessoa acredita que está sendo perseguida por alguém
em específico (um familiar, chefe, colega de trabalho, professor) ou por um grupo de pessoas (uma
instituição social como a polícia ou a Igreja, alguma “organização” tipo máfia ou CIA, os vizinhos,
toda a família). Todavia a ideia delirante de perseguição pode estar dirigida não apenas ao paciente,
mas “atingir” também as pessoas mais chegadas ao mesmo. O indivíduo pode acreditar que a polícia
está perseguindo a ele e seus familiares próximos. A forma com que se dá a perseguição também é
algo que pode assumir diversas variantes – “procurado” para ser preso ou assassinado pela polícia,
“prejudicado” continuamente pelo chefe ou por um colega de trabalho, “envenenado” pela família ou
por alguém que está tentando colocar drogas letais em sua comida, e outras possíveis crenças que
envolvam variações do sentir-se perseguido.

Aqui cabe uma observação sobre as manifestações e as queixas delirantes, principalmente as


referentes ao tema de perseguição focado em um único perseguidor ou ao grupo familiar de
convivência. Quando a afirmação e denuncia de que se está sendo perseguido ou discriminado por
um chefe ou colega de trabalho é algo delirante? E a queixa de um aluno sobre estar sofrendo
perseguição por parte de um professor é criação de sua mente ou fato real? Até quando as afirmações
de uma pessoa acerca de maus tratos por parte da família é ideia delirante ou denúncia procedente?
Às vezes, a forma de “perseguição” é algo sutil, ou pelo menos em parte, verdadeira. Mas, por outro
lado, um delírio pode ser sistematizado e confundir o profissional ou comissão que está averiguando
as denúncias e a sanidade daquele que se diz perseguido. Lembramos que é importante a pessoa ser
avaliada dentro de um conjunto de dados, considerando-se sua história, comportamentos e
relacionamentos, funcionamento nos espaços de atividades, lógica dos argumentos e presença ou não
de outras alterações psicopatológicas (além do possível delírio).

Um paciente com história de esquizofrenia ao longo da vida passou a afirmar que estava sendo
envenenado pela família. Argumentava que a esposa e filha colocavam drogas em sua comida, e
sentia um “gosto de veneno” na mesma. Na verdade, como esse paciente recusava-se a ser tratado e
o risco de novos surtos era iminente (com as consequências negativas de recidivas constantes), a
família colocava a medicação no seu alimento. Vemos aqui que embora haja uma distorção no
julgamento da realidade, os familiares estavam de fato colocando uma droga em sua comida. Isto é
importante na avaliação do juízo de realidade do paciente, na medida em que se observa não haver,
naquele momento do acompanhamento terapêutico, uma franca e maciça atividade delirante sugestiva
de agudização do quadro. Isso merece consideração para a condução do caso, inclusive orientação
aos familiares.

2) DELÍRIO DE AUTO-REFERÊNCIA
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Pode ser considerado como uma variante do tema de perseguição. Aqui o paciente tem certeza de que
as pessoas estão lhe olhando de forma crítica, comentando sobre ele, difamando-o, achando que o
mesmo é homossexual, alguém que não merece confiança ou indivíduo perverso. Acredita que em
qualquer lugar em que esteja ou chegue, as pessoas passam a cochichar sobre assuntos que lhe
denigrem, embora nada veja ou ouça de concreto (não se trata de alucinações). O desenrolar dos
capítulos duma novela ou as opiniões de um crítico da televisão fazem referências sutis a ele. Enfim,
o paciente é o centro dos comentários, difamações e atenção dos outros.

Uma forma especial desse tipo de delírio é o chamado delírio sensitivo de autorreferência, distúrbio
introduzido e descrito por Kretschmer (psiquiatra e pesquisador alemão da primeira metade do século
XX), surgindo em pessoas com estrutura de personalidade introvertida e propensa a desconfianças,
com pouca capacidade de liberar emoções. Tal delírio, geralmente, se segue a alguma experiência
significativa relacionada a abalo da autoestima e do amor-próprio. Trata-se, portanto, de delírio
secundário.

Um exemplo ilustrativo é o da jovem de 18 anos, religiosa praticante, tendo o introvertimento e a


desconfiança como características presentes nela desde criança, e que vem a ficar grávida com o
namorado, com quem teve suas primeiras relações sexuais. O fato de “perder a virgindade” fora do
casamento já era motivo de sentimento de culpa para uma adolescente fortemente ligada a padrões
religiosos. Diante do ocorrido, o rapaz a convence e quase lhe impõe a execução de um aborto, feito
às escondidas e em situação de risco. Semanas depois, ele rompe o namoro e logo passa a se envolver
com outra moça. A jovem, sentindo-se abandonada, sozinha em seu sofrimento, com fortes
sentimentos de culpa, autoestima ferida, ainda precupada com a possibilidade dos atos tomados
chegarem ao conhecimento de outras pessoas, ao assistir a preleção do pastor da igreja que ela
frequenta, assusta-se com o tema trazido naquele domingo: o aborto como ato pecaminoso e
condenável. Uma série de pensamentos vêm a mente da jovem. O pastor certamente estava sabendo
do ocorrido, o tema escolhido era endereçado não só ao público mas especificamente a ela, como
admoestação e condenação. As autoridades da igreja já estavam tomando as providências de chamá-
la para as devidas punições, talvez até banimento da instituição religiosa. Nada disto era verdade, o
pastor escolhera o tema por ser algo atual e polêmico, da mesma forma como já trouxera outros
assuntos para os encontros dominicais, mas tal possibilidade lógica não era considerada no
pensamento da jovem. Ainda naquele dia, uma amiga lhe falou: “bonito sermão, hem?”, o que a fez
entender o comentário como um “recado indireto” para ela. Daí em diante, ao ver pessoas
conversando na igreja, acreditava estarem falando sobre seus comportamentos “pecaminosos”, mas
quando ela se aproximava, o assunto era modificado. Andava cabisbaixa e evitava olhar de frente os
colegas de religião, pois achava que todos a estavam recriminando. Gradativamente esta certeza foi
se expandido até para algumas pessoas que dialogavam nas ruas ou outros locais fora da igreja.

Todavia, excluída essa forma de delírio descrito por Kretschmer, muitos casos de delírio de
autorreferência são primários, inclusive encontrados nos surtos esquizofrênicos, sem a
compreensibilidade psicológica presente naquele.

3) DELÍRIO DE REIVINDICAÇÃO

Pode também ser considerado um subtipo de delírio de perseguição. A pessoa se crê vítima de
injustiças ou discriminações e, por conta disso, pode envolver-se até em disputas jurídicas. Apesar de
claras evidencias contrárias às formulações e argumentos inconsistentes que o paciente
reiteradamente traz, ele continua convicto que está sendo prejudicado intencionalmente por parte de
pessoas que desejam tomar os seus direitos legítimos. Assim, um professor pode não aceitar que tenha
sido reprovado num concurso de cátedra e passar a dizer que houve um complô contra ele, bem como
interesses de pessoas influentes na proteção de seus rivais no concurso, ideias essas que passam a ser
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o centro de suas preocupações e vão tomando caráter delirante. De forma irrealista ou


desproporcional aos fatos verdadeiros, o indivíduo constrói sua “verdade” e se “torna” uma “vítima”.
Citamos, anteriormente, o exemplo dado por Vallejo Nagera, de um homem que há muito vinha
acreditando, com convicção, estar sendo injustiçado pelos juízes e promotores do país, todos sempre
lhe prejudicando nos tribunais e dando sentenças contrárias a ele, desde que começou, há anos,
desavenças jurídicas sobre os limites de um seu terreno com o do vizinho.

4) DELÍRIO DE INFLUÊNCIA EXTERNA (VIVÊNCIAS DE INFLUÊNCIA)

O paciente tem convicção que forças externas estão controlando seu pensamento ou seu
comportamento. Pode acreditar que tais forças vêm de máquinas especiais usadas por pessoas que
querem lhe prejudicar, são ligadas a poderes sobrenaturais ou telepáticos de alguém que comanda sua
mente em muitos momentos, ou mesmo forças que não consegue identificar a origem, mas não tem
dúvidas da existência e efetividade delas. Às vezes, tem a vivência de que essas influências externas
estão “levando” seus pensamentos, noutras, ao contrário, acredita que estão “colocando” diversos
conteúdos mentais em seu cérebro.

Honório Delgado (1969, p.60) menciona a crença de um paciente que quando se põe a ler ou pensar,
sente claramente que as ideias são captadas e escapam de sua cabeça, dando a explicação: “A meu
modo de entender, isso sucede, por exemplo, quando uma pessoa X, esta sou eu, se encontra imantada,
e outra pessoa, seja por meio de um imã ou de qualquer outro objeto de matéria imantada, lhe vai
captando as ideias, as extraindo...”. Sobre essas vivências, outro paciente, citado por Jaspers (1973,
p.150), dizia que muitos de seus pensamentos não eram produzidos por ele, afirmando: “Vêm sem
serem chamados, não me arrisco a dizer que provenham de mim, todavia, sinto-me feliz por saber
não tê-los pensado”.

No primeiro exemplo, a vivência de uma “força” externa se dá no sentido de algo que lhe “retira” os
conteúdos mentais, enquanto no segundo, ao contrário, algo lhe “impõe” pensamentos. Naturalmente,
essas vivências causam muito sofrimento na pessoa, todavia, às vezes, há algum sentimento de alívio
por ela acreditar que não tem a responsabilidade do que foi pensado ou atuado, como se pode notar
no último exemplo acima.

Muitas vezes as vivências de influência são observadas no campo dos movimentos e comportamentos,
como é o caso de um paciente citado por Jaspers (1973), que frequentemente dava gritos e sentia que,
ao tentar tocar piano, seus dedos eram desviados para teclas erradas. Tanto os gritos quanto os
movimentos ele atribuía a forças atuantes “de fora”.

As vivências de influência externa são comumente encontradas na esquizofrenia, sob forma de


delírios primários. São fenômenos também considerados “sintomas de 1ª ordem” no diagnóstico
daquela doença.

5) DELÍRIO DE GRANDEZA (MEGALOMANÍACO)

O paciente diz ser o homem mais rico do país, dono de muitas propriedades, possuidor de vários
títulos ou cursos superiores, ter poderes sobrenaturais (interferir nos movimentos dos astros, controlar
fenômenos meteorológicos, possuir controle sobre a vida e a morte das pessoas), ser amigo íntimo de
personalidades famosas, desejado por diversas mulheres ou conhecido internacionalmente. Esse tema
é muito comum nos delírios da fase maníaca do transtorno bipolar, derivados do estado de ânimo
eufórico dessa doença, portanto, secundários. Mas pode surgir em forma de atividade delirante
primária, como foi o caso de um jovem esquizofrênico que dizia ter poderes para controlar as ondas
eletromagnéticas da região em que vivia, queimando lâmpadas com sua força mental, interferindo no
funcionamento dos aparelhos eletrodomésticos e na rede elétrica, acreditando possuir em seu cérebro
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um implante de metal que lhe dava tais poderes. O comportamento do indivíduo com delírios
megalomaníacos tende a ser congruente com suas ideias: passa cheques sem fundos ou descontrola o
cartão de crédito (acreditando que tem muito dinheiro), aborda sexualmente e de forma ostensiva
homens e mulheres na rua (pois crê que é desejado por todos), apresenta-se a autoridades ou
administradores públicos para colocar seus poderes ou riquezas a serviço da humanidade.

6) DELÍRIO DE INVENÇÃO (DE DESCOBERTA)

Geralmente, é uma variante do delírio de grandeza. A pessoa está convicta que criou aparelhos,
máquinas ou fórmulas inéditas, extraordinárias, que irão revolucionar a tecnologia ou o bem estar da
humanidade. Pode acreditar que descobriu a cura definitiva do câncer, AIDS ou outras doenças
consideradas incuráveis, chamando a imprensa ou autoridades para comunicar sua invenção ou
descoberta. Essas crenças podem surgir mesmo num indivíduo leigo na área tecnológica em que o
delírio é construído.

7) DELÍRIO MÍSTICO (RELIGIOSO)

A pessoa acredita que é Jesus Cristo, Maria Santíssima, tem uma missão divina de fundar uma religião
que vai se sobrepor a todas as outras. Pode, também, acreditar que firmou um pacto com o demônio
e está a serviço dele. Mas aqui, lembramos que se deve atentar para não classificar como delirante
um religioso fervoroso e até fanático. Nesse caso, o indivíduo se identifica com uma crença coletiva
pertencente a sua comunidade religiosa, podendo até assumir comportamentos absurdos, mas
congruentes com a seita ou religião que abraçou, não sendo esta uma convicção individual ou de um
grupo restrito. Uma coisa é acreditar e ser devoto da Virgem Maria ou de Cristo; outra é dizer ser a
própria Santa ou Cristo. Vejam-se os muçulmanos fundamentalistas com seus comportamentos e
ideologias sectárias; suas crenças fazem parte de todo um universo religioso onde milhares de pessoas
são “irmãos de fé” ao longo da história, o que foge ao conceito de delírio.

Uma variante de delírio místico associado à temática de grandeza é o chamado delírio de reforma.
Aqui o paciente se diz com poderes e com a missão de comandar ou salvar a humanidade. Tem a
convicção de que seu projeto, geralmente de cunho intensamente religioso (ou ideológico), precisa
ser difundido e construído em sua comunidade e até além dela. Muitas vezes, esses delirantes formam
um corpo de crenças divergente e contrário à religião estabelecida em seu meio sociocultural.

Se o delírio de reforma assume estrutura de sistematizado, surgindo em indivíduo inteligente e com


características de liderança, ocorrendo dentro de um contexto sociocultural favorável ao seu
crescimento, pode dar origem a uma seita com seguidores e até com alguns “princípios” ideológicos,
geralmente determinados pelo indivíduo delirante que promoveu a formação do grupo. Isso pode,
inclusive, enveredar por finais trágicos, como ocorreu na região das Guianas em 1978. Parece ter
sido num dos momentos de acentuação da discriminação racial nos EUA que surgiu o “pastor” Jim
Jones, criando o chamado “Templo do Povo”, na California, instituição em que ele se inseria como
uma espécie de messias supremo e absoluto. Acreditava em sua missão de reformador religioso
enviado por Deus e, naquela região dos EUA, reuniu oprimidos e marginalizados (em geral de raça
negra). Seus discursos empolgavam e mostravam a necessidade de haver reformas na maneira de se
praticar uma religião, pregando a formação de uma comunidade onde existisse a igualdade social e
racial, e, assim, mobilizou milhares de adeptos. Mas, denúncias de maus tratos e abuso sexual em
sua vila comunitária provocaram questionamentos por parte das autoridades locais. Isto contribuiu
para a mudança da convivência religiosa para um local mais distante, onde não sofresse muitas
investigações. E, assim, Jim Jones partiu com cerca de uns mil “fiéis” para o que foi chamado de
Jonestown, uma comunidade que representava aparentemente um modelo socialista, estabelecida nas
Guianas (América do Sul). A coexistência de negros, brancos e amarelos era observada nas cenas
filmadas em 1978, dias antes do suicídio em massa de mais de 900 fiéis, induzidos por Jones. Há
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dados indicativos que ele consumia doses elevadas de drogas, o que deveria acentuar suas idéias
religiosas megalomaníacas e persecutórias. Foi quando ocorreu uma investigação, da parte do
governo dos EUA, sobre denúncias da continuidade dos maus tratos e abuso sexual na comunidade,
bem como perda da liberdade por parte de pessoas que queriam sair do local e eram impedidas disso.
Uma comissão do governo americano se dirigiu até as Guianas e seus integrantes foram assassinados
a bala. Logo em seguida, Jim Jones reuniu os fiéis para um último sermão, quando falou dos inimigos
de Deus, mostrando ser preferível a honra da morte à rendição, procurando convencer centenas de
pessoas a cometerem suicídio, tendo sido preparados litros de potente veneno. Primeiro, os pais
matavam as suas crianças para depois se suicidarem. Adultos que se recusavam a morte eram
assassinados por seguidores mais próximos de Jim Jones. Este, foi encontrado morto com uma bala
na cabeça. Cerca de 15 pessoas escaparam do massacre. Existem gravações audiovisuais da história
dessa trágica experiência mística, reunidas no filme "Jonestown - Vida e Morte no Templo do Povo",
do diretor Stanley Nelson. Se Jones apresentava um quadro psicótico com delírio de reforma, é
improvável que todos os seus 900 seguidores nas Guianas fossem também doentes mentais. Talvez
alguns mais próximos a ele apresentassem o fenômeno do “transtorno delirante induzido”, também
chamado de “psicose simbiótica” (assunto que abordaremos mais adiante). É provável, no entanto,
que a grande maioria fosse composta por pessoas insatisfeitas com suas vidas, muitas discriminadas
social e racialmente, várias deveriam ser bastante sugestionáveis, e todas ávidas por encontrar um
“salvador”, alguém com uma mensagem trancendental que pudesse preencher o vazio existencial
contemporêneo, mas também com uma proposta prática, uma comunidadede de pessoas “irmãs”,
orientadas por um representante divino na Terra.

8) DELÍRIO DE RUÍNA

O paciente pode acreditar que está arruinado economicamente, fracassado em sua profissão, perdeu
todo seu dinheiro ou bens, ele e sua família estão na miséria e passando fome, os familiares e amigos
se afastaram e agora está sozinho em seu desespero, o futuro lhe reserva apenas fracassos e
sofrimentos... É muito comum esse tema de delírio estar associado a estados depressivos.

Vallejo Nagera (1970) nos deu aquele exemplo do paciente deprimido que no início de sua
enfermidade não apresentava ideias delirantes, porém, pouco depois, com a continuidade e
intensificação do rebaixamento do humor básico, passou a afirmar que estava arruinado e seus filhos
iriam morrer de fome. A situação real não era essa, seus negócios iam bem e gozava de boa posição
financeira, porém, apesar dos parentes lhe demonstrarem, continuava convencido da ruína e miséria
em que dizia estar, juntamente com os filhos, caracterizando um delírio secundário à depressão.

Mas, as ideias delirantes de ruína podem se expandir para o campo coletivo, e o indivíduo acreditar
que sua cidade, país ou o mundo todo está sendo ou será destruído por uma catástrofe de grandes
proporções (terremotos, guerra mundial iminente, doença letal que exterminará a humanidade, etc.).

9) DELÍRIO SOMÁTICO (HIPOCONDRÍACO)

Nesta temática delirante o paciente acredita possuir uma doença grave, como câncer, AIDS, tumor
cerebral ou outras dessa natureza, apesar das evidências e exames que comprovam a inexistência da
enfermidade. É importante frisar que não se trata de um medo, uma preocupação com enfermidades
ou uma desconfiança da existência duma doença, como podemos observar naquelas pessoas ditas
hipocondríacas, com características neuróticas (não psicóticas). Aqui, nos delírios somáticos, o
indivíduo chega aos limites do absurdo, como as afirmações que todos os exames, clínicos ou
laboratoriais, estão errados ou são realizados no intuito de lhe enganar, com os resultados, sempre
falsificados ou adulterados. Nem sempre fica bem delimitado o que é um medo ou preocupação
hipocondríaca neurótica não delirante e o verdadeiro delírio somático hipocondríaco. Todavia, neste
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último, a intensidade da crença e a total ausência de crítica do paciente em relação à absurdidade das
ideias fazem a diferença, além do provável aparecimento de outros sintomas psicóticos.

Às vezes, ocorre o chamado delírio niilista ou de negação (variante de ruína junto com somático),
em que o paciente acredita que seus órgãos pararam de funcionar, desapareceram ou apodreceram,
estando ele próprio morto, podendo até acreditar que ele e o mundo na verdade não existem mais.

Vejamos um exemplo desse tipo de delírio (ÜSTUN, 1998, p. 134):

Quando ficou convencida de que não tinha mais estômago, a Sra. Oliver parou de comer e
beber. Ela foi trazida de ambulância ao setor de emergência do hospital da cidade. Seu médico
de família relatou que ela não tinha comido ou bebido quase nada nas últimas semanas,
porque não achava necessário. O transtorno da Sra. Oliver tinha começado um mês antes,
quando ela se tornou deprimida sem qualquer causa óbvia. Ela perdeu o interesse por tudo,
não dormia mais do que uma ou duas horas por noite, perdeu o apetite e sentia-se incapaz de
fazer qualquer coisa. [...] Na internação, a Sra. Oliver estava orientada em relação a tempo,
lugar e pessoa. Ela sentou-se imóvel, quase inexpressiva, olhando fixo para o espaço. Admitiu
sentir-se deprimida e disse que queria morrer. Ela afirmou que era amaldiçoada e que logo
estaria no inferno, que não tinha mais estômago, que seu coração tinha parado de bater e que
seus intestinos estavam apodrecendo. Seu corpo inteiro estava rapidamente se deteriorando e
já cheirava a putrefação, dizia. Recusava-se absolutamente a comer ou beber qualquer coisa.
Ela se deixou levar para o quarto e foi colocada na cama, lá esperando pela morte.

Há casos em que o delírio de negação vem (paradoxalmente) associado a uma crença de imortalidade,
em que o paciente verbaliza que nunca vai morrer e permanecerá sofrendo para sempre, como um
“morto-vivo”, mesmo sem órgãos ou corpo íntegro, fenômeno que recebe o nome de Síndrome de
Cottard, podendo estar presente nas depressões graves e esquizofrenia.

10) DELÍRIO DE CULPA

A pessoa afirma convictamente ser culpado por tudo de ruim que já aconteceu com sua família ou
pessoas que lhe são próximas, sem nenhuma evidência real para isso. Às vezes, até se assume como
responsável por várias catástrofes ou acontecimentos tristes que vêm ocorrendo no mundo. Acredita,
muitas vezes, ser pessoa irresponsável, pecaminosa, criminosa, devendo ser punida ou executada.
Enquanto assiste na televisão um noticiário sobre uma guerra ou um terremoto que vitimou muita
gente, pode chorar se dizendo culpado por tudo aquilo. É uma forma de delírio encontrada também
nos estados depressivos graves, havendo, muitas vezes, elevado risco de suicídio, em que o indivíduo
tem intenso desejo de punição. Pode ser considerada uma variante do delírio de ruína (daí ser chamado
também delírio de “ruína moral”).

11) DELÍRIO DE CIÚME

O delírio de ciúme é um dos distúrbios mais estudados em psicopatologia, sendo um tema de


frequente aparecimento entre os casos de atividade delirante.

Antes de tudo, vale lembrar que o ciúme em si é uma experiência normal e comum no campo dos
sentimentos humanos. O ciúme nas relações afetivo-sexuais, entre irmãos, entre amigos, nos
pacientes de um mesmo terapeuta e em possíveis outros tipos de relacionamento entre seres vivos.
Umas pessoas são mais ciumentas que outras, ainda dentro das variações normais do existir humano.
Mas o ciúme pode se tornar exacerbado, por demais exagerado, desproporcional, e então poderemos
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estar em zona limítrofe com o patológico. Há casos de ciúmes doentios com características
obsessivas, em que a pessoa chega a ter consciência crítica, pelo menos em certos momentos, que
seus pensamentos e sentimentos envolvendo ciúmes não têm respalde lógico e são produtos de sua
mente, provocando-lhe, inclusive, sofrimento e desgastando uma relação. O ciúme obsessivo,
portanto, apesar de já ser algo patológico, não recai no conceito de delírio.

Já no delírio de ciúme, existem as características de significativo comprometimento do juízo de


realidade: juízos falsos, acompanhados de convicção interior, irredutíveis e patologicamente
determinados. O indivíduo acredita, por exemplo, que sua mulher está sendo-lhe infiel, traindo-o
com outras pessoas, com vizinhos, amigos, ou até com familiares, apesar da inexistência de
evidências ou fundamentações lógicas. Pode ficar revistando pertences do conjugue (bolsas, gavetas,
peças íntimas) no intuito de descobrir algo que comprove sua crença delirante, seguindo-o às
escondidas, colhendo informações de seus comportamentos nos lugares fora de casa, e em alguns
casos, pode até contratar detetive profissional para averiguar os passos da pessoa que o delirante
acredita estar traindo-o. Isso tudo para “confirmar” aquilo em que ele já acredita. Porque o simples
fato do indivíduo não encontrar nenhum indício de traição ao revistar bolsas e gavetas da mulher, ou
não conseguir informações comprometedoras acerca da mesma, certamente não vai fazer com que o
delírio desapareça de sua mente, podendo até achar que a esposa tem sido muito esperta e cuidadosa
ao não deixar pistas incriminadoras. Observe-se que quando os autores se referem aos pacientes com
delírio de ciúme, com frequência citam aqueles do sexo masculino, pois ocorre bem mais nos homens
que nas mulheres.

O delírio de ciúme, às vezes, atinge níveis absurdos de apresentação. Isaías Paim (1982) nos relata
um curioso caso de delírio de ciúme em que o paciente acreditava que estava sendo “traído” pela
mulher, mas com seu filho mais velho, que passara a ter relacionamento sexual com a mãe às
escondidas do pai. Inicialmente, a crença delirante se dirigia a outros homens, principalmente um
amigo de caçadas, mas, aos poucos, a certeza de que a esposa o traía foi se voltando para o filho.
Chegou a expulsar o rapaz de casa e a pensar em matá-lo, caso voltasse a manter contato com a mãe
e amante. À noite, ficava sem dormir espreitando se ele tentava voltar às escondidas para rever a
mulher e acreditava que estava a rondar a casa, atirando com uma espingarda quando achava que
alguém se movera no quintal. Para espreitar melhor a aproximação do filho tentando se encontrar
com sua esposa, fez um pequeno buraco no alto de uma janela e passava longo tempo observando as
redondezas da casa, na certeza de que, estando fechadas as janelas e portas, o filho ficaria menos
precavido, menos atento e vigilante, mais despreocupado, o que daria chance ao paciente de
surpreendê-lo. Com a intensificação dessas ideias, chegou a agredir e até atirar na mulher, que
conseguiu escapar e obter ajuda externa. O internamento foi feito devido aos riscos de agressão que
o paciente apresentava por conta do grave quadro psicótico, inclusive com outros sintomas além do
delírio.

O delírio de ciúme ocorre, com certa frequência, em indivíduos alcoolistas (já na chamada psicose
alcoólica), podendo originar conflitos e violências familiares, ocorrências comuns nesses tipos de
pacientes. Mas pode ocorrer em qualquer quadro psicótico, inclusive esquizofrenia, como parece ser
o caso exposto acima.

No caso dos alcoolistas, a resistência, por parte da mulher, em manter relações sexuais com um
marido constantemente agressivo e embriagado, ou mesmo a demonstração de aversão em tal contato,
pode contribuir para ele “começar a acreditar” que a esposa agora tem “outro” e por isto está evitando-
o. Conforme diz Mayer-Gross (1972 p. 418):

O menor sinal de relutância por parte dela ao ser abordada por um marido bêbado pode
despertar uma tempestade afetiva desinibida e cega na qual a raiva, o ressentimento, a
suspeita e o ciúme têm livre curso. Ao mesmo tempo, poderá haver uma cena de desenfreada
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selvageria, seguida, na sobriedade do dia seguinte, de apelos sentimentais por afeição e


perdão. As suspeitas, entretanto, persistem, se acumulam e, finalmente, não são mais
esquecidas quando ele está sóbrio.

A dificuldade de ereção ou mesmo completa impotência sexual produzida pela ação tóxica do álcool
sobre o sistema nervoso, aumenta a sensação de insegurança e incompetência do paciente. “Se não
posso lhe dar prazer, se estou impotente e ela demonstra aversão a mim, então deve ter outro homem
a satisfazendo”: esse parece ser um encadeamento de raciocínio facilitador do delírio de ciúme em
muitos alcoolistas.

Um filme que já se tornou “clássico” para muitos cinéfilos é Ciúme – Inferno do Amor Possessivo
(L´Enfer, 1994), do cineasta Claude Chabrol. Enfoca a história de um jovem casal, dono de um
pequeno hotel turístico, que entra em crise quando o marido passa a ter um ciúme doentio pela mulher.
O interessante é que podemos observar, na mesma personagem, formas diferentes de ciúme que vão
ao poucos assumindo as proporções de delírio. O que no começo é apenas um ciúme exagerado, em
que o marido procura saber aonde a esposa vai quando sai de casa e se irrita com os possíveis olhares
de alguns homens admirando sua beleza (ciúme que incialmente é motivo de prazer para ela, já que
pode estar significando o amor e a importância lhe dedicada pelo esposo), vai aos poucos assumindo
proporções patológicas. Passa a seguir a esposa pelas ruas da cidade, fazer-lhe constantes
interrogatórios e insinuar que ela está tendo caso com um dos funcionários do hotel. Numa ocasião,
fica horas andando a esmo pelas redondezas da região e fazendo ruminações sobre a possibilidade da
mulher estar lhe traindo, só regressando tarde da noite, transtornado física e psicologicamente. Mas,
apesar do exagero e proporções já doentias de ciúme, ainda não estamos no âmbito do delírio,
parecendo mais um intenso pensamento obsessivo. “É coisa de minha cabeça, eu sei”, reconhece o
personagem, num momento de angustia e autorreflexão. Neste momento do filme, quando a esposa
indaga: “Ciúme? Mas ciúme de quê?”, ele responde prontamente: “Eu não sei, o ciúme está me
matando”. A instalação de um evidente delírio de ciúme, todavia, o momento exato em que as ideias
assumem abertamente o caráter delirante, não se pode pontuar, pois a evolução é gradativa, mas fica
evidente em cenas posteriores a presença da certeza e irredutibilidade próprias de um delírio. O
marido não tem mais dúvidas que a mulher está lhe traindo com outros homens, lhe mentindo para
despistá-lo; os interrogatórios se intensificam e atingem os limites do absurdo. Numa noite em que
falta luz no hotel e não encontra logo a mulher, acredita que ela está mantendo relações sexuais com
diversos hóspedes. Estes, gradativamente, vão se retirando ou sendo expulsos do hotel pelo dono, já
bastante perturbado. Posteriormente, quando o médico da família acolhe a mulher por conta dos
espancamentos infligidos pelo marido, este indaga ao profissional: “Mas o senhor também, doutor?”,
dando a entender que passava a incluir mais um homem em seu delírio. No final do filme o
comportamento psicótico torna-se claramente manifesto, inclusive com outros distúrbios de conduta,
alterações da psicomotricidade e possíveis sintomas na área da sensopercepção (em vários momentos,
as imagens tanto podem significar o que o personagem está pensando quanto alucinações).

No filme, determinado diálogo serve também para fazermos uma observação sobre um possível
encadeamento dos fatos no contexto de um delírio de ciúme. Quando, em dado momento, a mulher
fala para o marido “Você está me seguindo”, e ele indaga: “Por quê? Eu teria algum motivo?” Vem
a resposta: “Não, mais se você continuar posso te dar uns.” Embora não seja o caso do filme, às vezes
a concretização real de um envolvimento afetivo-sexual com outro homem, por parte de uma mulher
que se sente oprimida e agredida pelo esposo, e tem a aproximação de alguém que possa lhe ser
compreensivo e passe a desejá-la, pode de fato ocorrer. É quando se diz que a “traição” ou adultério
é indiretamente induzido pelo próprio indivíduo que se diz traído... Assim foi o caso de um homem
que desenvolveu intenso delírio de ciúme em relação à esposa, afirmando inclusive que ela não só o
traía, mas era prostituta e ocultava isto de todos. O clima de tensão e violência em casa, fez com que
ela se aproximasse de um antigo amigo do trabalho, que passou a lhe escutar, lhe dar apoio e, com o
desenrolar do tempo, mostrar-se envolvido afetivamente com a mesma, fazendo com que houvesse
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uma correspondência gradativa, até que ela solicitou o divórcio ao esposo e passou a assumir o
relacionamento com o outro homem. Foi quando o marido fez o comentário: “Eu não dizia que ela
era uma devassa e tinha outros homens em sua vida?”.

No filme de Chabrol, pelo contrário, ocorre outro comportamento, não tão incomum, por parte da
mulher que está sendo vítima do delírio do marido. Ela passa a obedecer às suas exigências (não ir
mais à cidade, demitir o funcionário objeto do ciúme, estar sempre às vistas do esposo, etc.), na
ingênua esperança de que, com isso, ele não tivesse mais motivos para sentir ciúmes, o que
evidentemente não acontece por conta das características intrínsecas do delírio (juízo falso,
convicção, irredutibilidade, caráter patológico do fenômeno).

E completamos as considerações acerca do tema com uma digressão sobre a questão da realidade ou
falsidade do conteúdo do delírio. Se a mulher vítima de um ciúme delirante do marido passa a ter um
relacionamento afetivo-sexual com outro homem, isso não faz com que o esposo não seja mais
delirante nem que o delírio deixe de existir em seu surto ou processo psicótico. Muitas vezes,
coincidentemente, o conteúdo do delírio é verdadeiro. O juízo, todavia, as razões alegadas, as provas,
os fundamentos pelos quais se iniciaram as ideias delirantes, são falsos. Na verdade, as duas coisas
podem acontecer simultaneamente: ter delírio de ciúmes e estar sendo “traído”.

12) DELÍRIO ERÓTICO (EROTOMANÍACO)

A pessoa, geralmente do sexo feminino, acredita convictamente ser amada, muitas vezes à distância,
por alguém importante para ela, podendo ser um vizinho, professor, médico, mesmo com quem nunca
tenha falado pessoalmente. É comum ser alguém de destaque social (cantor, artista, político em
evidência). Não é apenas uma fantasia ou desejo de envolvimento, mas uma crença delirante. A
pessoa pode afirmar que o sujeito que está apaixonado e a desejando vai abandonar seus
compromissos e sucesso para viver com ela, passa a acreditar que é correspondida amorosamente,
interpreta gestos que são feitos no palco ou na televisão como dirigidos a ela em código particular
que só os dois entendem. Pode tentar comunicar-se através de cartas ou E-mails encorajando o amado
a assumir publicamente, de uma vez por todas, o relacionamento oculto que acredita já durar muito
tempo. Quando uma mulher com delírio erotomaníaco tem proximidade com o suposto amante ou
reside na mesma região que ele, pode tentar adentrar-se em sua casa ou ambiente de trabalho, falar
abertamente sobre o “caso” entre os dois, bem como apresentar outros comportamentos
inconvenientes.

O filme francês Bem me quer – Mal me quer (A la folie... Pas du tout, 2002), de Laetitia Columbani,
nos mostra esse tipo de delírio através de uma trama em que vemos o entrelaçamento dos fatos reais
com as vivências delirantes de Angelique, jovem estudante que vai se apaixonando por seu vizinho,
um médico cardiologista. Quando este lhe oferece uma carona para casa, isso é entendido como uma
demonstração de interesse afetivo sexual para com ela. Ao saber que sua esposa está grávida, o
médico compra flores para a mulher, mas encontrando a jovem vizinha na porta de casa, lhe oferece
gentilmente uma rosa do buquê, o que novamente é percebido como demonstração de amor. Quando
o médico e sua esposa se desentendem, Angelique acha que isto é algo que demonstra a escolha dele
em ficar com ela, e vai esperá-lo no aeroporto para uma suposta viagem dos dois a Itália, que, em sua
imaginação, lhe teria sido prometida pelo amado. Não entende por que ele não comparece ao
encontro... Conta para as pessoas amigas que embora o homem continue casado, está quase deixando
a esposa, mas ela terá paciência de esperar o desenlace. Acredita que a gravidez foi uma forma da
mulher “prender” o marido e, num dos momentos de irritação, Angelique escreve no carro do médico:
“Não deixe que ela nos separe”. O interessante na trama é que, à medida que o cardiologista vai
recebendo mensagens e presentes, não sabe quem está prejudicando sua vida, e começa a desconfiar
de diversas pessoas próximas, inclusive se descontrolando emocionalmente. Mas não vamos falar
sobre o desfecho do filme, que é um bom divertimento e uma aula de delírio erotomaníaco.
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OUTROS TEMAS DE DELÍRIOS

Quantos forem os temas existenciais que compõem a vida do ser humano, também serão os temas
dos delírios. Expusemos vários tipos de conteúdos que mais comumente se encontram na prática. Mas
há outros temas delirantes. Uma pessoa delira com crenças extraordinárias, como acreditar estar
fazendo viagens em naves espaciais, conhecendo seres extraterrestres e visitando vários planetas.
Como classificaríamos esse tema, tratando-se de delírios? Alguns o denominam de delírio de
conteúdo fantástico. Outro tipo de delírio, relativamente raro, é aquele em que o paciente acredita
que seus familiares ou amigos próximos não são verdadeiros, mas sósias, clones, impostores
disfarçados nas pessoas originais, fenômeno denominado de delírio de Capgras (em alusão a Joseph
Capgras, psiquiatra francês que primeiro descreveu tal distúrbio), ocorrendo principalmente em casos
de esquizofrenia e psicoses de base orgânica.

TRANSTORNO DELIRANTE INDUZIDO (FOLIE À DEUX)

Tal fenômeno não é propriamente um tema ou conteúdo de delírio, mas uma situação especial em que
duas pessoas (às vezes mais) que têm fortes ligações afetivas, comumente vivendo juntas, passam a
apresentar um mesmo discurso com aspecto delirante. Todavia, apenas uma delas tem um verdadeiro
delírio, crença esta induzida na outra pessoa devido à intensa sugestionabilidade e dependência dessa
última em relação à primeira. Geralmente trata-se de uma situação crônica, que se prolonga por muitos
meses ou anos, tendo como principais temas ideias persecutórias ou de grandeza. A doença da chamada
“pessoa dominante” (a que tem o verdadeiro delírio) comumente é a esquizofrenia, mas pode ser outro
tipo de psicose. O fenômeno tende a desaparecer quando as pessoas são separadas, permanecendo a
atividade delirante apenas naquela que é o núcleo da ocorrência.

Em um exemplo de transtorno delirante induzido ocorrendo entre duas pessoas (no típico folie à
deux), um homem é encaminhado pelo clínico da família a um psiquiatra, pois passou a acreditar que
estava sendo perseguido por vizinhos, colegas e inúmeras outras pessoas, achando que seu telefone
estava grampeado e havia uma conspiração contra ele. Mas foi sua mulher quem se dirigiu ao
psiquiatra, dizendo que todas as pessoas a olhavam de uma forma estranha e faziam insinuações
desagradáveis sobre ela e seu esposo. Acreditava que quando andava nas ruas, os vizinhos fechavam
as janelas; e então, sabia que todos a espionavam. Identificava comentários contra ela e seu esposo
nos jornais e televisão. O psiquiatra ficou em dúvida se o clínico geral teria solicitado avaliação para
o homem ou para a esposa. Em contatos posteriores, ficou evidente que as mesmas ideias de
perseguição e autorreferência da mulher, estavam presentes em seu marido. A história clínica,
todavia, mostrou que, inicialmente, após a morte de um amigo, ele iniciou a atividade delirante de
perseguição, ficando a mulher muito preocupada e tentando assegurá-lo que estava exagerando na
percepção dos fatos. Mas foi o marido que conseguiu convencê-la de que toda a perseguição existia.
Com a abordagem terapêutica de cada um dos dois cônjuges, a mulher passou, aos poucos, a duvidar
da veracidade do complexo delirante, entendendo que as ideias concebidas pelo esposo eram criações
de sua mente, admitindo que os medos presentes nela eram sem sentido e que tinha se deixado
influenciar pelos “argumentos” do marido. Ela se considerava, no passado, pessoa sociável, mas como
o esposo era solitário e não gostava de companhias, começaram a se isolar do mundo. Enquanto a
mulher saía do tratamento sem atividades delirantes, o delírio de seu esposo continuava irredutível
(ÜSTUN, 1998).

Honório Delgado (1969) nos dá um exemplo de transtorno delirante induzido abrangendo não só duas
pessoas, mas uma família inteira. O fenômeno começa com um homem, identificado com as iniciais N.
N., apresentando sobressaltos noturnos e insônia, referindo que alguma pessoa entrava no seu quarto e
aproximava-se da cama, ouvindo passos no telhado, ruídos que pareciam janelas se abrindo e outros
fenômenos dessa natureza. Tudo isso se repetia em noites sucessivas. Ideias de estar sofrendo
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perseguições de forças sobrenaturais que queriam vingar-se de algo começaram a surgir, assumindo
características de delírios de influência externa. A esposa, aos poucos, também vai vivenciando os
fenômenos relatados por N. N.. Dias depois, são seus filhos de 8, 11, 14 e 20 anos de idade que também
passam a apresentar sintomas semelhantes. Uma violenta agitação psicomotora de N. N. faz com que a
família peça ajuda à polícia, que o transporta a um hospital. A partir desse dia vão cessando, nos
moradores da casa, as vivências com características psicóticas. Em relação à N. N., todavia, a evolução
do quadro deixa evidente o diagnóstico de esquizofrenia paranoide.
Pode o transtorno delirante induzido se expandir a grupos maiores de pessoas, e talvez a formação de
certas seitas religiosas fechadas, organizadas por indivíduo que delirantemente se autoconsidera um
novo messias ou alguém com a missão de reformar o mundo esteja em parte ligadas a esse fenômeno,
que, nessas proporções, é chamado por alguns autores de “epidemia psíquica”.

10. EVOLUÇÃO DO DELÍRIO NA MENTE DA PESSOA – DELÍRIOS AGUDOS E CRÔNICOS

O delírio, quanto à evolução – o curso que ele pode tomar na mente da pessoa que delira – costuma
ser classificado em agudo e crônico.

Delírio agudo é definido como aquele de curta duração, e embora seu início possa ser intenso e
dramático, logo remite após dias, semanas ou alguns meses, com a pessoa podendo até reconhecer, de
forma crítica, que por um período de tempo apresentou juízos falsos, acompanhados de convicção para
com os mesmos. Foi o caso citado em tópicos anteriores do professor que, após ser submetido a torturas
físicas e psicológicas, passa a delirar afirmando estar sendo perseguido, juntamente com a mulher e a
filha. Todavia, as ideias delirantes logo foram regredindo através do apoio e convivência com amigos
e familiares próximos, bem como de tratamento adequado. Também já vimos que certos delírios são
secundários a diminuição da clareza da consciência (decorrente de uma febre alta, período pós-
operatório complicado, etc.), e que comumente regridem após alguns dias, com o restabelecimento da
lucidez e da melhora do estado alterado da consciência. Há também casos de comprometimento mental
mais grave, como em certos surtos esquizofrênicos, em que o delírio se instala de forma aguda, intensa,
mas pode regredir após alguns meses de tratamento.

Já o delírio crônico é aquele que persiste e prolonga-se por longo período de tempo, muitas vezes
durante anos, mesmo que existindo de forma menos intensa que a dos primeiros momentos de
instalação. Assim, um indivíduo com delírio de autorreferência, seja primário ou secundário, acredita
que as pessoas estão falando mal dele, lhe difamando e o criticando em vários locais em que chegue,
perdurando essa crença por anos (muitas vezes mesmo com tratamento), o que o faz se isolar, quase
não sair de casa e estar sempre desconfiado em relação ao meio que lhe cerca, comprometendo sua
vida profissional e social. No caso que já mencionamos como delírio de reivindicação, secundário,
um homem tinha ideias delirantes que já se prolongavam por uns 10 anos, ligadas a desavenças sobre
limites de terras, acreditando que os juízes de seu país se articulavam para prejudicá-lo. Outro
paciente, também de forma contínua através do tempo, pode se achar sempre revoltado e constrangido
pelo fato das pessoas não admitirem ser ele enviado divino ou o próprio Cristo, com a missão de
transformar a humanidade.

Pelo exposto, vemos que tanto os delírios secundários quanto os primários podem cursar de forma
aguda ou crônica, e um delírio pode ser agudo e posteriormente cronificar-se com a evolução. Não
há um limite de tempo bem estabelecido que demarque precisamente até onde deve se considerar um
delírio como agudo ou crônico. Na prática, o delírio que se resolve dentro de dias, semanas ou até
alguns meses (em torno de três) pode ser considerado agudo; aquele que dura vários meses e,
principalmente, anos, é tido como crônico.
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Não é incomum o fenômeno do encapsulamento de um delírio crônico, em que as ideias delirantes


podem subsistir durante muito tempo, mas de forma atenuada e um tanto separadas das vivências do
dia a dia da pessoa, mantidas como que na intimidade do indivíduo sem que interfiram muito nas suas
atividades sociais e nos relacionamentos interpessoais. Como o termo diz, as ideias ficam como que
encapsuladas numa “área” comprometida do psiquismo, enquanto que um núcleo melhor preservado
da personalidade age no sentido de uma convivência mais sadia com o mundo circundante e até
consigo próprio. Assim, poderíamos dar o exemplo do homem digitador de uma gráfica que
começasse a delirar com a crença aguda que era um agente da CIA, observado constantemente tanto
pelos inimigos quanto pelos aliados que avaliavam seu trabalho, tendo poderes sobre a polícia do
país, mas com problemas por tentar agressivamente “impor ordens” a policiais nas ruas. O tratamento
poderia não fazer cessar o fluxo delirante, continuando o paciente, ao longo dos anos, a acreditar ser
um agente da CIA, mas achando não valer a pena impor e falar isso às pessoas e aos policiais porque
eles eram ignorantes no assunto, além de passar a crer que a fiscalização de seus superiores estaria
menos rígida, havendo também diminuído bastante a proximidade dos inimigos. Com isto conseguia
trabalhar mais tranquilo em seu emprego de digitador, bem como se relacionar melhor com os amigos
e familiares.

Há casos que somente quando algum acontecimento significativo ou conversa com forte carga
emocional ligada ao tema do delírio vem estimular o complexo que está encapsulado, é que vemos
este ressurgir e mostrar que existia de forma sorrateiramente cronificada.

A tendência, em certos pacientes, de encapsular o complexo delirante pode ser aproveitada e


estimulada dentro de um planejamento geral de tratamento, ao lado do fortalecimento de seus vínculos
e motivações saudáveis para com o mundo circundante. Procura-se evitar as ruminações dos temas
delirantes e as influências das ideias mórbidas na vida do paciente, enquanto incentivam-se as
expressões da parte preservada de sua personalidade, inclusive com contatos sociais e busca de
atividades práticas que fortaleçam sua estrutura egoico e a autoestima.

Há um exemplo clínico histórico e interessante de delírio crônico, inclusive comentado por Freud
(1911), que ficou conhecido como “Caso Schreber”. Paul Schreber era um juiz alemão, presidente de
uma Corte de Justiça, no final do século XIX, cuja doença apresentava ideias persecutórias e, em seu
conteúdo, a crença de que seria transformado em mulher. Para Schreber, durante as primeiras fases
de seus delírios, uma conspiração contra ele era tramada para mudar seu corpo, transformando-o em
físico feminino, sendo em seguida sexualmente abusado e depois deixado para apodrecer. Todavia, à
medida que a atividade delirante de Schreber prosseguia nos anos seguintes, ocorreu certa mudança
no conteúdo delirante, pois a convicção que estava se transformando em mulher, embora continuasse,
passou a ter caráter místico e de grandeza: agora tudo fazia parte de um plano divino, tendo ele
comunicação direta com Deus, inclusive através de raios que modificariam seu corpo, com o objetivo
de ser criada uma nova raça humana e ele ter o papel de redimir o mundo. Durante esse estado
psicótico Schreber esteve internado em clínica psiquiátrica por cerca de nove anos, quando escreveu
um livro denominado “Memórias de um Doente dos Nervos”, que seria publicado em 1903.

Entre os motivos de Schreber escrever e publicar tal livro está o fato dele acreditar ser seu trabalho uma
valiosa contribuição, “tanto para a ciência quanto para o reconhecimento de verdades religiosas”,
segundo suas palavras. Assumia que era “doente dos nervos”, mas não uma pessoa que sofresse de
falseamento da razão. Quando admitia ser “doente” era no sentido geral do termo, pois se queixava de
“tensão mental”, distúrbios do sono (insônia, pesadelos), sensação de amolecimento do cérebro e
sintomas dessa natureza. Suas crenças delirantes e outros fenômenos psicóticos, todavia, permaneciam
como sendo fatos verdadeiros, e então achava que a humanidade precisaria do depoimento de uma
pessoa que estivesse vivenciando experiências incomuns, mas reais, inclusive de transformação física,
com o corpo de homem passando ao de mulher, além de outros milagres divinos que se processavam
em seu esôfago, estomago, bexiga, pulmões e outras vísceras. Tamanha era a convicção em seu sistema
77

delirante que chegou a dar permissão para “autoridades qualificadas” examinarem seu corpo e
realizarem pesquisas sobre as experiências pessoais pelas quais passava. Provavelmente, o delírio
crônico de Schreber, foi assumindo características de encapsulamento, pois há depoimentos de pessoas
que conviviam com ele e percebiam que o mesmo era capaz de manter conversas e atividades sem trazer
o tema delirante nem necessitar o impor aos outros, além de ser capaz de abordar e avaliar vários
assuntos com muita clareza de ideias. Weber (apud Freud, p.....1911), diretor da clínica onde Schreber
estava internado, dá o seguinte depoimento, em seu relatório de 1900:

Visto que, durante os últimos nove meses, Herr President Schreber fez suas refeições
diariamente em minha mesa familiar, tive tido as mais amplas oportunidades de conversar
com ele sobre todos os tópicos imagináveis. Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto,
naturalmente, suas ideias delirantes), concernente a acontecimentos no campo da
administração e do direito, da política, da arte, da literatura e da vida social – em resumo,
qualquer que fosse o tópico, o Dr. Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada,
boa memória e julgamento sólido; ademais, era impossível não endossar sua concepção ética.
Também, em conversa mais superficial com as senhoras da reunião, era tão cortês quanto
afável, e, ao aflorar assuntos de maneira mais jocosa, invariavelmente demonstrava tato e
decoro. Nenhuma só vez, durante essas conversas inocentes à mesa de jantar, introduziu ele
assuntos que mais apropriadamente seriam levantados numa consulta médica.

Schreber, por conta de saber colocar limites entre os delírios e sua vida pessoal e profissional, chegou,
inclusive, a requerer sua volta ao trabalho de juiz. Embora numa primeira instância isso não fosse
conseguido, obteve seu intuito numa apelação posterior. A perspicácia e a coerência de seus
argumentos eram tais que, em julho de 1902, seus direitos civis foram restaurados, podendo então,
apesar do delírio crônico, exercer suas atividades profissionais, servindo, inclusive, de exemplo da
possibilidade e viabilidade de alguém com transtorno mental ter inclusão em sua vida social e
profissional. Somente uns cinco anos depois é que vem ter nova agudização do quadro psicótico,
quando foi mais uma vez internado, permanecendo em estado de grave perturbação, até sua morte,
aos 69 anos, com deterioração física acentuada.

11. CLASSIFICAÇÃO GERAL DOS DELÍRIOS

Concluindo este capítulo, apresentamos uma classificação geral e simplificada dos delírios,
abrangendo alguns tópicos que foram vistos. Os delírios podem ser classificados quanto (A)
à compreensibilidade psicológica, (B) à estrutura (sistematização), (C) ao curso (evolução) e
(D) ao conteúdo (tema):

A MARCANTES EXPERIÊNCIAS QUE


POSSAM FAZER COMPREENSÍVEL A
FORMAÇÃO DO DELÍRIO
DELÍRIOS
SECUNDÁRIOS
A) QUANTO À
COMPREENSIBILIDADE A OUTROS SINTOMAS DOS QUAIS O
PSICOLÓGICA DELÍRIO POSSA SE ORIGINAR

(RELACIONADA ÀS
ORIGENS DO DELÍRIO)
PERCEPÇÃO DELIRANTE
DELÍRIOS REPRESENTAÇÃO DELIRANTE
PRIMÁRIOS
COGNIÇÃO DELIRANTE
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SISTEMATIZADO

B) QUANTO A ESTRUTURA

NÃO SISTEMATIZADO

AGUDO

C) QUANTO AO CURSO (EVOLUÇÃO)

CRÔNICO

PERSEGUIÇÃO
AUTO REFERÊNCIA
REIVINDICAÇÃO
INFLUÊNCIA EXTERNA
GRANDEZA
D) QUANTO AO INVENÇÃO
CONTEÚDO (TEMA) MÍSTICO (RELIGIOSO)
RUÍNA
SOMÁTICO
CULPA
CIÚME
EROTOMANÍACO
OUTROS

Um delírio pode ser classificado de acordo com essas quatro categorias. Por exemplo, no caso do
filme “Bem me quer – Mal me quer”, a personagem Angelique apresentou um delírio que, quanto à
compreensibilidade psicológica (às origens), era primário tipo percepção delirante (ao ver/perceber o
médico lhe dando uma flor, entendeu subitamente que ele a amava e a desejava); quanto à estrutura,
tinha características de sistematizado, organizando os acontecimentos de forma tão coerente que
até seus amigos achavam que realmente Angelique tinha um caso com o médico; a duração da
atividade delirante se estendia por anos (o final do filme sugere isso), caracterizando um delírio
crônico; e o tema era, como vimos, erotomaníaco. Já o caso do professor que é preso e tortur ado
pela ditadura, observamos uma atividade delirante que, quanto à compreensibilidade psicológica,
é secundária a marcantes experiências; não tinha estruturação (o homem apenas dizia estar ele e
a família sendo perseguidos), sendo do tipo não sistematizado; durou algumas semanas,
caracterizando um delírio agudo, cujo tema era de perseguição
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CAPÍTULO 3

DEPRESSÃO

1. VIDA AFETIVA OU AFETIVIDADE

2. DEPRESSÃO

3. TRISTEZA, DEPRESSÃO E A VIVÊNCIA DO LUTO

4. ALGUMAS FORMAS DE APRESENTAÇÃO DA DEPRESSÃO

5. DEPRESSÃO, APATIA E FENÔMENOS AFINS

6. SITUAÇÕES E TRANSTORNOS MENTAIS ONDE OCORRE A DEPRESSÃO

7. DEPRESSÃO AGRAVANDO OU PROVOCANDO DOENÇAS E DEBILIDADES


FÍSICAS

8. FOBIAS, ATAQUES DE PÂNICO E DEPRESSÃO

9. DEPRESSÃO E SUICÍDIO

10. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO LIDAR COM A PESSOA EM


EM DEPRESSÃO E SUA FAMÍLIA
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1. VIDA AFETIVA OU AFETIVIDADE

Em psicologia, podemos considerar como vida afetiva, ou simplesmente afetividade, o conjunto de


sentimentos e emoções vivenciados pelo ser humano. Portanto, amor, medo, alegria, tristeza, raiva,
compaixão, ciúme, inveja, expectativa, ansiedade, bem estar ou mal estar geral, seja em que intensidade
tais estados forem vivenciados, eles e muitos outros compõem o campo da afetividade no universo
psíquico, e podem ser denominados genericamente de afetos. Esse conjunto mental é mais uma das
chamadas “funções psíquicas”, ao lado de pensamento, sensopercepção, memória, juízo de realidade,
vontade e vários outros componentes do nosso existir subjetivo. É sempre bom lembrar que essa
divisão do espaço mental em funções psíquicas é apenas um artifício didático, pois, na verdade, há uma
interação desses processos, sendo a mente algo normalmente vivenciado como um todo integrado.
Muitos desses afetos têm clara conotação de vivências agradáveis (como a alegria ou o sentimento de
amor a alguém) outros são experienciados como estados desagradáveis (o caso do medo ou do
sentimento de insegurança). Mas, os afetos não se restringem apenas a esses dois polos, o que seria uma
concepção reducionista para algo tão complexo e rico como a vida afetiva. Muitos deles são difíceis de
serem analisados como pertencentes a uma dessas duas qualidades opostas. O que dizer da nostalgia,
da expectativa em relação a um acontecimento desejado e próximo de realizar-se, da torcida por um
time naquela partida de final imprevisível, do inquietante sentimento de “suspense” em um filme
policial ou da saudade de alguém que logo tornaremos a ver? A observação dos afetos como
identificáveis em polos predominantemente agradáveis ou desagradáveis tem sua validade didática e
correspondem à vivência prática de muitos deles, todavia, enfatizamos, este raciocínio não deve ser
absolutizado e tido como aplicável a todos os estados afetivos.

Mas, dissemos que os sentimentos e emoções podem ser chamados genericamente de afetos. E em
que diferem esses dois tipos de vivências afetivas? Considera-se que as emoções são estados afetivos
intensos, embora comumente não muito duradouros. Então, temos a forte alegria no momento duma
boa notícia, o ódio a alguém no instante em que está injustamente nos insultando, o pânico no decorrer
de um assalto a mão armada ou a intensa emoção de tristeza-desespero que nos invade ao sabermos
da morte de pessoa muito significativa para nós. Já os sentimentos seriam estados afetivos menos
intensos que as emoções, mas que podem ser bem mais duradouros. Por exemplo, aquele sentimento
de expectativa em relação a algum acontecimento e que chega a durar semanas, o amor ou simpatia
por alguém, as vivências afetivas de bem estar ou mal estar geral, o receio constante daquelas pessoas
que vivem em cidades bombardeadas durante uma guerra, o orgulho do pai em relação a um filho que
vem se destacando na vida, o ciúme persistente, os sentimentos de elevada ou baixa autoestima e
muitos outros que conhecemos do nosso dia a dia.

Uma terceira diferenciação entre emoções e sentimentos, além da intensidade e duração, é que os
primeiros apresentam reações fisiológicas muito mais notórias. A emoção de alegria, ódio ou pânico
tendem a produzir taquicardia, palpitações, respiração ofegante, aumento da pressão arterial,
enrubescimento ou palidez da face, às vezes sudorese e tremores nas extremidades, voz embargada,
tensão muscular ou ainda outras manifestações físicas mais particulares de cada indivíduo (como
ardores no estômago, vômitos ou manchas roxas na pele). Os sentimentos não produzem essas reações
fisiológicas, pelo menos com a intensidade observada nas emoções.

Determinados tipos de afetos podem se manifestar tanto em forma de sentimento como de emoção.
Por exemplo, o intenso medo no momento de um perigo inesperado é uma emoção (muitas vezes
chamada de pânico), mas o medo constante que há anos uma pessoa possa ter de outra com quem
convive é um sentimento (podendo ser denominado de receio). A alegria, a depender da intensidade
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e duração, também pode ser emoção momentânea ou sentimento duradouro. O mesmo raciocínio
pode ser feito em relação ao ciúme.

Existem sentimentos e emoções que são considerados mais “primitivos”, no sentido de estarem
ligados a esferas instintivo-pulsionais do ser humano ou mesmo a vivências corporais, geralmente
surgindo já nos primeiros anos de vida e continuando presentes ao longo de sua existência. Assim,
temos os sentimentos de mal estar e bem estar geral, de prazer (inclusive sexual), desprazer, emoção
de susto-sobressalto, medo, alegria, raiva e outras vivências dessa ordem. Todavia, há afetos mais
elaborados e complexos dentro do psiquismo humano que só vão surgir com a introjeção, por parte
da criança ou adolescente, de valores e ideais éticos que pautam seu desenvolvimento psicossocial,
podendo, também, tais vivências, terem relação com o sentido que vamos dando à vida. É o caso da
angústia, remorso, solidariedade, sentimento de culpa, amor ao próximo, compaixão, lealdade,
responsabilidade e outros dessa natureza. Essa consideração de que há vivências afetivas mais
primitivas e outras mais elaboradas ética e existencialmente vai ajudar-nos a compreender as
manifestações emocionais e comportamentais de determinados tipos de personalidade, como veremos
mais adiante. Todavia, da mesma forma que ponderamos quando falamos de afetos agradáveis e
desagradáveis, o fazemos também aqui: não se pode querer enquadrar todo sentimento ou emoção
como primitivo ou elaborado eticamente, sob pena, mais uma vez, de estarmos fazendo
reducionismos no campo da vida afetiva.

Geralmente, quando pensamos em estados afetivos, sejam sentimentos ou emoções, os


relacionamos, em suas origens, a acontecimentos externos (atitudes de alguém, acidente, assalto,
alguma cena de filme, notícia agradável ou desagradável) ou a estímulos subjetivo-psicológicos
que os provocaram (determinada lembrança, conflitos interiores, constatação subjetivo-interior de
uma verdade). Mas alterações organofisiológicas podem também produzir estados afetivos. Em
certas epilepsias, no momento da ativação patológica cerebral de células nervosas, podem surgir
vivências emocionais variadas (ansiedade, êxtase, raiva), o aumento da função tireoidiana
(hipertireoidismo) muitas vezes origina persistente ansiedade, a inalação de cocaína pode dar euforia,
modificações fisiológicas no período pré-menstrual produzem irritabilidade em várias mulheres e a
ingestão de muita comida pesada pode provocar sentimentos difusos de mal estar geral, só para citar
alguns exemplos.

Ainda dentro do campo da vida afetiva, há o que se chama de humor básico ou estado de ânimo.
Tal condição pode ser entendida como o tônus afetivo do indivíduo, o estado de sentimento basal em
que a pessoa se encontra. Vamos supor que alguém esteja bem disposto física e mentalmente, com
sensação de equilíbrio psíquico interior, estabilidade emocional, em estado de ânimo satisfatório, nem
rebaixado para persistentes sentimentos desagradáveis, nem excessivamente elevado à alegria
inadequada ou exagerada. Isso é o que constitui o humor básico desse indivíduo, que no caso,
chamaremos de eutimia, considerado humor em configuração normal, em equilíbrio. Mesmo que,
mediante uma cena desoladora mostrada num programa de televisão, sinta tristeza naquele momento,
isso não quer dizer que houve mudança no estado de humor, que continua eutímico. A pessoa pode
vivenciar sentimentos e emoções, sem que haja necessariamente alterações significativas desse estado
de ânimo de base, existindo como “pano de fundo” afetivo em seu psiquismo.

Mas se alguém estiver, há dias, ou mesmo durante todo um dia, com propensão à tristeza e desânimo
para suas atividades físicas ou mentais, experimentando uma sensação geral e imprecisa de ausência
de bem estar, vivência de insatisfação difusa e outros afetos basais similares, com estado de ânimo
com predomínio de sentimentos desagradáveis, então podemos dizer que está com seu humor
rebaixado, já fora daquele equilíbrio da eutimia. Chamamos a esse estado psíquico de hipotimia,
que, como veremos, é o eixo central da depressão. Também aqui, estando nesse tipo de humor básico,
a pessoa pode, por um momento, achar graça na brincadeira do filho ou ter um susto (medo) mediante
um cão ameaçador e, no entanto, continuar com o estado de ânimo hipotímico. Por outro lado, há
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também o humor exageradamente elevado – a chamada hipertimia – em que se observa uma


constante alegria-euforia inadequada como tônus afetivo basal, podendo este estar associado também
a outras vivências afetivas exacerbadas e persistentes, como por exemplo, grandiosidade pessoal,
orgulho exagerado ou acentuado sentimento de bem estar (o que pode contribuir para a negação do
estado de humor comprometido).

Do que foi dito, se depreende que humor básico não é apenas um sentimento ou uma emoção, mas
um estado psíquico em que uma vivência afetiva prolongada serve como base para o mundo psíquico
da afetividade. Fazendo uma comparação ilustrativa, se observarmos personagens movendo-se num
palco e houver por trás deles um enorme fundo preto escurecendo a cena, a impressão será diferente
da que poderia ocorrer se o fundo do palco for de um amplo e claro azul celeste, mesmo que os
personagens e seus movimentos não se alterassem. Mas eles vão sofrer a interferência do escuro ou
claro pano de fundo, dando a tonalidade e “clima” de toda a encenação. O humor básico seria, como
foi dito, o “pano de fundo” das nossas vivências.

Intensidade
Emoções Agradáveis

Sentimentos Agradáveis
Eutimia
Duração
Sentimentos Desagradáveis
Hipotimia
Emoções Desagradáveis
Intensidade

O gráfico acima tem finalidade didática, como um resumo comparativo dos tipos de afetos e a
relação com o humor básico. Se lançarmos um eixo horizontal representando a duração dos
fenômenos afetivos, e outro vertical lembrando a intensidade de tais fenômenos, dispostos de tal
maneira que possam nos comunicar a existência de afetos agradáveis (parte superior do gráfico)
e desagradáveis (parte inferior do desenho), às emoções teriam maior intensidade e menor duração
(linha contínua) e os sentimentos menor intensidade e comumente maior duração (linha
pontilhada). O humor básico está representado não por uma linha, mas por um conjunto de linhas
(formando uma “faixa”), para nos lembrar que humor básico não é apenas uma emoção ou um
sentimento, mas um estado de tônus afetivo basal, com características vivenciais interligadas. A
eutimia, humor básico em equilíbrio, se situaria entre as vivências agradáveis e desagradáveis,
mas é um estado que pode normalmente oscilar um pouco entre esses pólos, sendo sugerido pelo
gráfico como algo variável e flutuante. As emoções e os sentimentos podem também transcorrer
normalmente sem que modifiquem necessariamente a eutimia. Já a hipotimia, corresponderia, no
gráfico, à queda do humor básico para o pólo das vivências desagradáveis, e está representada
também por um conjunto de linhas (formando a faixa inferior), lembrando tratar-se de um estado
de ânimo, e não só um sentimento ou emoção.

Diversos fatores podem contribuir para o humor de uma pessoa, inclusive modificando ou
estabilizando a eutimia. Acontecimentos significativos, conflitos persistentes, determinadas situações
duradouras de vida são exemplos de elementos psicorreativos que alteram o humor básico. Todavia,
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modificações organofisiológicas também podem alterá-lo: flutuações hormonais, efeitos tóxicos de


alguma substância que estejamos ingerindo (inclusive o álcool), condições físicas gerais, são alguns
desses tipos de fatores.
Acredita-se que tanto os determinantes psicorreativos quanto os fisiológicos interajam de forma
conjunta para a especificação do humor básico. É provável que a própria formação da personalidade,
determinada pela história de vida e peculiaridades organo-constitucionais do indivíduo (inclusive
genéticas), o predisponha a formas específicas de estados de humor que poderão estar presentes ao
longo de sua existência.

Aspecto importante a ressaltar é que, na prática, o estado de humor vai comumente associar-se a um
conjunto de outros elementos psíquicos interligados, embora seu núcleo conceitual seja o tônus
afetivo basal. O humor está frequentemente ligado à disposição e motivação, fluxo do pensamento,
capacidade de raciocínio, avaliação existencial do presente e futuro (otimismo, pessimismo,
equilíbrio realista), autoestima, necessidades instintivas e outros aspectos do existir psíquico que
possam estar associados mais intimamente ao estado de ânimo. Assim, por exemplo, uma pessoa em
humor eutímico comumente vai demonstrar boa capacidade de concentração e motivação, fluxo do
pensamento e raciocínio transcorrendo normalmente, adequada autoestima, experimentar alegria ou
prazer diante dos acontecimentos agradáveis (mas também outros afetos em sintonia com as
ocorrências da vida), ter uma perspectiva predominantemente realista do presente e futuro, apresentar
sono e apetite satisfatórios. Da mesma forma, a hipotimia frequentemente vai se associar à
desmotivação para os empreendimentos do dia a dia, queda da capacidade de concentração e
raciocínio, inibição no curso do pensar, tendência ao pessimismo, baixa autoestima, queixas de sono
insatisfatório ou falta de apetite. A esse conjunto de sintomas é que chamaremos de depressão ou
síndrome depressiva, e é para esse fenômeno que vamos nos voltar agora.

2. DEPRESSÃO

A depressão pode ser considerada uma síndrome, e é dentro dessa perspectiva que vamos estudá-la
(neste sentido, é também chamada de síndrome depressiva). Síndrome significa um conjunto de
sintomas ou características que tendem a aparecer associados. Na depressão vai haver um
rebaixamento no estado de humor, com a pessoa referindo (e geralmente demonstrando) duradoura
tristeza ou outra vivência afetiva semelhante. Esse rebaixamento – a hipotimia (onde obviamente a
eutimia é perdida) – é o principal sintoma que compõe a depressão.

A tristeza comumente presente na depressão é geralmente intensa e prolongada, sem que haja um
motivo muito claro ou adequação situacional para que tal estado seja entendido. Mas, conforme foi
dito, outras vivências afetivas persistentes e desagradáveis podem estar presentes no lugar dessa
tristeza mórbida ou associadas a ela. De fato, muitas pessoas com depressão não referem exatamente
tristeza, mas, uma intensa “angústia” que não passa, horrível “sensação de vazio” psíquico, forte
“desesperança”, contínuo “tormento” sem saber de que, impreciso “sentimento de mal estar geral” ou
outras vivências similares. Aqui é válido dar destaque ao sentimento de culpa, um dos mais presentes
e significativos na depressão, vivência afetiva sem embasamento lógico ou desproporcional aos
acontecimentos. O deprimido pode referir que se sente constantemente responsável e culpado pelo
insucesso do filho no vestibular, por não ter melhor condição financeira ou até por estar em depressão,
não havendo, realisticamente, justificativa para tais ideias, que, todavia, podem às vezes acarretar
consequências prejudiciais ao inter-relacionamento com as pessoas de seu convívio. Se uma família
está de fato passando por situação financeira precária, o dizer que é culpado por isto, pode ser tomado
como parte da realidade e gerar algum ressentimento em familiares não esclarecidos sobre o que a
depressão pode criar de fantasias de culpa.
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Muitas vezes, está presente na síndrome depressiva, o curioso sentimento de falta de sentimento,
em que a pessoa diz estar desesperada ou bastante angustiada porque não estaria sentindo as vivências
afetivas que sempre tivera. Às vezes, chora ou se lamenta aflitivamente falando não mais
experimentá-las. Mas, chorando, lamentando-se, demonstrando sofrimento, fica evidente que há
vívidos sentimentos e emoções desagradáveis, denunciados muitas vezes também por expressões
faciais e posturas corporais, daí a denominação paradoxal desse fenômeno. Outra vivência semelhante
no campo afetivo, comum na depressão, é a anedonia. Nessa, o indivíduo refere uma incapacidade ou
impossibilidade, em maior ou menor grau, de experimentar os afetos agradáveis. Pode queixar-se de
não mais sentir prazer com os acontecimentos e fatos que eram vividos com satisfação, dizer que não
consegue experimentar o amor e carinho que tanto tinha pelos filhos, não ter mais o prazer de assistir a
um jogo de futebol ou passar o fim de semana numa praia com a família (seus divertimentos favoritos
antes da depressão). Todavia, continuam presentes na anedonia, os sentimentos e emoções de
sofrimento, como tristeza, angustia, medo ou desesperança.

Mas, além dessas vivências diretamente ligadas a sentimentos e emoções, a síndrome depressiva vai
apresentar também outros fenômenos que acompanham esse eixo afetivo. A disposição física e
mental baixa é um achado quase sempre presente, com o indivíduo experimentando dificuldades ou
impossibilidade de fazer as atividades do dia a dia, raciocinar e pensar satisfatoriamente, sendo
comum o cansaço após esforços leves e queixas de desânimo persistente. A lentificação do curso do
pensamento é outro sintoma que pode ser encontrado no deprimido, não só como queixa, mas
também pela observação objetiva de sua fala, podendo até ficar em mutismo, sem se expressar
verbalmente. Paralelamente, pode ocorrer hipocinesia, lentificação dos movimentos, com o
indivíduo muitas vezes ficando “se arrastando” no seu caminhar ou mesmo apresentando ausência de
movimentos, num estado de imobilidade denominado estupor depressivo. Esse último é mais raro
nos dias de hoje, devido às técnicas terapêuticas atuais que evitam a evolução e permanência desse
quadro de inércia psicomotora. Comumente, há déficit de atenção, com queixas de dificuldade em
ler, escrever ou mesmo assistir a um programa na televisão, devido comprometimento da capacidade
de concentração. Observa-se também autoestima rebaixada, ou seja, a pessoa vai se achar inferior
perante as demais, julgar-se “imprestável”, incapaz de realizar qualquer tarefa, não ser amada pelos
amigos e familiares. Geralmente o deprimido apresenta pessimismo em relação ao
presente/futuro, com tendência a avaliar negativamente os acontecimentos da vida pessoal ou geral
e a apresentar descrença em desfechos favoráveis na conclusão de muitos fatos, havendo comentários
do tipo “está sempre dando errado tudo o que faço”, “não há mais esperança para a resolução dos
meus problemas”, “meus filhos e minha esposa não vão se sustentar”, “não vou viver muito tempo”
e assim por diante. O comprometimento nas necessidades instintivas é outro componente muito
comum na síndrome depressiva, com a pessoa referindo diminuição da libido, inapetência e insônia
(mas às vezes ocorre aumento da necessidade de comer e sono excessivo).

Necessariamente, a depressão, como síndrome, não terá que apresentar todos os fenômenos acima. A
depender da gravidade ou nível de comprometimento psicológico, vai surgir um maior ou menor
número deles, todavia, o eixo afetivo da depressão, a hipotimia, com tristeza mórbida ou vivências
similares caracterizando o tônus afetivo basal, estará quase sempre presente.

Em diversos casos, um sintoma a mais poderá ser observado na depressão: as ideias e comportamentos
ligados à morte e ao suicídio. Uma pessoa deprimida muitas vezes diz que gostaria de “desaparecer”,
“sumir da vida”, não mais existir, que Deus a “levasse logo”, “dormir e não mais acordar” ou frases
desse tipo. Mas pode explicitar claramente que sente forte desejo de matar-se, fazer planos para isso e
até tentar de fato o suicídio, chegando esse a consumar-se (com a morte) ou não. Sabe-se que a
depressão é uma das condições psicopatológicas que mais leva ao suicídio, principalmente quando é
intensa e muito duradoura, pois o sofrimento que ela acarreta pode fazer com que a pessoa não suporte
mais viver.
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John C. Nemiah (1976, p.154), registrou as palavras ditas por um paciente deprimido, tentando,
inclusive, mostrar a construção das ideias de suicídio que muitas vezes surgem nessas pessoas. O
texto é útil também para ilustrar as vivências presentes na depressão, sendo transmitidas pelo próprio
indivíduo que as sofre. Do longo relato, transcrevemos alguns trechos:

Voltemo-nos para um paciente que, do fundo do abismo de sua depressão, tenta descrever o
que está sentindo. Esta era-lhe uma tarefa difícil, porquanto era ele marcadamente vagaroso
no seu discurso e nos seus movimentos [...]. Fala num tom de voz entristecido, clamoroso e,
de vez em quando, choroso e entediante, que frequentemente era tão baixo que se tornava
muito difícil ouvir o que estava dizendo. Havia longas pausas entre as sentenças, e o que foi
escrito levou mais tempo a ultimar-se do que o exigido para lê-lo. Aqui, tal como registrado,
eis o que ele disse: [...] Não creio saber que outra coisa dizer ao senhor, senão que estou
lamentoso e triste – e sem qualquer entusiasmo para o Natal. E eu que costumava tirar um tal
partido dessa festa... É uma sensação horrível... Não me sinto entusiasmado em relação à
coisa nenhuma. Tudo parece assumir um tal aspecto de desespero [...]. Algumas vezes a gente
parece ter um punhado de amigos e ainda assim nenhum que a gente realmente ame... A gente
se sente tremendamente sozinha... A gente apenas se sente abatida... Nem um sorriso sequer
nem o menor entusiasmo que viesse de qualquer coisa... É tudo tão parecido a um vazio e a
uma vaguidão – nada que se pudesse divisar por trás disso... Ouço e vejo todo mundo que vem
para o trabalho tão cheio de alegria e de sorrisos e de felicidade. Comigo, não se dá isso de
maneira nenhuma. E que será isso, que de vez em quando sinto, que tudo isso vai acabar em
desastre?[...]. A gente vai para a cama e a gente teme por cada dia que passa, quando a gente
se sente deprimido como agora... E tento dizer para mim mesmo, como o senhor diz, que não
estou tão mal assim para que tivesse de me punir. Mesmo assim, meu pensamento não se torna
alegre. Quando ele não se torna alegre, faz com que a gente imagine que tudo isto acabará por
terminar em suicídio...

Nesse caso em específico, pode-se constatar o grau profundo da depressão, mas, nem sempre se observa
esse nível de intensidade. Às vezes, um estado depressivo mais leve até pode ser confundido com a
tristeza normal que se prolonga no tempo ou com uma fase de cansaço mental que a pessoa estaria
passando.

3. TRISTEZA, DEPRESSÃO E A VIVÊNCIA DO LUTO

É importante fazer um esclarecimento sobre o emprego dos termos tristeza e depressão, já que
muitas vezes em linguagem corriqueira os dois são (indevidamente) utilizados como sinônimos. A
tendência atual é empregar o termo tristeza para as vivências que comumente temos mediante as
perdas ou outros acontecimentos desagradáveis, tristeza que pode variar de intensidade e duração,
um sentimento que podemos experimentar inclusive em nosso dia a dia. Depressão é uma palavra
que vem sendo usada para referir-se a um conjunto de sintomas e que não é apenas um sentimento
de tristeza reativa e adequada a um contexto, mas algo significativo de distúrbio psíquico (não
necessariamente de muita gravidade). Quando se diz que alguém perdeu um objeto de estimação
ou não conseguiu ir a um passeio que desejava e ficou entristecido, não é o mesmo que deprimido.
Mesmo mediante a notícia de que uma pessoa importante para nós veio a falecer, podemos ficar,
durante dias, com intensa tristeza. Mais isto não implica em ficar com baixa autoestima, pessimista
para com o futuro, persistente dificuldade de concentração e raciocínio, anedonia, lentificação do
curso do pensamento e da psicomotricidade, etc. Há o argumento de que, mediante certas perdas
mais significativas, o quadro depressivo, com alguns de seus sintomas, pode se instalar, embora
não seja por um período muito longo nem indicativo de desestruturação ou desequilíbrio mental,
portanto não devendo, esses casos, serem considerados distúrbio psicopatológico. De fato, entre a
tristeza e a síndrome depressiva pode haver estados intermediários que não necessariamente
indiquem psicopatologia. Mesmo sabendo-se disso, é mais viável atualmente, até para evitarmos
86

mal entendidos, confusão de palavras e de conceitos, deixarmos o termo depressão para nos
referirmos ao campo dos distúrbios mentais e da psicopatologia.
Mas, aqui cabe uma observação: não é pelo fato de compreendermos as causas de um fenômeno
que ele vai deixar de ser um distúrbio ou doença. Conforme já utilizamos a analogia em outro
momento deste trabalho, qualquer pessoa que tenha a perna atingida por um pesado poste poderá
ter esse membro fraturado; podemos até dizer que é esperável e compreensível que haja a fratura,
mas nem por isto fratura deixa de ser uma das patologias no campo da ortopedia e traumatologia,
necessitando de diagnóstico correto e tratamento. Da mesma forma, entende-se que a adolescente
espancada e estuprada apresente um quadro de intensa depressão após tal experiência traumática
(constante angústia, anedonia, falta de motivação para a vida, incapacidade para concentrar-se e
voltar aos estudos, sono perturbado, queda da autoestima e crença de que as pessoas vão sempre
encará-la como uma “pobrezinha violentada”); todavia, não podemos dizer que esteja apresentando
apenas um sentimento reativo de tristeza, mas um conjunto de sintomas configurando a síndrome
depressiva como distúrbio, provavelmente precisando de intervenção clínica (talvez psicoterapia
de apoio, acompanhada ou não de medicação), inclusive para prevenir cronificação e agravamento
do quadro.

Uma situação existencial que merece uma reflexão nesse ponto é o chamado luto normal ou luto
não complicado. Quando alguém querido vem a falecer, a vivência de perda leva a um forte
sentimento de tristeza na pessoa que sofreu o golpe, sendo necessário algum tempo para que o
psiquismo elabore o processo de resolução da perda. A esse processo, Freud (1969) chamou de “luto”,
em seu célebre trabalho “Luto e Melancolia” (melancolia aqui se refere à depressão, no sentido
mórbido). O luto consiste em uma tristeza que pode fazer a pessoa chorar, sentir saudades, às vezes
se isolar, ter persistentes lembranças ligadas ao ente desaparecido (e cada uma dessas lembranças
trazerem nova onda de tristeza), sonhar com ele, não saber como suportará viver sem aquele que
partiu e outras possíveis vivências e comportamentos decorrentes da imensa tristeza pela perda.
Gradativamente, todavia, a pessoa irá se recuperando e, apesar da lembrança daquele que se foi
persistir no tempo (muitas vezes por toda a vida), ela deverá voltar a viver sem a dor psíquica que
inibiu temporariamente alguns aspectos de sua existência. No dizer de John Nemiah, “a pessoa
enlutada é, novamente, livre para viver e amar no mundo dos vivos” (1976, pg.159). Conscientiza-se
que é possível “viver sem” o ente perdido. O tempo que dura esse processo evidentemente varia de
caso para caso, a depender do nível de ligação da pessoa para com o falecido, das circunstâncias da
morte, da existência de apoio psicossocial, das motivações existenciais na vida e outros fatores de
interferência.

Vale lembrar que o conceito de luto pode ser expandido para outras situações de perda. Por exemplo,
alguém que perde uma parte ou função significativa do corpo (o atleta que tem as pernas amputadas
num acidente ou a jovem que precisou fazer uma mastectomia), a pessoa que perde uma condição de
vida satisfatória e estável (situação social ou econômica importante), a perda por separação de alguém
com quem se conviveu e se tem forte envolvimento afetivo. Todas estas circunstâncias mobilizam
forte tristeza. Diz-se que, enquanto o sentimento de ansiedade se relaciona com expectativas de
acontecimentos que virão, a tristeza tem relação com algo significativo que é perdido. Até aqui
estamos discorrendo sobre fenômenos absolutamente normais, como a tristeza inerente a todo ser
humano, o luto não patológico, a experiência de perda de algo importante.

Mas o luto pode não evoluir favoravelmente e o processo de elaboração de perdas não se completar,
podendo a resolução desse estado psíquico ficar bloqueada. Teremos então o que se chama luto
patológico ou luto complicado, fenômeno que já não envolve apenas uma tristeza ou sentimentos
reativos a uma perda, mas um quadro que irá desaguar no conceito psicopatológico de depressão.
Fazendo a contrapartida daquela frase de Nemiah, nesse caso, a pessoa enlutada não consegue mais
ser livre para viver no mundo dos vivos.
87

O caso seguinte ilustra bem o luto não resolvido com quadro de depressão. Ao sair com seu
namorado, Suely, jovem de uns 18 anos, presenciou o mesmo ser morto por outro rapaz que há
meses vinha lhe assediando e que demonstrava ter inveja daquele. Suely ficou desesperada, chorava
constantemente, não conseguia dormir tendo pesadelos e, no enterro do namorado, dizia ter sido a
culpada pela desgraça ocorrida. Os dias e semanas se passavam e o quadro, não só se mantinha
como apresentava sinais de piora. A jovem dizia ter uma impressão que o rapaz estava vivo, que a
qualquer momento viria se encontrar com ela e se percebia preparando-se para sair com o mesmo,
tal como ocorria quando era vivo. Ao dar-se conta e se lembrar de que ele estava morto, entrava em
desespero, tinha choros convulsos e às vezes tentava se autoagredir, como bater nela mesma.
Alimentava-se muito pouco (o que a fez emagrecer), o sono continuava insatisfatório e não mais
cuidava de sua aparência pessoal. Deixou de ir ao colégio, afastou-se dos amigos, não saía de casa
e dizia não merecer mais viver. A família, então, percebendo que o estado de Suely não era só de
um processo normal de perda e pesar, procurou auxilio psicológico/psiquiátrico através de um
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). E só com a associação de psicoterapia de apoio e
medicação por determinado período (além dos trabalhos em grupo inerentes aos CAPS) é que ela
foi, gradativamente, saindo do quadro depressivo. É sabido que há casos de luto complicado que se
associa a profunda depressão e se cronifica através dos anos, com a pessoa chegando a ficar com
sequelas significativas, como a persistência de um humor deprimido se enraizando em sua
personalidade e interferindo desfavoravelmente na vida psicossocial. No caso dessa adolescente,
talvez existisse, no íntimo, certo prazer em ser desejada por outro rapaz, além do namorado. Com
este, ela vinha tendo, ultimamente, discussões e sentimentos ambivalentes (se por um lado havia
forte bem querer e atração, havia também raivas enciumadas). Externar esses sentimentos, essas
ambivalências e, principalmente, o sentimento de culpa por ter sido o objeto de desejo e inveja de
outro homem, precipitando o homicídio, possibilitou a superação de um luto complicado que
bloqueava e impedia que Suely vivesse livremente.

Não é tanto o nível de ligação entre as duas pessoas (a que viveu a perda e a falecida) que vai provocar
uma possível dificuldade na resolução do processo de luto. Para a ocorrência desse bloqueio, diversos
autores dão ênfase à existência de sentimentos ambivalentes por parte da pessoa enlutada,
principalmente quando a raiva, ressentimento, inveja ou outras vivências afetivas desse tipo estão
presentes, inclusive em nível inconsciente. Conforme escreve Júlio de Mello (1978, p.38):

A dificuldade em fazermos o luto é função da importância da perda, da capacidade do Ego de


lidar com a mesma e, principalmente, do tipo de relação com o objeto perdido. Assim, se nos
sentimos em débito ou culpa com este, surge a tendência a expressar esses sentimentos através
da melancolia, que se segue à perda.

4. ALGUMAS FORMAS DE APRESENTAÇÃO DA DEPRESSÃO

Existem vários graus de depressão. Uma pessoa pode apresentar um humor hipotímico duradouro,
estar frequentemente triste e desanimada, achar-se inferiorizada, apresentar sempre uma
perspectiva pessimista do futuro e referir insônia, todavia, conseguir desenvolver suas atividades
do dia a dia, trabalhar e, às vezes, sair a lazer com a família e vivenciar alguns momentos de prazer.
Outra pode ter o humor hipotímico em grau mais acentuado, referir os mesmos sintomas da anterior
e, ainda, adicionalmente, não conseguir trabalhar nem executar seus afazeres cotidianos, não sair
de casa e ficar a maior parte do dia deitada em seu quarto, não sentindo mais prazer em se divertir
ou participar de atividades antes agradáveis para ela e apresentar ideias relativas à morte e suicídio.
Os diferentes níveis de gravidade de depressão, dizem respeito não só a um maior ou menor número
de sintomas da síndrome, mas também à intensidade de cada um deles.
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Muitas vezes, entre os sintomas da depressão, podem ser observadas queixas físicas diversas, como
cefaleia, dores lombares ou “na coluna”, dificuldades de respiração, “azia”, cansaço fácil e outras que
alguns deprimidos costumam referir. É possível, inclusive, que objetivamente possam ser constatadas
variações no funcionamento fisiológico do organismo como, por exemplo, elevação da pressão
arterial, aumento da secreção do suco gástrico, perda de peso ou fraqueza muscular. Embora
tipicamente o sintoma axial da síndrome depressiva seja a hipotimia ou humor rebaixado para o
polo das vivências desagradáveis, há casos em que essas queixas somáticas chegam a ser mais
proeminentes que aquele sintoma, com a pessoa quase não fazendo referências à tristeza, choro,
sentimento de infelicidade ou outras vivências psíquicas dessa ordem. Essa forma de apresentação
da depressão é chamada depressão mascarada ou somatizada. Inclusive, há pacientes que se
dirigem ou são encaminhados para médicos clínico-gerais pensando que estão com alguma
doença nos sistema digestivo, cardiovascular, respiratório ou em outras áreas físicas, quando
então, muitas vezes, é constatado o diagnóstico de depressão. Daí, a importância desses
profissionais, inclusive do médico de saúde da família, estarem atentos para tais pessoas que
aparentemente têm um problema clínico-geral, quando na verdade o distúrbio básico é depressão.

Um quadro clínico muitas vezes encontrado na prática é a depressão psicótica. Quando a depressão
é intensa e grave, por conta de haver um maior comprometimento do psiquismo, podem surgir
sintomas psicóticos, ou seja, sintomas que mostram estar havendo afastamento da realidade e
significativa distorção da mesma por parte da pessoa deprimida. Podemos observar, então, o
surgimento de alucinações, ideias delirantes e outras manifestações dessa ordem, geralmente em
sintonia com o humor deprimido, com temas de sofrimento, ruína, prejuízos ou conteúdos similares.
A pessoa pode então, por exemplo, acreditar que toda sua família está passando fome e morrendo
desamparada, crer estar sendo perseguida para ser torturada e morta pelos seus pecados, apresentar
desespero porque acredita que sua cidade vai ser bombardeada, ter convicção que um ente querido
está morto e ninguém quer lhe contar a verdade, sendo essas ideias inverídicas e destituídas de
fundamentação lógica. Pode apresentar pseudopercepções visuais, vendo rostos, vultos ameaçadores
ou confundindo as imagens de familiares com figuras de perseguidores desconhecidos. Às vezes, na
área auditiva, refere ouvir “vozes” que lhe insultam, lhe recriminam, falam de sua morte ou da
“desgraça” em que a família se encontra. Tais sintomas psicóticos, todavia, tendem a diminuir ou
cessar quando a depressão é tratada.

Em relação ao curso de uma depressão, esta pode evoluir basicamente em forma de fases (surtos) ou
de prolongamento contínuo. A depressão fásica é encontrada, por exemplo, no transtorno depressivo
recorrente, doença em que, ao longo da vida, a pessoa apresenta períodos depressivos que duram
cerca de semanas ou meses, e períodos assintomáticos onde está praticamente livre das manifestações
agudas da doença, muitas vezes voltando às suas atividades do dia a dia praticamente sem nenhuma
sequela. Já na depressão em forma de prolongamento contínuo, ao longo dos anos e na maior parte
do tempo a pessoa apresenta um humor rebaixado (além de outros sintomas da síndrome depressiva),
evoluindo com algumas oscilações entre ligeiras melhoras e pioras do quadro clínico. Tal depressão,
embora presente por mais tempo que nas fásicas, não tem a intensidade observada nestas. Em seu dia
a dia, a pessoa vive entristecendo-se com facilidade, pessimista para a vida, com baixa autoestima,
irritabilidade, sem muita disposição física e mental, mas continua trabalhando, estudando e atuando
em suas atividades sociais, embora comumente o rendimento geral fique comprometido e tenha
problemas na convivência com os outros. Pode-se dizer que a depressão fásica é aguda, enquanto a
contínua é crônica.

5. DEPRESSÃO, APATIA E FENÔMENOS AFINS

Em diversas circunstâncias psicopatológicas, observamos que a capacidade de experimentar emoções


e sentimentos tende a estar bastante diminuída ou mesmo abolida, com a pessoa apresentando certa
89

insensibilidade para vivenciar os afetos em geral, alteração esta que pode se prolongar durante dias,
semanas, meses, anos e até por toda a vida. Diversos autores chamam esse fenômeno de apatia,
distúrbio psíquico que compromete a vivência dos afetos, sejam eles dos mais primitivos (alegria,
medo, raiva), pertencentes ao grupo dos chamados afetos éticos (amor ao próximo, lealdade,
sentimento de culpa), sejam agradáveis ou desagradáveis. Nesse tópico, vamos estabelecer
comparações e diferenciações desse fenômeno para com a depressão, já que isso tem importância
para a delimitação de conceitos, diagnóstico e mesmo terapêutica dos distúrbios mentais.

Assim, Jaspers (1973, p.136) define a apatia:

Chamamos apatia a falta de sentimento. Sendo total - o que pode ocorrer momentaneamente
em psicoses agudas - pode dar-se o caso de alguém ouvir e ver com toda consciência e perfeita
orientação, de memorizar o que observa e, no entanto, deixar passar com a mesma
indiferença, - ‘morto de olhos abertos’ - tudo que acontece, quer lhe possa trazer felicidade,
prazer e ânimo, perigo e ameaça, dor e morte. Falta então também o estímulo para agir: a
apatia traz como consequência a abulia. 1

Honório Delgado (1969, p.70) dá uma definição semelhante: “A apatia é a incapacidade mais ou
menos prolongada de experimentar sentimentos, inclusive quando a mente conserva a aptidão de
compreender as situações”. Esse autor lembra também que, em muitos casos, pode-se ficar indiferente
até para as situações ligadas a sobrevivência e perigo, e exemplifica isso com o relato de um paciente
que dizia praticamente não sentir mais os sentimentos e emoções que vivenciava anteriormente, como
carinho, ódio, tristeza, alegria e até medo diante de situações perigosas. Contou ele que, em certa
ocasião, estava no salão de bilhar quando começou um tremor de terra, e enquanto as pessoas saiam
correndo desesperadas, ficou indiferente ao que se passava, apesar de compreender o perigo do
momento.

É bom lembrar que esse exemplo, bem como a alusão que Jaspers faz à pessoa apática como “morto
de olhos abertos”, refere-se a casos mais intensos desse distúrbio, mas a apatia pode variar em graus
de comprometimento da vida afetiva, havendo também déficits mais leves.

A apatia, além de ser um fenômeno prolongado, sua instalação quase sempre se dá de forma insidiosa,
gradativa, como podemos observar, por exemplo, em pacientes com progressiva atrofia cerebral
decorrente da Doença de Alzheimer. Aos poucos, à medida que as funções cognitivas vão declinando
e o estado demencial se consolidando, o paciente também pode, gradativamente, ir perdendo a
capacidade de sentir alegria, medo, tristeza, raiva, culpa e outros afetos que antes eram vivenciados
com clareza e interesse.

Todavia, esse déficit generalizado dos afetos pode não surgir em um determinado momento da vida
adulta de uma pessoa, mas já existir numa forma bem precoce ou talvez até inata. É o caso da
chamada “pobreza afetiva”, de muitos deficientes mentais graves. Desses, alguns apresentam um
déficit afetivo significativo, outros, todavia, mostram isso de maneira não tão intensa, onde os
sentimentos e emoções são vivenciados e notados apenas de forma limitada, com pouca vivacidade.

Muitas vezes, a apatia pode ser irreversível, como nesses exemplos de estados psicopatológicos
com comprometimento orgânico cerebral. Mas há casos em que o declínio generalizado e
duradouro dos afetos é reversível, passageiro. É o que pode ocorrer nos chamados “distúrbios
sintomáticos”, onde uma disfunção física extra cerebral, (insuficiência renal ou hepática,

1
Entenda-se “abulia” como um enfraquecimento da vontade, seja na capacidade de transformar decisões em ações, ou
até mesmo no tomar decisões.
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hipotireoidismo grave, infecção generalizada, desequilíbrios metabólicos) produz sintomas mentais


que tendem a desaparecer quando a referida disfunção básica é tratada. Assim, um paciente com
febre em decorrência de grave infecção renal pode apresentar sonolência, lentificação dos
movimentos, abulia e apatia, sintomas esses que geralmente desaparecem quando a doença dos rins
é tratada.

A apatia pode ser observada na esquizofrenia, às vezes também chamada de “embotamento afetivo”.
O surgimento desse sintoma pode ser relativamente precoce, como se observa em certos casos de
esquizofrenia do tipo hebefrênica, onde, já no primeiro episódio da doença, muitas vezes é possível
se perceber um gradativo “esvaziamento afetivo” (termo também usado por alguns autores para essa
modalidade de apatia), em que o paciente se apresenta referindo e demonstrando um “vazio” em
termos de sentimentos e emoções, inclusive com expressões comportamentais refletindo uma vida
afetiva empobrecida. Mas o declínio na capacidade de experimentar os afetos, na esquizofrenia,
ocorre também como resultado do conhecido “defeito” ou sequela dessa psicose, onde, só em estados
mais avançados no curso da doença é que se vai notando a apatia progressiva como resultado da
desestruturação crônica do psiquismo.

Salvador de Sá (2001) nos lembra que a apatia pode ser encontrada também em certos neuróticos (numa
variante que ele chama de “desinteresse afetivo”). De fato, sabemos daqueles casos em que, talvez
como consequência de traumas e conflitos psicológicos, a pessoa se mantém distanciada
afetivamente em inúmeras circunstâncias que normalmente despertariam vívidos sentimentos e
emoções. Da mesma forma, há indivíduos que possuem determinados tipos de personalidade em
que, desde criança, são retraídos (não deprimidos), isolados, que vivenciam e manifestam poucos
sentimentos e emoções, também sendo vistos como afetivamente “distantes”. Existe, por exemplo,
a chamada “personalidade esquizoide” que tem como uma das características principais essa
tendência ao retraimento excessivo e afetividade embotada, com pouco interesse em experiências
afetivo-sexuais ou amizades íntimas. Nestes dois casos (certas neuroses e determinados tipos de
personalidade), pode-se levantar a hipótese de que os déficits afetivos observados seriam uma forma
de bloqueio ou “fechamento” defensivo inconsciente em relação aos sentimentos e emoções. Para
que esses não viessem plenamente ao mundo consciente e “escapassem” em manifestações afetivas,
por haver dificuldades em se lidar com eles e talvez para “fugir” de vivências emocionais e do
contato mais próximo com outras pessoas, os afetos ficariam “encobertos” e “reprimidos”. Tal
possibilidade, todavia, não impede a inclusão desses casos como sendo formas de apatia, já que, no
campo das vivencias conscientes, ocorre alguma incapacidade de experimentar sentimentos e
emoções.

Essa reflexão é extensiva também a outros casos de apatia. Na esquizofrenia, por exemplo, quando
tal sintoma é observado, esse seria realmente devido a uma perda do cabedal afetivo que antes existia
na pessoa? Não ocorreria também um forte e duradouro bloqueio destes afetos, sendo que eles
permaneceriam, através dos anos, encapsulados e reprimidos? O trabalho terapêutico com
esquizofrênicos sugere isso, pelo menos para determinados casos, pois, pacientes que se encontravam
apáticos, quando submetidos a técnicas sociopsicológicas de tratamento e novos medicamentos,
passam a reexpressar sentimentos que pareciam estar como que “destruídos” pela doença. Todavia, a
bem da verdade, é preciso dizer que em muitos outros casos crônicos e defectuais de esquizofrenia,
apesar do aprimoramento das diversas técnicas terapêuticas, uma vida afetiva mais ampla parece não
ser resgatada. Porque, embora questões psicodinâmicas possam contribuir para a compreensão dessa
psicose, hoje há evidências de comprometimento organofisiológico subjacente aos sintomas, que não
podem ser entendidos apenas pela ótica psicológica. De qualquer forma, novamente as
considerações sobre se há “deterioração” ou apenas “retração” de afetos nos pacientes, não modificam
a classificação do fenômeno como apatia, já que ocorre declínio nas vivências dos sentimentos e
emoções.
91

Quando falamos em apatia como uma forma de insensibilidade afetiva, incapacidade generalizada
e duradoura de vivenciar os afetos, estamos nos referindo a um estado diferente da hipotimia.
Esta foi vista como desvio do humor básico no sentido de um polo desagradável, de sofrimento,
tristeza e outras vivências afetivas desse tipo, por vezes bastante intensas e perturbadoras, a ponto
de fazer a pessoa pensar em suicídio. Apatia é déficit, ausência, não intensificação de vivências,
algo que aponta em outro sentido diferente da depressão e se refere a um estado de suspensão de
sentimentos. É importante lembrar que, na síndrome depressiva (incluindo a hipotimia) é comum
ocorrerem formas imprecisas de sofrimento, em que a pessoa refere estar “insensível”, com um
“oco por dentro”, sentindo um “vazio” subjetivo, “morto interiormente” ou outros termos que
podem ser confundidos com a apatia, mas que expressam variações de sentimentos desagradáveis.

Apatia também é diferente de um dos componentes comuns da depressão que vimos com o nome
de anedonia, sendo esta um déficit ou incapacidade de sentir os afetos agradáveis, mas há vivências
de sofrimento, enquanto que apatia engloba déficit generalizado dos afetos como um todo, não
apenas os prazerosos. O sentimento de falta de sentimento é outro fenômeno comumente presente
na síndrome depressiva em que, pelo fato da pessoa referir estar sem sentimentos, pode ser
confundido com apatia, todavia, vimos que na verdade há também vivencias de sofrimento,
desespero, angustia por se acreditar ter perdido a capacidade de experimentar os afetos.

Sobre a diferenciação do estado depressivo para apatia, Honorio Delgado (1969), se refere a esse
último sintoma frisando não se tratar de uma depressão de ânimo dominada por sentimento de
tristeza ou de atitude pessimista em relação à vida, mas de uma incapacidade para gozar ou sofrer
sentimentos em geral.

Acerca do tema, também Eugen Bleuler (1985, p.49) se expressa sobre o indivíduo deprimido (ou
melancólico, como alguns o denominam): “Os melancólicos, completamente mergulhados em sua
miséria, praticamente não sentem mais nada, além disto. Muitas vezes, são erroneamente
considerados apáticos” [grifo nosso].

Essas citações ressaltam a importância de diferençar a apatia da depressão, bem como alertam para
as possibilidades de erros na identificação de cada uma dessas vivências. A propósito, apesar de
comumente se dizer que na síndrome depressiva pode estar presente a apatia, preferimos não utilizar
esse termo para nos referirmos aos sintomas da depressão, seguindo os autores e textos acima citados,
que parecem procurar não o fazer.

Ainda, nessa incursão sobre apatia, deve-se distingui-la do chamado estupor emocional. Esse termo
refere-se ao fenômeno, não necessariamente psicopatológico, da perda ou déficit generalizado na
capacidade de experimentar afetos, mas de forma momentânea (não tão prolongada como na apatia,
pois o estupor emocional geralmente dura minutos, horas, talvez alguns dias) e que se instala
abruptamente (sem a instalação gradativa, insidiosa, da apatia), seguindo-se a um acontecimento
externo intensamente traumático, como morte de pessoa querida, catástrofe coletiva, grave acidente,
etc. Assim, um cinegrafista que estava preparando sua câmera para um evento rotineiro, sofre o
impacto de uma bomba terrorista que destrói parte do recinto em que se achava, ferindo e matando
algumas pessoas. Por sorte, fica praticamente sem ferimentos, e posteriormente, conta que logo após
a explosão, subitamente se sentiu “anestesiado” diante do incidente, “sem sentir nada”, “meio
distante”, quando então pegou a câmera e fez algumas filmagens das terríveis cenas que via em sua
frente, além de socorrer os feridos. Hora após essa vivência de estupor dos afetos, quando retornou
ao carro da empresa jornalística para a qual trabalhava, entrou num estado de desespero e pranto
incontrolável, em que todo seu corpo tremia mediante um extremo pânico que só então eclodia.
Sabemos, para citar outro exemplo, que às vezes uma pessoa, ao receber de forma brusca a notícia
da morte trágica e inesperada de um familiar muito próximo, fica durante horas em “estado de
choque” (como às vezes o estupor emocional é chamado popularmente), embora esteja consciente
92

da realidade do ocorrido. Enquanto está nesse estado, a pessoa comunica o fato a amigos, ajuda a
providenciar o velório e enterro, resolve assuntos urgentes, etc. Após as cerimônias fúnebres é que
passa então a chorar convulsivamente, vivenciar um desespero que parece ser insuportável e a ficar
desorientada quanto aos fatos ocorridos. De certa forma, o estupor emocional pode ser visto como
uma defesa psicológica contra o eclodir de emoções extremamente dolorosas. É como se uma
intensa onda de sofrimento fosse repentinamente represada, bloqueada, para algum tempo depois
voltar a se apresentar, por vezes já numa circunstância contextual mais segura.

Mas, essas considerações sobre déficit na capacidade de experimentar afetos não estariam
completas se não fizéssemos alusão a um fenômeno que pode ser chamado de embotamento dos
sentimentos éticos ou frieza ético-afetiva. Neste, também ocorre rebaixamento prolongado na
vivência dos afetos, porém, não um déficit generalizado como na apatia, mas circunscrito a
determinados tipos de sentimentos. O indivíduo é incapaz de sentir (ou sente de forma bastante
diminuída), os chamados afetos éticos do ser humano – amor ao próximo, compaixão, remorso,
culpa, lealdade e outros desta natureza; todavia, pode experimentar plenamente as emoções e
sentimentos mais primitivos, ligados ao elemento instintivo do homem – sentimento de bem estar
ou mal estar geral, medo, alegria, raiva, inveja, prazer sexual e demais vivências deste tipo. Sobre
o embotamento dos afetos éticos, Nobre de Melo assim se expressa (1981, p. 539):

Embora possa ser observado em oligofrênicos – deficiência do senso ético por


impossibilidade de alçar-se ao nível da compreensão de conceitos abstratos, tais como honra,
pudor, dever, compaixão, lealdade, etc. – é, todavia, particularmente característico das
personalidades psicopáticas de tipo perverso ou amoral, em que geralmente coexiste com uma
inteligência normal ou mesmo superiormente desenvolvida [...]

Lembrar que, termos como personalidade psicopática, perversa ou amoral, psicopata, sociopata,
são englobados pela CID 10, como “personalidade antissocial”, denominação mais atual. Nesse
transtorno de personalidade, todavia, não há muito consenso científico acerca de suas origens, ou
seja, se o déficit dos afetos éticos seria basicamente inato, constitucional, com componentes
hereditários, ou algo adquirido precocemente, com implicações psicodinâmicas e psicossociais
como causas. De uma forma ou de outra, na prática, um indivíduo com personalidade antissocial,
caracterizada por embotamento dos sentimentos éticos, estará propenso a mentir, prejud icar
pessoas, trair a confiança de amigos e ter outros comportamentos desse tipo para obter vantagens
em proveito próprio, já que não experimenta (ou vivencia bem atenuadamente) aqueles afetos
ligados a introjeção de valores ético-humanísticos e à censura interior, necessários ao equilíbrio da
convivência social. A literatura e o cinema exageraram na descrição dos chamados "psicopatas",
mostrando-os sempre como assassinos profissionais, torturadores, responsáveis por crimes em série
e “monstros” que são capazes de cometer as maiores perversidades contra o próximo. Todavia, na
vida real, a maior parte dos psicopatas não chega a esse extremo perverso de comportamentos, mas
podem causar prejuízos e sofrimentos a pessoas que convivem ao seu redor.
6. SITUAÇÕES E TRANSTORNOS MENTAIS ONDE OCORRE A DEPRESSÃO

Voltando ao nosso tema central – o estado depressivo – sabemos que em várias circunstâncias ou
enfermidades ele pode estar presente, sendo as principais, os chamados transtornos do humor,
transtornos de ajustamento com manifestação depressiva, psicose e depressão puerperais e os
distúrbios orgânicos do humor.

TRANSTORNOS DO HUMOR

A depressão pode ser observada claramente num conjunto de entidades psiquiátricas agrupadas com
o nome de transtornos do humor, algumas delas conhecidas, no século passado, pelo nome geral
de PMDs (psicoses maníaco-depressivas). Desde a antiguidade, descrições do que hoje se chama
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transtornos do humor já eram feitas, e Hipócrates (século IV a.C.), se referia à melancolia e mania,
classificando-as como tipos de distúrbios mentais. Segundo as descrições atuais, as principais
variantes desses transtornos do humor são a “depressão recorrente”, o “transtorno bipolar” e a
“distimia”. Os estudos estatísticos têm mostrado que a ocorrência deles na população geral está em
torno ou acima de 5 %, variando muito de acordo com a metodologia aplicada em cada país e a
inclusão ou não de determinados subtipos na pesquisa desses transtornos mentais.

As causas desse grupo de distúrbios psiquiátricos são, em grande parte, desconhecidas. É bem verdade
que muitos estudos apontam tanto para fatores biológicos (mau funcionamento de certos
neurotransmissores cerebrais, como a serotonina e a noradrenalina, bem como componentes genético-
hereditários) quanto para fatores psicossociais (a exemplo de perdas significativas na infância ou
outras experiências desfavoráveis). Mas muito ainda precisa ser esclarecido acerca da etiologia desse
grupo de distúrbios. Por isso, eles não são classificados como doenças de base orgânica bem
estabelecida, diferentemente da depressão derivada de um hipotireoidismo, por exemplo (que
veremos mais adiante com a denominação de transtorno orgânico do humor), porque nessa há
causação somática conhecida, estudada e compreendida como determinante de muitos casos
similares. Por outro lado, também não parecem ter fatores psicológicos como causas básicas, como
ocorre nos chamados transtornos de adaptação (situação em que acontecimentos perturbadores podem
provocar uma reação depressiva). Daí, os transtornos do humor, aqui descritos, formar um grupo
específico em separado, com fatores etiológicos ainda não bem conhecidos, não havendo nenhuma
outra enfermidade subjacente que possa explicar a manifestação dos sintomas. No passado, usava-se
o termo “origem endógena” para esses tipos de doenças (onde basicamente se incluíam a depressão
unipolar, a psicose maníaco-depressiva e também a esquizofrenia), denominação essa que se referia
à existência de fatores etiológicos constitucionais, intrínsecos ao desenvolvimento corporal do
indivíduo, como hereditariedade e estruturação do sistema nervoso central.

Na chamada depressão recorrente ou depressão unipolar, observam-se depressões fásicas ao longo


da vida da pessoa, com o primeiro surto surgindo, muitas vezes, já na juventude. O aparecimento
deste, e muitas vezes dos posteriores, pode ocorrer mediante um acontecimento desagradável, como
o falecimento de algum amigo ou a perda de um emprego. O que aparentemente parece ser uma
tristeza comum, aos poucos vai se configurando como um episódio depressivo, com os múltiplos
sintomas dessa síndrome. Há casos em que a suposta “causa” do quadro desaparece, todavia o surto
depressivo permanece, mostrando que não era aquela a responsável verdadeira pela depressão. Por
exemplo, uma jovem cai nesse estado após seu namoro ter acabado, no entanto, quando o
relacionamento é em seguida reatado, a depressão continua existindo, ou seja, a separação foi apenas
um fator desencadeante. Por outro lado, muitas vezes a pessoa vai mergulhando na depressão sem
que se observe nenhum acontecimento precipitante. Aos poucos, começa a se isolar, mostrando-se
triste e indisposta, referindo culpa ou desespero sem saber por que, até que o quadro depressivo fica
evidenciado. Cada episódio depressivo desse tipo é também chamado de Síndrome Depressiva Maior,
lembrando a forma intensa e abrangente do mesmo.

Pode ocorrer que a depressão fásica se alterne com episódios maníacos, no que teremos o transtorno
bipolar, outra forma de doença mental pertencente ao grupo dos transtornos do humor. Aqui é
importante que façamos algumas considerações sobre o que seria esse estado que chamamos de
síndrome maníaca. Da mesma forma que entendemos depressão como um conjunto de sintomas em
que, entre eles, está o humor hipotímico, podemos nos referir à mania também como uma síndrome,
mas com características opostas. Nessa, há um sintoma axial que é a hipertimia, humor elevado,
exaltado, eufórico, estado de ânimo com predomínio de sentimentos basais de alegria ou outros
similares, em que a pessoa se sente, durante dias ou semanas, com sensação geral de inadequado e
exagerado bem estar. Há, portanto, também uma perda da eutimia, só que, ao contrário da depressão,
o desequilíbrio aqui é no sentido de exaltação do humor básico. Além da hipertimia, a síndrome
maníaca vai englobar também outros sintomas. Comumente o paciente nesse estado demonstra
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autoestima bastante elevada (acha-se “super” inteligente, querido por todos, sexualmente desejado pelas
pessoas que o cercam e outras impressões megalomaníacas irrealistas), concepção do futuro
exageradamente otimista (tudo vai dar certo, mesmo que os fatos mostrem o contrário; não precisa se
esforçar para conseguir o que quer porque o destino fará tudo transcorrer as “mil maravilhas”), fluxo
do pensamento e da linguagem acelerados (tendendo a falar demais e depressa, mudando de um
assunto para outro de forma inapropriada), exagerada motivação para os empreendimentos (muitas
vezes tendo condutas prejudiciais em termos financeiros e problemas nos relacionamentos). Observa-
se no estado maníaco, sono insatisfatório e falta de apetite (às vezes o contrário, sensação de fome
aumentada), mas a libido sexual tende a estar exacerbada. Nem sempre a alegria e a jocosidade estão
constantemente presentes, pois, muitas vezes, principalmente se contrariado, o paciente em estado
maníaco apresenta irritabilidade e condutas agressivas. Assim como a depressão pode apresentar
níveis de gravidade-intensidade, o estado maníaco também varia em formas mais leves ou graves,
podendo inclusive, apresentar sintomas psicóticos com alucinações e delírios. Os conteúdos desses
são comumente congruentes com o estado de humor subjacente, ou seja, o indivíduo pode acreditar,
por exemplo, que é muito rico, tem muitas posses, é amigo de personalidades de influência no cenário
nacional e internacional ou tem poderes sobrenaturais. Pode também “ouvir” vozes que lhe elogiam
e confirmam sua notoriedade como figura importante e conhecida por todos, “ver” muito dinheiro no
lugar de folhas de papel sobre a mesa ou outras pseudopercepções dessa natureza.

Há casos de transtorno bipolar em que só após vários episódios depressivos é que surge um ou mais
surtos maníacos, que podem se alternar com outros depressivos; há também aqueles que começam
com episódio maníaco para posteriormente surgirem os depressivos, seguidos ou não de mais surtos
maníacos. O que caracteriza essa doença mental é a presença da bipolaridade em fases que podem ser
de um tipo ou de outro, seja qual for a frequência ou modo de alternância, diferentemente da depressão
recorrente, onde só há episódios depressivos. Vale lembrar que a depressão fásica, seja na doença
unipolar ou no transtorno bipolar, é um dos quadros clínicos psiquiátricos onde há maiores índices de
suicídio, assunto que detalharemos mais adiante.

O filme Mr. Jones (Mr. Jones, 1993) do diretor Mike Figgis, mostra de forma bem clara (e até
didática) as manifestações maníaca e depressiva de uma pessoa com transtorno bipolar. O
personagem título, “Mr. Jones”, inicialmente apresentando uma fase maníaca, com modos
simpáticos e envolventes no lidar e falar com as pessoas, consegue convencer um chefe de obras a
lhe dar emprego num alto edifício em construção (quando as vagas já estavam preenchidas).
Subindo ao teto, sempre com “bom humor”, conversando animadamente com os outros
trabalhadores, expressando exagerada alegria, oferece 100 dólares ao operário ao seu lado e começa
a caminhar euforicamente por uma beirada de madeira, com risco de cair vários andares de altura.
Diz que vai conseguir voar... É contido e levado a uma emergência psiquiátrica, de onde consegue
sair após convencer a psiquiatra que lhe atende, de estar em condições de voltar para casa e ficar
em tratamento sem internação. Todavia, logo em seguida, sempre literalmente “saltitante”, fazendo
compras, pagando com cédulas de valor elevado e não querendo troco, abordando garotas na rua,
vai a um concerto teatral, onde, não se contentando em ficar na plateia ouvindo a orquestra, se
envolve entusiasticamente com a música de Beethoven, sobe ao palco e ocupa o lugar do maestro,
afastando-o e passando a “reger” os músicos... No entanto, semanas depois, o personagem começa
a apresentar sintomas de um episódio depressivo. O raciocino rápido e os movimentos acelerados
da fase anterior não mais são observados, com ele tendo agora dificuldades em processar as ideias,
apresentando curso do pensamento lentificado e se locomovendo de forma vagarosa. Está
constantemente cabisbaixo, com expressão facial de sofrimento e pesar, sem ânimo e às vezes
chorando. Diz à sua psiquiatra que não consegue deixar de sentir forte e persistente tristeza. Os
sons de instrumentos musicais agora parecem “abafados” e não lhe despertam mais prazer. O filme
consegue passar esses diversos sintomas ao espectador, que pode ter uma ideia do fenômeno da
bipolaridade do humor. Além disso, mostra, também, em plano secundário, manifestações clínicas
de outras doenças mentais (já que parte da história se passa em clínica psiquiátrica), aborda
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problemas relativos à internação involuntária, às dificuldades que certos pacientes têm em aceitar
que estão com transtornos mentais e precisam de tratamento, bem como nos trás o complexo
problema do terapeuta que se envolve sentimentalmente com seu paciente, num momento em que
o profissional passa por fase de carência afetiva em sua vida.

A distimia é outra forma de transtorno de humor, cuja evolução não ocorre através de surtos
fásicos, mas daquela forma de apresentação contínua, avançando através dos anos com oscilações
entre pioras e melhoras do quadro clínico, sem cair, todavia, nas intensas manifestações agudas
que caracterizam os surtos depressivos do transtorno bipolar ou da depressão recorrente. Às
vezes, por conta da possível presença de irritabilidade nesse estado de rebaixamento de ânimo, as
pessoas que nele se encontram são consideradas “mal humoradas”. A distimia é um termo
utilizado atualmente pelas classificações de doenças mentais para se referir, aproximadamente,
ao que se chamava “neurose depressiva”, com muitos acreditando que aqui os componentes
ambientais psicológicos tenham um peso mais significativo na etiologia do distúrbio do que nos
dois transtornos do humor com curso fásico vistos acima; todavia, isto é assunto controverso.

Laura, mulher de 40 anos, vem a um serviço de saúde mental referindo insônia, pouca motivação para
as atividades em geral, achando constantemente que nada “dá certo” com ela e que assim continuará
sendo seu futuro, sem perspectivas favoráveis. Demonstra constante irritabilidade para com a vida e
pessoas próximas a ela, considerando-se como má companhia para os outros. Vivia com os pais,
todavia, há uns três anos que estes faleceram, ficando ela morando sozinha. Ressalte-se que tanto o pai
quanto a mãe morreram no mesmo ano, de câncer e de enfarte, respectivamente. Antes, Laura já era
uma pessoa com poucas amizades, considerada pessimista e propensa a irritar-se facilmente. Morou
até os 12 anos numa cidade interiorana, quando veio com os pais e irmãos residir na capital. Completou
o 2º grau escolar, trabalhou como “caixa” em algumas firmas e casou-se com um homem que não era
bem aceito pelos pais. Nunca teve filhos, e o casamento, aos poucos, foi se desgastando, principalmente
devido à violência do marido, que chegava a espancá-la. Após seis anos, deixou a casa e o esposo,
retornando a morar com os pais e isso foi sentido por Laura como um reconhecimento em relação às
admoestações deles. Sua volta era uma espécie de comprovação de que tinham razão em não aceitar
seu casamento. Após a morte dos pais, entrou numa fase de acentuação das características depressivas,
com evolução crônica. Como vemos aqui, não se trata de períodos circunscritos de aguda depressão
fásica, mas de um estado contínuo, com épocas de alguma melhora, porém predominantemente
hipotímico. Como muitas vezes é comum nesses casos, não se percebia com clareza quando surgiu o
quadro de distimia, que, embora tenha se tornado bem evidente após a morte dos pais, parecia já existir
antes disto, com evolução bastante insidiosa.

DEPRESSÃO RECORRENTE

Linha de
Base
Eutímica

Fase D Fase D Fase D

TRANSTORNO BIPOLAR
Fase M Fase M Fase M

Linha de
Base
Eutímica
Fase D Fase D
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TRANSTORNO DE AJUSTAMENTO

Transtorno de ajustamento ou distúrbio de adaptação é uma reação mal-adaptativa a um


acontecimento estressante ou mudança de vida significativa e perturbadora, muitas vezes continuada
no tempo, levando quase sempre a prejuízos no funcionamento psicossocial da pessoa (na família,
trabalho, escola, lazer). Um quadro depressivo pode ser encontrado nessas situações. Alguns dos
principais acontecimentos que comumente provocam transtornos de ajustamento são as experiências
de separação dos pais ou pessoas significativas, início de vida escolar, morte levando ao luto não
resolvido, situações de asilo social e migração, aposentadoria mal planejada, conhecimento de estar
com doença grave, gravidez indesejada, constatação da impossibilidade de conseguir algo muito
importante na vida.
O impacto desses eventos pode variar com o contexto existencial em que ocorrem. Por exemplo, o
início da vida escolar para uma criança que sempre teve atividade social com saídas frequentes de
casa para contatos e brincadeiras com outras, pode ser diferente de um começo de ida à escola para
um menino que foi acostumado a estar quase sempre na companhia da mãe e não ter muitas interações
com outros adultos e crianças. A gravidez indesejada da mulher que está desempregada e sem um
companheiro ou familiar que lhe apoie, terá maior probabilidade de provocar transtornos de
ajustamento quando comparada à da esposa que tem o apoio do marido ou parentes e está em
condições econômicas satisfatórias. Deve-se considerar ainda o fato de que as reações emocionais de
cada pessoa variam também com as diferentes estruturas de personalidade, pois as características de
maior ou menor fragilidade de indivíduo para indivíduo são diferentes. Conforme enfatiza a CID-10,
no capítulo dos Transtornos Mentais e do Comportamento, a predisposição ou vulnerabilidade
individual desempenham um papel importante no risco da ocorrência dos transtornos de ajustamento,
mas é, entretanto, considerado que o quadro não teria surgido sem o estressor. A causa dos
transtornos de ajustamento são circunstâncias ambientais desfavoráveis, sendo essa condição o
determinante principal dos sintomas que surgirão. É diferente, portanto, dos clássicos transtornos do
humor vistos no tópico anterior, onde situações existenciais estressantes (quando presentes) são
apenas um dos fatores que vão contribuir para a doença, muitas vezes desempenhando o papel de
mero elemento desencadeante.
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Ítalo era um jovem auxiliar de enfermagem de uma instituição de saúde que foi se envolvendo
romanticamente com uma médica. Esta, recém-separada do marido, vivenciando época de carência
afetiva, também se sentiu atraída pelo rapaz, iniciando namoro e, após alguns meses, passando a
morar junto com ele. Ítalo idealizava muito tal relação, dizia-se apaixonado e construía planos de vida
a dois. Embora quase todas as pessoas conhecedoras do casal não acreditassem no futuro da relação
(até porque a possibilidade da médica voltar para o ex-esposo não era difícil), Ítalo continuava
alimentando seus planos e sua paixão. Quando a mulher falou claramente para ele que o caso deveria
terminar porque estava voltando para o marido, o rapaz sentiu-se frustrado, decepcionado e até
desesperado. Não conseguia mais dormir satisfatoriamente, alimentava-se pouco, frequentemente era
encontrado chorando e com olhar fixo em algum ponto, dizia não ter mais prazer e animação na vida,
passava a maior parte do tempo isolado, sem conversar e sua autoestima ficou bastante rebaixada
(inclusive por não ter conseguido “segurar” a mulher e a ter “perdido” para o ex-marido). Seu
rendimento no trabalho ficou comprometido, até porque era o mesmo local onde a médica também
trabalhava, o que complicava a resolução do quadro depressivo. Um afastamento temporário da
instituição, acompanhamento psicológico de apoio e medicação antidepressiva por algum tempo,
foram medidas necessárias para que Ítalo voltasse a ser o profissional competente que sempre fora,
mas cujas capacidades ficaram bloqueadas pelo transtorno de ajustamento em forma de depressão.

A depressão é uma das manifestações clínicas mais comuns nos transtornos de ajustamento, com a CID-
10 classificando-a em “reação depressiva breve” (quando a duração do quadro gira em torno de um
mês) e “reação depressiva prolongada” (a depressão estendendo-se por meses ou anos). Mas há outras
formas de apresentação dos transtornos de ajustamento. Podem-se observar distúrbios de conduta
(dirigir sem cuidado, impulsividade agressiva, negligência inusitada com as obrigações do dia a dia),
ansiedade e irritabilidade excessivas, medos imprecisos, raiva descabida ou outras manifestações
emocionais inadequadas. Em crianças, o transtorno de ajustamento pode apresentar-se através de
sintomatologia regressiva, como voltar a urinar na cama, falar de forma infantilizada como se tivesse
idade bem menor, chupar o dedo, querer a mamadeira já deixada de lado, apresentar “birras” e
comportamentos desafiadores em relação aos pais e pessoas de autoridade. É o que pode ocorrer, por
exemplo, com o impacto da chegada de um novo irmão ou separação dos pais.

Havendo tratamento adequado através de alguma forma de psicoterapia (associada ou não à


medicação), poderá ocorrer remissão da sintomatologia referente aos transtornos de ajustamento. Às
vezes, a resolução da situação causadora do distúrbio, associada ao firme apoio de pessoas próximas,
faz com que haja a remissão de quadros mais leves. Por outro lado, certos casos não tratados (ou
tratados inadequadamente) podem evoluir para transtornos mentais adicionais, muitas vezes mais
graves. Determinadas pessoas com diagnóstico de alcoolismo, ou uso abusivo de outras drogas,
tiveram anteriormente transtornos de ajustamento não resolvidos.

DEPRESSÃO E PSICOSE PUERPERAIS

Os transtornos mentais que podem ocorrer no período puerperal (pós-parto) frequentemente


apresentam uma síndrome depressiva como parte de sua sintomatologia. Assim, na depressão
puerperal a mulher pode referir que se sente constantemente cansada, sem disposição ou animação
para com suas atividades de casa e cuidados com o bebê, sentir tristeza sem que saiba ao certo o
porquê, apresentar choros imotivados ou desproporcionais aos fatos objetivos, mostrar-se
excessivamente irritável e inquieta (muitas vezes em relação ao marido e à criança), referir anedonia
e outros sintomas que compõem a síndrome depressiva. Podem ocorrer medos infundados (temer que
a criança possa estar doente ou em risco de vida, apavorar-se ao ficar sozinha no quarto, recear não
conseguir ser uma boa mãe, e outros temores muitas vezes calcados numa baixa autoestima e
pessimismo para com a vida). Às vezes, a sintomatologia pode se complicar com ideias suicidas e até
tentativas de se matar, mas há quadros mais leves, pois o nível de gravidade varia de caso para caso.
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A depressão puerperal ocorre em aproximadamente 10 % das mulheres que estão no período pós-
parto.

Muitos desses casos não são identificados pelos familiares e até pelos médicos que acompanham a
puérpera, podendo, inclusive, ser tratados incorretamente. Os sintomas depressivos são, muitas
vezes, confundidos ou considerados apenas como “estafa” de noites mal dormidas, estresse devido
ao trabalho que a mulher está tendo com os cuidados da criança ou debilitação de uma cirurgia
cesariana, não se reconhecendo o quadro de depressão subjacente. Às vezes, tranquilizantes
benzodiazepínicos são prescritos, medicamentos estes geralmente insuficientes e não aconselháveis
para uma depressão que se faz presente de forma mais intensa, quadro que pode se agravar e
prolongar-se por vários meses ou até anos, caso não seja tratado adequadamente. Existe medicação
antidepressiva possível de ser feita na mulher que está amamentando, e o apoio dos familiares, bem
como psicoterapia focalizada no contexto pelo qual a puérpera está passando, são fatores de suma
importância para o tratamento.

Todavia, em casos mais graves, poderá ser necessário aumento na dosagem do antidepressivo ou
associação com outra medicação, conduta que pode contraindicar a amamentação e esta talvez tenha
que ser interrompida, pois parte do psicofármaco pode passar para o leite materno e ser prejudicial à
criança. O aleitamento materno não só é importante no desenvolvimento de bebês prematuros como
também pode ser significativo para a puérpera que já está com a autoestima baixa e não quer se ver
como “incapaz” de amamentar o filho. Por outro lado, há trabalhos científicos mostrando que bebês
criados em contato com a mãe em depressão, tendem a apresentar alterações no desenvolvimento,
inclusive nas áreas neurológica, cognitiva e emocional, com efeitos duradouros ao longo do
crescimento infantil. Portanto, em certos casos, não faz sentido a mãe querer a todo custo não ser
medicada e continuar a amamentação por achar que isto é sempre saudável, natural e bom para o bebê
e para ela, enquanto a mesma apresenta um quadro depressivo grave, que interfere nos momentos em
que está com seu filho. Os benefícios e os riscos de condutas que envolvam essas questões precisam
ser pesados e discutidos com a paciente e algum familiar mais próximo (geralmente o marido).

Na psicose puerperal, surgem graves distorções da realidade, inclusive com alucinações, delírios e
sérios distúrbios de comportamento, mas alterações do humor, inclusive sintomas depressivos,
também são comuns nessa condição mórbida. A puérpera pode acreditar que querem lhe matar ou
roubar-lhe o filho, que a criança não é sua e que foi trocada por outra, ouvir vozes de pessoas falando
dela ou ver imagens a lhe perturbar. Pode se irritar com facilidade, tentar agredir a quem se aproxima
ou querer molestar a criança, afirmando que a mesma quer lhe matar, é um monstro, encarnação de
Satanás ou outras ideias delirantes desse tipo. O risco de psicose puerperal é maior em primíparas
(mulheres em primeira experiência de parto) e ocorre em cerca 0,2 % das puérperas, ou seja, de cada
1000 (sem antecedentes de psicose), duas desenvolvem essa doença.

Se é verdade que em alguns casos mais leves de depressão puerperal o tratamento pode ser feito sem
medicação, isso certamente não será possível na psicose do pós-parto. E muitas vezes, precisa-se
prescrever antipsicóticos ou outros psicofármacos que podem não ser aconselháveis na amamentação,
e então a interrupção da mesma poderá ser necessária.

Carina sempre fora uma pessoa com propensão a depressão ao longo de sua vida, naquela forma
contínua, de intensidade leve, com oscilações de melhoras e pioras, mas nunca apresentara depressão
aguda. Ao engravidar pela primeira vez, ficou bastante apreensiva e temerosa em relação à evolução
da gestação e ao parto. Quando este ocorreu, foi significativamente traumático, prematuro e com
sintomas de eclampsia (forte cefaleia, hipertensão arterial e convulsões). A criança não sofreu
sequelas, mas a mãe desenvolveu um quadro depressivo. Dias após o parto cesariano, chorava com
frequência, afirmava que era uma mãe incompetente, dizia que o melhor seria nunca ter tido um filho
e outras afirmações que demonstravam pessimismo com sua vida e baixa autoestima. Tinha medo de
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escuro e de ficar sozinha, fobias essas que foram se acentuando. Para ir ao banheiro, por exemplo,
sua mãe ou seu esposo tinha que ficar na porta, às vezes falando para que ela tivesse certeza que
alguém estava ali perto. A aproximação da noite acentuava o quadro depressivo-ansioso e tinha que
dormir com alguma luz acesa. Tratava-se de depressão puerperal, mas não chegava a um quadro de
psicose, pois não havia alucinações, delírios ou outros sintomas de afastamento da realidade. Desde
meses antes do parto, Carina já vinha fazendo acompanhamento psicoterápico, mas o quadro
depressivo não cessava. Então, o psiquiatra para o qual foi encaminhada pela sua psicoterapeuta, no
contato com a paciente, a mãe e o esposo, trabalhou a necessidade dela tomar medicamentos e
interromper o aleitamento, devido à dosagem e tipo de psicofármacos necessários, até porque, em seu
estado emocional, o ato de dar o leite à criança estava prejudicado pelo contexto de impaciência e
tensão durante a amamentação, que se tornara mais um momento de sofrimento que de prazer, em
nada ajudando na melhora da sua autoestima e do estado de humor. Foi mostrado que o tratamento
apenas através de abordagem psicológica, naquele período de sua vida, não estava sendo suficiente.
Com algumas semanas de medicação ansiolítica e antidepressiva, houve melhora significativa da
depressão, podendo Carina aproveitar e usufruir melhor seu relacionamento com o filho.

As causas da depressão e da psicose no período puerperal ainda não estão bem esclarecidas. Durante
e após o parto, ocorrem mudanças fisiológicas significativas no corpo da mulher, tanto em seus
níveis hormonais quanto no equilíbrio hidroeletrolítico do organismo. Mas isto não parece ser o
suficiente para embasar o aparecimento dos sintomas referidos. Pensa-se que fatores socioculturais
e psicológicos, como ausência de apoio na comunidade e na família, dificuldades financeiras,
conflitos em assumir o papel de mãe e problemas de relacionamento conjugal possam também
contribuir para o aparecimento desses transtornos mentais.

Por outro lado, muitas puérperas que apresentam quadro de depressão ou psicose já tiveram antes,
sem ligação com o parto, distúrbios mentais tipo depressão recorrente ou transtorno bipolar; outras
passam a ter crises de depressão ou mania em momentos posteriores da vida, após apresentar tais
quadros no pós-parto. Estes dados, quando constatados, sugerem que a depressão e psicose nesse
período são variantes dos transtornos do humor clássicos, apenas desencadeados pelas vivências
tensionantes e modificações fisiológicas duma gestação, parto e período posterior a este.

TRANSTORNOS ORGÂNICOS DO HUMOR E OUTRAS CONDIÇÕES AFINS

Em psiquiatria, denomina-se doença ou transtorno mental orgânico àquelas condições mórbidas em


que uma enfermidade orgânica demonstrável, de base física bem estabelecida, vai provocar
sintomatologia psicopatológica, mental. Assim, fala-se em “transtorno delirante orgânico” quando
as ideias delirantes que predominam em um quadro clínico forem decorrentes, por exemplo, de
traumatismo craniano ou doença de Alzheimer. Da mesma forma, o termo “transtorno de ansiedade
orgânica” se refere aos casos de ansiedade patológica causada por hipertireoidismo,
comprometimento do córtex temporal ou outra condição fisiológica determinante. Transtornos
orgânicos do humor são aqueles casos em que se observa a apresentação clínica de uma depressão
ou de um estado maníaco, mas, derivados diretamente de uma condição clínica fisiológica subjacente,
uma doença de base orgânica conhecida. Uma pessoa pode apresentar uma síndrome depressiva e
posteriormente ser constatado que um hipotireoidismo está provocando as queixas de falta de ânimo,
tristeza constante e imotivada, lentificação do pensamento e distúrbios do sono. Muitas vezes, o
tratamento desses casos com hormônios tireoidianos faz com que a depressão seja reduzida ou
abolida. O mesmo raciocínio pode ser feito na Doença de Cushing, enfermidade endócrina
caracterizada por hiperfuncionamento das glândulas suprarrenais e que pode produzir transtorno
orgânico do humor, não só com sintomatologia depressiva, mas também maníaca. Sabe-se que
100

pessoas com câncer no pâncreas mostram a depressão como sintoma relativamente frequente, assim
como pode ser encontrada em decorrência da doença de Parkinson.

Atendemos, em serviço de emergência psiquiátrica, um paciente adulto de meia idade, trazido por
seus familiares, pois estava há dias agitado, agressivo com quem tentava por limites em seus
comportamentos, andando ou “marchando” a esmo pelas ruas com risco de acidentar-se, abordando
e se insinuando sexualmente a mulheres, insone e sem consciência crítica do estado psicopatológico,
recusando-se a fazer qualquer tipo de tratamento. No momento do atendimento, estava com humor
exaltado, inquieto, falando alto e de forma acelerada, com intenso fluxo de ideias, em alguns
momentos levantando-se da cadeira e passando a mover-se como se estivesse marchando e
apresentando risos incongruentes com o contexto. Os familiares que o acompanhavam informaram
que o paciente não tinha transtornos psiquiátricos até uns três anos atrás, quando levou um tiro na
cabeça, ficando em estado de coma por alguns dias. A partir daí, foram surgindo os distúrbios
psicopatológicos e, ao poucos, esses foram se exacerbando. Nesses três anos já contava com quatro
internamentos psiquiátricos, até porque frequentemente negligenciava seu tratamento. Aqui
observamos a relação da lesão craniana com o aparecimento dos sintomas, justificando o diagnóstico
de transtorno orgânico do humor, nesse caso, em quadro maníaco.

Esses transtornos do humor derivados de doenças clínicas de base orgânica constatável, talvez
ocorram por algum efeito dessas enfermidades sobre a fisiologia dos neurotransmissores cerebrais,
principalmente serotonina e noradrenalina, os que estão mais comumente implicados nos estados
depressivos e maníacos (eufóricos).

É importante, todavia, ressaltar que, mesmo se sabendo que certas doenças clínicas gerais podem
acionar mecanismos fisiológicos relacionados com a depressão, fatores ambientais e de personalidade
parecem também atuar como coadjuvantes no aparecimento dos sintomas depressivos nessas
enfermidades. Como exemplos desses fatores, temos a tendência pré-existente para vivenciar mais
facilmente estados de humor rebaixados, resposta psicorreativa ao fato de estar com uma doença que
pode ser grave, percepção das limitações impostas pela enfermidade, ausência de apoio psicossocial
e precariedade de condições humanas e técnicas para o tratamento (infelizmente ocorrência comum
na nossa rede pública).

Relacionado com os transtornos orgânicos do humor, estão as manifestações depressivas decorrentes


do uso de certos medicamentos e drogas que podem provocar dependência. É conhecido o fato de que
determinados anti-hipertensivos (que contenham reserpina em sua composição) podem levar a
quadros depressivos. Há casos de pessoas que tomam medicação para úlcera gastrointestinal (à base
de cimetidina) e desenvolvem sintomas depressivos. Por vezes, a suspensão de tais medicamentos faz
a depressão começar a regredir. Também se sabe que a interrupção do uso de drogas estimulantes
(como a cocaína e a anfetamina), naquelas pessoas que são dependentes delas, pode levar a quadros
depressivos, muitas vezes intensos.

Todavia, a depressão que surge associada a uma doença física bem estabelecida, pode não ser causada
por essa doença, mas apenas desencadeada por ela. O diagnóstico, então, não seria de transtorno
orgânico do humor, mas de depressão recorrente, transtorno bipolar ou outro referente ao mesmo
grupo. Nos serviços de interconsulta em hospital geral, às vezes, se observa isso. Um paciente que
está hospitalizado devido tuberculose, por exemplo, começa a apresentar quadro depressivo psicótico,
com choro frequente, recusa a se alimentar, insônia, ideias suicidas e crença que os médicos e pessoal
de enfermagem estão querendo lhe matar. Quando o psiquiatra é chamado para dar parecer sobre o
enfermo e conversa também com sua família, pode vir a constatar que, em seus antecedentes pessoais,
ele já apresentara outros períodos de depressão, sem relação com a tuberculose ou outra doença,
tendo feito inclusive tratamento psiquiátrico em tais momentos, além de ter parentes com
transtornos do humor. O diagnóstico mais adequado do caso seria depressão recorrente, com a
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tuberculose sendo meramente um fator desencadeante do quadro depressivo psicótico, da mesma


forma que um evento emocionalmente estressante pode precipitar a agudização de um transtorno
do humor preexistente.

7. DEPRESSÃO AGRAVANDO OU PROVOCANDO DOENÇAS E DEBILIDADES FÍSICAS

Mas, seja qual for a causa da depressão (de base orgânica bem estabelecida, psicorreativa, pertencente
ao grupo dos clássicos transtornos do humor), é conhecido o fato de que um estado depressivo pode
contribuir para o surgimento ou agravamento das doenças em geral, bem como dificultar a
recuperação do indivíduo enfermo.

As vivências prolongadas de perda, luto e depressão têm sido estudadas como fator predisponente a
enfermidades. Esse fato é observado, por exemplo, em pesquisas que mostram um aumento
significativo de doenças em viúvas, inclusive o câncer, principalmente nos primeiros seis meses que
se seguiram ao falecimento do cônjuge.

Sabe-se que a depressão tem relação com um maior índice de mortalidade nos estados pós-
operatórios. É também um fator agravante no prognóstico de quadros cardiológicos. Após o enfarte
do miocárdio, a depressão é um dado significativo que influi na maior probabilidade do paciente
cardiopata vir a falecer. Pesquisas mostram que, comparando-se pacientes que tiveram enfarte e
apresentavam depressão, com outros enfartados sem quadro depressivo, o índice de mortalidade é
quatro vezes maior nos deprimidos.

O hipotálamo-hipófise são duas estruturas cerebrais interligadas e em parte responsáveis pelo


funcionamento de diversos sistemas do corpo, inclusive promovendo a liberação de substâncias
essenciais à regulação da fisiologia do organismo. Entre elas estão as catecolaminas (adrenalina,
noradrenalina e dopamina) e o ACTH (hormônio adrenocorticotrófico). Este último irá, por sua vez,
estimular a produção, no córtex das glândulas suprarrenais, dos corticosteroides. Estados afetivos
duradouros e intensos (como pode ser a depressão) produzem aumento de catecolaminas e
corticosteroides, sendo que a elevação de tais substâncias no organismo contribui para o surgimento
de distúrbios bioquímicos na célula cardíaca, arritmias, elevação da tensão arterial, aumento do
colesterol e outras alterações fisiológicas que podem prejudicar o funcionamento cardiovascular.
Na área das doenças infecciosas, a tuberculose parece ter sido uma das primeiras em que se
reconheceu um componente emocional – inclusive depressão – como fator de influência em sua
instalação, e hoje sabemos que os estados de debilidade física e estresse predispõem a pessoa às
infecções. Normalmente, quando o organismo é invadido por bactérias, mecanismos imunológicos
de defesa, através de células específicas, identificam as substâncias bacterianas e produzem os
anticorpos para “atacar” e anular tais elementos nocivos. Esse processo é também regulado pelos
sistemas nervoso central e endócrino, que sofrem mudanças fisiológicas no estado depressivo,
mudanças essas que favoreceriam uma diminuição dos mecanismos defensivos imunológicos,
inclusive com déficit na produção de anticorpos. Muitos casos de infecção pneumocócica ilustram
bem isso: as bactérias, que comumente existem nas vias respiratórias, não proliferam de forma
excessiva, mas, sob ação do estresse, a mucosa e flora dessas vias se modificam, há a queda subjacente
nas defesas imunológicas e o equilíbrio “organismo x agente patógeno” é alterado no sentido da
expansão das bactérias (MELLO FILHO, 1978).

Existem também trabalhos relacionando câncer e depressão. Além da reação emocional esperada e
normal diante do conhecimento de que se está com câncer, cerca de 20 % das pessoas com essa
doença também apresenta um quadro de depressão e/ou ansiedade significativas. Não é por acaso que
a ocorrência de suicídios em pessoas com câncer é maior do que na população geral. Esses estados
depressivos vão interferir negativamente na qualidade de vida dos pacientes, na motivação para o
102

tratamento e podem prolongar as internações hospitalares. Sabe-se que a depressão e a ansiedade


exacerbadas influenciam desfavoravelmente no prognóstico desses pacientes, aumentando o índice
de mortalidade. No câncer, há aparecimento de células malignas em algum tecido corporal, que
passam a se reproduzir desordenadamente, inclusive, se espalhando no organismo e dando as
chamadas metástases. Existe a hipótese de que em condições de depressão o organismo ficaria com
capacidade reduzida de identificar e anular as células malignas mutantes, ocorrendo maior
crescimento neoplásico com agravamento da doença (NAVAS DEMETRIUS, 2003).

Estamos vendo, então, que os casos de comorbidade (duas ou mais condições patológicas na mesma
pessoa) envolvendo depressão e doenças clínicas gerais, podem ocorrer com a depressão exacerbando
ou mesmo sendo um dos fatores etiológicos significativo no surgimento de distúrbios físicos (assunto
abordado nesse item), ou vice-versa, doenças de base orgânica produzindo depressão (transtornos
orgânicos do humor, vistos no tópico anterior). É possível, também, ocorrer comorbidade sem uma
clara ligação de causa e efeito entre as duas condições. Por exemplo, a pessoa ter fases depressivas
agudas ou distimia em sua vida e apresentar uma doença hepática que não tenha se originado da
depressão, embora uma patologia possa interferir na outra, no momento que as duas passam a
coexistir. De tudo isto se enfatiza a importância do profissional que trata a depressão de um paciente,
estar atento para possíveis comorbidades no campo da clínica geral, bem como o médico generalista
que dá assistência ao enfermo com evidente doença de base orgânica, observar se uma depressão não
está presente e interferindo no seu tratamento. As duas (ou mais) condições mórbidas precisam ser
corretamente identificadas e tratadas. Até porque, muitas vezes, um distúrbio “encobre” o outro,
levando o técnico a um procedimento terapêutico incompleto. A tuberculose ou o câncer podem se
sobressair no quadro clínico de um paciente, encobrindo uma depressão subjacente que não é
diagnosticada, ou um estado depressivo agudo fazer uma diabete ou doença cardiovascular passar
despercebidas.

Vale lembrar que pode haver também comorbidade com a pessoa apresentando dois ou mais
distúrbios mentais, como depressão e transtorno fóbico ou depressão e dependência a drogas. Por
exemplo, um paciente é internado para desintoxicação alcoólica, havendo em sua história,
dependência ao álcool há vários anos, todavia, informa-se que antes do alcoolismo tal homem já
vinha sofrendo, desde a adolescência, de alguma forma significativa de depressão, quando começou
a perceber que conseguia “afogá-la” através da ingestão do álcool. Essa história não é incomum.
Muitas pessoas que apresentam depressão podem tornar-se dependentes do álcool, cocaína,
estimulantes ou outras drogas, como uma forma de aliviar o doloroso estado de humor patológico.
Um tratamento correto desses casos passa pela abordagem da depressão subjacente, além da
dependência em si e suas consequências psicofisiológicas.

Em um item que se abordam as relações entre depressão e sintomas físicos, não se poderia deixar de
relembrar o que foi chamado de “depressão mascarada ou somatizada”. Muitas pessoas que procuram
consultas com um clínico geral devido queixas físicas, como dores musculares, cefaleia, problemas
gastrointestinais, fraqueza e indisposição geral, na verdade têm depressão subjacente a tais sintomas,
embora façam poucas referências acerca de sentimentos, emoções ou humor deprimido. Essas
queixas, muitas vezes, tendem a remitir com o tratamento da depressão. Atendimentos ambulatoriais
“apressados” podem fazer com que essas pessoas sejam “tratadas” com analgésicos, miorrelaxantes,
polivitamínicos e outras medicações que não vão trazer resultados satisfatórios para uma depressão
que não foi avaliada.

Relacionado ao fato da depressão poder debilitar psicofisiologicamente uma pessoa, tornando-a mais
vulnerável às situações ambientais desfavoráveis e agentes patógenos que a cercam, existem
circunstâncias ligadas à psiquiatria transcultural que ilustram esse processo. No século passado, em
determinados povos primitivos (África, Austrália, Nova Zelândia e outras regiões), havia feiticeiros-
curandeiros que eram respeitados pelos seus conhecimentos e capacidades “sobrenaturais”. Muitas
103

vezes, quando um indivíduo infringia um tabu importante em sua comunidade, o feiticeiro sentenciava-
o a morte, frequentemente apontando um osso para ele. O sujeito sentia-se amaldiçoado e achava-se
realmente condenado. Entrava em estado depressivo, deixava de se alimentar, se retraía do convívio
com os demais e de suas atividades; passava a viver num estado de “espera da morte”, fatalidade
acreditada por ele e pelas outras pessoas de seu convívio. Provavelmente, suas defesas imunológicas
ficavam enfraquecidas, entrava em estado de desnutrição e a morte realmente ocorria. Esse fenômeno
tem sido relatado por alguns autores ligados a questões psicossomáticas, a exemplo do trabalho do
célebre fisiologista W. Cannon (1942) denominado Voodoo Death (Morte Vodu), que detalha o
assunto. Algo semelhante parece ter ocorrido em nosso país com o chamado “banzo” ou “nostalgia
mortal” dos negros da África na época da escravidão, em que vários daqueles homens subjugados,
provavelmente entravam em intenso estado depressivo pela situação de escravos cativos, distanciados
de sua terra, povo e cultura, com frequência vivendo em precárias condições físicas, por vezes
chegando à morte.

8. FOBIAS, ATAQUES DE PÂNICO E DEPRESSÃO

Quando abordávamos o caso “Carina”, no item acerca de depressão puerperal, falamos que ela, por
entre os sintomas de sua síndrome depressiva, apresentava fobias do escuro e a ficar só. Aqui nos
deteremos no estudo do que vem a ser fobias e sua relação com a depressão. Por extensão do assunto,
abordaremos as tão faladas “crises de pânico”, presentes na doença de mesmo nome, diferenciando-
as das fobias e pontuando possíveis ligações com a depressão.

Fobias podem ser definidas como medos incompatíveis ou desproporcionais aos objetos-estímulos
que os produzem, objetos estes que não oferecem perigo real. Há uma falta de lógica, certa
irracionalidade entre o medo experimentado e o estímulo provocador desse sentimento, sendo essa
característica geralmente reconhecida pelo próprio indivíduo que sofre com a fobia. “Sei que não tem
razão de ser, não faz sentido, mas me apavoro quando fico num lugar fechado”, diz uma pessoa que
não consegue entrar em elevadores, ficar numa sala ou quarto sem que as portas estejam bem abertas,
nem estar em meios de transportes que deem alguma “sensação de lugar pequeno e apertado”, ou seja,
tem a chamada “claustrofobia”. O medo normal, ao contrário da fobia, é um sentimento ou emoção
que o homem tem diante de um perigo real que ameace sua integridade, segurança e sobrevivência,
ou seja, é algo que serve de alarme para a busca de uma defesa ou tomada de providências contra as
ameaças do mundo. Todavia, esse medo saudável não se distingue da fobia por sua intensidade ou
duração, mas por sua adequação e proporcionalidade para com o contexto situacional de contato com
o perigo real. Apavorar-se diante de um cão feroz a solta em sua frente é medo adequado, normal.
Apavorar-se com a presença de qualquer cão e em diferentes contextos é fobia.

Muitas são as fobias conhecidas e encontradas na prática. Há aquelas em relação a ficar só, ao escuro
(essas duas vistas no caso Carina), de lugares altos, de determinados animais (como gatos, cachorros,
aranhas), de sangue e situações de exames médicos, de andar de avião, a já mencionada claustrofobia
e várias outras. Destaque especial, pela frequência de aparecimento, para a agorafobia, medo
inadequado ou desproporcional de espaços amplos e abertos (como estádios, auditórios, salas de
espetáculos, supermercados, avenidas, locais de multidões, não havendo perigo contextual nesses
locais). A agorafobia pode, frequentemente, fazer com que a pessoa evite sair de casa, às vezes não
conseguindo se deparar nem com a rua em frente a sua moradia. Outra bastante frequente é a chamada
fobia social, em que o medo patológico se volta para contextos em que a pessoa se percebe observada
(por exemplo, falar, escrever, assinar o nome, comer, ir ao banheiro, quando diante de outras pessoas,
não necessariamente de um público grande), podendo haver o temor de ficar em condição embaraçosa
ou humilhante.
104

A fobia é o sintoma que domina o quadro clínico dos chamados transtornos fóbicos (também
chamados neuroses fóbicas), muitas vezes acompanhados também de outros sintomas secundários
(insônia, tendência ao isolamento, leve depressão, facilidade em experimentar ansiedade), mas que
não são os fenômenos psicopatológicos básicos daquela condição mórbida. Nos transtornos ou
neuroses fóbicas, os medos inadequados ou desproporcionais a situações ou objetos específicos,
sobressaem-se numa proporção e abrangência que prejudicam a vida da pessoa. Inclusive, muitas
vezes, “medidas de evitação” ou “defensivas” contra a possibilidade de surgimento das vivências
fóbicas são tomadas em formas de comportamentos que podem limitar e comprometer a qualidade de
vida do indivíduo, bem como sua relação com as pessoas e com seu ambiente. Assim, a depender do
tipo de fobia, ele pode evitar conversar em um grupo de pessoas, ir a restaurantes ou a locais em que
possa ser observado, nunca viajar de avião e ter que percorrer longos percursos terrestres, dormir de
luz acesa e não ir a cinemas ou outros lugares em que o escuro se faça presente, não entrar em
elevadores ou locais fechados e assim por diante. Há o exemplo da professora primária de meia idade
que tinha transtorno fóbico a lagartixas, e além do medo que sentia ao vê-las, não conseguia dormir
sem examinar cuidadosamente o quarto para certificar-se que não havia ali nenhum desse réptil; as
janelas de sua moradia eram lacradas para evitar que entrassem e, ao passar pelo saguão escuro do
prédio onde residia, tinha que abrir o guarda-chuva para prevenir-se da possibilidade de alguma
lagartixa cair sobre ela (LOUZÃ NETO, 1995).

As fobias só surgiriam nas pessoas com distúrbios mentais? É possível que algumas fobias aconteçam
na chamada “psicopatologia da vida cotidiana”, ou seja, alguns medos irracionais ou inadequados
possam fazer-se presentes em alguns indivíduos, mas sem ter as proporções e consequências do que
chamamos neurose ou transtorno fóbico. Por exemplo, muita gente tem medo de barata, todavia, veja-
se a diferença para o caso da professora primária de meia idade citada no parágrafo anterior em termos
de características e abrangência do fenômeno. Várias crianças podem ter, durante uma época e de
forma transitória, algum medo inexplicável de escuridão, sem que isso assuma proporções de
distúrbio mental com prejuízos para sua vida. Em relação a essa questão, as classificações atuais
sugerem que para o diagnóstico dos transtornos fóbicos seja levado em consideração que os medos
desproporcionais ou inadequados interfiram significativamente no funcionamento ocupacional ou nos
relacionamentos sociais do indivíduo.

Por outro lado, não é incomum fobias serem encontradas nos quadros depressivos, mas como um
sintoma coadjuvante, sem a dimensão daquelas do transtorno (neurose) fóbico, tendendo a desaparecer
com o tratamento da depressão. Fobia não é um sintoma necessário para o diagnóstico desse distúrbio
do humor, ao contrário do transtorno fóbico, onde é o eixo principal que domina o quadro clínico.
Todavia, há casos de comorbidade, onde existem evidentes sintomas de depressão juntamente com um
proeminente quadro de transtorno fóbico, sendo justificado então o duplo diagnóstico.

Aqui é válido também esclarecer uma possível confusão que às vezes é feita acerca dos termos fobia e
“crise de pânico”. Antes de tudo, lembremos que o termo “pânico” não é sintoma de nenhuma doença,
mas uma emoção que pode ser vivenciada em coerência lógica com certos estímulos externos realmente
ameaçadores. Assim, entra-se em pânico durante um assalto em que se percebe que a própria vida é
ameaçada, diante de um cão feroz se soltando da corrente que o prendia, ou no momento em que se
dirige um carro em alta velocidade e o mesmo sai da estrada desgovernado. Pânico, assim, é medo
intenso, mas medo em adequação ao perigo do momento. A fobia também pode assumir proporções de
pânico. Por exemplo, a pessoa com claustrofobia pode entrar nesse estado de desespero ao se perceber
numa sala em que a porta foi fechada. Temos aí um pânico ainda voltado para algo específico, dirigido
a um objeto-estímulo, mesmo que esse medo intenso seja inadequado ou sem sentido lógico. Todavia,
é diferente quando nos referimos à crise de pânico presente na chamada síndrome ou doença de pânico
ou, segundo a CID-10, transtorno de pânico.
105

No final do século XX, as classificações de doenças e transtornos mentais abriram espaço para um
estado psicopatológico que já se conhecia há décadas, provavelmente há mais de um século, pois
Freud já descrevia crises de ansiedade aguda que ele observava em determinados pacientes.
Todavia, por volta da década de 1980 foi dada uma conotação de algo recente e contemporâneo
para tal distúrbio. O nome talvez tenha sido novo – síndrome ou transtorno de pânico – mas não o
fenômeno em si. Na prática, trata-se de pessoas que sofrem de um tipo de ansiedade intensa,
repentina, surgindo espontaneamente e em forma de crise momentânea. Durante vários minutos,
elas vivenciam um pânico não objetivado, não dirigido a estímulos específicos (ao contrário das
fobias), mas algo difuso e indeterminado. “É como uma cólica que surge de repente”, dizia uma
pessoa que tinha tal distúrbio. Outra falava que era um medo que parecia surgir “do nada”. Esse
medo espontâneo apresenta-se com intensidades variadas, podendo, frequentemente, atingir
dimensões de muito sofrimento. Tal pânico acompanha-se muitas vezes de uma “sensação de que
se vai morrer”, “perder o controle” ou “enlouquecer”. A vivência de um medo que “surge do nada”
e a não objetivação deste para estímulos externos, dá um caráter de estranheza e perplexidade para
com o fenômeno, angustiando ainda mais a pessoa que passivamente o experimenta. No transtorno
de pânico, tais crises não só variam de intensidade, mas em frequência de aparecimento, havendo
casos em que elas surgem mais de uma vez ao dia, todos os dias, algumas por semana, etc.

A crise da síndrome de pânico comumente se associa a sintomas físicos, como falta de ar, tontura,
batimento cardíaco e pulsação acelerados, suor frio, tremores, palidez e outros dessa ordem. Várias
pessoas com tais crises já foram levadas para serviços de emergência, inclusive cardiológica, pensando-
se que estava tendo enfarte do miocárdio ou algum outro problema orgânico.

Uma questão que vem sendo estudada nos transtornos de pânico são suas implicações
neurofisiológicas e terapêuticas. Determinado tipo de desequilíbrio envolvendo neurotransmissores
cerebrais (serotonina e noradrenalina) parece ser um elemento significativo nessa condição mórbida.
Isso é de suma importância para o tratamento que, além de envolver práticas psicoterápicas, vai
requerer quase sempre a necessidade da utilização de medicamentos específicos que ajam na
regulação daqueles neurotransmissores.

No esquema abaixo, as vivências de medo-pânico são esquematizadas em diferentes contextos:

PÂNICO NORMAL

(objetivado para algum


estímulo externo, em
PÂNICO FÓBICO
adequação lógica)
(objetivado para algum estímulo-
externo, em inadequação lógica)
PÂNICO
- sintoma básico do transtorno fóbico

PÂNICO
PATOLÓGICO
PÂNICO EM FORMA DE CRISE
ESPONTÂNEA

(vivenciado sem objetivação para


estímulos-externos)

- sintoma básico do transtorno de pânico


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Uma possível consequência do transtorno de pânico é que muitas vezes a pessoa desenvolve uma
fobia a sair de casa, a estar em lugares amplos ou na rua, principalmente desacompanhada, ou seja,
pode surgir uma agorafobia secundária (decorrente) da síndrome de pânico. É que a pessoa com crises
agudas imprevisíveis, embora saiba que o surgimento delas pode acontecer em qualquer lugar, teme
que isso ocorra fora da segurança de casa ou da presença de alguém que lhe possa dar apoio caso o
pânico súbito (com suas manifestações físicas associadas) venha a ocorrer. Há casos em que o
indivíduo com síndrome de pânico fica praticamente confinado em sua casa, com medo de ter a crise
na rua.

Marta, uma profissional bem sucedida, casada, com 26 anos e vivendo em harmonia com a família,
teve a primeira “crise” de pânico quando estava dirigindo seu carro. Subitamente, sentiu um medo
enorme “sem ter de quê”, o coração “disparou”, passou a suar bastante, ficou tonta, sentiu ondas de
frio e calor pelo corpo e as mãos começaram a tremer. Conta que “era como se fosse morrer, desmaiar,
perder o controle”. Parou o carro e foi levada imediatamente para um serviço médico de emergência
pelo motorista que vinha atrás dela, que percebera que Marta passava mal. Nesse atendimento, como
não foi constatado anormalidade física que pudesse explicar o mal estar súbito, aplicaram-lhe apenas
uma injeção de diazepam. Com uma hora, a paciente estava bem, sem nenhum sintoma. Todavia,
um mês depois, a crise repetiu-se, semelhante à anterior, quando Marta estava numa praia
acompanhada do marido e amigos. Nas duas crises, bem como nas posteriores que se seguiram, não
conseguiu encontrar qualquer explicação para a enorme ansiedade aguda. Os acessos de pânico
começaram a ficar mais frequentes, ocorrendo de um a três por semana, nas mais diversas situações,
inclusive em casa. A paciente fez consulta com cardiologista, neurologista e, depois de vários exames
negativos, submeteu-se a uma psicoterapia. Após um ano, continuava a ter as “crises” que interferiam
significativamente em sua vida. Não dirigia mais sozinha, evitava locais ou situações onde não
poderia sair facilmente (teatro, avião, jantares formais, cadeira do cabeleireiro, etc.), ou seja, Marta
ia restringindo cada vez mais sua vida social, sempre com o temor de ter uma nova “crise”. Foi quando
iniciou tratamento medicamentoso, sendo-lhe prescrito clorimipramina, uma substância que parece
agir corrigindo alterações nos neurotransmissores dos neurônios cerebrais, e que vem tendo êxito no
tratamento biológico da síndrome de pânico. Com algumas semanas, as “crises” foram se espaçando
e, posteriormente, após uns seis meses, desapareceram completamente. Gradativamente e com a ajuda
da psicoterapia, Marta foi voltando a sua vida normal. Ficou então, em tratamento psicoterápico e
medicamentoso, combinação que vem sendo muito eficaz no transtorno de pânico. Embora esse caso
clínico tenha tido um desfecho favorável, infelizmente nem sempre isso ocorre, com o paciente
precisando tentar outra medicação ou diferente abordagem psicoterápica, às vezes obtendo-se apenas
melhora parcial dos sintomas.

É importante, todavia, frisar que embora ataques de pânico espontâneos e não objetivados ocorram
basicamente na doença de pânico como sintoma principal, podem também surgir em outras
circunstâncias mórbidas. Crises de pânico ocorrem às vezes na epilepsia do lobo temporal, no uso de
certas drogas (como cocaína ou maconha) e na depressão. De fato, há casos de pessoas que quando
caem na fase depressiva de um transtorno do humor, apresentam tais crises, que tendem a regredir
quando a depressão é tratada. Fala-se então em crise de pânico secundária ou derivada do transtorno
depressivo, não da doença ou transtorno de pânico em si. Da mesma forma que falamos poder algumas
fobias surgir dentro de um quadro depressivo, mas sem a abrangência do transtorno fóbico, assim é
o raciocínio acerca da crise de pânico, depressão e doença de pânico.
107

9. DEPRESSÃO E SUICÍDIO

A depressão é uma das situações psicopatológicas onde mais se observa a ocorrência de suicídios.
Cerca de 15% das pessoas com transtornos do humor, inclusive depressão, comentem suicídio
(MALONE apud LOUZÃ NETO & ELKIS, 2010). É claro que muitos são os fatores que levam o ser
humano a tirar sua própria vida, mas, certamente, o estado de intensa depressão é um dos principais,
e por conta disto achamos importante refletirmos um pouco sobre esse tema.

Quando se pesquisa suicídio numa determinada sociedade, há necessidade de distinção entre os


índices de suicídio propriamente dito (consumado, resultando na morte da pessoa) e os de tentativas
de suicídio. Nesta última categoria, registram-se os casos em que o indivíduo tentou se matar, mas
por algum motivo o processo não teve êxito letal. Isso, às vezes, é interpretado erroneamente no
sentido de se considerar tentativa de suicídio como algo sem muita importância ou gravidade, um
“querer apenas chamar atenção” ou até mesmo ser sinônimo de comportamento “histérico”. Todavia,
as estatísticas registram que um número significativo de pessoas que tentam suicídio volta a fazê-lo
(no mesmo ano ou nos seguintes), sendo que em várias dessas novas tentativas, o desfecho é fatal.
Estudos com tempo mais longo de pesquisa mostram que cerca de 10% das pessoas que tentam
suicídio, terminam se matando posteriormente (ALMEIDA, 1996). Às vezes, o suicídio só não é
consumado devido algum incidente não planejado, a exemplo de pessoas que atiram na cabeça, mas
o percurso da bala não causa a morte (muitas vezes deixando sequelas, como cegueira, paralisias,
distúrbios neurológicos) ou das que ingerem substância realmente letal (certos venenos de ratos, por
exemplo), mas são socorridas por uma contingência imprevista e a tempo de ser feita lavagem
gástrica, sendo salvas da morte. E os especialistas no assunto alertam para que, mesmo quando parece
evidente que o indivíduo, ao tentar suicídio, no íntimo não queira realmente morrer, o fato oferece
perigo de novas tentativas e até de posterior consumação da morte, sendo aconselhável uma postura
atenta e não preconceituosa por parte dos que o acompanham ou cuidam dele.

Outro erro comum de julgamento é considerar aqueles que frequentemente falam ou fazem fantasias
de se matar, como pessoas que não chegariam de fato ao ato suicida. Na verdade, muitos dos que
tiraram sua própria vida tinham ideação sobre suicídio, falavam acerca disso, imaginavam como seria
a forma de execução do ato final e comunicaram sua intenção de forma explicita. É verdade que certa
parcela de suicidas talvez nunca tenha expressado seu intento, mas isso é bem diferente de dizer que
“quem quer mesmo se matar não vai ficar falando nisso”. Os pesquisadores sobre o assunto não
hesitam em dizer que fantasias sobre a própria morte, juntamente com frequente verbalização da
intenção suicida é um dado de risco, indicativo que a pessoa pode de fato vir a se matar. Ou seja, aqui
não é verdadeiro o ditado popular de que “cão que ladra não morde”. É possível que a ideação suicida,
assim como o falar sobre se matar, tenha uma função de “ir se acostumando” a execução da própria
morte, um “facilitador” da passagem do pensamento ao ato real, como uma criança que vai aos poucos
molhando os pés na praia antes de mergulhar. O verbalizar direta ou indiretamente a intenção suicida
pode ainda ser uma forma de “pedido de ajuda” daquele que está em sofrimento interior e pensando
em terminar com a vida.

Há o que se chama de avaliação do risco de suicídio, que é a averiguação da existência de


determinados itens que são indicadores de que a pessoa tem elevada probabilidade de vir a tentar
matar-se. Alguns deles já nos referimos: intensa depressão, tentativas anteriores e a ideação suicida,
inclusive verbalizada. Outros dados são a presença de doença orgânica crônica incapacitante ou grave
(veja-se o índice de suicídios elevado entre os cancerosos, doentes renais crônicos e epilépticos),
isolamento social (principalmente se associado a sentimento de solidão), abuso de álcool ou outras
drogas, fácil disponibilidade dos meios para o suicídio (morar no alto de um edifício ou possuir arma
de fogo), história familiar de suicídios, vivência de intensa crise vital sem muita perspectiva de
“saída”, desemprego. Ressalte-se que não é apenas um item isolado que deve ser observado. Se uma
pessoa está desempregada e mora em um 10º andar, apenas esses dados não indicam elevada
108

probabilidade de ato suicida; mas, se, além disto, ela tem também depressão e fala muito em matar-
se, então aqueles dois achados passam a ser considerados itens significativos numa avaliação global
de risco, devendo ser ponderados como dados perigosos a mais para possibilidade dela vir a suicidar-
se. Vale lembrar, todavia, que avaliação do risco de suicídio não é “previsão do futuro”, um antever
ou profetizar o que vai ocorrer em termos de suicídio de um indivíduo, mas, como o termo explicita,
é uma “avaliação do risco”. Até porque algumas pessoas têm itens indicativos de perigo e não fazem
a tentativa de se matar, outras o fazem sem que haja presença de muitos deles. Mas é inegável que
são de suma importância prática para o alerta de que um determinado indivíduo tem amplas
possibilidades de vir a executar o suicídio, e quanto maior o número desses tópicos, mais elevada a
probabilidade da realização do ato.

Sobre estatísticas, alguns dados são relevantes. Homens se suicidam três vezes mais que mulheres,
todavia nas cifras de tentativas de suicídio (onde não há a consumação da morte), a proporção se
inverte, as mulheres tentam três vezes mais que homens. Inúmeras pesquisas mostram que pessoas
casadas se suicidam menos que as divorciadas/separadas e solteiras. Em relação à faixa etária, os
índices aumentam com a idade, ou seja, o suicídio é mais encontrado nas pessoas com 50/60 anos e
acima disto. Embora a imprensa e outras fontes de informação nos tragam casos de suicídio ocorridos
na infância (pois sensibilizam a opinião pública), estatisticamente estes não são comuns. Por outro
lado, suicídio entre os adolescentes e jovens de 15–25 anos tem aumentado significativamente. Há
muitas diferenças relativas ao suicídio de acordo com países e culturas. As taxas de mortalidade
variam desde mais de 30 casos por 100.000 habitantes, como na Hungria, Dinamarca ou Finlândia, e
menos de 10 por 100.000 pessoas, a exemplo de Portugal, Itália, Espanha e a maioria dos países
latino-americanos (ALMEIDA, 1996).

Os índices de suicídio no Brasil, no final do século XX, estavam em torno de 4,0 por 100.000
habitantes, um número baixo, mas que vem seguindo a linha mundial de crescimento, inclusive
naquela faixa de 15–25 anos (LOUZÃ NETO & ELKIS, 2010).

Todavia, quando se faz comparações de números em pesquisa de país para país, temos que levar em
consideração que os dados oficiais fornecidos sofrem as influências da qualidade dos serviços de
estatística e outros possíveis fatores que possam interferir nas cifras. No Brasil, por exemplo, há várias
dificuldades práticas, como o sub-registro de suicídio devido ao estigma e problemas que
acompanham este tipo de morte, além da precariedade de muitos serviços públicos na coleta de
números e causas de mortalidade.

Mas, todas essas cifras e estatísticas sobre suicídio não são teorias ou concepções explicativas, são
dados brutos, mostradores porcentuais, números. A partir deles é que podemos construir hipóteses na
tentativa de elucidar os dados colhidos. Por exemplo, a proporção de suicídios consumados de 3–1
em relação a homens–mulheres é um fato constatado em inúmeros países. Em cima desse
indicador pode-se levantar o raciocínio teórico de que ele refletiria a questão dos homens não se
permitirem tentar e “fracassar” numa tão significativa decisão tomada, procurando então meios mais
seguros de morrer para não dar chance ao julgamento de que queriam apenas “chamar atenção”, e a
“sobrevivência” estaria associada a conceitos de fraqueza e incompetência. Por outro lado, o fato
cultural dos homens não costumarem extravasar as emoções de forma catártica em palavras e choro
– o que pode aliviar tensões – contribuiria também para a tendência das taxas mais elevadas de
suicídio. Existem hipóteses que tentam explicar outros dados estatísticos, como o porquê as mulheres
apresentam mais tentativas não consumadas, qual a razão das pessoas casadas terem baixos índices
de suicídio em relação às divorciadas e solteiras ou como explicar a taxa elevada nas pessoas idosas
ou que estão próximas da velhice. Nisso se constrói então todo um campo de pesquisa e estudo sobre
o suicídio, havendo diversos trabalhos e livros sobre o tema.
109

Há suicídios que são bem planejados, com a pessoa deixando cartas de despedida para os familiares
e concluindo compromissos pendentes. Outros são impulsivos, sem haver preparo ou planejamento,
pelo menos a nível consciente. Pessoas se matam demonstrando desespero, mas há aquelas que se
suicidam parecendo tranquilas. E aqui entra uma questão de ordem existencial e filosófica acerca do
ato de tirar a própria vida. Todo aquele que se suicida estaria em desequilíbrio mental? Muitos
teóricos pensam assim, inclusive com a concepção de que a pessoa que se suicida sofre de distúrbio
psíquico, nem que seja no momento do ato. Diversos trabalhos mostram, de fato, uma elevada
associação entre suicídio e transtornos psiquiátricos, principalmente depressão, alcoolismo e
esquizofrenia. Todavia, dizer que toda pessoa que se suicida tem sempre algum distúrbio mental ou
está em estado psicopatológico, para outros estudiosos no assunto, é uma generalização muito ampla.
Suicídio não é critério para diagnosticar doença mental, a não ser que esteja associado a
comportamentos ou sintomas psicopatológicos, e a Organização Mundial de Saúde, através da CID-
10, não classifica este ato como um transtorno mental por si só. Neste raciocínio, pode-se conceber
que uma pessoa sem distúrbios psicopatológicos cometa suicídio, sem negar, todavia, que o suicídio
esteja frequentemente associado a tais distúrbios. Mas estariam com distúrbios mentais todos aqueles
kamikazes japoneses que durante a 2ª. Guerra Mundial se lançavam em aviões carregados de
explosivos contra o inimigo, assim como os inúmeros bonzos budistas que ateavam fogo neles
próprios como protestos a invasão americana na guerra do Vietnam? Mais recentemente vem
crescendo o fenômeno dos “homens-bombas” nos atentados terroristas de facções do islamismo
fundamentalista. No final do século XIX, o sociólogo Emile Durkheim chamou de suicídio altruísta
aquele em que o individuo se sacrifica dando sua vida em nome ou em defesa da coletividade. É
importante que se leve em consideração a questão sociocultural, pois o homem do mundo ocidental
não consegue entender ou aceitar muito bem uma pessoa colocar sua existência individual num
segundo plano em relação ao bem coletivo, e tende a classificar de “perturbada” aquela que assim
age. Achamos que se pode até discordar do modo de pensar e agir das pessoas que cometem suicídio
priorizando o ideal coletivo, mas daí a considerar que haja sempre distúrbio mental subjacente nesses
casos nos parece ser exagero. De qualquer forma, esta é uma questão polêmica e controversa.

Voltando à relação suicídio–depressão, é conhecido o fato de que, nas pessoas que estão em estado
depressivo em níveis acentuados, o risco de suicídio é maior no início e no final deste quadro
psiquiátrico. Há relatos de casos de pacientes que estavam melhorando do profundo estado depressivo
em que se encontravam, seus familiares já se achavam mais tranquilos com a notória recuperação,
quando “inesperadamente” o suicídio foi tentado e, muitas vezes, consumado. Provavelmente, isso
ocorre porque nos períodos mais intensos duma grave depressão, embora as ideias suicidas existam,
pode faltar a energia para transformá-las em ação, já que a psicomotricidade está rebaixada e a
capacidade de agir acha-se bastante comprometida. Com o início da recuperação, pode ocorrer
melhora na capacidade de execução psicomotora, mas com outros sintomas ainda persistindo, como
a hipotimia, desesperança, sentimentos de culpa e ideação suicida, agora com o paciente em condição
de passagem ao ato autodestrutivo. O mesmo raciocínio se aplica para os estágios iniciais de
depressão, pois, podem surgir ideias suicidas e outros sintomas da síndrome, mas com o quadro ainda
não se encontrando no estágio de profunda impotência para a ação. Talvez isso esclareça alguns casos
de suicídios “inexplicáveis” e “incompreensíveis” que ocorrem em pessoas que não demonstravam
ter doenças mentais, não tinham maiores problemas na vida e tudo parecia bem em seu dia a dia,
deixando parentes e amigos com uma enorme interrogação existencial. Mas, essas pessoas poderiam
estar em início de um episódio depressivo e, sendo a primeira crise, não tinham passado psiquiátrico.
De fato, há casos em que o indivíduo é salvo da morte e posteriormente fica evidente a repetição de
outros episódios de uma depressão recorrente que se iniciou com a tentativa de suicídio, o que não
pode ser constatado se há êxito letal no começo de um primeiro surto.

Outra questão discutida é a relação entre suicídio e desemprego. Principalmente na população


masculina, dados estatísticos sugerem que o desemprego está associado a uma maior proporção de
tentativas de suicídio. Mas esta associação não quer dizer que o primeiro seja causa ou fator
110

determinante do segundo, havendo a possibilidade de outro raciocino. Sabe-se que distúrbios mentais,
por diversos motivos, levam ao desemprego e, como vimos, também podem tais distúrbios culminar
em suicídio, daí a associação desemprego-suicídio, ambos tendo como causa comum os transtornos
mentais (incluindo depressão e alcoolismo). A condição de estar desempregado, por si só, não parece
ser causa de suicídio, assim como não o são apenas o sentimento de solidão, o isolamento social ou
ter doença orgânica crônica, mas todos são possíveis fatores de risco, podendo contribuir, num
somatório, para o ato de se matar. Um homem possui um emprego com salário satisfatório, todavia,
o surgimento de uma depressão recorrente faz com que seu rendimento profissional caia e ele termine
sendo demitido; posteriormente, com a continuidade do estado depressivo e desolado pela perda do
trabalho, tenta se matar. Observe-se que a tentativa de suicídio não foi apenas por ter perdido o
emprego, mas por conta da depressão subjacente, atuando o desemprego mais como um fator
desencadeante. Vale também lembrar que em muitos países desenvolvidos a taxa de desemprego é
baixa, sem que isto corresponda a números igualmente reduzidos de tentativas de suicídios ou
suicídios consumados.

10. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO LIDAR COM A PESSOA EM


DEPRESSÃO E SUA FAMÍLIA

“Esforce-se e saia dessa depressão”, “você tem que reagir...”, “só depende de você, tenha força de
vontade”, “você não tem motivo para estar tão deprimido assim”... Essas são frases quase sempre
ineficazes para a melhora da depressão e que podem até agravá-la, numa pessoa que já está sofrendo
com hipotimia, baixa autoestima e falta de ânimo, além de outros possíveis sintomas. Há a ideia
comum de que, no campo do psiquismo (pensamento, emoções, motivações), as mudanças e
determinações são administradas pela própria “força de vontade” da pessoa que as vivencia. Mas em
diversos estados psicológicos (e principalmente psicopatológicos) isso não é possível, ela não pode,
por si só, determinar ter ou não ter muitos dos sentimentos que lhe atormentam, estar deprimida ou
não, e, por vezes, pensar ou não pensar em algo. Da mesma forma que, mediante alguém que esteja
numa crise dolorosa de enxaqueca ou sentindo forte tontura com queda da pressão arterial, não se
cogita em dizer “reaja e não sinta dor” ou “tenha força de vontade e afaste de si essa tontura”, também
não se pode agir assim com alguém que está sofrendo de forte depressão. A pessoa vai precisar de
ajuda e tratamento através de um profissional em saúde mental (psicólogo, psiquiatra), inclusive,
muitas vezes utilizando medicação. É bem verdade que, em algumas depressões mais leves, o apoio
consistente por parte de determinados familiares ou amigos, talvez associado a um período de
descanso e à resolução de alguns problemas significativos, pode superar ou minorar tal estado;
todavia, geralmente não é o que ocorre quando a depressão se apresenta um pouco mais intensa e
prolongada. Isso deve ser encarado da mesma forma que entendemos que a ajuda profissional é
necessária quando se está sofrendo com aquelas crises de enxaqueca ou com persistente tontura e
hipotensão arterial. Vale mais uma vez lembrar que quando falamos de depressão não é o mesmo que
tristeza por algo que foi perdido, sentimento comum vivenciado em nosso dia a dia, pois, como vimos,
depressão é um conjunto de sintomas que tendem a persistir e podem prejudicar a vida da pessoa.
Seus familiares e amigos precisam ser orientados no sentido de compreender o que vem a ser tal
distúrbio e o como devem agir com aquele que o tem, inclusive para não piorarem o quadro com
atitudes e comentários inadequados, pensando estar ajudando a pessoa deprimida. Depressão não é
“fraqueza de espírito”, “falta de fé”, tristeza passageira, nem muito menos “preguiça”, como alguns
ainda podem pensar.

Outra conduta que pode ser prejudicial é o insistir para que a pessoa deprimida vá a encontros festivos,
espaços de divertimento ou se engaje em outros tipos de lazer, às vezes com os familiares “arrastando-
a” para esses locais, na ideia de que, se distraindo e entrando em contato social com colegas, vá se
“reanimar”, “esquecer problemas” e sair da depressão... Talvez, apenas em alguns quadros
111

depressivos mais leves essa conduta possa ajudar. Todavia, frequentemente o deprimido “leva” seu
estado psicopatológico para esses espaços, percebe e compara a alegria e animação dos outros com
seu humor rebaixado, pode ouvir comentários de outras pessoas sobre o seu “abatimento”, sentir-se
inferiorizado por constatar sua incapacidade de interagir e participar e, então, muitas vezes tende a
voltar para casa, pior do que estava antes de sair.

Bem mais produtivo parece ser o incentivo a pequenas tarefas que a pessoa fazia com facilidade antes
da depressão, mas que agora não está conseguindo. Por exemplo, se ela mantinha seu quarto arrumado
e costumava fazer caminhadas de 1 hora várias vezes por semana, no estado depressivo pode não
conseguir executar essas atividades, o que a deixa desesperada ao constatar que não se sente em
condições nem sequer de por em ordem seus objetos pessoais e muito menos dar suas caminhadas,
fazendo-a sentir-se com a autoestima ainda mais baixa. Estimulá-la a que, gradativamente, vá
arrumando parte do quarto, depois outro compartimento, até que consiga colocá-lo em ordem como
sempre conseguiu fazer, bem como recomeçar caminhadas, inicialmente por uns cinco ou dez minutos
(o que pode ser ainda difícil para alguém que está constantemente deprimido) e posteriormente ir
aumentando esse tempo, são procedimentos que talvez pareçam de pouca importância, mas podem
produzir bons resultados quando associados a outras formas de tratamento. Inclusive porque, se a
pessoa consegue executar as tarefas, mesmo simples, isso pode lhe dar a sensação de que “conseguiu
cumprir” um objetivo, foi “capaz de fazer” algo concreto, e daí motivar-se para dar mais passos além.
Tais informações devem ser passadas ao paciente e a sua família, pois esta vai ter papel importante
nesses estímulos à ação. Mas o terapeuta precisa estar atento para incentivar atividades com
possibilidades realísticas de serem executadas, começando com aquelas relativamente “simples” e
passando para outras mais “difíceis”, de acordo com o que ele vai percebendo e conhecendo do nível
da depressão e das possibilidades da pessoa que está tratando.

Ao diagnosticar uma depressão, o profissional deve identificar qual a intensidade e dimensão desta,
porque isso pode implicar em diferentes condutas terapêuticas, às vezes necessitando da avaliação e
ajuda de outros técnicos. Uma depressão leve pode não requerer o emprego de medicação, mas
trabalho psicoterápico e orientação à família, o que não é suficiente quando ela apresenta um nível de
gravidade maior.

A importância da medicação precisa ser bem pontuada e esclarecida, pois, na maioria dos casos de
depressão, a prática tem demonstrado tratar-se de procedimento indispensável, devendo estar
associado a outras formas de tratamento. É comum certa resistência por parte do paciente ou de seus
familiares à ideia de “tomar remédios” para depressão, achando que se a pessoa “fizer um esforço”
pode “reagir” sem precisar fazer uso deles. Argumenta-se também que vão causar dependência e
nunca se poderá deixar de tomá-los. É importante explicar que o antidepressivo em si não causa
dependência, da mesma forma que a insulina – medicação para quem tem diabete – não vai causar
dependência. O organismo é que, não produzindo adequadamente a insulina, cuja função é equilibrar
a dosagem de glicose no sangue, vai acumular excessivamente esse açúcar, o que será profundamente
prejudicial ao metabolismo corporal saudável. Felizmente, em nossos dias, é sintetizado o
medicamento-insulina, que equilibra a glicose sanguínea, fazendo com que o organismo do diabético
possa funcionar satisfatoriamente, restabelecendo uma atividade fisiológica mais saudável. Houve
épocas em que, por não se conhecer esse medicamento, pessoas tinham sérias complicações clínicas
e até podiam não sobreviver à diabete. Não podemos, então, dizer que é o medicamento-insulina que
causa dependência no diabético, mas quem tem essa doença necessitará dele talvez para toda a vida,
sendo dependente desse medicamento para poder continuar vivendo normalmente, assim como todos
nós dependemos da insulina produzida por nosso organismo. Se o diabético para de tomá-lo, voltará
a apresentar sintomas perigosos à saúde. E não podemos dizer: “deixe de fazer uso dela para não ficar
dependente”... Da mesma forma, diversas pesquisas e evidências mostram que substâncias no sistema
nervoso central, como noradrenalina e serotonina, estão em mau funcionamento na depressão, e
necessitam ser reguladas como parte do tratamento. A medicação vai fazer isso, mas não é ela que
112

causa dependência; o organismo é que precisa dela para funcionar mais satisfatoriamente. Aliás, a
palavra “dependência” é frequentemente encarada como algo “negativo” ou prejudicial. E, de fato,
pode ser, quando alguém fica dependente de uma droga desnecessariamente ou de algum
comportamento que não está sendo saudável, como a dependência ao álcool ou estar sempre na
internet compulsivamente... Uma pessoa que é dependente do álcool não está fazendo uso de nenhuma
substância necessária ao bom funcionamento do seu organismo, pelo contrário, está ingerindo-o para
produzir um estado mental que, embora inicialmente seja prazeroso, vai alterando prejudicialmente a
fisiologia do corpo, o equilíbrio do psiquismo e os relacionamentos sociais. Todavia, muitas
dependências não são “negativas” ou prejudiciais. Todos nós dependemos de outras pessoas, de
determinadas instituições, precisamos de lazer e divertimentos, dependemos de agasalhos em
invernos e de nosso trabalho para viver, necessitamos de substâncias que nosso organismo não está
produzindo e que são necessárias à saúde. Quem tem certos tipos de hipertensão arterial grave precisa
e depende de uma medicação que regule sua pressão em níveis não prejudiciais ao funcionamento
corporal saudável (pois a doença hipertensiva pode, inclusive, precipitar enfarte e acidente vascular
cerebral). O prejudicial seria a pessoa com hipertensão não fazer uso dessa medicação, assim como o
diabético recusar-se ao equilíbrio bioquímico dado pela insulina ou o deprimido grave não aceitar o
antidepressivo, na alegação que essas substâncias vão causar dependência.

Ainda sobre medicação é importante explicar ao paciente e seus familiares que os antidepressivos
não agem propiciando melhora do estado psíquico nos primeiros dias de administração. Seu efeito só
será notado após duas ou três semanas, às vezes até em um período maior. Essa informação é
importante para que não se pense que a medicação não está agindo como o esperado, evitando-se
assim, desapontamentos e conclusões errôneas no início do tratamento.

Outra questão, quando se investiga o estado depressivo numa pessoa, é saber se há suspeita de alguma
doença orgânica subjacente que esteja exacerbando ou mesmo sendo a causa principal dessa
depressão. Por exemplo, uma pessoa que se consultou com um profissional clínico, devido depressão,
vinha, há muito tempo, fazendo uso de medicação para disfunção da glândula tireoide, tomando certa
dosagem por dia, mas há anos não voltava ao endocrinologista para reavaliação desse distúrbio.
Quando isto foi feito, constatou-se que a dose diária da medicação estava insuficiente. Com o aumento
da posologia, o hipotireoidismo – doença dessa pessoa – teve seus sintomas reduzidos
significativamente, inclusive a depressão. Já vimos que uma síndrome depressiva pode ser derivada
de certas condições orgânicas, como distúrbios hormonais (como o caso acima exemplificado), além
de outras mencionadas no item que trata dos transtornos orgânicos do humor.

Um aspecto importante a ressaltar sobre o deprimido é que seu discurso e suas atitudes podem causar
problemas de relacionamento com aqueles que o cercam, se estes não forem alertados para as
implicações negativas que a depressão pode acarretar através da fala e do comportamento. Não é fácil
conviver com alguém que está sempre com tendência à tristeza, apresentando desânimo, com baixa
autoestima, se autorrecriminando e assumindo culpas de forma irrealista, muitas vezes, falando em
morrer ou suicidar-se. Em certos casos, a presença da pessoa deprimida pode até produzir
sentimentos de rejeição nos que a cercam, como se observa, por exemplo, em muitos casos de distimia
(aquela forma crônica de depressão). A pessoa distímica comumente é propensa não só a tristeza, mas
à irritabilidade, reclamações exageradas e frequentes em relação à vida, tendência a demonstrar
constante pessimismo e parece trazer um “clima pesado” ou “nuvens negras” quando chega, sendo
muitas vezes considerada como “mal-humorada” ou “desmancha prazer”. A situação se complica
porque essa pessoa pode não aceitar que tem um transtorno psicológico e precisa de ajuda; e nem
sempre os que a rodeiam possuem a compreensão disso. Comumente, alguém com uma depressão
intensa e aguda é mais facilmente reconhecida como necessitando de tratamento e levada a serviço
especializado do que aquela com distimia.
113

Finalmente, num item que aborda algumas questões sobre o lidar com a pessoa deprimida e com
aqueles que lhe são próximos, não poderíamos deixar de voltar ao tema do suicídio. Porque o
comprometer-se no ajudar alguém que tentou se matar ou que fala direta ou indiretamente sobre
intenções suicidas e desejo de morrer, nos faz refletir e vivenciar sentimentos sobre nossa parcela de
responsabilidade sobre a vida e a morte daquela pessoa. O que podemos e devemos fazer no contato
com o ser humano que nos trás o suicídio como algo bem próximo e possível de vir a ocorrer? Não
há “receitas” prontas, mas alguns procedimentos parecem se firmar com a experiência prática que
muitos profissionais vão acumulando e nos transmitindo. É importante, na conversação com a pessoa
que tentou ou fala em se matar – bem como com seus familiares – ponderar os itens de avaliação do
risco de suicídio (mencionados em tópico anterior), pois quanto mais estiverem presentes, a
probabilidade da passagem ao ato é maior. Não esquecer que a idéia, comumente difundida, de que
quem muito fala ou fantasia sobre suicídio geralmente não o concretiza é incorreta, pois, ao contrário,
esse é um dos indicadores de risco. Lembrar, também, que o período da melhora de um quadro
depressivo, como vimos, é um momento que requer muito cuidado, pois não é incomum o suicídio
ocorrer exatamente nesse período, devendo-se estar atento para tal “armadilha” muito dolorosa pela
qual profissionais que acompanham o caso e familiares já passaram com sofrimento. Por fim, é
incorreta a noção de que não se deve falar sobre suicídio com um paciente que vem alimentando tal
ideia (tendo ou não tentado anteriormente), pois isso iria estimular o assunto e precipitar o ato. O que
se observa comumente é o oposto, ou seja, muitas pessoas sentem como que um “desabafo” falar
sobre seus sofrimentos e ideias de morte, experimentando até certo alivio ao perceber que o
entrevistador as entende e conversa naturalmente sobre suicídio. Nessa conversação, pode-se
começar abordando temas mais gerais como problemas pessoais, incompreensões, desespero,
depressão e daí ir entrando, de forma clara, no assunto da ideação suicida.

CAPÍTULO 4

AMNÉSIA

1. CONCEITO

2. A MEMÓRIA E O PROCESSO MNÊMICO

3. LEI DA REGRESSÃO MNÊMICA DE RIBOT

4. AS FORMAS (TIPOS) DE MEMÓRIA

5. AMNÉSIAS TOTAIS E PARCIAIS; ANTERÓGRADAS E RETRÓGRADAS

6. AMNÉSIA PSICOGÊNICA

7. A EXTENSÃO DE UMA AMNÉSIA – O PERÍODO DE TEMPO COMPROMETIDO


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8. A EVOLUÇÃO (CURSO) DA AMNÉSIA – REVERSÍVEL OU IRREVERSÍVEL?

9. CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS AMNÉSIAS

10. O OPOSTO DA AMNÉSIA: HIPERMNÉSIA

11. FALSAS LEMBRANÇAS E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS

12. AVALIAÇÃO CLÍNICA DA MEMÓRIA E A PRESENÇA DE POSSÍVEIS


HIPOMNÉSIAS E AMNÉSIAS

13. O QUE PODEMOS FAZER?

1. CONCEITO

A definição mais simples de amnésia é a que se refere a essa alteração como uma perda significativa
da memória. Por trás desse conceito, todavia, inúmeros aspectos precisam ser considerados.
Comecemos por um exemplo ilustrativo.

Um homem adulto, serralheiro, após sobreviver a grave envenenamento por gás no dia 31 de maio de
1926, não mais conseguia fixar nem recordar os acontecimentos que ocorriam a partir dessa data.
Quando examinado clinicamente em 1930, verificou-se, todavia, estarem preservadas as lembranças
dos fatos ocorridos antes daquele 31 de maio. Reconhecia as pessoas com as quais tomou contato ou
foi apresentado até o dia do acidente, mas, as que ele conheceu após isso, mesmo com encontros
frequentes (como os contatos com o seu médico), não conseguia colocá-las dentro do campo de sua
memória, sendo sempre estranhas e desconhecidas para ele. Lembrava e reconhecia sua noiva, bem
como acontecimentos que viveu com ela até 1926, mas não podia recordar fatos posteriores. Por
exemplo, não era capaz de lembrar que se casou com a mesma após o acidente, de forma que, quando
se lhe perguntava se era casado, respondia: “não, mas vou casar-me em breve”, porque antes do
acidente o casal planejava o casamento. Ontem, para ele, era sempre 31 de maio de 1926. Esse homem
não sabia que tinha um grave distúrbio de memória e nem sequer o percebia, mas se o notasse,
esqueceria isso logo em seguida, pois todas as impressões e reflexões sobre essa realidade se
dissipariam. O que era dito para ele, após alguns segundos tendia a ser esquecido por completo.
Também tinha dificuldades de responder perguntas longas, porque quando o que lhe era perguntado
se estendia por uma frase mais extensa, já esquecera o conteúdo do início. Esse homem, apesar de
seu comprometimento mnêmico, conseguia fazer raciocínios e deduções baseados no que estava
percebendo em seu redor. Por exemplo, ao ser perguntado em que estação do ano se encontrava, ao
olhar pela janela e ver a paisagem invernal, dizia ser inverno, mas se seus olhos eram tapados e a
mesma pergunta era repetida, sentindo o calor da lareira acesa, afirmava que devia ser verão... G. E.
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Storring, o pesquisador que examinou esse paciente, compara sua alteração da memória a uma placa
de cera que se tornasse pétrea, ficando legíveis as impressões antigas, gravadas antes da “petrificação”
pelo acidente; todavia, a partir daí, nenhuma inscrição nova poderia mais ser gravada
(STORRING apud JASPERS, 1973).

Nesse resumo de caso, observamos que a pessoa acidentada não consegue se recordar de
absolutamente nada dentro de um período de quatro anos. Ela tem uma total perda de memória para
os fatos ocorridos entre 1926 e 1930, e provavelmente o distúrbio deve ter se prolongado para além
dessa data. Veremos que nem toda amnésia, no entanto, corresponde a um apagamento completo dos
fatos acorridos em um período passado. O homem do exemplo poderia esquecer a maior parte dos
eventos acontecidos nos quatro anos, mas conseguir gravar e lembrar um ou outro fato dentro desse
espaço de tempo. É que as amnésias variam em gradações que vão do esquecimento parcial e
fragmentário que incide em um período de vida até a perda completa das lembranças desse mesmo
período. No relato acima, tudo faz crer que o distúrbio de memória teve causa orgânica (o
envenenamento por gás), mas, conforme veremos, há casos cuja origem é basicamente psicológica.
No estudo das amnésias, observaremos que há variações também na extensão do período
comprometido; nesse exemplo apresentado, o distúrbio de memória incidia em um espaço amnéstico
de anos, todavia, a amnésia pode envolver períodos menores de tempo, como lacunas de algumas
horas ou dias, bem como, por outro lado, abranger toda a vida da pessoa. Se atentarmos um pouco
mais para o quadro psicopatológico do serralheiro, observamos que sua amnésia começa a surgir para
fatos que ocorrem após o evento causal (o envenenamento por gás). Mas veremos que há exemplos
em que ocorre o contrário, os acontecimentos não lembrados são concernentes aos fatos ocorridos
antes de um trauma ou acidente que produziu o déficit de memória. No caso dado, parece que a
amnésia está relacionada a uma incapacidade de fixar na mente acontecimentos que passariam a
existir como lembranças. Essa impossibilidade de fixação seria a base de todas as amnésias? E o que
a amnésia pode significar clinicamente? É sintoma comum em que circunstâncias ou doenças? De
que forma podemos avaliar se está presente numa determinada pessoa? Enfim, no estudo das amnésias
há diversos aspectos que procuraremos aprofundar, bem como traçar paralelos em relação a outras
alterações da memória que direta ou indiretamente tem relações com o declínio dessa função psíquica.

2. A MEMÓRIA E O PROCESSO MNÊMICO

Memória é um processo psicofisiológico através do qual trazemos a nossa mente, sob forma de
lembranças, as vivências que experimentamos num passado recente ou remoto. Quando temos uma
recordação, como a imagem mental de algo que vimos ou ouvimos, a rigor não é o mesmo que “viver
novamente” o passado. Este, não pode ser trazido de volta, não nos é possível fazer o tempo
retroceder, de forma que a frase “recordar é reviver” é só uma expressão figurativa. Por mais intensa
que seja uma reminiscência, ela é vivenciada apenas subjetivamente, em nível mental, através de
lembranças no pensamento (embora em circunstâncias muito especiais possa haver a impressão de se
estar voltando ao passado, como veremos adiante). Qualquer vivência experimentada pode se
transformar em recordação. Uma imagem real, um movimento psicomotor, uma informação ou
notícia que outrora nos perturbou ou alegrou, um sonho, todo acontecer pode passar à categoria de
lembranças. Um dos principais processos que distingue uma lembrança de outras vivências da nossa
mente é o que se chama de reconhecimento mnêmico. Podemos pensar em estarmos conversando
com uma personalidade de projeção internacional que admiramos ou em imaginário jogo de futebol
em que nosso time se sagra campeão mundial e sabermos que tais conteúdos mentais são meras
fantasias, diferente da lembrança de uma conversa que realmente mantivemos com um amigo ou de
um jogo que assistimos semana passada. Identificamos e reconhecemos as recordações em nossa
mente, distinguindo-as do que sabemos serem meras criações fantasiosas ou mesmo de percepções
atuais. Olhamos a lua cheia e sabemos que se trata de uma percepção real, diferente da lembrança da
lua cheia do mês passado quando estávamos numa praia. Há, todavia, determinadas situações onde
116

se confunde o que é fantasia com uma recordação, principalmente em se tratando de crianças. Assim,
uma menina pode “lembrar” um passeio que fez recentemente com o pai ou ter ouvido o irmão falar
algo importante sobre ela quando, na verdade, tais conteúdos mentais são fantasias ou desejos
vivenciados como recordações.

Nos textos sobre memória, principalmente os ligados à neurociência, vem sendo utilizado o conceito
de engrama. Esse é o termo dado aos conteúdos mentais referentes a memória. A imagem mental
fantasiosa não é um engrama; mas a representação mental de um objeto que vimos há semanas atrás
ou a informação que aprendemos e está gravada em nossa mente são engramas. Inicialmente, o termo
estava muito ligado à neurofisiologia, referindo-se à propriedade plástica que os neurônios cerebrais
possuíam para formação das lembranças. Para a engramação mnéstica (formação de unidades de
memória) parece ser importante o funcionamento de certas estruturas do sistema límbico (com
relevância para o hipocampo).

Mas, quando estamos vivenciando uma determinada lembrança, quando experimentamos em nossa
mente o “funcionamento” da memória, talvez não saibamos que tal experiência é o resultado de uma
série de processos que culmina na recordação em si. Considera-se que, para chegarmos a essa vivência
de estarmos nos lembrando de algo, a atividade da memória passa por três fases: fixação, conservação
e evocação, conhecidas como etapas do processo mnêmico.

A fixação refere-se ao momento em que gravamos em nossa mente os estímulos que surgem do
mundo objetivo ou subjetivo, compreendendo a aquisição de novas informações. No instante em que
lemos um texto didático, estamos iniciando o processo mnêmico. Nada poderá ser recordado se antes
não tivermos fixado, de alguma forma, o conteúdo da recordação. E, para que a fixação ocorra, é
necessária a presença de certas condições psicofisiológicas. Uma delas é a preservação da clareza da
consciência, ou seja, a pessoa precisa estar desperta, acordada, em estado de vigília, não sonolenta,
para que ocorra essa etapa de “gravação”. Também precisa estar com a capacidade de atenção
preservada naquele momento. A motivação para apreender e fixar um determinado conteúdo dentro
do processo mnêmico é outra condição importante, pois fixamos melhor as informações que
mobilizam mais o nosso interesse. Se uma pessoa estiver sonolenta, pouco atenta e desinteressada
para a retenção de algo em sua mente, certamente não vai posteriormente poder evocar aquilo que
não foi bem fixado. A existência de mais de um canal sensoperceptivo envolvido também vai influir
no processo, ou seja, se a informação que está sendo passada abrange a visão e a audição haverá maior
probabilidade de eficácia na retenção mnêmica que se fosse acionado apenas um desses sistemas (daí
os métodos áudios-visuais de ensino). O estado emocional despertado por uma experiência poderá
ser outro dado significativo para uma melhor ou pior fixação mnêmica. Uma vivência associada a
sentimentos prazerosos terá maior probabilidade de favorecer a fixação, todavia, aqui não entra
apenas o tipo do sentimento (se agradável ou desagradável), mas também sua intensidade, pois uma
experiência traumática de grande e prolongado pavor em face de um perigo pode fixar para sempre
as imagens dessa ocorrência em nossa mente.

A conservação é a etapa seguinte do processo da formação das lembranças. Diz respeito à


manutenção, em condição de latência, daquilo que foi fixado. Alguns fatores são conhecidos como
de influência na retenção, através do tempo, dos engramas que estariam “armazenados”. A repetição
do processo de trazer à consciência as imagens ou conhecimentos “guardados” é um deles, pois
sabemos que quanto mais atualizamos uma recordação, mais ela tende a ser conservada. A
associação frequente com outros conteúdos presentes em nossa mente é outro fator que favorece a
conservação dos engramas, como nos mostra o exemplo do homem que, quando criança, aprendeu a
letra e melodia de uma canção que falava de flores, associando-a a roseiras que via diariamente no
quintal de sua casa; na maturidade, passou a ter como hobby cuidar de jardins, sendo que quase todas
as vezes que o ia fazer, a recordação da música surgia espontaneamente em seu pensamento sem que
procurasse conscientemente reativar a lembrança dela, mas a frequente imagem das flores fazia lhe
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surgir na mente a melodia em si, bem como a letra da música. Todavia, pode-se considerar a
conservação não como uma fase mnêmica, mas uma capacidade de poder “pensar de novo” sobre
algo que é o resultado de engramas bem fixados.

A terceira fase do processo mnêmico é a evocação. Essa talvez seja a etapa que identificamos mais
comumente como sendo a manifestação da existência da memória. Corresponde ao retorno, na nossa
consciência, do que foi fixado e conservado, conteúdo que reconhecemos como lembranças. A
evocação pode ser voluntária, mas também espontânea, ou seja, há ocasiões em que imagens do
passado nos vêm à mente sem que estivéssemos com a intenção de trazê-las. É o que ocorre nos casos
dos transtornos de estresse pós-traumático, onde cenas de um evento infeliz invadem, às vezes de
forma frequente, a consciência da pessoa que na verdade gostaria de não lembrá-las. Por outro lado,
nem tudo que é fixado e conservado será evocado, como nos mostra o fato de que experiências
traumáticas também podem, ao invés de ser lembradas com sofrimento, ficar bloqueadas para a
evocação, embora seu conteúdo esteja latente na memória, como nos mostram os casos em que,
mediante hipnose ou durante um processo psicoterápico, constata-se o retorno das lembranças
aparentemente perdidas. Um fenômeno mais corriqueiro mostrando que nem tudo que está fixado e
conservado em nossa memória pode ser evocado é quando queremos lembrar algo que estudamos ou
sabemos ter conhecimento e, no entanto, não conseguimos trazer seu conteúdo mnêmico à mente. Às
vezes, até a lembrança está “na ponta da língua”, mas não há a evocação, e nem sempre recobramos
rápido ou facilmente o que está esquecido.

Um exemplo literário de que muitas vezes não é possível evocar voluntariamente aquilo que está bem
fixado e conservado é o clássico relato que nos é dado por Marcel Prost, em sua obra “Em Busca do
Tempo Perdido”. O autor tinha uma lembrança muito vaga de umas poucas passagens de sua infância,
num pobre repertório de recordações. Sabia, todavia, que havia vivenciado muitos acontecimentos e
sentimentos nesse período de sua vida; todavia, essas experiências estavam quase que completamente
esquecidas, e, delas, poucas recordações podia lembrar-se. No entanto, ao provar um bolinho
chamado “madalena”, primeiro sentiu forte sensação prazerosa sem entender por que, e, momentos
depois, lhe vieram à mente uma enxurrada de nítidas e detalhadas lembranças de sua infância: a velha
casa cinzenta de fachada para a rua onde residia o escritor, seu quarto de dormir, os jardins nos fundos,
a imagem da praça aonde ia com frequência, a igreja, as ruas pelas quais caminhava, a “boa gente”
da região e suas pequenas moradias e várias outras recordações da cidade em que morara quando
criança, inclusive reminiscências de dias e noites ali vividas. O saborear o bolinho no presente, serviu
de estímulo para, involuntariamente, recordar-se, primeiro, que comia tal guloseima preparada por
uma tia em seu passado, e, posteriormente, de um mundo de lembranças que parecia estar esquecido
(PROST apud NEMIAH, 1976).

É importante lembrar que existem aptidões naturais em certas pessoas para fixar, conservar e evocar
os engramas de maneira mais precisa e melhor que a maioria. Sabemos que umas memorizam com
mais eficácia e facilidade que outras, às vezes desde criança. Há também aquelas que têm aptidões
mnêmicas mais específicas, a exemplo das que gravam e recordam, extraordinariamente bem,
músicas que ouvem, enquanto outras têm facilidade com a memorização de informações matemáticas
ou com imagens visuais. O eidetismo, chamado popularmente de “memória fotográfica”, que já
falamos quando estudávamos sensopercepção, é também um fenômeno mnêmico (mostrando mais
uma vez o quanto, na prática, as funções psíquicas estão integradas): uma pessoa entra em contato
por alguns segundos com a imagem de um quadro e logo em seguida forma a representação mental
do mesmo, mas com enorme riqueza e precisão de detalhes, podendo, de olhos fechados, descrever
minuciosamente a imagem registrada em sua mente.

E aqui vem a questão dos esquecimentos. Por que eles nos surgem? Suas causas podem estar presentes
em alguma das três fases do processo mnêmico. Se houver desmotivação, sonolência, falta de atenção
ou preocupações no momento da fixação, é obvio que, não havendo boa retenção do que se pretende
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gravar, posteriormente não haverá recordação satisfatória. Mas, algo pode não ser lembrado pelo fato
de, passado muito tempo após a fixação, não ter sido conservado em decorrência do desgaste dos
elementos mnêmicos, como no exemplo de uma criança que decora determinada poesia, apresenta-a
em sua escola (portanto houve fixação), todavia, não voltando mais a reativá-la em sua mente,
esquece-a por completo, não conseguindo lembrar de nenhum dos versos do poema quando em sua
vida adulta. Por fim, conforme já vimos, um bloqueio da evocação pode ser a causa da não lembrança
de um acontecimento desagradável.

Embora não seja sinônimo de inteligência, a memória é uma função cognitiva importante para o
desempenho intelectual. Todavia, uma pessoa pode não ter boa memória e ser inteligente. Por outro
lado, alguém com retardo intelectual pode ter excelente memória. Os chamados idiot savants são
pessoas com deficiência intelectual, mas que chamam atenção devido à memória bastante
desenvolvida, muitas vezes para estímulos e conteúdos específicos. Maudsley, pesquisador inglês,
relata o caso de um indivíduo com retardo mental que após ler toda uma página de um jornal,
conseguia repetir, na íntegra, tudo o que lera (MAUDSLEY apud DELGADO, 1969). Bleuler
conheceu também um deficiente intelectual que era capaz de ouvir um sermão e em seguida repeti-
lo, sem, todavia, compreender o que falava (BLEULER apud DELGADO, 1969). Vários casos
semelhantes são descritos na literatura e muitos professores sabem de crianças capazes de “decorar”
um assunto de prova sem entender ao certo o que fixaram.

3. LEI DA REGRESSÃO MNÊMICA DE RIBOT

Segundo Ribot, pesquisador francês do século XIX, o declínio progressivo da memória ocorre no
sentido das recordações instaladas mais recentemente para as mais antigas. Por exemplo, muitos
idosos, ao tentar lembrar fatos ocorridos há pouco tempo ou informações que lhe passaram em
período recente, podem ter dificuldades de recordar tais impressões mnêmicas. Às vezes, não
lembram muito bem de compromissos acertados há dias atrás ou das instruções lidas recentemente
sobre a utilização de um computador ou outro instrumento tecnológico atual. Mas conseguem,
todavia, recordar, muitas vezes com precisão, fatos, informações e instruções do passado remoto.
Lembram, inclusive com corretos detalhes, acontecimentos de sua infância, adolescência e juventude.
Tal forma de declínio é um processo gradativo e fisiológico ligado à memória do ser humano,
provavelmente relacionado ao fato de que a fixação é a primeira fase mnêmica a ficar comprometida
no envelhecimento de cada pessoa. Lógico, há variações individuais, idosos que apresentam boa
memória, inclusive para fatos recentes, mas, em alguma época tardia da vida, deverá ser sentida a
dificuldade de memorização, perdendo-se primeiro os engramas formados mais recentemente e
posteriormente os consolidados há muitos anos. Em contrapartida, nas crianças, a fixação (e posterior
conservação) tende a ser feita bem mais facilmente, sendo inclusive conhecida a maior facilidade com
que aprendem idiomas, em contraste com a comum dificuldade que os idosos têm nesse tipo de
aprendizado.

Todavia, essa chamada Lei da Regressão Mnêmica de Ribot, é mais notória no declínio patológico
da memória. Veja-se os casos de Doença de Alzheimer, por exemplo. Muitas vezes, num rápido
período de alguns anos, a pessoa vai de uma dificuldade de fixação para as informações e
acontecimentos que recebe nos últimos meses ou semanas (estando preservada a memória para
épocas remotas) até um estado de impossibilidade de recordar também fatos e informações antes
bem consolidadas na mente. Não é incomum, nessa doença, o indivíduo ter dificuldades ou nada
lembrar o que fez durante a manhã do dia da entrevista com seu médico, não reconhecer pessoas
que lhe foram apresentadas recentemente ou não gravar uma série de três palavras que lhe são dadas
compassadamente em um teste simples de memória, no entanto, lembrar e fazer relatos detalhados
de acontecimentos antigos de sua existência. Com o tempo, todavia, comprovando a Lei de Ribot,
as lembranças mais remotas da vida adulta e posteriormente da juventude, às vezes até da
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adolescência e infância, vão sendo apagadas nessa sequência (do mais recente para o mais antigo).
Há casos em que praticamente apenas algumas das recordações da época de criança são preservadas,
com a pessoa vivendo como que naquele período infantil. Ou seja, o declínio progressivo do s
conteúdos mnêmicos se dá no sentido inverso da ordem seguida para adquiri-los. Aquilo que foi
memorizado por último, declina mais rapidamente, enquanto o que se gravou há muito tempo,
declinará posteriormente.

Mas outro aspecto da lei enunciada por Ribot, talvez menos lembrado que o do declínio das
recordações precoces e antigas, é que, segundo tal pesquisador, as lembranças sobre informações
mais complexas são afetadas mais precocemente que aquelas referentes a questões simples. Por
exemplo, a recordação de um poema com difíceis versos abstratos é geralmente esquecida primeiro
que a lembrança da pequena e objetiva letra de uma música infanto-juvenil, adquirida na mesma
época que a da poesia mais complexa. Por fim, a Lei de Ribot também enuncia que as lembranças
menos organizadas são esquecidas primeiro que as de maior organização, como se pode observar
mediante o fato de uma sequência de letras sem ordem alfabética ser esquecida mais facilmente
quando comparada com outro conjunto ordenado alfabeticamente.

Em resumo, a Lei da Regressão Mnêmica de Ribot, embora formulada há mais de um século, continua
válida, e basicamente enuncia que o declínio progressivo da memória se faz (1) das recordações mais
recentes para as antigas, (2) das mais complexas para as simples, e (3) das menos organizadas para
as mais organizadas.

4. AS FORMAS (TIPOS) DE MEMÓRIA

Sob o ponto de vista da neuropsicologia, a memória pode ser classificada de acordo com o tempo de
aquisição-reativação dos elementos mnêmicos. Sob esse prisma, apresenta-se em forma de três tipos
básicos: memória sensorial, memória de curto prazo e memória de longo prazo. Esse modelo
baseia-se também na concepção de que as informações recebidas pela mente são transferidas de cada
um desses estágios para o outro, daí esta classificação poder ser chamada também de modelo de
estágios de memória.

O esquema abaixo pode nos facilitar a compreensão dos tipos de memória.

SENSORIAL
(curtíssimo prazo)

TIPOS DE MEMÓRIA
(De acordo com modelo CURTO PRAZO
de estágios de memória) EPISÓDICA
EXPLÍCITA

LONGO PRAZO SEMÂNTICA


(recente ou remota)
IMPLÍCITA
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Memória sensorial, também chamada de memória imediata ou de curtíssimo prazo, capta as


informações que nos chegam à mente e as retêm por um brevíssimo espaço de tempo, geralmente
alguns segundos. Esse tipo de memória está intimamente ligado à sensopercepção, sendo, inclusive,
comparada a uma “máquina fotográfica interna”, que continuamente registra “fotos” dos estímulos
circundantes, mas, quase instantaneamente, as fotografias desaparecem para ser substituídas por
novas imagens. A memória sensorial também está ligada ao processo de atenção, com o qual interage.
Vemos um exemplo dessa memória de curtíssimo prazo quando lemos na lista telefônica um
determinado número e, em seguida, já sem olhá-la, retemos aquele número num tempo suficiente para
discá-lo no telefone; segundos depois, quando tentamos nova discagem, nos damos conta de que
precisamos observar novamente a lista, pois a lembrança da sequência numérica praticamente já
desapareceu. A informação que passou pela memória sensorial, se foi um pouco mais focalizada pelo
trabalho da consciência, pode migrar para o segundo tipo de memória.

Memória de curto prazo é a capacidade que nossa mente tem de reter informações por um período
maior que aquele da sensorial, mas ainda com duração pequena, abrangendo alguns minutos. Assim,
quando atentamos melhor para uma informação ou estímulo que recebemos, podemos
posteriormente, instantes depois, trazê-lo de volta a nossa consciência como lembrança de curto
prazo, desde que um tempo mais prolongado não nos afaste muito do momento em que a informação
ou estímulo foi captado. Testes de repetição imediata de palavras ou números que nos são dados
podem avaliar nossa memória sensorial; já a memória de curto prazo é avaliada quando podemos
recordar aqueles números ou palavras após alguns minutos, embora, hora depois, não consigamos
mais trazê-los à mente. Uma circunstância importante em que observamos nossa memória de curto
prazo é quando lemos um texto e, ao chegarmos ao seu final, ainda mantemos a lembrança do princípio
do mesmo, tornando a sua compreensão possível como um todo. No exemplo do início deste capítulo,
o homem com distúrbios de memória devido a envenenamento por gás tinha dificuldades de responder
perguntas mais longas; isso porque quando o conteúdo da indagação chegava ao fim de uma frase um
pouco extensa, o paciente já tinha esquecido parte do que continha o início da mesma, mostrando o
comprometimento da memória de curto prazo.

Memória de longo prazo diz respeito ao armazenamento de engramas por longo período de tempo.
As informações gravadas nesse estágio podem referir-se a fatos ocorridos há 10 minutos ou há 10
anos, tendo sido devidamente armazenadas (HOCKENBURY, 2003). Pode-se então falar de memória
de longo prazo para acontecimentos e informações obtidas mais recentemente e para aqueles mais
remotos. Quanto mais elementos de uma boa fixação estiverem atuantes no momento em que uma
informação é recebida, maior será a probabilidade dela passar da memória de curto prazo para a de
longo prazo. Para essa transferência, outro procedimento também utilizado é a conservação dos
engramas pela “manutenção por repetição” do material que pretendemos “armazenar”, ao utilizarmos
a repetição mental ou verbal deles.

A memória de longo prazo por sua vez pode ser classificada em dois tipos básicos: explícita (ou
declarativa) e implícita (ou não declarativa).

A primeira se refere a informações ou conhecimentos que podem ser explicitados, “declarados”


através do pensamento consciente. O conteúdo desse armazenamento inclui a chamada memória
episódica, eventos pessoais autobiográficos (lembranças do casamento de meu irmão, do que fiz
ontem, de um acontecimento na escola) e também a memória semântica, lembranças de
conhecimentos gerais (conceitos e informações comumente compartilhadas culturalmente, como uma
“enciclopédia pessoal” de nossa mente, a exemplo dos dados referentes à história, matemática ou a
enunciados psicológicos).
121

Já a memória implícita (ou de procedimento) é fenômeno concernente aos conteúdos de longo prazo
ligados ao aprendizado do fazer ações automáticas, mas que comumente não são (ou não podem) ser
expressas verbalmente ou mesmo em pensamentos conscientes, daí serem também chamadas de “não
declarativas”. Assim, na memória de uma pessoa, está armazenado como digitar um texto, tocar
violão, dar um laço no cordão de um sapato, andar e manejar habilmente uma bicicleta, mas são
informações que não se está pensando nelas nem se explicita a presença de típicas recordações. A
memória implícita é indispensável para a boa execução de nossas habilidades.

Em termos de áreas do Sistema Nervoso Central ligadas aos processos mnêmicos, acredita-se que
uma região importante é o hipocampo, estrutura subcortical pertencente ao sistema límbico,
provavelmente responsável pela transferência dos conteúdos da memória de curto prazo para a de
longo prazo, bem como pela codificação de conteúdos ligados à memória explícita. O hipocampo
funcionaria como um “depósito” transitório de engramas, que logo seriam transferidos para regiões
do córtex cerebral (principalmente as áreas frontais e temporais), essas funcionando como arquivo
mais permanente de lembranças. É sabido que pessoas com lesão no hipocampo e áreas próximas
mostram que a capacidade de formar novas memórias explícitas acha-se bastante comprometida, mas
não está alterado o desempenho de tarefas relacionadas à memória implícita, sugerindo que esses dois
tipos de memória estão ligados a diferentes regiões do cérebro. Pacientes com certas doenças
organocerebrais, como a Coréia de Huntington, por exemplo, que comprometem determinados
agrupamentos de corpos celulares neuronais, os chamados “gânglios ou núcleos da base” (e circuitos
neurológicos associados), prejudicam a aquisição do aprendizado relacionado a elementos da
memória implícita, fazendo-se acreditar que essas estruturas cerebrais estejam relacionadas com tal
tipo de memória.
As pesquisas relacionando memória e estruturas cerebrais evoluíram muito nas últimas décadas, mas
demarcações precisas de localizações das funções mnêmicas ainda parecem estar longe de conclusões
mais definidas. Técnicas de imagens cerebrais começam a contribuir para esse estudo, a exemplo da
tomografia por emissão de pósitrons (ou PET scan), método que produz informações do cérebro em
atividade durante tarefas diferentes, inclusive cognitivas, como a realização de um exercício de
memória. Durante essa tarefa, áreas múltiplas do cérebro são ativadas e observadas na imagem PET
scan, constatando-se uma maior atividade na área do hipocampo (HOCKENBURY, 2003).

5. AMNÉSIAS TOTAIS E PARCIAIS – ANTERÓGRADAS E RETRÓGRADAS

Voltando ao tema central deste capítulo, definimos a amnésia como uma perda significativa da
memória. Significativa no sentido de ser algo de proporções maiores que um mero esquecimento,
déficits de memória mais abrangentes ou frequentes que nossos lapsos mnêmicos do dia a dia, enfim,
um fenômeno ligado a comprometimento cognitivo no sentido psicopatológico do termo, prejudicial
ao satisfatório funcionamento do psiquismo.

As amnésias variam em gradações, desde o esquecimento fragmentário sobre um período de tempo


até a perda completa das lembranças desse período. Como já falamos ao darmos o exemplo do
serralheiro que sofreu envenenamento por gás, ali tínhamos uma amnésia total, no sentido de que o
homem esqueceu completamente os acontecimentos de um período de quatro anos, ou seja, houve
uma ausência total de lembranças para aquele espaço de tempo. Mas se ele tivesse algumas vagas
recordações de fatos ocorridos no referido período, embora com esquecimento para a maior parte
deles, então diríamos que houve uma amnésia parcial. Os autores de psicopatologia preferem muitas
vezes usar o termo hipomnésia para esses casos.

Algo diferente é classificarmos as amnésias (sejam totais ou parciais) em três tipos básicos: as
anterógradas, retrógradas e retroanterógrada, conforme mostrado em quase todos os livros de
122

psicopatologia, tendo isso um reconhecido valor prático, inclusive para o diagnóstico de vários
transtornos mentais e seu planejamento terapêutico.

AMNÉSIA ANTERÓGRADA

Amnésia anterógrada diz respeito a um tipo de amnésia em que os conteúdos impossibilitados de ser
rememorados são os que se estendem para o período de tempo posterior à causa da amnésia, ficando
preservada a lembrança dos fatos anteriores a essa causa (que no caso da amnésia anterógrada, quase
sempre é orgânica). Ocorre uma incapacidade total ou parcial de se formarem novas memórias,
parecendo que o distúrbio se dá por conta de um comprometimento na fase da fixação mnêmica. O
termo anterógrado pode ser entendido como “adiante”, “mover-se para frente”. O caso do serralheiro
é um exemplo disso. Ele esquece os fatos ligados ao acidente com gás e os novos acontecimentos que
ocorrem daí em diante, podendo, todavia, lembrar os que precederam ao dano cerebral. Outros casos
como esse são observados na prática e citados na literatura científica.

A história de H.M. é outro exemplo de amnésia de fixação que foi bem estudado em meados do século
passado, tendo o mérito de trazer a questão da localização cerebral nesse tipo de distúrbio. Tratava-
se de um jovem com epilepsia grave, cujas crises, que não cediam a tratamentos convencionais,
começaram aos 16 anos. A localização do cérebro de onde partiam as descargas epileptógenas estava
ligada à parte do lobo temporal e ao hipocampo. Foi então realizada, como última instância de
tratamento, cirurgia cerebral que removia tais áreas, o que fez a frequência e intensidade das crises
diminuírem significativamente. Todavia, H.M. passou a apresentar intensa amnésia de fixação. Por
exemplo, tinha que ser “reapresentado” a seus médicos constantemente, mesmo os que lhe tratavam
por alguns anos, pois se cada um deles saísse dos aposentos de H.M. após consulta e voltasse cinco
minutos depois, ele não o reconheceria nem lembraria ter tomado contato com o mesmo instantes
atrás. Mas, as lembranças de longo prazo estavam, em grande parte, preservadas. Muitos outros casos
de amnésia anterógrada, necessariamente não tão extensas e graves como nesses dois exemplos
citados, são encontrados após lesão do hipocampo e estruturas cerebrais relacionadas. Como já
vimos, essas áreas provavelmente são as responsáveis pela codificação de conteúdos ligados à
memória explícita (bem como transferência da memória de curto prazo para a de longo prazo),
consolidando o material fixado, processo que não ocorre nas pessoas que têm essas regiões afetadas.
Ou seja, mais uma vez o hipocampo e estruturas afins parecem ser essenciais para o processo da
fixação (HOCKENBURY, 2003).

Dentro da proposta de estudarmos psicopatologia e comentarmos filmes que ilustrem alguns


pontos que vão sendo abordados, trouxemos para ilustração de amnésia anterógrada, Amnésia
(Memento,2000), trabalho do diretor Christopher Nolan. O filme, para muitos já um cult, mostra
uma amnésia anterógrada que se instala em Leonard (protagonizado pelo ator Guy Pearce), a
partir de forte e grave pancada na cabeça, quando sua casa é invadida por dois assaltantes que o
agridem, estupram sua esposa e a assassinam, segundo ele conta durante o desenrolar da história.
Na luta mata um dos homens, mas o outro foge. Após tal acidente, suas lembranças desaparecem
transcorridos alguns minutos, de forma que logo esquece o que fez ou falou há momentos atrás;
todavia, recorda-se dos fatos acontecidos antes da tragédia que o acometeu. Apesar do
significativo comprometimento da memória, Leonard dedica sua vida para encontrar e vingar-se
do assassino, sendo que nesse período mantém contato com personagens que ora parecem querer
lhe ajudar, mas em certos momentos o filme sugere que querem aproveitar-se dele e todos
parecem suspeitos. Para compensar o déficit mnêmico, Leonard utiliza métodos pouco usuais,
como bater fotos de tudo e de todos através de sua sempre presente máquina Polaroid (de
impressão imediata), escrever informações nelas e conferir quem são as pessoas que se
relacionam com ele, consultando as fotos e observações quando tais personagens lhe surgem.
Passa também a escrever, em forma de tatuagem pelo seu corpo, fatos que considera importante,
também as consultando frequentemente. Mas, há uma história paralela que tem muita importância
123

no entendimento do filme. Quando era investigador de seguros, Leonard teve que se encarregar
do caso de um homem que sofrera acidente e, supostamente, também apresentara amnésia
anterógrada, onde ele deveria investigar se havia de fato comprometimento organocerebral ou
simulação da parte desse homem. Sua mulher, muito angustiada, em consulta a sós com Leonard,
diz querer saber a opinião dele acerca do marido: este, no íntimo, seria como que outra pessoa,
sem memória e que ela teria que se adaptar a uma nova convivência ou estaria simulando um
déficit mnêmico até para a esposa? Demonstrando não estar satisfeita com a afirmativa do
investigador, que lhe comunica achar, em sua opinião, não haver impedimento físico para o que
se passava com o homem, a mulher resolve “testar” o esposo. Sendo ela diabética e tendo que
tomar insulina injetável, planeja pedir ao marido, a cada 15 minutos, para lhe administrar a
injeção. Se ele a administrasse ininterruptamente todas as vezes que ela pedia, provocando
automaticamente intoxicação na mulher, indicaria que de fato não estava lembrado que já
executara o procedimento há momentos atrás. É o que ocorre, causando o colapso e coma da
mulher, que vem então a falecer, para desespero do homem, que não entendia o que se passara.
Essa lembrança de Leonard, acerca de outro caso de amnésia anterógrada, tem suma importância
para a compreensão da trama. O interessante é que o filme não se passa em tempo linear, mas a
história está embaralhada de acontecimentos em forma de flashbacks e, principalmente, contada
com cenas movidas no sentido não cronológico, passadas de trás para frente. Certas informações
comunicadas por Leonard, ao longo do filme, são contraditórias com outras prestadas pelas
demais personagens, o que confunde o espectador e levanta até questões filosóficas sobre a
verdade. Em determinados momentos pode-se observar uma cena trazida por Leonard, mas em
seguida, quando o filme retrocede e mostra o que ocorreu um pouco antes (instante já esquecido
pela personagem), traz revelações que deixa surpreso o espectador. Torna-se necessária muita
atenção para podermos fazer as devidas interligações entre os fatos e personagens trazidos pelo
enredo, mas o resultado final é surpreendente e interessante.

Muitas vezes, a impossibilidade de fixação acarreta o aparecimento de mais dois sintomas interligados.
Um deles é a desorientação no tempo e no espaço, ou seja, a pessoa não consegue atentar e fixar ao
certo onde se encontra nem tampouco o dia, mês ou ano em que está vivendo, até porque há uma tendência
de se situar apenas numa data que para no tempo, diferente da data real do calendário, já que ocorre
ausência de lembranças do passado recente. O outro sintoma que comumente acompanha a amnésia de
fixação é a fabulação (ou confabulação), que é o surgimento de histórias narradas pelo paciente que
parecem ser criadas inconscientemente para preencher o “vazio” mnêmico que a amnésia acarreta, não
havendo intenção de mentir ou enganar as pessoas que o ouvem.

Essas fabulações podem até ser estimuladas e direcionadas, pois não há aquela convicção e
irredutibilidade que encontramos nos delírios. Por exemplo, se um homem não lembra fatos recentes
devido à amnésia de fixação e “cria” a história que está na sua mansão, saindo diariamente para
reuniões empresariais e resolvendo negócios financeiros (na verdade acha-se num hospital e não se
ausenta do mesmo há semanas, não tendo os encontros e atividades que “lembra” ter), ao se afirmar
para ele que tem saído recentemente apenas para ir a divertimentos, como cinema e teatro (dados
também não verdadeiros), pode logo concordar e até dar nomes às casas de espetáculos que tem
frequentado. Na composição das fabulações, às vezes o paciente utiliza informações de fatos passados
há anos, mas que não correspondem aos acontecimentos atuais. Seria o caso, no exemplo acima, dele
mencionar o nome verdadeiro de um antigo e famoso cinema, hoje não mais existente, para compor
suas fabulações, bem como se referir a filmes e peças teatrais que assistiu há décadas.

Essa tríade sintomatológica (amnésia de fixação, desorientação temporoespacial e fabulações), é


chamada de Síndrome de Korsakoff (nome alusivo a um dos primeiros cientistas que descreveu esse
fenômeno). Lembrar que o termo síndrome se refere a um conjunto de sintomas que tendem a estar
associados.
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A amnésia anterógrada (acompanhada ou não de síndrome de Korsakoff) pode ser encontrada em


casos de comprometimento encefálico provocado por traumatismo craniano, acidente vascular
cerebral, doença de Alzheimer, casos avançados de alcoolismo e outras circunstâncias de base
orgânica que atinjam determinadas estruturas cerebrais.

Mas existem amnésias anterógradas que são restritas apenas a pequenas lacunas de tempo e têm
consequências menos incapacitantes e comprometedoras na vida da pessoa, quando comparadas aos
casos de amnésias com períodos extensos de impossibilidade de fixação. Como exemplo temos o
chamado estado crepuscular, que pode ocorrer como sintoma epiléptico, em que o paciente entra em
crise não convulsiva, a atividade bioelétrica cerebral fica alterada durante certo tempo (inclusive horas),
permanece sem perda total da consciência, mas com significativa diminuição da atenção e da apreensão
do mundo circundante, apresentando aspecto de alheamento ao ambiente, ficando a fixação bastante
comprometida, de forma que posteriormente ele não consegue lembrar os acontecimentos ocorridos
nesse estado crepuscular. Honório Delgado (1969) cita o caso de uma jovem epiléptica que vai a um
passeio de campo com sua família, todavia, antes de sair, começa a ficar um tanto “alterada” e, já no
caminho, refere enjoos e fala insistentemente numa pessoa desconhecida. Não participa da conversa
com os familiares e porta-se como “se não estivesse em si”, como que alheia aos acontecimentos,
inclusive recusando-se a almoçar e jogando a comida fora. Como continuava irritada e “estranha”, a
família interrompeu o passeio. Já em casa, a jovem agrediu com pontapés um empregado, e então se
lhe obrigou a deitar-se. No dia seguinte despertou lúcida e de “bom humor”, não recordando nada do
que ocorrera na véspera, surpreendendo-se por ter cometido as atitudes descabidas, ou seja,
apresentando amnésia para uma lacuna de várias horas, período em que a fixação não ocorreu
satisfatoriamente. A pessoa em estado crepuscular pode até falar e agir como se estivesse com lucidez,
todavia, em um exame mais atento, comumente se observa automatismo de condutas e alheamento do
ambiente. Esses estados foram muito estudados como fenômeno ligado à epilepsia (os chamados
estados crepusculares epilépticos), mas podem surgir em outras patologias organocerebrais, como
traumatismo craneano ou tumores encefálicos, podendo ocorrer também nos transtornos mentais
dissociativos (neuroses histéricas).

AMNÉSIA RETRÓGRADA

A amnésia retrógrada tem como característica a perda da memória para fatos acontecidos
anteriormente à causa da amnésia, podendo ficar preservada a capacidade de fixar novas lembranças.
Ocorre uma incapacidade total ou parcial de evocar fatos que eram lembrados em períodos anteriores
a uma doença, trauma físico ou emocional, daí esse distúrbio ser chamado também de amnésia de
evocação. A palavra “retrógrada” pode ser entendida como “mover-se para trás”, ou seja, a amnésia
atinge as vivências do momento da causa e também muitas lembranças anteriores a esta. Comumente,
abrange um esquecimento relativo a período de tempo circunscrito há alguns dias ou semanas, mais
raramente anos. Há casos, geralmente de origem psicológica, em que a amnésia compromete períodos
de vários anos ou mesmo toda a vida da pessoa.

Na prática, a pessoa com amnésia retrógrada não consegue recuperar lembranças de longo prazo,
fatos, imagens ou vivências que tinham sido registradas como engramas, todavia, o déficit atinge
também a evocação de conteúdos mnêmicos armazenados mais recentemente. Esse tipo de
comprometimento mnêmico é muitas vezes causado por traumatismo craniano, quando a pessoa perde
os registros de momentos antes do acidente em si, bem como de acontecimentos ocorridos nos dias
anteriores ao mesmo. A explicação que se tenta dar para tal amnésia é baseada no fenômeno chamado
de consolidação da memória. Os novos engramas que advêm da memória de curto prazo (e mesmo
as recordações mais recentes de longo prazo) que vão se consolidando como engramas estáveis e
duradouros, podem ser comprometidos nesse processo. Uma analogia comumente feita é que a
consolidação duma memória de longo prazo é como construir uma parede, em que é necessário tempo
para que os tijolos e cimento recém-colocados fiquem consolidados. Na amnésia retrógrada essa
125

consolidação da memória é interrompida por um trauma, lesão ou doença cerebral antes que o
processo mnêmico seja completado. No caso das demências que gradativamente vão se instalando,
como na doença de Alzheimer, vastas áreas do cérebro são comprometidas por uma atrofia
generalizada, e, então, mesmo aqueles engramas mais consolidados vão também sendo atingidos,
todavia, conforme vimos, a Lei de Ribot se faz presente na evolução do quadro clínico, ou seja,
primeiro as recordações de um passado não tão longínquo são perdidas, enquanto as mais
consolidadas no tempo não se perdem ou declinam por último.

AMNÉSIA RETRÓGRADA E ANTERÓGRADA (RETROANTERÓGRADA).

A prática tem mostrado que quando há uma amnésia retrógrada de origem orgânica, há também algum
comprometimento na memória anterógrada, ou seja, uma pessoa com grave traumatismo craniano ou
doença de Alzheimer apresenta déficit de evocação e fixação, sendo incomuns casos de déficit
mnêmico retrógrado “puro”. Isso, frise-se, no caso da amnésia de causa orgânica. Uma pessoa, ao
sofrer acidente com traumatismo craniano, muitas vezes não só esquece o momento do desastre e
acontecimentos que o precederam, ou seja, atividades de horas ou dias antes, mas, também, por outro
lado, tende paralelamente a não reter novas lembranças após o acidente. O termo amnésia
retroanterógrada é muitas vezes empregado na literatura científica. Nesse tipo de ocorrência, com a
melhora do quadro clínico, é possível que o paciente recorde algumas lembranças que até então não
evocava, assim como a capacidade de fixação possa vir a recuperar-se. Todavia, a amnésia retrógrada
de origem psicológica pode ser encontrada sem a presença da anterógrada.

TRAUMA

TEMPO
Memória AMNÉSIA
Conservada ANTERÓGRADA

TRAUMA

TEMPO
AMNÉSIA Memória
RETRÓGRADA Conservada

TRAUMA

TEMPO

AMNÉSIA RETROANTERÓGRADA

No gráfico figurativo acima, temos as três formas básicas de amnésias e suas relações com o trauma-evento
que as produziu. Na sequência, amnésia anterógrada (fixação), retrógrada (evocação) e retroanterógrada
(comprometimento da fixação e evocação).
126

6. AMNÉSIA PSICOGÊNICA

A amnésia psicogênica, aquela de origem basicamente psicológica, comumente é retrógrada,


relacionada com a impossibilidade de evocação, mas mantendo a capacidade de fixação preservada.
O conteúdo e período de tempo esquecidos podem estar relacionados com fatos ligados a sentimentos
desagradáveis, conflitos ou traumas emocionais. Em termos de psicodinâmica, é como se o bloqueio
das lembranças agisse como uma defesa psicológica impedindo que recordações, associadas a
vivências desagradáveis, venham à consciência mobilizando sofrimento. Tal tipo de amnésia pode se
limitar a uma ou várias lacunas de tempo na vida de uma pessoa, mas pode se estender a anos ou até
praticamente a toda a vida, embora isso seja mais raro nessas proporções. Isaias Paim (1982) cita o
caso de uma mulher que apresenta uma “crise nervosa” durante o nascimento do filho, e a partir daí
surge uma amnésia em que não se recorda do parto, do período de gravidez, nem tampouco de seu
casamento desde o dia em que este aconteceu. É possível que um dos fatores que contribuíram para
essa amnésia possa ter sido a experiência sofrida do parto; todavia, outras motivações inconscientes
podem também estar influindo. O próprio casamento não estaria sendo vivenciado como algo
intimamente rejeitado? A gravidez em si, seria acontecimento não desejado? A ideia e o fato de gerar
um filho teriam alguma implicação conflitante? Apesar desses tipos de amnésias estimularem várias
especulações, as relações psicológicas mais concretas só podem ser averiguadas no transcurso de uma
psicoterapia ou de uma avaliação clínica e histórica bem elaborada. Frequentemente, essas amnésias
apresentam início súbito (como nesse exemplo), assim como o fim de tais distúrbios geralmente é
também brusco. Por exemplo, uma pessoa pode reprimir da memória as cenas ligadas a um trauma
emocional, mas em estado hipnótico ou durante uma sessão psicoterápica lhe vir subitamente à
consciência todos os detalhes do ocorrido.

Mais, aqui devemos fazer um comentário sobre a importância que durante muitas décadas foi dedicada a
certa primazia e necessidade da recordação de experiências traumáticas ou conflitantes para que os
pacientes com distúrbios neuróticos melhorassem ou mesmo fossem curados. Por muito tempo, romances
e filmes exploraram essa ideia, que a prática não veio confirmar, pelo menos nas proporções que lhe eram
atribuídas. Muitas vezes, ao que parece, a recordação de conteúdos reprimidos surge como o resultado
da melhora do estado psicológico de uma pessoa, à medida que essa vai conscientizando problemas e
conflitos, trabalhando sentimentos e ideias errôneas sobre os encadeamentos dos fatos, enfim, vá se
produzindo um aprendizado emocional-cognitivo. Enquanto um amadurecimento psicológico ocorre
através de trabalho psicoterápico e o psiquismo assim se fortalece, a repressão das lembranças vai
deixando de ter a função defensiva para o paciente. O objetivo das psicoterapias atuais não está em fazer
o indivíduo “lembrar” experiências traumáticas, mas fortalecer seu existir psicológico. Até porque, muitos
pacientes se recuperam dos problemas psicopatológicos sem ter que lembrar fatos esquecidos no passado;
outros lembram experiências traumáticas ou conflitantes sem que isso produza melhoras do estado
neurótico. A amnésia pode ter causa psicológica, como um trauma ou conflito, mas não é o lembrar do
conteúdo reprimido ligado a essas vivências que vai fazer a pessoa se curar. O lembrar-se é um
instrumento, mas não o objetivo das psicoterapias. Hoje, muitos psicanalistas acreditam que o progresso
de uma terapia não se dá porque houve recuperação de recordações reprimidas, mas estas surgem como
resultado desse progresso (ALEXANDER, 1965).

Há um caso clínico relatado por John Nemiah (1976) que é pertinente resumi-lo aqui. Trata-se de um
homem adulto que se submetia a psicoterapia por conta de ansiedade crônica e incapacidade de manter
relacionamentos afetivo-sexuais duradouros. Sua mãe morrera repentinamente quando ele era ainda
criança. Foi-lhe comunicado inicialmente que ela ficaria ausente por algum tempo, e como ficasse
perguntando constantemente pela mesma, lhe foi informado da verdade. Mas, o paciente não lembrava
nada disso, não recordava de muitos momentos que viveu com a genitora nem tampouco de sentimentos
ligados a ela. Embora esse conteúdo amnésico não fosse algo que o paciente desse importância durante o
início da psicoterapia, foi ficando surpreso de como havia afastado de sua memória pensamentos e
127

sentimentos relacionados à mãe. Com o desenvolvimento do processo psicoterápico, as reflexões e


associações desse homem indicavam que a morte súbita da genitora tinha ligações com suas dificuldades
de apegar-se a alguém, por ter criado uma expectativa de poder ser novamente “abandonado”. Após dois
anos de psicoterapia, numa determinada sessão em que falava dos sentimentos de desconfiança e
amargura que seu pai tinha em relação às mulheres, repentinamente, entre choros e soluços passou a falar
da mãe e dos sentimentos que nutria por ela. Conteúdos cercados de desesperadas emoções que estavam
esquecidos vieram à consciência naquele momento.

Algumas considerações sobre esse relato: vemos um exemplo de amnésia psicogênica, com término
súbito, retrógrada (comprometimento da evocação) e que foi resolvida após dois anos de trabalho
terapêutico, quando muitos conteúdos já deviam estar sendo elaborados, inclusive as dificuldades de
ter relacionamentos afetivos por medo de vir a sofrer nova perda. A sequência parece ter sido:
amnésia psicogênica – elaboração dos conflitos e amadurecimento pessoal – resolução da
amnésia, e não esta última como sendo o que tornou possível o sucesso do trabalho terapêutico.

Uma variação de amnésia psicogênica é a chamada fuga dissociativa. Esta se caracteriza pela
associação de uma amnésia com um distanciamento da pessoa para longe dos locais em que vive,
como casa ou trabalho, inclusive com manutenção dos cuidados consigo mesma (alimentação,
higiene) e interação social simples (compras de passagens, solicitação de informações sobre
percursos). A pessoa pode não lembrar onde mora, trabalha, estuda, se é casada ou não, com quem
reside, etc., e ficar desaparecida de casa, dos familiares e amigos, durante dias, semanas ou até mais
tempo. Em termos de dinâmica psicológica, pode tal comportamento ser uma forma inconsciente de
“fugir” de uma vida e de locais associados a traumas ou conflitos significativos. Comumente, após a
recuperação desse estado, o indivíduo também não recorda dos fatos ocorridos durante a fuga. Há
casos em que a pessoa assume outros nomes, dados pessoais e novas características de
comportamento (expansividade ao invés de isolamento, usar bebida alcoólica quando anteriormente
não o fazia, impulsividade no lugar de autocontrole rígido). Alguns desses casos podem recair no
fenômeno muitas vezes chamado de “dupla personalidade”, pouco comum na vida real, mas que a
literatura, filmes e novelas exageraram em suas características e frequência.

7. A EXTENSÃO DE UMA AMNÉSIA – O PERÍODO DE TEMPO COMPROMETIDO

Pelos comentários e exemplos até aqui apresentados, fica claro que há amnésias abrangendo um longo
espaço de tempo – vários meses, anos, toda a vida; outras se resumem a um período de horas ou dias
sobre os quais não se consegue lembrar nada ou quase nada. As primeiras podem ser chamadas de
maciças, em contraposição às de curto período, conhecidas como lacunares.

Um conhecido exemplo de amnésia lacunar é o chamado blackout (ou palimpsesto) alcoólico. Depois
de beber quantidade excessiva de álcool, a pessoa (dependente ou não), ao recobrar a lucidez
(geralmente no dia seguinte), não lembra o que fez enquanto estava alcoolizada. Tal ocorrência muitas
vezes é considerada como um sintoma precoce para o diagnóstico de alcoolismo. Há tentativas de
explicação para tal fenômeno, como a hipótese de disfunções cerebrais em áreas ligadas à memória
provocadas pelo uso prolongado do álcool, mas também pode se associar tal amnésia à repressão
psicológica, em que primeiro a pessoa teria, com a “ajuda” da bebida, comportamentos que lhes seriam
vergonhosos ou condenáveis socialmente, para, posteriormente, pela ação inibidora do álcool no SNC,
bloquear as lembranças daqueles comportamentos que poderiam gerar culpa. O termo palimpsesto se
refere aos manuscritos escritos em pergaminho (idade média, antes da invenção e disseminação do uso
do papel); como havia escassez daquele material, cada palimpsesto era utilizado reescrevendo-se duas
ou três vezes, mediante a raspagem do texto anterior. Temos o exemplo de um homem de meia idade,
normalmente não transgressor de regras sociais, que quase todas as vezes que se excedia na quantidade
de bebida alcoólica, abordava sexualmente as mulheres que estavam presentes em um encontro social,
128

fazendo isso ostensivamente, inclusive na presença dos maridos delas e da sua própria esposa, criando
frequentemente situações constrangedoras; posteriormente, bastante envergonhado, ouvia o relato do
que fez enquanto alcoolizado, tendo inclusive dificuldades em aceitar ter cometido os atos não
lembrados por ele. Às vezes, passava semanas sem ingerir bebida alcoólica no intuito de evitar as
ocorrências desagradáveis, mas como já tinha certo grau de dependência, tornava a “beber” e a reincidir
nos episódios de blackouts.

Um filme que ilustra amnésia maciça é A Identidade Bourne (The Bourne Identity, 2002), do diretor
Doug Liman, trabalho tecnicamente bem feito, baseado em livro do escritor estadunidense Robert
Ludlum. No filme, vemos um fictício exemplo de amnésia, mas que serve para algumas considerações
didáticas. Um homem (o ator Matt Damon) é encontrado por um barco pesqueiro no Mar
Mediterrâneo, entre a vida e a morte, com algumas balas pelo corpo. Com a assistência de um médico
aposentado, vai se recuperando, mas observa-se que está com amnésia maciça, não se recordando de
todo o seu passado. Vai colhendo dados que indicam ser seu nome Jason Bourne, residente em Paris.
Sem entender por qual razão, passa a ser perseguido por profissionais armados e violentos ao longo do
filme, quando demonstra possuir habilidades em luta e autodefesa, além de outros comportamentos
ligados à memória implícita (sugerindo que esta não estava comprometida, mas só a declarativa
achava-se afetada). Havia também preservação da capacidade de fixação. Na versão em DVD o
filme traz uma sessão de complementos extras, como o “Diagnóstico Bourne”, onde, didaticamente,
são dadas informações sobre a amnésia da personagem, no caso, amnésia dissociativa
(psicogênica). Jason desejava intensamente saber quem ele era, lembrar seu passado, o que fez ou
faz na vida. No entanto, como se observa ao longo do filme, a amnésia maciça surge com dinâmica
oposta, ou seja, Jason, na verdade um profissional que assassina pessoas dentro de um contexto
político (que envolve a CIA), passa a não aceitar a missão de matar um importante homem de
projeção pública, missão essa que é fracassada quando, numa determinada cena, ele hesita em
assassinar tal personagem, como uma forma inconsciente de recusa pelo que está fazendo. Não só
ocorre uma recusa de concretizar o assassinato provocando o fracasso do plano que o levaria a esse
crime, como também a negação psicológica de se aceitar pelo que ele é, eliminando da memória
sua história. Seu consciente quer saber quem é Jason, mas o inconsciente, no sentido oposto,
bloqueia as lembranças de uma vida conflitante. O filme lembra também que, apesar da ocorrência
de alguns fatores orgânicos presentes no contexto de surgimento de uma amnésia (como ser baleado
e perda da consciência em um quase afogamento), estes muitas vezes não constituem a causa básica
do comprometimento mnêmico, mas funcionam talvez como elemento facilitador ou desencadeante
de uma amnésia psicogênica. As perseguições com as personagens correndo a pé pelas ruas e ruelas
das cidades ou através de carros em desgovernadas velocidades dão ao filme um caráter de thriller
que prende atenção do espectador, associado à trama por entre os bastidores da CIA que vai
surgindo no desenrolar do roteiro. Achamos que nas duas continuações da estória – os filmes “A
Supremacia Bourne” e “O Ultimato Bourne” – as perseguições, as tramas e as sequências de
comportamentos das personagens vão ficando um tanto repetitivas, e o primeiro da série, no caso a
“Identidade Bourne”, nos parece ser a parte mais interessante da trilogia. Em termos de alterações
da memória, as duas continuações servem para enfatizar o sentimento de culpa que vai se formando
em Jason ao lembrar-se das mortes que cometeu em seu passado, contribuindo para a amnésia da
personagem.

8. A EVOLUÇÃO (CURSO) DA AMNÉSIA: REVERSÍVEL OU IRREVERSÍVEL?

Os conteúdos que foram apagados da memória podem voltar a ser lembrados posteriormente? Há
reversibilidade nas amnésias? Muitos casos demonstram que sim, principalmente aqueles com
impossibilidade de evocação por causas psicológicas, alteração, essa potencialmente reversível,
inclusive através da hipnose. Todavia não podemos traçar uma relação simplista de que essas
amnésias seriam reversíveis, enquanto as de origem orgânica pertenceriam à categoria de
129

irreversíveis. Até porque nem tudo que é reprimido psicologicamente e lançado ao campo do
inconsciente, um dia será relembrado. O fato de algo ter sido, no passado, fixado em nossa mente e
permanecer conservado não quer dizer que consequentemente poderá ser evocado. Por outro lado, se
é verdade que em muitos casos de amnésia orgânica o conteúdo mnêmico definitivamente foi perdido
(como se observa na Doença de Alzheimer ou outros estados demenciais), há exemplos mostrando a
possibilidade de serem recuperados, mesmo com a causalidade claramente organocerebral, embora
num processo lento e gradual de recuperação. Lesões cerebrais circunscritas e de instalação aguda,
como traumatismos craniencefálicos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs) podem apresentar
amnésia reversível, ao contrário dos casos de destruição mais generalizada de tecido nervoso, visto
na Doença de Alzheimer.

Em trechos de um caso clínico de Koempfen (KOEMPFEN apud PAIM, 1982), observa-se a


recuperação de um paciente que sofreu trauma craniano e apresentou quadro de amnésia:

Um oficial de meu regimento encontrava-se em exercícios quando caiu do cavalo, batendo


fortemente com a cabeça no solo. Houve comoção, seguida de ligeira síncope. Quando voltou
a si, tornou a montar o cavalo “para dissipar uns restos de atordoamento” e continuou a sua
lição de equitação durante três quartos de hora com uma grande regularidade. Contudo, de
quando em quando dizia ao professor: “Sinto-me como se estivesse despertando de um sonho.
Que me aconteceu?” Levaram-no para casa. Como habitava na mesma casa que o doente, fui
chamado a vê-lo imediatamente. Estava de pé, reconheceu-me, cumprimentou-me como de
costume e disse: “Parece-me que estou a despertar de um sonho. Que foi que me aconteceu?”
Procurei observá-lo de hora em hora. Toda vez que voltava para examiná-lo, o enfermo
julgava ver-me pela primeira vez. Não se recordava de nenhuma das prescrições médicas que
tinha seguido até então. [...] Oito horas depois do acidente, o enfermo lembrava-se de me ter
visto uma vez. Duas horas e meia mais tarde, ele não esqueceu nada do que lhe foi dito. A
memória foi voltando gradualmente. No dia seguinte, após uma noite de sono tranquilo,
começou a recordar-se de alguns fatos, porém, tudo quanto fez, viu e ouviu no dia anterior,
antes da queda, ignora-o ainda hoje, isto é, não tem conhecimento disso por si mesmo, mas
só por testemunhos.

Nesse caso, apesar da remissão da memória não ser completa, observa-se o contraste com o exemplo,
igualmente de causa orgânica, do serralheiro (no início deste capítulo) que também perdeu a
capacidade de fixação; todavia, assim permaneceu através dos anos, sugerindo amnésia irreversível.
No caso visto agora, a recuperação já era significativa um dia depois do trauma físico, exemplificando
curso reversível do déficit mnêmico.

Na prática clínica, há descrições de casos em que o paciente, após traumatismo craniano ou AVC, não
consegue lembrar-se de acontecimentos que se passaram há horas ou dias antes do acidente, nem fixar
fatos ocorridos após o mesmo (amnésia retrógrada e anterógrada), mas aos poucos pode ir recuperando a
memória para muitas ocorrências, lembrando primeiro aquelas distantes do dia do AVC ou traumatismo
encefálico, e, posteriormente, algumas mais próximas a esse evento organocerebral.

Todavia é importante frisar que nem sempre se pode afirmar, a priori, se um determinado caso é de
amnésia reversível ou irreversível, exceto em doenças cuja evolução é reconhecidamente, até o estado
atual das pesquisas, sem retorno de recuperação (como na Doença de Alzheimer). Mas, em vários
outros, com o passar do tempo é que podemos concluir, com maior precisão, da reversibilidade ou
não da amnésia.

Também é necessário atentar, quando lidamos com os termos reversível e irreversível, para o sentido
que um autor está a se referir com os mesmos. A reversibilidade tratada é do conteúdo esquecido ou
da função mnêmica que foi restabelecida? Numa amnésia anterógrada após um trauma craniano, o
conteúdo correspondente a alguns dias de apagamento mnêmico pode estar perdido definitivamente,
130

pois nada foi fixado de forma suficiente para uma posterior evocação, todavia, a função da memória
em termos de fixação pode voltar ao normal em sua capacidade de gravar novas lembranças. O dano
em relação à função mnêmica foi reversível, mas não o conteúdo dos fatos esquecidos, esse não foi
mais resgatado. O caso do serralheiro, após quatro anos de amnésia, sugere uma irreversibilidade,
tanto para o conteúdo mnêmico quanto para a volta ao normal da capacidade de fixação.

9. CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS AMNÉSIAS

Podemos sistematizar os diversos tipos de amnésia que vimos em uma classificação geral desses
déficits mnêmicos, conforme os esquemas abaixo:

TOTAL

a) QUANTO AO CONTEÚDO ESQUECIDO

PARCIAL

- Em um determinado período de tempo (seja um dia, semanas, meses ou anos), todo o conteúdo
mnêmico foi completamente perdido ou alguns fragmentos de lembranças persistiram?
ANTERÓGRADA (DE FIXAÇÃO)

b) QUANTO À FASE MNÊMICA COMPROMETIDA RETRÓGRADA (DE EVOCAÇÃO)

RETROANTERÓGRADA
(FIXAÇÃO/EVOCAÇÃO)

- O conteúdo da amnésia corresponde a fatos ocorridos depois (“para adiante”) do trauma ou


acontecimento causador do déficit, implicando em comprometimento da fixação? Diz respeito a
ocorrências de antes (“para trás”) do trauma ou evento causador da amnésia, processo ligado à
dificuldade ou impossibilidade de evocação? Ou ambas as modalidades estão presentes?

ORGÂNICA

c) QUANTO À CAUSA (ORIGEM)

PSICOGÊNICA

- Enquanto as orgânicas produzem tanto amnésias anterógradas quanto retrógradas, as psicológicas


comumente são retrógradas.

MACIÇA

d) QUANTO À EXTENSÃO

LACUNAR
131

- A amnésia compromete grandes períodos de tempo (vários meses, anos ou até a vida inteira) ou
apenas lacunas mnêmicas (horas, dias, algumas semanas)?

REVERSÍVEL

e) QUANTO À EVOLUÇÃO
IRREVERSÍVEL

- A amnésia evolui com recuperação das recordações comprometidas (ou mesmo da função mnêmica
afetada)? As lembranças não são mais resgatadas (ou a memória continua comprometida através do
tempo)?

Assim, em cada caso de amnésia, esta poderá ser classificada sob esses cinco parâmetros. Vejamos
um exemplo de amnésia que se presta bem a classificação nessas instâncias pontuadas. É o caso de
Anthony, um homem de 34 anos que vive sozinho em sua cidade (ÜSTUN, 1998, p. 164):

Anthony pediu ajuda ao pessoal de uma estação de trens porque tinha perdido a memória e
não podia se lembrar de onde vinha e para onde ia. Ele se lembrava do seu nome, mas não
podia lembrar em que trabalhava ou nada que lhe acontecera nos últimos 10 anos. Um exame
físico completo no hospital local não revelou qualquer anormalidade, e ele foi transferido
para uma unidade psiquiátrica. Durante os dias seguintes, o transtorno de memória diminuiu,
e a história a seguir foi obtida.

A mãe de Anthony o abandonou quando ele tinha três anos de idade e ele foi criado em um
orfanato. [...] Anthony era uma criança saudável, fazia amizades e era popular. Entretanto,
foi expulso da escola por mau comportamento. Levava uma vida inconstante, mudando de
empregos e envolvendo-se em relacionamentos casuais até se casar, aos 26 anos. O
casamento acabara um ano antes da atual internação devido à sua infidelidade. Desde os 30
anos, o paciente tinha trabalhado para uma organização voluntária de bem-estar social,
ajudando adolescentes em dificuldade. O episódio de amnésia começou após um incidente no
qual ele fora criticado por má condução de uma peça que estava dirigindo para os
adolescentes da organização voluntária e também por levar para seu apartamento um jovem
com problemas de dependência de drogas. Além disso, estava sendo perseguido por dívidas
substanciais. Desapareceu de seu apartamento exatamente algumas horas depois de uma
entrevista altamente crítica com seus supervisores no trabalho.

Cinco anos antes, Anthony fora tratado por uma concussão após um acidente de estrada;
naquela época houve um breve período de amnésia. Um ano mais tarde, ele foi encontrado
perambulando, com perda da memória, após uma crise em seus relacionamentos pessoais e
dificuldades no trabalho. O transtorno de memória melhorou rapidamente e nenhuma causa
física foi encontrada.

Portanto, o paciente estava apresentando o terceiro acesso de amnésia, onde só o primeiro tinha
alguma possibilidade de fator orgânico. Os redatores desse caso clínico comentam, todavia, que o
bloqueio mnêmico inicial pode ter servido de “modelo” para os episódios seguintes. Talvez
inconscientemente, Anthony tenha experimentado e conhecido uma forma de “fugir” dos problemas,
pois nas amnésias seguintes elas ocorrem após situações emocionais desagradáveis.
132

Temos, no episódio mnêmico atual do caso de Anthony, uma amnésia (a) total, pois o paciente não
recorda nada dentro do espaço de tempo abrangido pela amnésia, (b) retrógrada ou de evocação, com
esquecimento de fatos ocorridos antes dos estresses/traumas intensificados em diversas áreas
existenciais do presente, (c) de origem psicogênica em relação ao comprometimento mnêmico atual,
(d) maciça, pois abrange um período de 10 anos em sua vida, e (e) reversível, havendo recuperação
das lembranças comprometidas.

10. O OPOSTO DA AMNÉSIA: HIPERMNÉSIA

O termo hipermnésia requer algumas considerações. Pode estar sendo empregado como sinônimo de
“boa memória”, ou seja, capacidade extraordinária de fixar e evocar fatos, acontecimentos e
informações numa superioridade além da encontrada na maioria das pessoas. Alguns autores, todavia,
preferem utilizar o termo “hipertrofia da memória” para esse fenômeno que indica uma aptidão acima
da média, talvez até inata. Desde já, convém acrescentar que, nesse sentido, não se pode falar em
“distúrbio” da memória. É bem verdade que há funções psíquicas que, quando se manifestam de
forma intensificada, tal apresentação pode ser considerada um sintoma psicopatológico, a exemplo
do fenômeno que estudamos como aumento na intensidade da percepção (no capítulo referente a
alucinações e outras alterações da percepção), onde os estímulos são percebidos numa gradação
perturbadoramente maior que o normal. Mas o mesmo não podemos dizer quando nos referimos ao
funcionamento aumentado de certas funções cognitivas. Inteligência significativamente acima da
média (como no caso dos gênios intelectuais), elevada capacidade de atenção-concentração, excelente
memória, são exemplos de fenômenos cujo aumento indicaria algo que está apenas fora da norma
estatística, mas não um defeito ou distúrbio psicopatológico. Mesmo em se tratando daqueles
indivíduos denominados de idiot savants, seriam pessoas com distúrbios na esfera da deficiência
intelectual, e embora chamem atenção, devido à memória bastante desenvolvida, este funcionamento
mnêmico em si não constitui distúrbio.

Há, todavia, um tipo de hipermnésia em forma de estado mais ou menos duradouro e que surge em
situações onde haja excitação psicopatológica com estado de ânimo eufórico, como se pode observar
na fase maníaca do transtorno bipolar ou em outras condições mórbidas com exacerbação anormal do
humor básico (a exemplo da intoxicação por certas drogas estimulantes). O paciente pode apresentar
enorme fluxo de evocação sobre acontecimentos e informações que estão armazenadas em sua mente;
todavia, conforme frisam diversos autores, embora haja muita quantidade de lembranças trazidas por
esses estados de euforia patológica, tais recordações não têm clareza e precisão em seus conteúdos.

Mas, a palavra hipermnésia pode ainda estar sendo utilizada para referir-se a um fenômeno
momentâneo, muitas vezes associado a determinados transtornos mentais, que consiste numa
rememoração transitória para conteúdos circunscritos de lembranças que normalmente não seriam
evocadas voluntariamente. Assim, Kurt Schneider (1968) cita o exemplo de Zahn, um paciente
epiléptico que quando entrava em crises crepusculares, ficava em estado de alheamento da
consciência e declamava orações em latim, das quais tomara realmente conhecimento na infância,
todavia, fora desse contexto, ao recobrar a lucidez, esquecia completamente os conteúdos recitados.
Exemplos como esse, que podemos chamar de hipermnésia momentânea, às vezes são encontrados
em casos de epilepsia (principalmente do lobo temporal), durante o uso de certas drogas estimulantes
do SNC ou na pessoa sob hipnose.

Um fenômeno afim da hipermnésia momentânea é a chamada ecmnésia, onde o indivíduo não só


rememora intensamente conteúdos esquecidos, mas também experimenta forte vivência de estar
passando novamente por aquela situação relembrada. Ecmnésia não é uma mera rememoração do
133

passado, mas uma vivência de “presentificação do vivido”, como acentua Nobre de Melo (1981,
p.406). Isaías Paim cita o seguinte caso de ecmnésia (1982, p.168):

Trata-se de um paciente com 25 anos de idade que, durante crises que se caracterizavam por
se sentir caindo “como se fosse uma rosca sem fim”, vivenciava novamente um acontecimento
passado de grande valor afetivo. Encontrava-se no aeroporto de Brasília e, ao descer a escada
rolante viu, lá embaixo, a sua noiva em companhia de um homem. Esse fato vivido realmente,
se reproduzia em todas as particularidades sempre que o enfermo entrava em crise.
Esclareceu o paciente que não se tratava de uma lembrança, mas tudo acontecia como se
estivesse presenciando e participando novamente da cena [...].

Embora muitos relatos de ecmnésia abranjam somente um fato ou acontecimento específico da vida,
como no exemplo acima, há descrições dessas experiências que abarcam, em questão de minutos (ou
mesmo segundos), vários momentos do passado. Por exemplo, em situações de perigo iminente de
morte, em que se sobrevive a um afogamento ou outra situação limite entre o estar viva e o morrer, a
pessoa às vezes relata que naquele instante crítico de desespero, pareceu vivenciar novamente
diversos acontecimentos importantes de sua vida, como se estivesse “voltando no tempo” ou “vendo”
em sua mente muitos pormenores do passado. Essas vivências, chamadas de ecmnésia panorâmica,
podem ainda ocorrer associadas a crises epilépticas, também como sintomas de neuroses histéricas
dissociativas ou em pessoas sob estado hipnótico. Tais experiências momentâneas às vezes chegam
a ser quase alucinatórias, com imagens da vida pregressa.

11. FALSAS LEMBRANÇAS E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS

Quando tinha 14 anos, Elizabeth perdeu sua mãe, que se afogou na piscina de uma casa de campo do
tio. Apesar de lembrar muitas coisas sobre aquele local que visitava no passado, as lembranças do
acidente eram imprecisas. Já adulta, conseguia recordar inúmeros detalhes da época, os pinheiros que
admirava, o aroma deles, o chá com limão que seu tio preparava, a piscina e o lago onde ela
mergulhava. Todavia, conforme suas palavras (HOCKENBURY, 2003, p. 201-202):

[...] A cena da morte, em si, era muito vaga e fora de foco. Eu nunca vi o corpo de minha mãe
e não conseguia imaginá-la morta. A última lembrança que eu tenho de minha mãe é ela
entrando em meu quarto bem devagar, na noite anterior à sua morte, abrançando-me
carinhosamente [...].

Décadas mais tarde, no aniversário dos 90 anos do tio, durante conversa com um parente, Elizabeth
foi informada que foi ela quem descobriu o corpo da mãe na piscina, e, então, a partir daí, começou
a vivenciar lembranças do acidente. Assim ela se expressa:

As lembranças começaram a aparecer lentamente e de forma imprevisível, como a fumaça de


fogueiras no campo à noite. Eu podia me ver, uma garota magra de cabelos pretos, olhando
para aquela água azul ondulando na piscina. Minha mãe vestia um roupão e flutuava com o
rosto dentro da água. “Mamãe, Mamãe”, eu chamei várias vezes, e aterrorizada chamava
cada vez mais alto. Então, comecei a gritar. Eu me lembro das viaturas da polícia, das luzes
piscando e da maca com os lençóis brancos envolvendo o corpo. A lembrança estava lá o
tempo todo, mas eu simplesmente não conseguia atingi-la.

Todavia, vários dias depois, para sua surpresa, tomou conhecimento que não poderia estar na piscina
no momento em que o corpo da mãe foi encontrado, e que esse foi descoberto por sua tia, não por
ela, Elizabeth. Outros parentes que consultou confirmaram esse fato. Apesar disso, a “lembrança” se
fazia presente como uma recordação verdadeira. Por algum motivo, a mente dessa mulher havia
criado a fantasia de ter encontrado o corpo da mãe, estimulada por uma informação falsa. As
134

reminiscências do local do acidente, da casa, da piscina, da mãe a abraçando, imagens confusas do


dia do afogamento, eram verdadeiras e estavam registradas nas lembranças de Elizabeth, todavia, ela
em seguida acrescenta dados, deforma as recordações e passa a lembrar-se de acontecimentos que
não vivenciara. Portanto, esse exemplo, relatado no livro “Descobrindo a Psicologia” de Don e
Sandra Hockenbury (2003), não é de amnésia lacunar de origem psicológica, como a princípio
poderia parecer. Elizabeth não tinha bloqueado recordações do momento da morte da mãe, pois ela
não poderia tê-las, já que não se encontrava no local do acontecimento. Mas apresentara o curioso
fenômeno das falsas lembranças.

Posteriormente, Elizabeth formou-se em psicologia e tornou-se especialista em distorções da


memória, participando de pesquisas nessa área e sendo coautora do livro The Myth of Repressed
Memory: False Memories and Allegations of Sexual Abuse. Elizabeth Loftus, seu nome conhecido
nos meios científicos, discute a questão dos relatos de abuso sexual em pessoas que fazem a “terapia
de memórias reprimidas”. Esse tipo de tratamento tem como objetivo fazer com que os indivíduos
que foram sexualmente molestados na infância e que por conta disso teriam problemas psicológicos
na vida adulta, recuperem lembranças reprimidas dos abusos que sofreram, pois isso acontecendo,
dizem os defensores dessa terapia, as pessoas traumatizadas sexualmente iniciariam um “processo de
cura” trabalhando suas emoções a partir das recordações. Essas seriam trazidas à consciência através
de hipnose e outras técnicas orientadas para a recuperação de supostas lembranças. Os críticos desse
modelo psicoterápico creem que em vários casos, o que se considera “recordações” de abuso sexual
seriam, na verdade, fantasias vivenciadas como evocações de memórias, ou seja, novamente as falsas
lembranças, a exemplo do que ocorreu com a psicóloga Elizabeth Loftus. E mais uma vez nos
deparamos com a questão polêmica sobre a importância ou não de se orientar o trabalho psicoterápico
para a busca de possíveis lembranças reprimidas, tendência hoje questionada.

Uma pesquisa mostrando que fatores socioculturais também podem influenciar na distorção das
recordações foi realizada nos Estados Unidos acerca do preconceito racial: mostrava-se a indivíduos
brancos a imagem de dois homens, um negro e outro de cor clara, sendo que este último empunhava
uma navalha; mas, quando os sujeitos do experimento relatavam a lembrança das imagens, em grande
número de depoimentos a navalha era “lembrada” na mão do negro (HOCKENBURY, 2003).

Um exemplo histórico de falsas lembranças também ligadas a relatos de traumas sexuais ocorreu nos
primórdios da psicanálise, quando Freud ouvia o que contavam os pacientes acerca das lembranças
que tinham de seus passados infantis. Devido às narrativas de pessoas com neurose histérica relatando
abusos sexuais quando crianças, Freud começou a elaborar a hipótese de que tal perturbação mental
era uma consequência psicopatológica de alguma sedução sexual na infância, inclusive por parte dos
pais. Por muito tempo, manteve firme a crença na ocorrência real dessas experiências, segundo conta
Ernest Jones, seu biógrafo. Este acrescenta: “A maioria – não todas – das seduções verificadas na
infância que seus pacientes haviam revelado e sobre as quais havia construído toda a sua teoria da
histeria nunca se tinham verificado na verdade” (JONES, 1975, p. 272).

Então, foi forçado a reconhecer que as histórias contadas por esses pacientes eram na realidade, em
sua grande maioria, mais fantasias que reminiscências verdadeiras, embora eles acreditassem que se
tratava de fatos acontecidos realmente. É nesse momento que Freud passa a reformular suas
concepções sobre a origem e significado dos sintomas e das falsas lembranças trazidas pelos
pacientes. Segundo suas próprias palavras:

Quando essa etiologia veio abaixo sob o peso de sua própria improbabilidade e sob
contradição diante das circunstâncias perfeitamente verificáveis, o resultado a princípio foi
de um desalentado espanto. A análise havia conduzido, através de roteiros seguros, até os
traumas sexuais pregressos, e mesmo assim estes não eram verdadeiros. [...] Finalmente,
refleti que, apesar de tudo, não se tem o direito de desesperar diante de desapontamentos que
135

se interpõem no caminho das nossas expectativas; a gente deve revisá-las. Se os histéricos


vinculam seus sintomas a traumas fictícios, este fato novo significa que eles mesmos criam
tais cenas na sua fantasia, e a realidade psíquica deve ser tomada em consideração
juntamente com a realidade verdadeira (JONES, 1975, p. 274).

As falsas lembranças podem ter também a função do que Freud chamou de “lembranças
encobridoras”. Com esse nome, ele se referiu as recordações que poderiam ser reais ou parcialmente
reais, mas teriam a função de sobressair-se na mente da pessoa a fim de encobrir lembranças que
inconscientemente se quer reprimir, ou seja, recorda-se bem de um acontecimento para esquecer
outro. Embora originalmente o conceito de lembranças encobridoras estivesse voltado para
recordações do período infantil, ele pode ser extrapolado para outras épocas da vida.

Um exemplo interessante de falsa lembrança (e também lembrança encobridora) está no filme Freud,
Além da Alma (Freud: the Secret Passion,1962), um clássico do diretor John Huston, que
encomendara a Sartre um roteiro para o mesmo. Uma curiosidade desse filme: o trabalho do filósofo
existencialista foi tão extenso que teve que ser cortado e adaptado em inúmeros trechos, de modo que
o mesmo não aceitou que seu nome constasse como roteirista. Como particularidade técnica do filme,
acerca dos casos clínicos de Freud, ao invés de mostrá-los em personagens separadas, foram
concentrados numa única paciente, Cecily, que condensa os diversos sintomas estudados pelo
psicanalista durante um período de sua vida. Embora esse filme da década de 60 tenha recebido
inúmeras críticas desfavoráveis, ele tem utilidade didática em diversos momentos, trazendo fatos da
vida de Freud e vários princípios da psicanálise, inclusive o exemplo de falsa lembrança que nos
interessa aqui. No filme, a paciente Cecily sofria de sintomas histéricos, inclusive cegueira psicógena.
Freud e seu colega Breuer, (conceituado médico da época, com interesse em pesquisar a neurose
histérica), através da hipnose, conseguem o seguinte relato da paciente: Ela estava em seu quarto de
hotel em Nápoles quando ouviu batidas na porta; dois médicos se apresentaram pedindo que os
acompanhassem até um hospital onde estava seu pai. Lá chegando, percebe algo estranho nas pessoas
que circulavam e trabalhavam nos recintos da instituição, onde inclusive podia se ouvir uma suave
música. Cecily é levada a um quarto e obrigada a olhar e identificar seu pai morto, ao lado de uma
enfermeira. Freud desconfia da veracidade desse relato, até porque médicos não deixam um hospital
para chamar a filha de um paciente, nem tal instituição toca músicas ambientais. Novamente pela
hipnose, obtém de Cecily uma nova lembrança: quando ela é acordada na madrugada com homens
batendo a porta, não se trata de médicos, mas policiais; é levada não a um hospital, mas a um bordel
(daí a música); tem de identificar o pai morto junto a uma prostituta com quem estava tendo relações
sexuais, não a enfermeira da “lembrança” anterior. Houve, então, uma distorção da recordação e, no
caso, esta também pode ser considerada, de certa forma, uma lembrança encobridora dos fatos reais
que Cecily presenciou. A sequência mnêmica, “policiais – bordel – prostituta ao lado do pai morto”
foi distorcida para “médicos – hospital – enfermeira ao lado do pai morto”. O psiquismo da paciente
aliviou o trauma de ter visto o corpo do genitor em um bordel (o que lhe era não só traumático, mas
profundamente vergonhoso) colocando a lembrança em um contexto hospitalar mais aceitável para a
moral da personagem e da época.

Quando abordamos amnésia anterógrada (de fixação), falamos que esse tipo de déficit mnêmico pode
vir associado a fabulações, criações da mente para preencher as lacunas de memória. As fabulações
podem ser consideradas também falsas lembranças, mas quase sempre decorrentes de um déficit na
capacidade de fixação, diferentemente dos exemplos estudados nesse item, que não estão ligados a
amnésias anterógradas. Outra diferença é que nas fabulações a pessoa não tem tanta convicção
daquilo que recorda, por isto mesmo as “lembranças” tendem a não ser duradouras nem muito fixas,
podendo mudar seu conteúdo até de um dia para o outro. Nas falsas lembranças vistas aqui, não
pertencentes à categoria das fabulações, a temática das supostas recordações é mais estável e menos
modificável pela indução externa, e suas causas tendem a estar ligadas a fatores psicológicos, sem
136

comprometimento organocerebral constatável. As fabulações estão mais embasadas em


determinantes orgânicos a nível encefálico.

12. AVALIAÇÃO CLÍNICA DA MEMÓRIA E DA PRESENÇA DE POSSÍVEIS


HIPOMNÉSIAS E AMNÉSIAS

A memória imediata ou de curtíssimo prazo pode ser avaliada falando-se para o paciente alguns
números ou palavras e solicitar que os repita imediatamente após ouvi-los. Depois de alguns minutos,
pode-se avaliar a memória de curto prazo verificando se ele se lembra dessa série de números ou
palavras apresentados anteriormente. Com isso estamos pesquisando a capacidade de fixação da
pessoa. Um paciente com amnésia ou hipomnésia anterógrada vai falhar nessas avaliações.

Quando indagamos sobre fatos e conhecimentos recentes e remotos, estamos avaliando a memória de
longo prazo, pois as recordações de acontecimentos adquiridos há horas já podem ser consideradas
como desse tipo de memória (HOCKENBURY, 2003).

Indagações sobre o que fez horas antes da entrevista de avaliação, fatos ocorridos no dia anterior à
mesma, ou o que viu no noticiário dos últimos dias (jornal, rádio, televisão) são formas de observar
a memória de longo prazo para fatos mais recentes. Tanto a presença de amnésia ou hipomnésia de
fixação (anterógrada) ou de evocação (retrógrada) estão sendo avaliadas aqui. Após um traumatismo
craniano, por exemplo, a pessoa pode não fixar as informações que recebeu recentemente
(comprometimento que se instala “para adiante” da causa da amnésia, no caso, o trauma). Mas pode,
também, ao não lembrar dados de um passado mais próximo, estar apresentando amnésia ou
hipomnésia retrógrada sobre fatos acontecidos recentemente, mas anteriores ao traumatismo, acerca
dos quais ele não pode evocar (“para trás” do evento causal), devido a não consolidação dos engramas
mnêmicos gravados.

E quando indagamos à pessoa sobre acontecimentos e conhecimentos remotos, estamos nos


inteirando de sua memória a longo prazo e capacidade de evocação, pois trata-se de engramas que
foram fixados e consolidados. Amnésias ou hipomnésias retrógradas para fatos bem distanciados do
tempo presente podem ser evidenciadas ao se perguntar ao paciente se ele é casado, há quanto tempo
se casou, algumas lembranças do dia do casamento ou ligadas a seus aniversários quando criança,
quem são seus familiares que conhece há mais tempo, se lembra alguns fatos importantes em seu
passado remoto, em que locais estudou ou trabalhou ao longo de sua vida (avaliação da memória
episódica), quais alguns dos conhecimentos que obteve na escola ou ligados a sua profissão, dizer o
nome de um ou mais presidentes do país, o que foi a escravidão dos negros, ou qual o significado do
termo “conta de somar” (avaliação da memória semântica, sendo que essas indagações sobre eventos
de conhecimento público ou de fatos históricos devem levar em conta o nível educacional da pessoa).

É importante que tenhamos informações da história do indivíduo, a fim de correlacionar a possível


amnésia com acontecimentos ligados a traumatismo craniano, acidente vascular cerebral, processo
demencial de Alzheimer, conflitos e traumas emocionais ou outros dados significativos para um
diagnóstico.

O esquema abaixo correlaciona os tipos de memória com possíveis surgimentos de hipomnésias e


amnésias:

Memória imediata e
Memória de curto prazo --------------------------------- amnésia de fixação (anterógrada)
137

Memória de longo prazo para fatos recentes ---------- amnésia de fixação, de evocação, ou ambas
(anterógrada, retrógrada ou retroanterógrada)

Memória de longo prazo para fatos remotos -------- amnésia de evocação (retrógrada)

Cabe aqui ainda uma observação sobre avaliação clínica da memória. Com certa frequência, pacientes
de consultório ou ambulatório, por entre queixas de ansiedade ou depressão leve ou moderada, dizem
se preocupar por estar “muito esquecidos”. Mulheres na meia idade se preocupam por esquecer a
comida no fogo aceso, não saber onde deixaram determinados objetos e outras obrigações com sua
casa. Indivíduos jovens dizem não estar conseguindo memorizar satisfatoriamente as lições que
recebem na escola, textos que leem ou se achar esquecendo obrigações no trabalho. Geralmente esses
esquecimentos não têm muita importância em termos de comprometimento da memória, ocorrendo
mais por um déficit de atenção e concentração, em decorrência de estados psicológicos de
desmotivação, ansiedade, depressão, apatia, interferindo na capacidade de fixação mnêmica.

13. O QUE PODEMOS FAZER?

Muitos casos de amnésia são reversíveis, pelos menos parcialmente, podendo deixar algumas
sequelas mnêmicas, mas que não impedem que a pessoa volte a viver sua vida, realizar parte de suas
atividades. É o que ocorre com determinados pacientes que sofreram traumatismos cranianos, tiveram
tumores encefálicos, AVCs (acidentes vasculares cerebrais) ou que passaram por experiências
emocionalmente traumáticas, havendo técnicas neuropsicológicas que auxiliam esse processo de
melhora mnêmica. Mas ficamos com uma sensação de impotência diante de muitos casos crônicos
que acometem pacientes com amnésia irreversível.

Oliver Sacks, neurologista britânico, escreveu livros contendo estudo de casos de seus pacientes com
linguagem e reflexões de quem faz narrativas literárias. O seu livro Despertares deu origem ao filme
Tempo de Despertar. Mas escreveu também um conto intitulado O Marinheiro Perdido, que narra o
caso de um homem de 49 anos com amnésia de fixação (e Síndrome de Korsakoff) provocada por uso
crônico e abusivo de álcool em seu passado. Durante o contato com tal paciente, e percebendo a
gravidade e irreversibilidade do quadro, Sacks fez a si mesmo a pergunta que utilizamos como título
dessa secção – O que podemos fazer? Jimmie (nome dado ao paciente) foi internado no Lar de Idosos
no início de 1975, clínica nos arredores de Nova York onde o neurologista trabalhava. Foi o próprio
Jimmie que informou seu nome, data e local de nascimento, lembrou-se da cidadezinha onde morou
quando criança, da escola e dos tempos de estudante, seus amigos, entrada na Marinha e trabalho em
submarinos como operador de rádio e datilógrafo, recordando até os nomes de colegas de bordo.
Lembrava também o tempo da Segunda Guerra Mundial, o fim dessa e seus planos para o futuro. Mas
nesse ponto, correspondendo à idade de uns 20 anos, suas reminiscências cessavam. Jimmie era um
daqueles casos em que, após alguns minutos, o paciente não lembra que falou com o médico nem do
que fez nesse curto período de tempo. Inicialmente Sacks (2007, p. 40) resolve confrontar Jimmie com
sua amnésia, talvez tentando conseguir alguma mudança. Após indagar sobre a idade dele e obter a
resposta que iria fazer 20 anos, escreve o neurologista:

Olhando o homem grisalho à minha frente, tive um impulso pelo qual nunca me perdoei. [...]
“Tome”, eu disse, e mostrei a ele um espelho. “Olhe-se e me diga o que vê. É um rapaz de
dezenove anos que está olhando no espelho?” Ele empalideceu subitamente e agarrou os
braços da poltrona. “Meu Deus”, murmurou. “Meu Deus, o que está acontecendo? O que
138

houve comigo? Será um pesadelo? Estou louco? Isto é uma brincadeira?” – e se descontrolou,
entrou em pânico. “Está tudo bem Jimmie”, eu disse, tranquilizador. “É só um equívoco.
Nada para se preocupar”. Conduzi-o até a janela. “Olhe só! Não é um lindo dia de
Primavera”.

Minutos depois o paciente esquecera esse episódio e Sacks aprendera o que não deve ser feito em
muitos desses casos. O conto/caso clínico se desenrola com vários detalhes, mas fica evidente a grave
amnésia existente, inclusive através de testes e pareceres de outros profissionais, nada se podendo
fazer. É quando Sacks resolve pedir ajuda, em suas dúvidas, a outro profissional com visão humanista,
o neuropsicólogo russo Alexander Luria. Este lhe responde:

“Não há prescrições para um caso como esse”, escreveu Luria. “Faça o que sua perspicácia
e seu coração sugerirem. Há pouca ou nenhuma esperança de recuperar sua memória. Mas
um homem não consiste apenas em memória. Ele tem sentimento, vontade, sensibilidades,
existência moral – aspectos sobre os quais a neuropsicologia não pode pronunciar-se. [...]
Em termos neuropsicológicos, há pouco ou nada que você possa fazer; mas no que respeita
ao indivíduo talvez você possa fazer muito” (2007, p. 49).

A partir daí, Sacks vai deixando de lado a ideia de tentar “curar” a amnésia de Jimmie e passa a
estimulá-lo no sentido de descobrir formas dele conviver com seu déficit. Inicialmente, tentou-se que
o paciente trabalhasse na máquina de escrever, pois no passado fora um bom datilógrafo, podendo
então recuperar suas habilidades em um trabalho. Todavia, o que escrevia terminava sendo uma
sucessão de frases sem muito significado. Foi quando o médico observou o paciente participando de
uma missa na Capela da instituição. Sacks escreve (2007, p. 53):

[...] fiquei comovido, profundamente comovido e impressionado, pois vi ali uma intensidade e
constância de atenção e concentração que nunca tinha visto nele antes, de que nem sequer o
julgava capaz. [...] De um modo integral, intenso, sereno, na quietude da concentração e
atenção absoluta, ele entrou e compartilhou da Santa Comunhão. Estava completamente
tomado, absorvido por um sentimento.

Segundo observava Sacks, Jimmie achava-se “absorto em um ato, um ato de todo o seu ser”... Prossegue
o neurologista (2007, p. 54):

Ver Jimmie na capela abriu-me os olhos para outros reinos onde a alma é chamada e mantida
[...]. A mesma intensidade de absorção e atenção seria encontrada em relação à música e à arte:
notei que Jimmie não tinha dificuldades para “acompanhar” a música ou dramas simples [...].
Ele gostava de jardinagem, e passara a fazer uma parte do trabalho em nosso jardim. A
princípio, ele todo o dia contemplava o jardim como se o visse pela primeira vez, mas por algum
motivo aquele lugar se tornou mais familiar para ele do que o interior do asilo. Já quase nunca
se perdia ou se desorientava no jardim [...].

Oliver Sacks conclui (2007, p. 55):

[...] Talvez haja nisso uma lição filosófica além da clínica: na Síndrome de Korsakov, ou na
demência e outras catástrofes semelhantes, por maior que seja o dano orgânico [...] permanece
intacta uma possibilidade de reintegração pela arte, pela comunhão, pelo contato com o espírito
humano: e isso pode ser preservado no que a princípio parece ser um estado irremediável de
devastação neurológica.

É possível que esse relato de caso tenha tido um desenrolar satisfatório pela sensibilidade que havia
em Jimmie em relação à arte. Mas como sabê-lo sem antes ter sido tentado esse viés com alguém com
grave problema de memória. Como observa Lyra Bastos (1997, p. 210): acerca desses pacientes:
139

“Certos aspectos da memória musical e afetiva também podem ser eventualmente preservados,
certamente por também utilizarem outras vias neurais e outros mecanismos neuropsicológicos”.

Voltando à frase de Luria: “Um homem não consiste apenas em memória. Ele tem sentimento,
vontade, sensibilidades, existência moral”. Talvez seja isso que o filme Como se Fosse a Primeira
Vez (50 First Dates, 2004), dirigido por Peter Segal, queira passar acerca do tentar outras formas de
aproximação com uma pessoa que sofre de amnésia, sem forçar o processo mnêmico já tão
comprometido. O filme, ambientado no Havaí, retrata a amnésia de fixação, embora de forma
despretensiosa para com projetos de ser alguma grande obra cinematográfica. Naturalmente que ele
também não tem a pretensão de mostrar um caso clínico ou de fazer didática sobre amnésia, mas
trazer uma história romântica com toques de comédia, tendo como ponto de fundo o déficit mnêmico
da personagem Lucy (Drew Barrymore). Os idealizadores do filme, talvez baseados em
documentários e informações que mostram pessoas que não retêm na memória acontecimentos
recentes e logo esquecem o que ocorre no presente, trouxeram essa possibilidade para um contexto
de romance. Em que tal tipo de amnésia afetaria um casal em seus encontros, sentimentos,
continuidade de relacionamento?

Lucy sofre acidente de carro com traumatismo craniano e a partir daí só consegue reter
acontecimentos por breve período de tempo. A memória de curto prazo não transfere os engramas
para a memória de longo prazo, ou seja, a fixação não está funcionando o suficiente para produzir a
consolidação das lembranças e a jovem esquece tudo o que se passou no dia anterior. O acidente
ocorreu em um domingo 13 de outubro, e para ela sempre é esta data. Vem todos os dias tomar café
num pequeno restaurante, porque sempre aos domingos fazia isso, como naquele dia 13. A memória
de longo prazo registra fatos e reconhecimento de pessoas que conheceu até aquela data. Mas, a
lembrança do que ocorre ou quem lhe é apresentado após o acidente só é retida durante um dia, pois
24 horas depois, devido à debilidade da fixação, nada mais pode ser lembrado. Conhece o pai, o
irmão, o casal dono do restaurante que frequenta, mas não pode lembrar-se de Henry (Adam Sandler),
o jovem veterinário que se aproxima dela e se determina a lhe conquistar todos os dias. O irmão e o
pai vinham operacionalizando uma táctica: entrar no estado psicológico dela, fazendo como se nada
de anormal estivesse acontecendo. No dia do acidente era o aniversário do genitor e ela tinha
planejado uma festinha para os três, e isso é repetido todos os dias para que Lucy não se desespere
com a realidade de estar “sem memória”. Um jornal datado em 13 de outubro é sempre colocado às
mãos dela, para que não perceba que vive um outro dia já distante daquela data. Mas o namorado
resolve fazer um vídeo contando o que aconteceu e está ocorrendo com ela, a fim de conscientizá-la
de seu problema e fazê-la conviver com isso durante as horas em que consegue ter algumas
lembranças recentes. No vídeo, vê fotos e recortes de jornal acerca de seu acidente e de fatos que
ocorrem diariamente com ela, mas que não pode lembrar. Tal vídeo passa a ser mostrado a Lucy
todos os dias pela manhã. Em certos momentos, no final do dia, ainda com alguma consciência de
seu problema mnêmico, sabendo que em todas as manhãs esquecerá os instantes vividos com o
namorado, chega a dizer para o mesmo: “Por que não te conheci na véspera do acidente?”. Pois com
isso guardaria a lembrança dele, assim como guarda o reconhecimento do pai e do irmão, imagens
mnêmicas de longo prazo, bem como as do casal dono do restaurante que Lucy frequenta, enfim, de
tudo o que se passou antes do acidente. Numa cena em que um médico lhe explica seu distúrbio de
memória, é mostrado, na clínica em que ele trabalha, outro paciente também com amnésia de fixação,
conhecido como “Tom 10 segundos”, porque após esse tempo, esquece o que acabou de acontecer,
apresentando-se constantemente as pessoas, pois não lembra que já fora apresentado a elas dez
segundos atrás. Com isso, talvez se queira mostrar que a intensidade e gravidade de uma amnésia de
fixação podem variar de caso para caso.

Todavia, na prática clínica não se encontram pacientes que só após um dia inteiro seguido de período
de sono apresentem amnésia de fixação, como no caso da personagem mostrada na estória. O exemplo
de “Tom 10 segundos” é algo mais próximo do que se encontra na realidade. Também não existe a
140

síndrome de Goldfield, que o médico emprega para o distúrbio mnêmico de Lucy, sendo esse termo
fictício. O desenrolar do filme não vai a um final feliz em que a jovem ficasse curada, mas levanta a
possibilidade da pessoa, com o apoio de familiares ou amigos, encontrar alguma forma de viver com
sua amnésia irreversível, como Sacks e Luria parecem propor em seus escritos sobre pacientes com
graves distúrbios de memória.

Mas, os casos de Jimmie e Lucy são exemplos em que observamos amnésias como sintomas básicos,
estando outras funções psíquicas relativamente preservadas. Todavia, quando nos deparamos com
quadros demenciais, como doença de Alzheimer, demência vascular (arteriosclerose cerebral) ou
demais enfermidades dessa natureza, onde além da amnésia, comumente há outros
comprometimentos cognitivos acentuados (déficit na capacidade de raciocínio, aprendizagem,
atenção, organização do pensamento, linguagem, julgamento crítico), assim como distúrbios na área
emocional e de conduta (irritabilidade, descontrole das emoções, comportamentos decorrentes de
distorções delirantes da realidade, ausência de cuidados pessoais, inclusive alimentação e higiene),
então, as questões ligadas ao tratamento, ao como lidar com esses pacientes em seu dia-a-dia e às
relações extremamente problemáticas que podem se estabelecer com familiares e pessoas próximas,
tornam-se bem mais difíceis de trabalhar. Alguns dos que leem este capítulo talvez já tenham tido
contato com idosos em processo de demência e saibam como são alguns de seus sintomas (inclusive
comportamentais) e os problemas que eles acarretam.

Entra então a figura do cuidador, que pode ser um (a) filho (a), o (a) esposo (a), outro familiar, amigo
da família ou uma pessoa contratada para essa função. O ideal é que haja mais de um cuidador se
revezando nessa tarefa, já que tal trabalho pode ser muito desgastante para quem se dedica a ele,
mobilizando-o física e emocionalmente. Porque cuidar de um idoso com demência não é apenas dar
remédios na hora certa nem somente lhe servir as refeições ou ficar atenta a seus movimentos. É
também fazer companhia, dar atenção às suas longas e muitas vezes desorganizadas conversas (que
podem ser cansativas e angustiantes para o familiar), tentando participar das mesmas, levá-lo a
passeios ou a atividades que lhes sejam prazerosas, poder lhe dar carinho e amor. Mas é muito difícil
para uma filha, filho ou cônjuge observar toda uma mudança comportamental e cognitiva no ente que
outrora estava bem, mas que agora parece ser “outra pessoa”. A mulher de um idoso com Doença de
Alzheimer dizia angustiada: “Ele parece ter raiva de mim, me insulta e até tenta me agredir
fisicamente”. Não que o paciente com demência seja necessariamente agressivo, mas em algumas
ocasiões isso pode ocorrer, como uma criança irritada que “esperneia” e agride alguém ao redor,
porém sem intuito de perversidade, e isso pode ser difícil de entender por parte de um familiar. Talvez
entenda sob o aspecto racional, mas aceitar emocionalmente, às vezes, pode ser bem mais difícil.
Tristeza, angústia, dúvidas, são vivências normais para as pessoas da família em constante contato
com o idoso enfermo. Diz-se que com a progressão da demência, o paciente sofre menos que os
familiares, pois aquele perde a consciência crítica da enfermidade, os parentes não. Por tudo isso,
frequentemente um profissional cuidador tem que ser contratado para esse trabalho, o que não
significa que os parentes deixem de participar também desses cuidados. Há casos em que o paciente
com demência em grau acentuado precisa de internamento em instituição especializada, e nesse caso
pode haver mobilização de sentimentos de culpa por parte dos familiares, além das desagradáveis
vivências já existentes. É necessário que se entenda a diferença entre internação de um parente e
abandono para com esse; e tal distinção precisa ser explicada para os familiares. Internar não significa
abandonar, embora internamento possa ser uma forma de abandono; depende como se lida com tais
práticas. Em certos casos de demência em estado avançado, permanecer com o paciente em casa pode
acarretar intenso e desnecessário sofrimento para ele e as pessoas próximas.

Vários filmes foram feitos acerca da Doença de Alzheimer. Um deles é Iris (Iris, 2001), dirigido por
Richard Eyre, sobre a história real da escritora irlandesa Iris Murdock, autora de vários romances,
livros e trabalhos nas áreas de filosofia, teatro e poesia, os últimos escritos já enquanto sofria do
quadro demencial da doença. No filme, observam-se as falhas de memória que vão aos poucos se
141

acentuando na escritora. Numa entrevista na televisão, não consegue prosseguir respondendo a uma
pergunta que lhe é feita porque não recorda da formulação inicial da mesma. Em determinados
momentos não lembra onde esteve ou o que fez, minutos atrás. O filme mostra inclusive trechos de
uma avaliação neuropsicológica, onde, por exemplo, o entrevistador pede para a pessoa identificar e
nomear objetos de uso comum ou responder sobre assuntos ligados à memória explícita. Mas são
mostrados também, na personagem, outros comprometimentos neuropsicológicos além das amnésias,
como desorientação, déficit de raciocínio, dificuldades de executar atividades motoras, descontrole
emocional, não entender muitas frases ditas a ela (afasia de compreensão) e outras alterações da
linguagem e da organização do pensamento. Há momentos em que a personagem demonstra muita
ansiedade e agitação, mas, com a progressão da doença, vai apresentando certo distanciamento
emocional, e a apatia se torna evidente. Iris Murdock vem a falecer em 1999, aos 79 anos, numa
instituição para pessoas que sofrem de demências. Seu marido, o professor John Bayley, a manteve
em tratamento na própria casa até as últimas fases da doença, até que reconheceu não ser possível
continuar sem o internamento. Ele é o autor do livro sobre a vida da escritora, do qual foi baseado o
roteiro do filme.

Lyra Bastos (1997) nos relata o caso de uma paciente com demência em estado avançado, e que
apesar de ser totalmente dependente da filha, seus registros mnêmicos em relação a esta já se haviam
perdido. O interessante é que ainda mantinha uma forte ligação afetiva com ela, sempre esperando
sua volta para casa com expectativa. Não mais a reconhecia, mas permanecia o sentimento de afeição
por aquela mulher, sendo que a paciente chamava-a de “mamãe”. Ou seja, apesar da amnésia,
sobrevivia à vivência afetiva deslocada para alguma lembrança da mãe, e as duas mulheres podiam
deixar fluir os sentimentos entre elas.
142

CAPÍTULO 5

IMPULSOS E COMPULSÕES

1. ATOS VOLUNTÁRIOS E INVOLUNTÁRIOS

2. ATOS IMPULSIVOS – IMPULSOS PATOLÓGICOS

3. ATOS COMPULSIVOS – COMPULSÕES

4. TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO (TOC)

5. FENÔMENOS OBSESSIVO-COMPULSIVOS E TOC MOSTRADO


ATRAVÉS DA ARTE

6. O ESPECTRO DOS ATOS IMPULSIVOS / COMPULSIVOS E SEU


SIGNIFICADO: ENTIDADE MÓRBIDA ESPECÍFICA OU SINTOMA DE
OUTROS TRANSTORNOS MENTAIS?

7. PRINCIPAIS COMPORTAMENTOS IMPULSIVOS E /OU COMPULSIVOS

8. BULIMIA E ANOREXIA NERVOSA

9. COMPULSÕES, IMPULSOS E TIQUES


143

1. ATOS VOLUNTÁRIOS E INVOLUNTÁRIOS

Ao abordarmos assuntos ligados à psicopatologia da vontade, como impulsos e compulsões, torna-se


importante tecer algumas considerações sobre os atos voluntários e involuntários, a fim de uma
melhor compreensão daqueles fenômenos.

Dentre os vários movimentos corporais que ocorrem em nosso organismo, aqueles monitorados
conscientemente pelo psiquismo têm um papel fundamental na integração mente-corpo. Quando
alguém faz deliberadamente o movimento de chutar uma bola que estava parada ou escrever em um
muro, está tendo o que chamamos de ato voluntário. Esses exemplos são ações simples, mas há os
movimentos bem mais complexos, como os executados pelo maestro regendo uma orquestra, onde,
em questões de segundos, ele decide e executa o levantar, baixar, movimentar suavemente os braços,
mover-se em direção a um determinado grupo de músicos ou outras ações que exigem concentração
e movimentação específica.

O ato ou ação voluntária pode ser compreendido como resultado de um processo – processo volitivo
– ocorrendo em etapas que culminam na ação em si. Intenção, deliberação, decisão e execução são
as fases desse encadeamento. Como já pontuamos em outros tópicos, os fenômenos psicológicos não
são estanques, bem delimitados, mas atravessam um continuum de transição entre suas partes ou
etapas que, na prática, formam um complexo integrado, mas cuja sistematização tem grande valor
didático. É assim que devemos ver cada uma dessas fases no conjunto do ato voluntário.

Intenção ou Propósito: Fase em que se esboçam as tendências de ação, geralmente fazendo com que
nossa atenção se volte para determinado objeto. Nesse momento, conteúdos inconscientes, muitas
vezes imperceptíveis para o indivíduo, além dos elementos conscientes, vão influenciar o ato
voluntário que se concluirá mais adiante. Nessa primeira fase do processo, já estarão exercendo
influência os chamados motivos (razões intelectuais para o ato volitivo) e os móveis (componentes
afetivos para tais atos, com conteúdos atrativos e repulsivos que contribuirão para o rumo do
encadeamento). Motivos e móveis estão também presentes em todas as fases do processo volitivo.

Deliberação ou Análise: Etapa onde há uma ponderação consciente em relação às possibilidades da


ação, ou seja, a pessoa analisa as alternativas possíveis de execução, pesando os prós e os contras dos
atos ou caminhos a seguir, fazendo uma apreciação da situação e as possíveis implicações do que for
deliberado, o que a colocará diante da possibilidade de decisão sobre uma ou mais opções que terá ao
seu alcance, já entrando na terceira fase do processo volitivo.

Decisão: Considerado o momento culminante do processo volitivo, onde é feita a opção por uma das
alternativas de ação, com móveis e motivos sendo então eleitos, em detrimento de outros afastados
do processo de escolha. A tomada de decisão demarca o começo do ato voluntário propriamente dito.
Lembrar que a ação é, sobretudo, exercício da vontade na musculatura voluntária, envolvendo decisão
144

por movimentos ou por ausência deles. Escolher entre ficar sentado e imóvel ou levantar-se e andar,
ambas serão ações voluntárias.

Execução: Fase que representa a ação voluntária em si, após a tomada de decisão na fase anterior,
envolvendo movimentos regidos pela vontade consciente, também chamados de ações psicomotoras,
pois envolvem a participação de conteúdos psicológicos (vontade) e estruturas da motricidade
(musculatura esquelética, inervações, cérebro). Nesse momento se consuma o término de um processo
que até então se passava basicamente no campo do mental.

Conta-se que Miguel Ângelo, ao esculpir a imagem de Davi (escultura com cerca de 4 metros de
altura, exposta na Galleria dell’Accademia, em Florença,), pretendeu cristalizar o momento em que
o jovem decidia enfrentar o guerreiro Golias. De fato, quem já teve a oportunidade de admirar aquela
obra prima, inclusive a perfeição das linhas anatômicas do corpo (salientando os músculos e veias
dos braços e das mãos), observa a face de um Davi expressando força moral e determinação para
passar à última fase do processo volitivo, a execução da luta com Golias. Se seguirmos a história
contada pela Bíblia, antes, Davi tomara o conhecimento que o guerreiro do exército inimigo chamava
algum soldado de seu povo para lutar e fizera uma ponderação consciente das condutas possíveis,
portanto passara pelas fases de intenção e análise de um contexto que exigia decisão, terceira fase que
o artista consegue esculpir no rosto e postura de um Davi despido de armaduras e armas pesadas,
levando apenas uma funda com algumas pedras, quando, então, executará a ação voluntária do
caminhar até o inimigo e derrubá-lo ao atingir-lhe a fronte.

Mas, se nesse momento da vida de Davi, as quatro fases do processo volitivo estão bem sequenciadas
e até espaçadas, culminando na ação voluntária do caminhar para a luta e arremesso da pedra, nem
sempre nossos atos voluntários são assim tão bem definidos. Às vezes, as etapas se passam em frações
de minutos. Um piloto de corrida encontra-se em alta velocidade há alguns quilômetros da linha de
chegada, à frente de todos os outros veículos, quando percebe defeito em seu carro e que a qualquer
momento poderá parar e perder a prova. Analisa a situação e reflete que tem a possibilidade de manter
o carro na mesma aceleração, arriscando o 1º lugar, ou diminuir a exigência com o mesmo, não forçar
o motor, mas perder posições e garantir um 3º lugar. Decide manter a velocidade e ser o primeiro na
linha de chegada, executando os movimentos para isso, mas o veículo quebra e nosso piloto não chega
ao fim da corrida. Nesse exemplo, temos as quatro fases do processo volitivo – propósito, análise,
decisão e execução – só que vivenciados em questão de minutos ou segundos.

Todavia, nem toda ação ou movimento do nosso corpo pertence à categoria de ato voluntário,
mediado pela vontade. Existem, por exemplo, os movimentos meramente neurológicos,
involuntários, como os atos reflexos que observamos quando o médico, ao nos fazer o exame físico
com um instrumento semelhante a um pequeno martelo, bate firmemente em nosso joelho e a perna
se move involuntariamente, fenômeno chamado de reflexo patelar. Inúmeros outros reflexos existem
no funcionamento do corpo humano, constando de movimentos desprovidos de intencionalidade
psicomotora, mas apenas de ação motora. Da mesma forma, além dos atos reflexos, há também todo
um conjunto de movimentos involuntários que se acha sob o comando do Sistema Nervoso Autônomo
(SNA), como os batimentos cardíacos, movimentos peristálticos dos intestinos ou de expansão e
retração dos pulmões, que não têm a participação da intencionalidade volitiva.

Entre esses dois extremos em termos de intencionalidade consciente – atos voluntários e atos reflexos
– existem os atos automatizados (automáticos) e os impulsivos.

Os atos automatizados se fazem presentes na execução involuntária de movimentos que já


pertenceram à categoria de voluntários, mas que, pelo aprendizado e repetição, deixaram, ao menos
em parte, de ser comandados pela consciência voluntária, a exemplo do caminhar, correr, andar de
bicicleta, dançar e tantos outros comportamentos que executamos “quase sem sentir”. O ciclismo é
145

um exemplo clássico: inicialmente, com movimentos voluntários, começamos aprendendo a colocar


os pés nos locais corretos da bicicleta, movê-la para esquerda ou direita, segurar corretamente a parte
própria para as mãos, treinar o equilíbrio do corpo sintonizado até que conseguimos dominar
perfeitamente o andar e o manejo da bicicleta. Daí em diante, quase não pensamos mais em todas
aquelas regras e práticas do ciclismo; simplesmente “deixamos” a ação se dar automaticamente.
Todavia, esta continua com a supervisão e possibilidade de intervenção da vontade, pois podemos
voltar à atividade voluntária, caso achemos necessário ou o contexto externo a requerer. Se a roda da
bicicleta começa a apresentar algum defeito, por exemplo, logo sentimos a presença desse fato e,
agora com a participação da intencionalidade voluntária, executamos os atos para contornar o
problema.

Nessa faixa de ações intermediárias entre o que é ato voluntário e reflexo, temos os atos instintivo-
impulsivos, considerados movimentos involuntários, às vezes parecendo estar próximo à ação
reflexa pela sua possível subtaneidade, mas dela diferenciando-se por serem ações que envolvem
mecanismos extraconscientes ligados à defesa do próprio indivíduo, à preservação da vida, ao
conforto do corpo, enfim, à homeostase organopsicológica da pessoa. Atos instintivo-impulsivos
seriam movidos pela existência subjacente do que chamamos de instinto, e embora sejam providos
de finalidade, não são monitorados pela vontade consciente, não havendo as quatro etapas do processo
volitivo, passando-se direto da fase de intenção para a execução (ação). Alguém vai distraidamente
atravessando uma rua e não percebe que um carro em velocidade se move em sua direção, quando,
repentinamente, a presença do veículo é notada como perigo iminente, provocando um movimento
de salto que evita o acidente. Em outro exemplo, um soldado na frente de batalha atira repentinamente
no inimigo, no momento em que este está prestes a lhe alvejar. Em ambos os casos, há a vivência,
por parte das pessoas, de ter executado atos que lhe salvaram a vida, mas que não foi algo pensado,
planejado, como são os atos voluntários. Esses atos impulsivos, evidentemente, nada têm de
psicopatológico, são movidos pela tendência natural de autopreservação, pulsão de vida, em plena
adequação com o contexto em que se passaram e empaticamente compreensíveis para o observador.

Instintos são características inatas e herdadas dentro de uma espécie animal e que, no caso do ser
humano, devido à participação de fatores psicossociais na manifestação comportamental dessas
características, tende-se a utilizar o termo pulsão ao invés de instinto. Obviamente, nem toda
manifestação instintiva (pulsional) se faz através de atos impulsivos; os instintos podem ser
vivenciados, também, na forma de necessidades psicofisiológicas. Por exemplo, a pulsão ligada à
sobrevivência, à vida, à autopreservação, pode ser sentida, em nível consciente, em forma do que
chamamos de fome ou necessidade de comer, e a pulsão sexual através do desejo ou excitação no
campo do erótico.

2. ATOS IMPULSIVOS – IMPULSOS PATOLÓGICOS

Os atos impulsivos podem ser desprovidos de uma adequação ao contexto em que ele se insere e não
estar ligados a manifestações instintivas subjacentes, podendo ser inclusive prejudiciais às interações
psicossociais em que ocorrem, e, então, os autores falam de impulsos patológicos ou simplesmente
de atos impulsivos (deixando implícito, com esse último termo, que não estão se referindo aos atos
instintivo-impulsivos saudáveis dos quais falamos anteriormente). A denominação impulsos
inadequados pode também ser utilizada para esses distúrbios. A característica de subtaneidade do
ato está presente. Paulo Dalgalarrondo (2008) os compara a uma espécie de “curto circuito do ato
voluntário”, e Isaías Paim (1982) lembra que são desprovidos de finalidade e, muitas vezes, vêm
associados à falta de consideração para com os demais indivíduos. Um dos mais estudados são os
atos agressivo-destrutivos, na forma de impulsos heteroagressivos inadequados voltados contra as
pessoas, muitas vezes ocorrendo naqueles indivíduos com personalidade psicopática (atualmente
também chamada de personalidade antissocial), onde praticamente não há sentimento de culpa,
146

arrependimento ou preocupação pela agressão impulsiva. Todavia, há inúmeras outras situações onde
impulsos heteroagressivos inadequados ocorrem, inclusive, em pessoas eticamente sensíveis e sem
doenças mentais.

Vejamos um exemplo de impulsos patológicos apresentado no Manual Clínico dos Transtornos do


Controle dos Impulsos (ABREU, C. N.; CORDÁS, T. A.; TAVARES, H, 2008, p. 31).

Marcelo tem 28 anos. Mora com a noiva, que lhe deu um ultimato, ameaçando romper a
relação se ele não se tratasse. Há uma semana, ele foi comprar bananas na feira a pedido
dela e envolveu-se em uma discussão com o feirante, perdeu o controle e quebrou a banca de
frutas. Teve que ser retirado da delegacia pela noiva e não permaneceu preso porque a vítima
retirou a queixa. O evento que motivou a agressão foi irrisório se comparado à exuberância
da reação. Ele solicitou banana nanica ao feirante, que insistiu que levasse outro tipo de
banana. Marcelo então respondeu de forma ríspida, e iniciou-se a discussão que teve o
desfecho relatado. O paciente conta que, para sua infelicidade, esses episódios são comuns
em seu cotidiano. Há pouco tempo, ao ser ofendido verbalmente por um motorista no trânsito,
perseguiu-o e, no sinal vermelho, desceu do carro. Arrancou o motorista pela janela, quando
foi detido por pedestres que passavam pelo local. Marcelo é faixa preta em caratê e tem força
e habilidades surpreendentes para uma pessoa de baixa estatura e físico comum como o dele.
Seu mestre não quer mais treiná-lo porque ele não tem demonstrado a disciplina necessária,
envolvendo-se em brigas de rua quando isso deveria ser evitado ao máximo. Ele próprio sente
muita vergonha de seu descontrole e está motivado para tratar-se, porque quer recuperar o
respeito da noiva e de seu mestre. Além disso, seus episódios de explosão são seguidos de dias
de remorso genuíno que o torturam.

Outro paciente, este observado em um CAPS, com aproximadamente 25 anos de idade, tendo sua
doença se iniciado há uns cinco, sobressaindo-se desorganização do pensamento, apatia, excessivo
retraimento e ideias delirantes não sistematizadas (diagnóstico de esquizofrenia hebefrênica),
apresentava o seguinte ato impulsivo patológico: se estava conversando, andando pelas calçadas ou
no ônibus, repentinamente tinha “vontade de se jogar no chão”, impulso que executava e ele mesmo
não sabia explicar o porquê (não havia alucinações de vozes imperativas nem atividade delirante
acompanhando tais atos), comportamento que o fazia em algumas ocasiões sujar a roupa e, às vezes,
ferir-se. Apesar de tentar, em algumas ocasiões, controlar tal conduta, não o conseguia.

Comparando os exemplos, observamos que, em ambos, os atos impulsivos são repentinos e


inadequados ao contexto situacional, bem como a vontade das pessoas estarem debilitadas na
tentativa de controle dos impulsos. Os dois relatos mostram também que, geralmente, no momento
da execução do ato impulsivo, a pessoa não tem consciência crítica do distúrbio nem sofre durante a
ação do mesmo. Mas é importante lembrar que, em muitos casos, posteriormente ao ato realizado,
pode haver sofrimento (remorso, arrependimento, culpa, vergonha) e surgir consciência crítica do ato
descabido já efetuado, como é observado principalmente no primeiro relato. Um aspecto diferencial
entre os dois exemplos acima é que, no primeiro, observamos que a inadequação está ligada à
desproporção entre a reação da pessoa e o motivo que precipita os atos impulsivos agressivos; no
segundo, o impulso, além de inadequado em si, não é provocado por estímulos externos,
acompanhando-se de uma incompreensibilidade psicológica maior que a do anterior.

A causa dos impulsos patológicos parece englobar uma multiplicidade de fatores, com elementos
organoneurológicos e psicológicos, dependendo também do diagnóstico subjacente aos atos
impulsivos. No primeiro caso descrito acima - o de Marcelo - os autores do livro citado dão o
diagnóstico de Transtorno Explosivo Intermitente (TEI), cuja característica básica é a desproporção
entre a reação impulsiva e o motivo que a precipitou. Após os acessos agressivos, a pessoa com TEI
tende a apresentar intenso remorso, até porque, fora os episódios impulsivos, comumente ela não é
considerada violenta. Sabe-se também que, muitas vezes, seus impulsos são precedidos por
147

acontecimentos em que a mesma sentiu-se ofendida, mas não apresentou reação. Nos dados sobre
Marcelo, há informações que o mesmo, antes do episódio das bananas, vinha de um dia cansativo em
que trabalhara bastante, ouvira brincadeiras do chefe sobre sua estatura e dormido pouco a noite,
pensando no fato da noiva o ter chamado para uma conversa sobre o relacionamento deles. Muitas
vezes, é comum os indivíduos com TEI tolerar determinadas situações abusivas por não saberem lidar
de forma amadurecida com elas, recorrendo a respostas impulsivas de agressão quando “esgotados”.
Com frequência, o chamado “pavio curto” está presente nas características da personalidade dessas
pessoas (afinal, o termo “explosivo” se encontra contido na sigla TEI).

Em emergência psiquiátrica, uma jovem paciente, foi atendida em agitação psicomotora, pois estava
quebrando objetos da casa (vivia com seus pais) e se autoagredindo, batendo com a cabeça nas
paredes, rasgando suas vestes e gritando alto. Segundo as palavras dos pais, tinha essas “crises
histéricas” quando contrariada em suas pretensões. Parecia ser uma pessoa com dificuldades de lidar
com as frustrações, até porque foi habituada, desde criança, a ser frequentemente atendida em seus
desejos, e os pais não estavam conseguindo pôr limites nos comportamentos dela, bem sugestivos de
imaturidade emocional. Quando os impulsos agressivo-destrutivos se dirigem a objetos (quebrar
louças, rasgar roupas, destruir móveis, atirar copos, garrafas ao chão, etc.), são denominados de
frangofilia. No caso dessa paciente, havia também impulsos autoagressivos, modalidade que
estudaremos mais adiante. Esse exemplo e o de Marcelo sugerem a presença de componentes
psicológico-emocionais contribuindo no aparecimento dos sintomas. Os atos impulsivos também
podem estar presentes nas neuroses histéricas (transtornos dissociativos) e em determinados tipos de
distúrbios de personalidade, cuja formação desde criança avança pela vida adulta, manifestando-se
com vários sintomas, inclusive impulsividade.

Todavia, atos impulsivos podem ser sintomas de determinadas epilepsias e distúrbios associados a
lesões cerebrais. Um exemplo histórico envolvendo essa questão foi o julgamento de Hippolyte F,
em 1884, na França, por ter tentado impulsivamente matar sua esposa, quando então o médico
Lengrand de Saulle, sem ter os recursos técnicos que se tem hoje, o defendeu em um tribunal,
argumentando que tal homem só veio a ser irritadiço, “genioso” e impulsivo, sempre discutindo com
a mulher e colegas de trabalho, a partir de um traumatismo craniano sofrido há alguns anos, todavia,
antes era conhecido por sua natureza suave e prestativa. Com relatos sobre a vida de Hippolyte, o
médico convenceu o júri a absolver o réu. Hoje, com mais recursos e conhecimentos técnicos, vários
casos clínicos semelhantes são agrupados, no diagnóstico da CID 10, em um tópico denominado
“Transtornos de Personalidade e de Comportamento Decorrentes de Doença, Lesão e Disfunções
Cerebrais” (Transtorno Orgânico de Personalidade), onde se lê: “Esse transtorno é caracterizado por
uma alteração significativa dos padrões habituais de comportamento pré-mórbido. A expressão de
emoções, necessidades e impulsos é particularmente afetada”. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE
SAÚDE, 1993, p.65.)

Uma pessoa pode planejar, ao longo do tempo, seu suicídio, chegando depois a executá-lo de forma
bem elaborada. Mas, há também o impulso suicida, em que o indivíduo, sem planejamento e de
forma impulsiva, joga-se diante de um veículo em movimento ou, tendo uma arma de fogo próxima,
repentinamente atira nele mesmo. Um paciente deprimido, sem estar necessariamente com
determinação consciente de se matar, ao aproximar-se da varanda do alto de um edifício, pode jogar-
se impulsivamente. Mas, embora a depressão seja um diagnóstico muito ligado ao suicídio (impulsivo
ou não), outros transtornos mentais podem levar a esse ato, como certos casos de esquizofrenia e
distúrbios de personalidade com propensão a impulsividade. Através das informações de familiares
e relatos de pacientes que sobreviveram após impulsos suicidas, sabemos existir tal modalidade de
ação impulsiva.

A piromania é um impulso patológico a atear fogo em objetos ou provocar incêndios. Pode ser
observada em pessoas com retardo mental, às vezes ligada ao prazer de ver as chamas. Ocorre também
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em distúrbios de personalidade com características explosivas de violência e agressividade. Uma


mulher piromaníaca, com episódios de atear fogo em objetos e móveis de sua casa, ao ser internada
para observação numa emergência psiquiátrica colocou fogo na enfermaria da mesma. Posteriormente
tentou isso em um segundo serviço de emergência. Em pelo menos duas clínicas psiquiátricas, ela
também já provocara princípio de incêndio. De forma impulsiva conseguia burlar a vigilância sobre
ela e arranjava uma forma de conseguir seu intento (ou pelo menos iniciá-lo).
Segundo Honório Delgado (1969), entre os antecedentes dos pirômanos, muitas vezes há história de
tentativas de suicídio ou homicídio, assassinatos consumados e impulsos patológicos (não só
piromaníacos), podendo ser precipitados pelo uso de bebida alcoólica. Podem também serem
sintomas de determinadas epilepsias. De forma geral, álcool e outras drogas podem relaxar os freios
dos comportamentos impulsivos, não só os de atear fogo. Convém lembrar que nem todo incendiário
é piromaníaco, a exemplo da pessoa que, de forma planejada, põe fogo em sua loja comercial à beira
da falência com intenção de receber o seguro financeiro.

3. ATOS COMPULSIVOS – COMPULSÕES

Atos compulsivos, também chamados de compulsões, são comportamentos caracterizados por


persistência do fenômeno, sofrimento psíquico, impotência da vontade para controlá-los, consciência
crítica da irracionalidade do ato e reconhecimento de que esse é produzido pelo próprio indivíduo que
o executa. Detalhando melhor essas características:

Persistência do fenômeno: Os atos estão presentes no dia a dia da vida da pessoa e, além disso,
algum tempo depois de ser executados, nova necessidade de repeti-los faz com que voltem a ser
realizados. Por exemplo, um paciente com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), entre outros
comportamentos, tinha que verificar, todas as vezes que saía de casa, se a porta da frente estava
mesmo trancada por ele, abrindo-a e fechando-a por três vezes, e em cada momento que a fechava,
dava uma meia-volta na chave para um lado e para o outro, procurando obter algum sentimento de
alívio e segurança.

Sofrimento psíquico: No momento em que está envolvida com os atos compulsivos, a pessoa tende
a sofrer com eles, sofrimento que vai desde um desconforto ou irritação pela execução dos mesmos,
até um desespero interior. Com o passar do tempo (meses, anos), o indivíduo pode se acostumar com
o comportamento, e então o sofrimento associado ser mínimo. No exemplo acima, o paciente sentia-
se angustiado por ter que executar o ritual em relação à porta.

Impotência da vontade: Pode-se tentar resistir às compulsões, fazer esforço para não executá-las ou
pelo menos adiá-las, apresentar uma luta psíquica entre a realização ou não do ato, mas, geralmente
a vontade é impotente para controlar a execução delas. Novamente aqui, com o passar de meses ou
anos, o indivíduo pode ir se acostumando ao fenômeno, perceber que não consegue lutar contra ele e
então praticamente não oferecer mais resistência ao mesmo. No caso que estamos exemplificando, a
pessoa tentava, ao sair de casa, resistir e não executar o ritual de verificação, mas a angustia e o medo
em relação a ter esquecido a porta aberta lhe impedia qualquer tentativa de exercício de força de
vontade no sentido de resistir às compulsões.

Consciência crítica de irracionalidade: A pessoa reconhece o caráter absurdo das compulsões,


dizem que “não tem sentido” ou “não tem lógica” o que está fazendo, os atos são reconhecidos pelo
indivíduo como algo despropositado ou racionalmente desnecessário. Seguindo o exemplo dado, o
paciente com TOC sabia, ao sair de casa, que na verdade trancara a porta, de forma que o ato de
verificação por três vezes para conferir esta certeza era algo vivenciado como logicamente absurdo.
149

Vivência de propriedade: Reconhecimento dos atos como sendo algo do próprio indivíduo, com as
compulsões vivenciadas em forma de comportamentos produzidos por ele, por mais absurdos que
sejam. O sujeito se reconhece como o autor das ações compulsivas. No exemplo, a pessoa sabe que
os movimentos feitos para o ritual de verificação da porta são executados unicamente por ela. Isso
faz diferença para o fenômeno chamado “vivências de imposição ou de influência” (ao qual nos
referimos no capítulo de delírios), onde a pessoa vivencia seus pensamentos e atos como se não
fossem seus, mas “colocados” por uma “força de fora” em sua cabeça ou corpo. Nesses “atos
vivenciados como impostos”, ao contrário dos compulsivos, o indivíduo tem a experiência e certeza
que seus movimentos não são comandados por ele, mas sente-se manipulado como se fosse um
boneco de marionete ou robô teleguiado por força externa, havendo então, nesses casos, a perda da
vivência de propriedade. Os atos vivenciados como impostos são comuns em psicoses,
principalmente esquizofrenia, ao contrário das compulsões, onde sua presença não tende a se associar
ao afastamento psicótico da realidade.

Frequentemente, os atos compulsivos estão ligados ou são decorrentes de pensamentos obsessivos.


Assim, por exemplo, no campo mental, surge uma dúvida obsessiva em relação ao ter trancado ou
não a porta de casa, o que provoca o ato de verificação compulsiva que ilustramos no exemplo dado.
Outro paciente com TOC tinha frequentemente a ideia obsessiva de que, ao andar em ônibus,
esbarrara em alguma pessoa e essa caíra do veículo, morrendo na queda; precisava, então,
compulsivamente segurar as mãos de um dos terapeutas da equipe interdisciplinar do CAPS onde se
tratava e repetir a afirmativa “não matei, não matei”. Apesar da consciência crítica de que tal
acontecimento não poderia ter ocorrido, até porque as outras pessoas do ônibus e os pedestres se
alarmariam com um acidente assim, havia sempre um sentimento de alguma dúvida e profunda
angustia.

Os atos compulsivos diferem em alguns aspectos dos impulsivos. Esses são repentinos, sem a
vivência interior de luta psíquica entre o realizar ou não o ato, muitas vezes presente naqueles. Para
Nobre de Melo (1981), compulsões são impulsos atenuados ou debilitados. Porque, diferentemente
do que ocorre nos comportamentos impulsivos, a ação compulsiva não se dá de forma tão imediata.
Por outro lado, no momento do ato impulsivo, praticamente não há aquele sofrimento subjetivo nem
a reflexão crítica que comumente encontramos associados e simultâneos às compulsões. Quando o
sofrer e o senso crítico ocorrem ligados ao ato impulsivo, conforme já dissemos, geralmente é depois
dele ser concretizado, havendo um sentimento de arrependimento ou culpa e o reconhecimento crítico
de que foi feito algo descabido (como vimos no exemplo de Marcelo, um caso de transtorno explosivo
intermitente).

4. TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO (TOC)

Voltando aos atos compulsivos, é no chamado Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) onde


observamos claramente sua manifestação, geralmente associados aos pensamentos obsessivos. De
fato, a grande maioria dos pacientes com TOC apresenta obsessões e compulsões, mas há casos
predominantemente obsessivos e aqueles com predominância de sintomas compulsivos. Tal distúrbio
mental, também chamado de neurose obsessivo-compulsiva, é um quadro cujos sintomas se
expandem para diversos momentos da vida da pessoa, comprometendo seu dia a dia e o
relacionamento interpessoal. No capítulo sobre delírios, quando fizemos a diferenciação entre ideias
delirantes e pensamentos obsessivos, citamos o caso da mulher que apresentava ideias e medos
relacionados a engravidar, a ponto de não dormir direito com esses pensamentos, fazendo uso de
anticoncepcionais orais, exigindo que o esposo só tivesse relações sexuais com ela nos dias “não
férteis” de seu ciclo menstrual, tendo também forte medo de engravidar pela possibilidade de algum
homem ter se masturbado no banheiro ou na enfermaria da clínica onde se tratava e o esperma tocar
nela, precisando, compulsivamente, adotar exageradas medidas de limpeza. Também tinha
150

compulsões para pedir desculpas repetidamente e lavar a boca quando falava alguma palavra ou frase
considerada por ela como uma grosseria (que, às vezes, saíam num momento de irritação, como “me
deixe em paz!” ou “eu não quero conversar!”).

Mas, os principais tipos de compulsões (associados ou não às obsessões) podem ser sintetizados nos
três grupos abaixo, frequentemente encontrados na prática clínica.

Compulsões de lavagem e de evitação em tocar certos objetos: Geralmente devido pensamentos


obsessivos de contaminação ou sujeira, a pessoa lava, constantemente, as mãos ou objetos pessoais
(caneta, carteira, chaves, principalmente se caem ao chão), toma banhos inúmeras vezes ao dia, evita
tocar em dinheiro, maçanetas de portas ou usar assentos públicos. Evita tocar a mão de estranhos em
cumprimento e andar de transporte coletivo para não entrar em contato com as pessoas.

Compulsões de verificação: Comumente precedidas por dúvida obsessiva, a pessoa pode ter que
voltar para casa até mais de uma vez para conferir compulsivamente se deixou bem trancada a porta
ou fechou todas as bocas do fogão. Se tentar reagir e não verificar se esqueceu de tais procedimentos
de segurança, uma dúvida angustiante se apodera de seus pensamentos, e talvez não consiga realizar
bem suas atividades e obrigações fora de casa. Outro exemplo é o da pessoa religiosa confessar-se ao
padre de forma a ir e voltar diversas vezes ao confessionário numa mesma cerimônia litúrgica,
achando ter-se esquecido de contar algum “pecado”. Há também o verificar diversas vezes se um
objeto de valor está mesmo guardado numa caixa onde a pessoa sabe que o deixou. A propósito,
houve época em que o TOC era chamado de “loucura da dúvida”.

Compulsões de contagem e simetria: As primeiras estão geralmente associadas a obsessões de fazer


desnecessariamente contas de forma repetitiva, contar objetos com o olhar, associando-se muitas
vezes ao ato compulsivo de tocar algo por determinado número de vezes. As compulsões de simetria
implicam vários tipos, como colocar obrigatoriamente lado a lado canetas sobre uma mesa, bater com
a mão esquerda na parede após a direita a ter tocado ou enfileirar brinquedos ou outros objetos numa
ordem rigidamente simétrica. Um jovem paciente com compulsões de simetria, ao escorregar e cair,
arranhou o cotovelo esquerdo, tendo então que arranhar no mesmo chão o cotovelo direito.
Relacionadas às compulsões de contagem e simetria estão muitos daqueles comportamentos em que
a pessoa tem que andar pisando nos traços da calçada ou nos blocos de cerâmicas do piso numa
determinada ordenação, às vezes implicando em combinações numéricas da área que deve ou não ser
pisada.

Pode haver outros tipos de fenômenos obsessivo-compulsivos, muitas vezes ligados ao dia a dia do
paciente e a seu contexto de vida, como a compulsão de fechar as mãos no momento em que vai pegar
facas ou tesouras com os filhos por perto (e assim proteger-se para não para agredi-los), afastar-se de
uma tarefa para rezar compulsivamente (tentando anular pensamentos obsessivos de conteúdo
sexual), ou o demorar-se desnecessariamente fazendo algo que poderia ser completado em bem
menos tempo (como entrar noite adentro sofrendo por se impor a arrumar minuciosamente os móveis,
livros e roupas do quarto), desde que esse fazer tenham as características de um fenômeno obsessivo-
compulsivo. Quando o guardar e colecionar objetos adquire também essas características, temos o
chamado “colecionismo” obsessivo-compulsivo, em que, por exemplo, o paciente diz não poder jogar
fora os jornais que recebe todos os dias, guardando-os em determinado aposento, embora saiba que
nunca voltará a lê-los, mas se angustia enormemente com a ideia de desfazer-se dos mesmos, que
cada vez mais envelhecem e se deterioram. Outros exemplos chegam a ser mais absurdos, como
guardar compulsivamente lascas de unhas à medida que são cortadas, ou ter que ficar na janela do
quarto contando 10 taxis que passam, e só assim conseguir dormir.

Um caso clínico histórico de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, que ficou conhecido como “O


Homem dos Ratos”, nos é relatado por Freud (1969). Conta-nos ele em seus escritos que um homem
151

de nível universitário referia sofrer de ideias obsessivas desde a infância, tendo essas se intensificado
nos últimos quatro anos, sendo seu conteúdo voltado para pensamentos e temores que algo de ruim
acontecesse com o pai e com uma mulher que amava. Passara anos lutando contra ideias obsessivas,
perdendo muito tempo com elas, o que prejudicava o andamento de sua vida. O que fez tal homem
procurar Freud foi um acontecimento ocorrido quando estava em treinamento numa unidade militar.
Um oficial narrara uma forma de tortura onde o prisioneiro era amarrado com as costas e nádegas
para cima e um recipiente cheio de ratos era virado e pressionado sobre seu ânus, fazendo com que
os animais aí entrassem. A partir dessa estória começaram as obsessões envolvendo tal tortura, sendo
que dirigidas às figuras do pai (falecido há anos) e da mulher que o homem amava. Diminuía seu
sofrimento e frequência das ideias perturbadoras com uma “fórmula” que envolvia atos compulsivos,
ou seja, dizer a palavra “Mas...” acompanhada de um determinado gesto sugerindo repúdio, para em
seguida falar: “O que é que você está pensando?” Posteriormente, o oficial que relatara a forma de
tortura entregou-lhe uma encomenda que chegara pelo correio, falando: “O tenente ‘A’ pagou a taxa
de recebimento; você deve reembolsá-lo”. Logo em seguida, vieram-lhe ideias obsessivas de que,
caso não reembolsasse o referido militar, a tortura dos ratos realizar-se-ia em relação ao pai e a mulher
amada, o que provocou uma jornada compulsiva em busca do tenente “A”. Freud descreveu outras
ideias obsessivas e atos compulsivos desse homem, como o exemplo em que, no dia de uma viagem
da referida mulher, sentiu-se obrigado a afastar uma pedra na estrada, pois se não o fizesse, a
carruagem que levaria a jovem poderia passar nesse caminho e esbarrar naquela, todavia, minutos
depois, achou que isso era absurdo e novamente foi obrigado, por compulsão, a recolocar a pedra no
mesmo local em que estava antes. As reflexões de Freud voltavam-se para a ambivalência do homem
em relação ao pai, existindo muita agressividade reprimida, e para a mulher que ele amava, havendo
sexualidade intensa e precoce no transcorrer de sua vida. Os pensamentos referentes a ratos, de acordo
com as associações trazidas durante a análise, ligavam-se ao fato de ter levado uma surra do pai por
morder alguém quando criança, questões de envolvimento do genitor com o jogo (em alemão, havia
a ideia que um jogador é “rato de jogo”), erotismo anal e fantasias infantis de parto anal (Freud
levantou a hipótese que a neurose obsessivo-compulsiva teria ligações com regressão à fase anal do
desenvolvimento psicossexual). Nas concepções psicodinâmicas oriundas da psicanálise, as
obsessões e compulsões poderiam ter um sentido simbólico, ou seja, as fantasias obsessivas de matar
pessoas seriam, talvez, um ódio inconsciente em relação ao pai ou outra pessoa significativa, e o lavar
compulsivo ter um significado de eximir-se da “sujeira” e culpa. Hoje, essas formulações são
questionáveis e outras concepções etiológicas para o TOC são levantadas, conforme veremos adiante,
o que não necessariamente anula as construções propostas pela psicodinâmica. Em outra linha
psicológica, os teóricos do aprendizado desenvolveram esquemas na tentativa de tornar
compreensível muitos dos sintomas do TOC. Por exemplo, quando o indivíduo vai percebendo que
determinado comportamento reduz a ansiedade (inclusive ligada a ideias obsessivas), pode
desenvolver a repetição dessas atitudes que vão se tornando compulsivas para o alívio daquele
sentimento. A psicoterapia cognitivo-comportamental tentaria, entre outros procedimentos, a
dessensibilização desses esquemas inadequados.

Observe-se que nos exemplos de transtornos obsessivo-compulsivos os sintomas causam sofrimento,


consomem tempo, interferem no funcionamento das atividades da pessoa (acadêmicas, profissionais,
de inter-relacionamento com os outros), ou seja, não se trata de simples hábitos, superstições ou
mesmo alguns fenômenos obsessivo-compulsivos como variações do existir humano que não têm a
intensidade e frequência capaz de interferir no funcionamento do dia a dia da pessoa nem causar
significativo sofrimento. Alguns estudantes meticulosos são exigentes com seus cadernos, e ao errar
numa frase, preferem rasgar a página e escrever o texto de novo, ao invés de riscar a parte errada,
apesar do trabalho que isso possa dar. Há pessoas que são por demais perfeccionista no que fazem,
outras exageram um pouco na limpeza da casa e há aquelas excessivamente preocupadas com detalhes
e rígido cumprimento de regras. Crianças brincam de não pisar nas listas das calçadas ou não deixar
sapatos caídos e virados no chão, pois surgem ideias de que se fizerem assim, alguma “coisa ruim”
vai ocorrer, fenômeno chamado “pensamento mágico”. Este surge também em forma de superstições
152

no universo de crenças populares, como o evitar passar por baixo de uma escada, não deixar que um
gato preto atravesse seu caminho nem quebrar espelhos. Esses exemplos não devem ser classificados
como doenças, neuroses ou condições psicopatológicas, pois não têm a abrangência nem trazem o
prejuízo de um TOC ou doença afim no funcionamento psíquico da pessoa. Essa ressalva é inclusive
lembrada pelas classificações atuais dos transtornos mentais.

O transtorno obsessivo-compulsivo possui sintomas de intensidade variável, desde casos graves e


incapacitantes até aqueles de sintomatologia mais leve. Geralmente, os primeiros sintomas começam
a surgir no adulto jovem, adolescência e até mesmo na infância, evoluindo de forma crônica ao longo
do tempo, com épocas de exacerbação e períodos de melhora do quadro clínico, mas, comumente,
sem remissão e cura completa da doença. Muitas vezes, existem acontecimentos que agem como
fatores desencadeantes do TOC, a exemplo de morte de pessoas significativas, separações afetivas,
épocas de estresse produzido por excesso de atividades no trabalho ou estudo, gravidez, puerpério ou
outros estados que mobilizam conflitos ou fortes estados emocionais. Comumente, há uma demora
de cinco a dez anos entre o início dos sintomas e a procura por tratamento, com o indivíduo acometido
de TOC procurando manter em segredo seu estado mórbido, muitas vezes devido à vergonha por suas
“manias” e pensamentos “absurdos” ou receios fantasiosos de que as pessoas o encarem como alguém
perigoso por pensar comportamentos criminosos de agredir ou ferir os que o cercam. Quando,
geralmente após anos, os sintomas passam a lhe prejudicar fazendo com que não consiga dar conta
satisfatoriamente de suas atividades do dia a dia ou prejudiquem os relacionamentos interpessoais, é
que busca tratamento, por vezes induzidos a isso pela insistência de seus familiares. Mais
recentemente, um número maior de pessoas com TOC tem buscado ajuda terapêutica devido à
divulgação desse distúrbio pela mídia, inclusive com depoimentos de personagens de destaque social
(cantores, atores, políticos, etc.) que assumem sofrer e se tratar dessa condição mórbida.

Com o desenvolvimento das diversas técnicas de neuroimagem, foi possível levantar hipóteses
consistentes acerca dos determinantes organocerebrais do TOC, a partir dos gânglios da base,
aglomerados subcorticais de substância cinzenta interconectados entre si. Essas estruturas eram
relacionadas apenas à execução motora, mas, hoje, sabe-se que também têm relações com aspectos
mais elaborados do comportamento, incluindo aprendizagem, direcionamento cognitivo e motivação.
Estudos e pesquisas mostram a ligação entre gânglios da base e fenômenos obsessivo-compulsivos.
Por exemplo, distúrbios neurológicos que têm relação com um possível comprometimento de tais
gânglios (doença de Parkinson, coreia de Sydenham, doença de Huntington, e provavelmente
síndrome de Tourette) apresentam alterações psicomotoras e, muitas vezes, sintomas obsessivo-
compulsivos. Tais sintomas surgem também em outras condições patológicas que afetam os gânglios
da base, como AVC e traumatismos craniencefálico com lesões nessas estruturas subcorticais.
Considera-se também que o córtex frontal (mais especificamente orbitofrontal) e o tálamo estejam
relacionados ao surgimento de obsessões e compulsões. Pesquisas com neuroimagem funcional,
como tomografia por emissão de pósitrons (PET), têm mostrado aumento significativo da atividade
nessas duas estruturas, bem como nas regiões dos gânglios da base, em pacientes com sintomas
obsessivo-compulsivos. Por outro lado, os dois tipos de tratamento mais eficazes para o TOC –
medicações que regulem a serotonina cerebral e psicoterapia cognitivo-comportamental – diminuem
a referida hiperatividade mostrada pelo PET. Quanto aos medicamentos, hoje, é bastante conhecida
a evidencia de que os chamados ISRS (inibidores seletivos da receptação da serotonina), como a
fluoxetina e a sertralina, agindo nos receptores serotonérgicos, diminuem os sintomas obsessivo-
compulsivos. Em outra área de pesquisa no campo biológico, estudos sobre famílias e gêmeos com
TOC sugerem a existência de uma predisposição genética para esse transtorno mental, onde a
chamada “concordância genética” entre pares de gêmeos monozigóticos é bem maior que entre os
dizigóticos.

Hoje, o transtorno obsessivo-compulsivo é considerado uma doença cuja origem envolve fatores
biológicos, como vulnerabilidade genética, disfunção organofisiológica cerebral (inclusive
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desregulação da serotonina), mas também questões ligadas ao ambiente familiar em que o paciente
foi educado e vive. Entre essas últimas, estaria a convivência com pais que apresentam também
comportamentos compulsivos, atitudes de conivência e permissividade por parte deles em relação às
condutas obsessivo-compulsivas do paciente, hostilidade reprimida e constructos ligados às teorias
do aprendizado, em que o comportamento compulsivo vai sendo percebido e apreendido como formas
de alívio das tensões. O tratamento é congruente com essas concepções, através das medicações que
regulem a serotonina cerebral e psicoterapia cognitivo-comportamental.

5. FENÔMENOS OBSESSIVO-COMPULSIVOS E TOC MOSTRADOS ATRAVÉS DA ARTE

Como estamos fazendo ao longo deste trabalho, ilustrações didáticas de vários tópicos apresentados
vêm sendo trazidas também através de representações artísticas, inclusive pelo cinema, onde os
interessados em psicopatologia têm a oportunidade de observar a manifestação dos diversos sintomas
e doenças na área mental, bem como suas correlações com a dinâmica e contexto da estória
apresentada.

O filme O Aviador (The Aviator, 2004), do consagrado diretor Martin Scorsese, conta a história de
um dos milionários mais excêntricos dos Estados Unidos na primeira metade do século XX, que sofria
de TOC, Howard Hughes Jr., construtor de aviões, industrial, produtor e diretor de cinema e dono de
uma das maiores empresas aéreas norte-americanas, a TWA. Produziu um dos filmes mais caros de
Hollywood, “Hell's Angels”, sobre pilotos de avião na 1ª. Guerra Mundial. Hughes nasceu no Texas,
no final de 1905, e cresceu como estudante que se interessava por matemática, vôos e mecânica.
Viveu sob influência de sua mãe, que possuia um medo obsessivo de enfermidades infecciosas,
contaminação e germes, supervalorizando idéias e ações de limpeza. Talvez isso tenha feito o menino
crescer com uma concepção hostil do mundo e obsessiva preocupação em se defender do ambiente
exterior. A mãe morreu por complicações de gravidez, quando Howard tinha 17 anos, e dois anos
depois seu pai faleceu de enfarte, deixando para o filho a bem sucedida empresa produtora de brocas
para perfuração de poços de petróleo, a Hughes Tool Company. Já um milionário em sua
adolescência, passou a interessar-se por filmes e aviões. Sua vida amorosa foi conturbada, tendo
envolvimentos e separações com famosas estrelas de cinemas (entre as quais Katherine Hepburn, Ava
Gardner e Bette Davis).

Ao longo de sua vida (e isso é bem enfatizado no filme), Hughes vai exibindo comportamentos
obsessivo-compulsivos. A preocupação com a limpeza das mãos está presente em diversos momentos
do enredo. Numa cena em que Hughes está em um sanitário, tendo lavado e friccionado as mãos
compulsivamente, procura uma toalha de papel para colocar na maçaneta da porta a fim de abri-la
sem tocá-la diretamente; todavia, constatando que já utilizara todas, fica recuado, ao lado da porta,
esperando que outra pessoa entre no banheiro, e, quando isso ocorre, ele sai se esgueirando sem tocar
em nada. Em outro trecho do filme, após sua separação com a atriz Katherine Hepburn ele incinera
todas as suas roupas (inclusive a que está vestindo), e de madrugada, despido, liga para um de seus
homens de confiança solicitando que compre urgentemente novas vestimentas. Quando agentes do
FBI vasculham sua casa, revistando móveis, pisando em tapetes, tocando em livros, discos, Hughes
parece não ficar tão preocupado com a investigação em sí, mas desesperado com o fato de que mãos
impuras estão em contato com o interior de sua moradia. Enquanto está gravemente hospitalizado
devido acidente aéreo em que quase morria, além de preocupações obsessivas com moscas nas
janelas, exige que as laranjas para seu suco sejam cortadas e expremidas em sua frente, para que
pudesse vê-las e constatar que não estavam contaminadas. Hughes, desde o início da década de 40,
exigia das pessoas que entravam em contacto com os mesmos objetos que ele tocava, o uso de luvas
brancas ou lenços de papel. Isso é mostrado próximo ao final do filme, quando já está recluso em seus
aposentos.
154

Com o passar do tempo, o comportamento de Hughes vai ficando cada vez mais irracional, e seus
sintomas obsessivo-compulsivos vão se exacerbando e complicando-lhe a vida. Em dado instante do
filme, fica repetindo de forma compulsiva e incontrolável para um de seus funcionários: “Mas mostre-
me todos os projetos”... “Mas mostre-me todos os projetos”... levando as mãos à boca, tentando
controlar tais repetições. Em um momento de desespero com suas compulsões, tem que pronunciar e
soletrar compassadamente a palavra Q-U-A-R-E-N-T-E-N-A, como sua mãe fazia quando Hughes era
criança, ficando assim, um pouco mais aliviado. Caso se atrapalhasse na sequência correta das letras,
tinha que voltar a repeti-las na ordem certa. No final do filme, trancado em seus aposentos, para
receber os litros de leite com os quais se alimentava, dava as seguintes instruções para um dos homens
em quem confiava: “Pode entrar com o leite” (repete essa frase inúmeras vezes). “Tem que abrir a
sacola com a mão direita, depois incliná-la num ângulo de 45° em minha direção, para que eu possa
enfiar a mão na sacola, sem encostar no papel. Repetir desde o começo. Se houver algum desvio
dessas instruções, por menor que seja, o processo inteiro deve se repetir desde o começo”. Em outra
ocasião, ao pensar em dormir, decide se alimentar antes, e em frente a alguns litros de leite, fazendo
gestos com as mãos e braços, reflete: “Espera aí... E se esse leite estiver azedo? Esse leite está
estragado. Eu não devia pegar a garrafa com a mão direita, não devia tirar a tampa com a mão esquerda
e colocar no bolso esquerdo”... Completamente despido para evitar “contaminações”, coloca fitas no
interior de seus aposentos para separar partes “impuras” das “isentas de germens”. Curiosamente,
joga diversos lenços de papel no chão, fazendo o ambiente em que residia o contrário do que buscava,
ou seja, acumulava-se muita sugeira e desarrumação, até porque impedia que as pessoas entrassem
em seus aposentos para uma limpeza satisfatória. Mal trocava as roupas de cama (colocava lençois
por cima de lençois) e não cortava as unhas, cabelos e barba. Esse é um fenômeno contraditório às
vezes observado em pacientes com TOC que apresentam rituais de limpeza – os chamados
“comportamentos paradoxais” – em que, na prática, faz-se o inverso do que conscientemente se
procura fazer em termos de asseio e ordenação. Um dos estudiosos históricos dos fenômenos
obsessivo-compulsivos, Pierre Janet, comentou, numa ocasião, que não existia nada mais sujo que a
moradia de uma pessoa com compulsões de limpeza.

Em abril de 1976 (aos 70 anos de idade), Howard Hughes vem a falecer, vítima de parada cardíaca,
ocorrida em um avião que o conduzia de Acapulco a Houston, tendo passado seus ultimos anos no
México, fisica e mentalmente doente, isolado de todos os amigos, acompanhado apenas por médicos
e guarda-costas. Pela intensidade e gravidade dos sintomas obsessivo-compulsivos, bem como o
surgimento de outros distúrbios psicopatológicos além desses, é possível que tivesse uma
personalidade mais comprometida em termos de desestruturação mental do que apenas TOC. Pelo
que se contou ou se escreveu acerca do comportamento de Howard Hughes, inclusive baseando-se
no que foi mostrado no filme “O Aviador”, ele talvez apresentasse sintomas fronteiriços a um quadro
psicótico. Em certos momentos parecia “ver” imagens inexistentes, como na cena em que Ava
Gardner diz “não haver nada” numa pia, quando ele mira atentamente a água descendo pelo ralo como
se visse algo a mais naquele instante. Também se observa comportamentos que beiram psicose com
ideias de perseguição ou autorreferência, como a preocupação de um seu telefonema estar sendo
gravado ao ligar de madrugada para um dos funcionários, a crença de que um faxineiro o observa
misteriosamente ou, no meio de um grupo de pessoas, achar que algumas delas lhe espreitam e
caminham em sua direção. Todavia ele não parecia entrar em surto de forma prolongada e intensa
como ocorre na esquizofrenia, bem como não havia desorganização severa e contínua de seu
pensamento, podendo, inclusive, comparecer a CPI que investigava sua empresa de aviação e,
brilhantemente, em público, defender-se das acusações. Em termos de psicopatologia, diz-se que uma
pessoa pode estar entre um quadro não psicótico (como os do tipo neurótico) e um conjunto
sintomatológico francamente psicótico (como na esquizofrenia), chamando-se tal condição
intermediária de “personalidade fronteiriça ou borderline”. É possível que esse fosse o caso de
Howard Hughes.
155

O filme também pontua, inclusive na cena inicial, o relacionamento de Hughes com sua mãe, em que
essa lhe impõe um ritual de lavagem e de repetição de palavras, como “quarentena” (que depois vão
ressurgir no milionário adulto), mostrando a possibilidade de uma introjeção do quadro
psicopatológico obsessivo-compulsivo da mãe, mas também nos dá margem para lembrarmos a
possibilidade do componente genético-hereditário. Por outro lado, através do “O Aviador”, podemos
lembrar que, muitas vezes, a cronificação do quadro faz com que o indivíduo não lute contra as
compulsões e até deixe, pelo menos em parte, de reconhecer o caráter irracional delas, podendo até
perder parcialmente a autocrítica e aceita-las como necessárias, o que reforça, nesses casos, a
proximidade com características psicóticas.

Outro filme que aborda o tema do Transtorno Obsessivo Compulsivo é Melhor é Impossível (As Good
As It Gets, 1997), do diretor e roteirista James Brooks, produção com várias indicações para o “Oscar”
de 1998 e tendo ganhado nos itens de melhor ator (Jack Nicholson) e melhor atriz (Helen Hunt), além
de melhor filme na categoria comédia no “Globo de Ouro” daquele mesmo ano. O filme trás não só
um exemplo de TOC, mas algumas características que muitas vezes encontramos na estrutura de
personalidade do indivíduo com tal distúrbio, particularidades que podem interferir
significativamente em seus relacionamentos pessoais.

No filme são mostrados diversos sintomas e rituais obsessivo-compulsivos da personagem principal,


o escritor Melvin Udall (trancar a porta três ou quatro vezes, ligar e apagar as luzes repetitivamente,
apresentar espécie de ritual na forma de levantar-se da cama e calçar os chinelos, “driblar” as listas
dos pisos, ter que usar seus próprios talheres de plástico quando vai à lanchonete), mas também o
caráter ou “personalidade obsessivo-compulsiva”, também chamada de “personalidade anancástica”.
Um rígido controle sobre si mesmo e tentativa de estendê-lo às demais pessoas e ao ambiente
circundante (inclusive tendência a procurar que os outros se submetam a sua maneira de fazer as
coisas), supervalorização da lógica e da razão em detrimento da expressão dos sentimentos e
emoções, passando a ideia de alguém emocionalmente distante, podendo, às vezes, parecer seca,
pedante, irônica e egoisticamente teimosa – aí estão algumas das características desse tipo rígido de
personalidade. O indivíduo tende também a se preocupar exageradamente com detalhes, regras, listas,
ordem, esquemas e a ser excessivamente perfeccionista. Com essas características, muitas vezes não
tem amigos nem faz por onde ter, até porque evita dividir seus rígidos limites com os outros.
Assistindo ao filme “Melhor é Impossível”, podemos observar praticamente todas essas
características da personalidade anancástica em Melvin. É importante, todavia, lembrar que uma
pessoa pode ter o TOC e não apresentar esse tipo de caráter nem evoluir de um estado para o outro.

Ao preconceituoso Melvin, todavia, é-lhe imposto, pelo companheiro de Simon, seu vizinho
homossexual, a missão de ficar por alguns dias com o simpático (não para o escritor) cãozinho Verdel,
pois seu dono, o referido vizinho, sofre um acidente e é hospitalizado. Paralelamente, o escritor vai
se envolvendo afetivamente com Carol, a garçonete da lanchonete que frequenta diariamente, talvez
a única pessoa que consegue entender um pouco e demonstrar alguma empatia por Melvin, inclusive
se impondo e criticando alguns de seus comportamentos. Quando ela fica impossibilitada de trabalhar
na lanchonete por conta da distância do trabalho para casa (é divorciada e tem que cuidar do filho
doente), o escritor começa a sentir sua ausência. A princípio, a falta é da garçonete que lhe serve, mas
com o tempo, percebe-se amando a mulher Carol.

Inicialmente, entrando em contato com sentimentos por imposição das circunstâncias (como ter que
ficar com o cãozinho de Simon, “baixar a cabeça” para as admoestações de Carol e constatar seu
afastamento como garçonete), aos poucos, vai assumindo os próprios sentimentos afetivos, inclusive
tornando-se amigo de Simon, a quem preconceituosamente rejeitava. Em um momento significativo
do filme, Carol, Simon e Melvin têm que viajar juntos e então são desenvolvidos diálogos, conversas,
acontecimentos e efusão de sentimentos que mobilizam os três personagens e vão influenciar o final
do filme.
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Embora o caso de Melvin seja fictício, o filme mostra, além das características de uma pessoa com
TOC e personalidade anancástica, a possibilidade de acontecimentos emocionais significativos em
sua vida contribuirem para a melhora dessas formas psicopatológicas de ser. Na vida real sabemos
que isso é possível em casos não muito graves de TOC, até porque há pessoas que melhoram do
quadro clínico basicamente com psicoterapia, desde que, repetimos, a sintomatologia envolva
manifestações menos comprometedora da personalidade como um todo. Podemos ver essa questão
na comparação com o filme “O Aviador”, onde um Hughes com quadro de TOC bem mais grave que
o de Melvin, não melhorava muito com as demonstrações de carinho das mulheres que o amaram
nem se deixava modificar em seus traços caracterológicos ou mesmo liberar-se em vivências e
manifestações de sentimentos. A gravidade do quadro apresentado por Hughes, conforme vimos,
chega a beirar um surto psicótico (falamos numa possível personalidade fronteiriça ou borderline), o
que não ocorre no caso de Melvin, apresentando uma menor desorganização da personalidade.

Os fenômenos obsessivo-compulsivos vão ser encontrados também em outras formas artísticas de


expressão. Quem visita o Museu do Prado, em Madrid, Espanha, pode observar um enorme quadro
de óleo sobre tela, feito em 1548 pelo pintor Tiziano Vecellio, ilustrando o sofrimento de Sísifo,
personagem mitológico grego, considerado o mais astuto dos mortais, tendo enganado por diversas
vezes os deuses em proveito próprio. Por isto, terminou sendo condenado a cumprir um terrível
castigo: por toda a eternidade teria que, diante de uma grande montanha, rolar com suas mãos até o
cume da mesma, enorme pedra, sendo que, toda vez que estava perto de alcançar o topo, uma força
fazia com que a rocha se desprendesse de seu domínio e rolasse montanha abaixo de volta ao ponto
de partida, obrigando Sísifo a descer a mesma para retomar seu trabalho repetitivo e sem sentido, mas
que ele não tinha condições de controlar. Com grande sofrimento, sente-se obrigado eternamente a
recomeçar sua tarefa, ver sempre a pedra escapar de suas mãos perto ao cume da montanha e ter que
reiniciar a tarefa. O quadro de Tiziano, “Sífiso”, assim como a história mitológica do personagem
grego, tornou-se um dos símbolos artísticos do fenômeno obsessivo-compulsivo, nos reportando ao
comportamento repetitivo e sem sentido, inútil, cuja vontade é incapaz de impedir sua execução,
apesar da consciência crítica que o homem possui acerca da irracionalidade da conduta, sabendo-se
escravo da mesma.

Outro momento artístico e secular do fenômeno obsessivo-compulsivo está na peça teatral


“Macbeth”, de William Shakespeare, que no século XX foi levada às telas do cinema por Orson
Welles. A trama consiste no propósito do nobre Macbeth para chegar a reinado. Após profecia de
bruxas que afirmavam que ele seria rei de um império, mata o soberano e assume o trono. Só que, em
seu reinado de sangue, não consegue alcançar a paz, inclusive sendo atormentado, com sua mulher,
pela conspiração constante dos inimigos tentando retomar o poder. É quando a esposa, Lady Macbeth,
tomada pela culpa e desespero, começa a “enlouquecer”, apresentando ideias e vivências de algo
contaminando suas mãos e originando rituais de lavagem. Em uma de suas falas, assim se expressa:
“Sai mancha maldita! Sai! Estou mandando. Uma, duas... [...] Estas mãos nunca ficarão limpas? [...]
Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixar cheirosa esta mão.” Procura então, simbolicamente,
pela lavagem de algo ruim, readquirir alguma felicidade ou pureza perdida. Isso foi escrito por volta
do ano 1606.

6. O ESPECTRO DOS ATOS IMPULSIVO-COMPULSIVOS E SEU SIGNIFICADO: ENTIDADE


MÓRBIDA ESPECÍFICA OU SINTOMA DE OUTROS TRANSTORNOS MENTAIS?

Há diversos padrões comportamentais que ora são encontrados na prática clínica com características
impulsivas, ora são observados em forma de compulsões, como podemos constatar no estudo da
cleptomania ou das compras compulsivo-impulsivas, por exemplo. Isso pode ser observado inclusive
em um mesmo indivíduo, alternando a forma de aparecimento da conduta. Há autores, como Salvador
157

de Sá (2001), que falam de comportamentos que não seriam compulsão (no sentido em que é
classicamente descrito, como no TOC) nem constituem ação impulsiva (no sentido de ato sem muita
reflexão), mas guardaria semelhança com ambos, e então os chama de “compulsão – impulsão”.

Quando outro autor, Paulo Dalgalarrondo (2008), escreve sobre cada uma das condutas que agora nos
ocupamos, faz referencia a “tipos de impulsos e compulsões patológicas”, abordando as diversas
variações de comportamentos sem delimitá-los especificamente como pertencentes a uma ou outra
categoria sintomatológica. Há, inclusive, o conceito de “espectro impulsivo-compulsivo” que considera
uma gama de condutas que podem apresentar-se, num extremo, com características bem definidas de
impulsividade (subtaneidade, ausência de planejamento, algo como curto circuito do ato voluntário) e
no outro, com propriedades claramente compulsivas (como as encontradas no TOC); entre esses dois
polos, haveria sintomas superpostos ou com características de ambos os atos psicopatológicos. É com
essas ressalvas que passaremos, mais adiante, ao estudo desses tipos de comportamentos.

Mas, outra questão que deve ser mencionada quando abordamos as diversas formas de
comportamentos impulsivo-compulsivos é se eles seriam uma entidade mórbida específica ou se
apenas um sintoma de doenças mentais mais amplas, como transtorno bipolar, depressão ou
transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). As compras compulsivas ou o jogo patológico, por
exemplo, muitas vezes parecem fazer parte da sintomatologia do transtorno bipolar; todavia, é
possível que existam como entidade clínica por si só, não necessariamente sintomas de outras
doenças. Há autores que veem determinados casos de compras compulsivas como um subtipo
sintomatológico do transtorno obsessivo-compulsivo. O mesmo raciocínio parece ser válido para a
cleptomania, que é classificada na CID 10 como uma entidade clínica específica, mas pode ser
fenômeno secundário (decorrente) de determinados TOCs ou mesmo de certas depressões
recorrentes.

Essas considerações têm importância prática porque se o comportamento impulsivo/compulsivo for


um sintoma de fase maníaca de distúrbio bipolar ou estiver associado a episódios depressivos
recorrentes, ou ainda fizer parte de um quadro de intensa ansiedade generalizada, medicações
específicas para cada uma dessas doenças (seja com lítio, antidepressivos ou ansiolíticos),
associadas a alguma forma de psicoterapia, poderão reduzir significativamente o comportamento
patológico, na medida em que uma condição mórbida básica e mais ampla é tratada. Caso não haja
nenhuma doença de base produzindo ou associada aos impulsos inadequados ou compulsões, fica
caracterizada uma entidade nosológica própria, que a CID 10 classifica como “Transtornos de
Hábitos e Impulsos” (onde, inclusive, se encontra a cleptomania e jogo patológico), não havendo
então nenhuma medicação mais específica, e o tratamento poderia ser predominantemente
psicoterápico.

Às vezes, o descontrole e sofrimento da pessoa com comportamentos impulsivos ou compulsivos


são tão intensos que pode haver o risco de suicídio, danos corporais ou sérios prejuízos financeiros.
Uma pessoa pode tentar se matar pela vergonha de não controlar sua conduta cleptomaníaca, outra
corre risco de ferir-se devido impulsos autoagressivos, enquanto o indivíduo com jogo patológico
pode perder muito do que possui e conquistou com esforços seus e da família. Assim, há casos em
que o internamento chega a ser indicado e até solicitado pelo próprio paciente, o que necessitaria
de avaliação conjunta entre ele, sua família e o terapeuta acerca da necessidade desse procedimento.

7. PRINCIPAIS COMPORTAMENTOS IMPULSIVOS E /OU COMPULSIVOS

1) CLEPTOMANIA
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A característica básica desse distúrbio é um impulso ou compulsão recorrente para se apoderar de


objetos que não pertencem ao indivíduo, não havendo necessidade de tê-los, quer para uso pessoal ou
pelo seu valor financeiro, até porque o cleptomaníaco comumente tem condições econômicas para
comprar os objetos que furta. Essa é a principal diferença da cleptomania para o roubo ou furto
comum, pois, nesse último, há a motivação voltada para a utilidade do objeto ou seu valor monetário.
No transcorrer do ato cleptomaníaco, inicialmente há um acúmulo de tensão para realizá-lo, seguido
de alívio após a retirada do objeto, muitas vezes havendo, posteriormente, sentimentos de culpa ou
remorso. O roubo não é planejado, articulado com antecedência como aquele cujo objeto furtado é a
meta, pois na cleptomania o importante é o próprio ato em si. É um comportamento individual, não
havendo envolvimento de outras pessoas na conduta. Comumente, o cleptomaníaco não fica
refletindo sobre a possibilidade de ser apanhado e preso, mesmo que isto tenha ocorrido em vezes
anteriores e gerado humilhação. E, embora entre um ato e outro possa haver sentimentos de
arrependimento e até promessas a si mesmo de não repeti-los, a recorrência é uma das características
desse distúrbio (como dos demais comportamentos impulsivo-compulsivos). Um cleptomaníaco pode
repentinamente ter o impulso de tirar um objeto que o vendedor deixou no balcão de uma loja, sem
nem sequer refletir sobre o ato; todavia, pode também ficar em prolongado conflito entre apoderar-
se ou não de um objeto, terminando por retirá-lo para si. No primeiro caso temos um impulso, no
segundo, um ato compulsivo. Ambas as possibilidades podem ocorrer no cleptomaníaco. Vários casos
de cleptomania estão associados a sintomas obsessivo-compulsivos típicos (lavar as mãos, rituais de
verificação, pensamentos perturbadores, etc.) e alguns autores consideram tal distúrbio como uma
variante do TOC.

Sobre o que é feito com os objetos retirados, isto varia de caso para caso, mas podem ser guardados,
dados a outras pessoas, jogados fora. Alguns indivíduos que apresentam roubo patológico chegam a
usar os utensílios que se apoderou, apesar de não precisar deles ou ter condições financeiras de
adquiri-los. Até porque o cleptomaníaco pode, dentro de um padrão de conduta recorrente, roubar
dinheiro (retirado da bolsa de alguém distraído, do caixa de uma loja, da gaveta na casa de um amigo),
mas sem que haja necessidade objetiva para isso, carência financeira ou intuito de aproveitar-se do
valor da quantia e usufruir dela.

Nobre de Melo (1981), que considera a cleptomania mais como um ato compulsivo, cita o exemplo
de tal distúrbio em um homem de 50 anos de idade, casado, que se lança em um relacionamento
amoroso e passa a apresentar impotência sexual. Busca tratamento não tanto por essa disfunção, mas
por estar, no seu dizer, com algo “ainda mais vergonhoso e humilhante”: passara a se apoderar
compulsivamente de xícaras em restaurantes, casa de amigos e até no setor de trabalho em que ele
próprio era chefe. Como o autor comenta, o caso dá margem a uma leitura psicodinâmica do
fenômeno cleptomaníaco. Esse exemplo é incomum em dois aspectos: a cleptomania é bem mais
frequente em pessoas do sexo feminino e sua idade de início ocorre, via de regra, na adolescência e
começo da idade adulta. A cleptomania pode ser um ato agressivo, uma forma de chamar atenção,
autopunição, carência afetiva ou ter outras motivações inconscientes. Os sintomas cleptomaníacos
tendem a aparecer ou exacerbar-se em situações de estresses relativos a perdas e separações
significativas. Por outro lado, há casos em que o distúrbio surge após a instalação de doença
organocerebral, como tumor, atrofia ou traumatismo craniano. Apesar de tentativas de explicações
psicológicas e organicistas, não se deve fazer generalizações, como pode ter ocorrido ao se tentar
relacionar cleptomania com alterações hormonais, talvez pelo fato de que, em alguns casos, o
comportamento se exacerbe nas épocas de menstruação e durante a gravidez, subvalorizando-se o
fato de que esses podem também ser períodos de tensão emocional e estresse (inclusive depressão).

2) JOGO PATOLÓGICO
159

Quando a pessoa começa a apresentar, de forma persistente e recorrente, comportamentos relativos


ao jogo, que interferem em seu funcionamento interpessoal e/ou ocupacional, levando a problemas
financeiros por conta dos gastos com o jogar, podemos dizer que ela apresenta o jogo patológico, seja
com características impulsivas ou compulsivas. Embora geralmente tal comportamento envolva
diretamente dinheiro, pode, às vezes, envolver outras posses, como terrenos, casas, veículos, objetos
de valor, etc. Um fazendeiro pode jogar arriscando cabeças de gado.

A DSM–IV, a classificação americana dos transtornos mentais (1994), enumera 10 itens muito úteis
para o diagnóstico dessa patologia, considerando que, se uma pessoa possui cinco ou mais deles,
podemos dizer que a mesma apresenta jogo patológico. Pontuamo-las de forma resumida:

(1) Preocupações com o jogo (tendência a reviver experiências de momentos em que jogou, planejar
a próxima ocasião para jogar, pensar em como conseguir dinheiro para tal, etc.).
(2) Apostar quantias de dinheiro cada vez maiores.
(3) Esforços fracassados no sentido de parar de jogar.
(4) Inquietação ou irritabilidade ao tentar parar de jogar.
(5) Ter o jogo como forma de fugir de problemas ou de aliviar estados de humor desagradáveis.
(6) Após perder dinheiro no jogo, voltar a jogar para “recuperar o prejuízo”.
(7) Mentir para as pessoas (inclusive familiares e terapeuta) para encobrir a extensão do envolvimento
com o jogo.
(8) Cometer atos ilícitos (falsificação, fraude, furto, estelionato) para financiar o jogo.
(9) Colocar em perigo ou perder relacionamentos significativos, empregos, atividades acadêmicas
por causa do jogo.
(10) Recorrer a terceiros com o fim de obter dinheiro para aliviar uma situação financeira
desesperadora causada pelo jogo.
Segundo Sadock (2007), na evolução crônica do fenômeno ao longo do tempo, quatro fases podem
ser observadas: Inicialmente, na chamada fase da vitória, a pessoa se entusiasma pelos primeiros
ganhos em jogos, que podem “fisgá-lo” para tentar obter mais lucros. Em seguida vem a fase das
perdas progressivas, onde ocorrem vários insucessos e o indivíduo vai estruturando sua vida em
torno do jogo, pedindo dinheiro emprestado, vendendo bens, faltando ao trabalho, perdendo
empregos, correndo riscos ligados ao jogo. Passa então à fase de desespero, onde a pessoa tende a
jogar freneticamente grandes quantidades de dinheiro, podendo inclusive tentar conseguir tais somas
perigosamente, às vezes de forma ilícita, passando cheques sem fundos, roubando e talvez até
cometendo outros crimes. Finalmente, pode-se chegar à fase de impotência, em que o jogador
reconhece que as perdas não poderão ser mais recuperadas, aceita isso como algo irreversível, mas
continua jogando e sentindo excitação para tal comportamento.

Quando tomamos contato com pessoas que têm nos jogos um problema tão devastador em suas vidas,
muitas vezes não nos lembramos de que o ato de jogar, desde a pré-história, faz parte de um conjunto
de comportamentos humanos relacionados ao lazer, e sua função contribui, inclusive, para o
desenvolvimento pessoal das crianças. Pode-se jogar “à brincadeira”, sem se apostar nem colocar em
risco algum patrimônio pessoal. E até podemos exercer tal atividade arriscando algum dinheiro, sem
que isso seja necessariamente patológico. Segundo H. Tavares e D. Rossini (2008, p.81), “dados
internacionais apontam que apostar é um hábito para quase 80% da população, porém, somente uma
minoria (em torno de 4 %) desenvolverá problemas com essa atividade”. Nessa minoria, muitos
160

preenchem critérios para jogo patológico, estimando-se que 0,5 a 1 % da população tenham
plenamente tal distúrbio. Por outro lado, ainda de acordo com os referidos autores, álcool, fumo
(tabaco) e jogo patológico são os três comportamentos de abuso mais comuns na população em geral,
sendo o terceiro considerado uma forma de dependência não química.

Sabemos que os diversos tipos de jogos variam quanto à previsibilidade do ganhar. O sucesso em um
jogo de cartas, por exemplo, depende, em parte, da habilidade do jogador, mas componentes de
imprevisibilidade estão também presentes, ou seja, o resultado não está totalmente em sua capacidade
pessoal. Já a roleta e os caça-níqueis são completamente imprevisíveis quanto ao controle de quem
joga. E esses dois jogos têm grande potencial para levar à dependência, pois o encurtamento do tempo
que transcorre entre a realização da aposta e seus resultados permite sucessivas tentativas imediatas,
promovendo a possibilidade de um jogar contínuo e a sustentação de um estado prolongado de
alheamento e estimulação.

3) COMPRAS COMPULSIVAS

A compulsão a compras (que pode assumir características compulsivas, mas também impulsivas)
implica não só o ato de comprar de forma excessiva, comumente objetos supérfluos e às vezes até
desnecessários para a pessoa que os adquire, mas também vivências interiores que envolvem a
questão do consumir (seja aflição pela incapacidade de controle sobre tal comportamento,
sentimentos de culpa posterior ao ato, perda de consciência crítica durante a execução do mesmo,
sensação de prazer no momento da compra). Muitas vezes a pessoa compra além de sua real
possibilidade financeira. Todavia, não se trata de uma compra exagerada e isolada que foi feita em
certa ocasião específica, mas um padrão de comportamento que tende a se estender no tempo. Vale
pontuar que sentimentos de culpa, autorrecriminação e arrependimento após a compra nem sempre
estão presentes.

Há semelhanças entre a compulsão a compras e outras formas de dependência, inclusive jogo


patológico. Podem-se observar esforços repetidos e fracassados no sentido de controlar o
comportamento, padrão de conduta como forma de fugir de problemas ou aliviar tensões, atos ilícitos
(falsificação, fraudes, estelionato) para sustentar a conduta de gastos, o recorrer a terceiros com o fim
de obter dinheiro para aliviar uma situação de dívida financeira causada pela compulsão, e o risco de
perder relacionamentos, emprego ou oportunidades educacionais por causa da dependência.

Comumente, as compras são relativas a objetos para uso da pessoa que os adquire, mas podem
também ter a função de presentear outras (marido, filhos, amigos), podendo isso aliviar a culpa por
se estar gastando excessivamente. Os itens de compras mais comuns são roupas, sapatos, joias,
perfumes, aparelhos eletrônicos, carros e peças para os mesmos. O distúrbio é mais frequente nas
mulheres que entre os homens, e, embora seja um fenômeno muitas vezes considerado “da
modernidade”, é encontrado em relatos já do século XIX, inclusive em personalidades de projeção
social, como Mary Lincoln, esposa do presidente norte americano Abraham Lincoln, que fazia
compras muito além das possibilidades do casal, o que, segundo se conta, causava frequentes
desavenças com o marido.

Fatores socioculturais, como propagandas comerciais, incentivos ao consumo, compras com


promoções, liquidações, facilitações de pagamento (inclusive parcelamento), uso de cartões de
crédito, certamente contribuem para o fenômeno das compras compulsivas; todavia, fatores
psicológicos também se fazem necessários, a fim de que aqueles socioculturais encontrem terreno
propício nas pessoas predispostas ao distúrbio. Tendência à impulsividade e a se influenciar pelas
sugestões do mundo externo, baixa autoestima e dificuldade em lidar com sentimentos desagradáveis
são características daqueles que apresentam compulsão a compras. Pelo lado biológico, há estudos
161

sugestivos de baixa atividade dopaminérgica nas pessoas com jogo patológico, compras compulsivas
e outros comportamentos semelhantes.

O Manual Clínico dos Transtornos do Controle dos Impulsos (ABREU, C. N. de; CORDÁS, T. A.;
TAVARES, H.; organizadores, 2008, p 133.), traz um interessante diálogo entre um médico (M) e sua
paciente com compras compulsivas (P):

M: Como você passou a semana? Fez alguma compra?

P: Fiz duas compras, uma normal e a outra não tenho certeza.

M: Você pode descrevê-las?

P: A primeira foi uma compra de supermercado. Eu fiz a lista e escolhi o mercado do bairro,
para não ir ao shopping e não cair em tentação. Comprei só o que estava na lista e evitei
comprar itens de luxo como água mineral e queijos importados.[...]

O diálogo prossegue:

M: E a outra compra?

P: Foi ontem, eu briguei com a minha sobrinha porque ela convidou meu ex-marido para ser
seu padrinho de casamento. Não sei mais se vou; e se ele for com a nova mulher? Fiquei
nervosa porque na hora nenhum sapato parecia combinar com a roupa que vou usar. Fui ao
shopping e comprei três pares. Deixei as sacolas no carro para ninguém ver e decidi usar um
sapato quase novo que comprei no ano passado.

M: Quer dizer que você comprou esses sapatos quando estava nervosa, sem pensar no que
estava fazendo?

P: Com certeza; deixei cheques pré-datados, sendo que não tenho saldo. Pensando bem, foi
uma compra totalmente compulsiva. Eu tenho mais de 100 pares de sapatos, é impossível não
encontrar no meu guarda-roupa um sapato que combine com um bom vestido.

Nesse diálogo, algumas questões merecem ser pontuadas. Existem pacientes que conseguem ter
consciência crítica de que fez compra descabida, diferenciando-a, inclusive, de uma aquisição normal,
mas no momento da execução do ato não consegue refletir racionalmente sobre isso, nem tampouco
controlar o impulso (no exemplo, apesar da mulher ter falado no termo “compulsivo”, parece mais
ter havido atitude impulsiva, sem luta psíquica do realizar ou não um ato). Há pacientes em terapia e
com motivação para livrar-se das compras descabidas que evitam comportamentos de risco, no
exemplo, evitar ir ao shopping. Outras não andam com muito dinheiro, talão de cheques ou cartão de
crédito. Não que isso por si só seja eficaz como tratamento, mas não deixa de ajudar na prevenção de
novas dívidas. O comprar compulsivo pode estar aliviando ansiedades, tensões, conflitos, frustrações,
evitando que a pessoa reflita sobre outras maneiras de lidar com os sentimentos desagradáveis e sobre
possíveis significados do seu ato de comprar. O diálogo também nos mostra que muitas vezes uma
emoção ou sentimento perturbador podem precipitar um episódio de compras compulsivas, fato que
o terapeuta do caso acima quis ressaltar para o paciente.

4) DEPENDÊNCIA DE INTERNET
162

Ainda no Manual Clínico dos Transtornos do Controle dos Impulsos, há alguns trechos de um
paciente falando de outro tipo de “dependência não química”, no caso, a atualmente estudada
dependência de internet (ABREU, C. N. de; GÓES, D. S; VIEIRA, A; CHWARTZMAN, F, 2008, p.
150):
Na internet é como se eu vivesse em um eterno “refúgio”... Lá eu posso tudo o que eu quiser.
Por exemplo, quando converso com alguém em um chat [sala de bate-papo]... nunca me dá
aquele “branco”, pois lá eu consigo ter mais tempo para pensar no que vou responder... Sabe
como é... Teclar dá “tempo” para eu pensar no que vou responder. O fato de eu poder escolher
as respostas me faz me sentir bem... E isso é muito bom!... Todos gostam muito mais de mim
assim, inclusive eu mesmo... [...] Sinto que a minha vida sem o computador seria horrível.
Inclusive, sempre que não estou bem, vou rapidinho “surfar” na internet [visitar vários sites
sem propósito específico] e tudo fica legal... Eu não conseguiria viver sem a internet...

Ninguém duvida que atualmente a internet tenha importância fundamental na nossa vida social e
profissional; o mundo tem outra dimensão a partir do advento dela, passando hoje a ser um recurso
de comunicação e informação indispensável. Mas tem sido observado que alguns usuários,
certamente com determinada vulnerabilidade especial, desenvolvem verdadeira dependência
comportamental pela internet. Estão constantemente pensando e preocupados em “entrar na rede” e
em determinados sites, dedicam muito tempo ao estar “conectado” (às vezes 12 horas por dia ou até
mais), com tendência a aumentar o período de ligação ao computador, apesar de esforços que alguns
dependentes fazem para diminuir o tempo de uso, apresentando irritabilidade ou mesmo depressão
ao tentar reduzi-lo. Muitos chegam a mentir sobre as horas que permanecem conectados (comumente
para não serem impedidos de continuar com esse comportamento); por exemplo, não informam que
diariamente estão em uma lan house, dizendo aos pais estarem estudando numa biblioteca, enquanto
em casa, adicionalmente, permanecem no computador ocupando as horas combinadas com eles. Essas
condutas ligadas à dependência terminam por comprometer negativamente as relações pessoais,
acadêmicas e profissionais do indivíduo, que pode até achar que a vida real sem a internet é
desinteressante, vazia e sem graça. Mas nem todo dependente pela internet preenchem todas essas
características e, em certos casos, fica difícil se encontrar uma linha de demarcação entre o uso normal
e patológico desse instrumento de comunicação.

Existem pessoas que se tornam dependentes de drogas alucinógenas, talvez como uma forma de fugir
dos seus problemas através das “imagens” que a mente cria para lhes proporcionar um refúgio ou
uma sensação de que “lá eu posso tudo o que quiser”, como disse o dependente citado no início desse
tópico. A dependência aos alucinógenos é secularmente antiga. Hoje, as imagens fantásticas da
internet podem criar um mundo talvez mais “realista” que aquele proporcionado por drogas químicas,
pois a chamada experiência virtual se aproxima muito da real. As pessoas que vêm desenvolvendo a
dependência da internet podem ser excessivamente tímidas, apresentar ansiedade social, possuírem
baixa autoestima e autoavaliação negativa, não ter muito apoio do meio que o envolve e apresentar
dificuldades de enfrentar sentimentos e emoções desagradáveis, “fugindo” através de um outro
mundo que pode ser encontrado pela tela de um computador, assim como a Alice do conto infantil
mergulhava, através dos espelhos, numa dimensão de maravilha e fantasia. O computador, as drogas
alucinógenas, bem como o espelho de Alice podem ser “portas” para se escapar da realidade às nossas
costas. O meio para isso pode variar, mas a dinâmica e motivação subjacente não é um processo novo.

O termo “dependência de internet” foi criado pelos meados da década de 1990, bem como o termo
mais amplo “dependência tecnológica”, esse abrangendo outras interações envolvendo máquinas
modernas, como videogames e televisão. O tratamento das pessoas que têm problemas
comportamentais com a internet e compras, obviamente não visaria a um afastamento completo
desses estímulos (como pode até ser proposto para o jogo patológico ou dependências químicas), mas
uma postura de maior controle sobre eles, o que irá requerer um ativo processo psicoterápico.
163

5) COMPULSÕES E IMPULSOS AUTOAGRESSIVOS

Aqui, o comportamento impulsivo ou compulsivo faz-se através de agressões contra o próprio


indivíduo, não havendo, todavia, intenção de suicídio. Tais condutas tendem a ser repetitivas, com os
danos físicos variando quanto à gravidade, desde os mais superficiais até aqueles que chegam à
mutilação de partes do corpo. Assim, temos o bater em si próprio, morder-se, arranhar, esfolar,
queimar ou cortar a pele (com tal conduta podendo se dirigir a diversos locais da área corporal), bater
com a cabeça em algo sólido, arrancar os cabelos e, em casos mais graves, decepar dedos, pênis ou
outras mutilações.

Vale lembrar que nem toda autoagressão é ato compulsivo ou impulsivo. A pessoa que, devido
atividade delirante, acreditando ser Jesus Cristo, planeja durante dias pregar os pés numa cruz de
madeira que está confeccionando e, quando essa está pronta, assim o faz, não apresenta características
de impulso ou compulsão em sua atitude, embora essa não deixe de ser autoagressiva. O mesmo
ocorre no caso da mulher que vem planejando queimar os braços e pernas com água fervente
(alegando acidente), como uma forma de fazer o marido não cumprir a decisão de deixá-la, na
tentativa dele ficar ao seu lado e não ter coragem de abandonar a esposa acidentada, cometendo então
a autoagressão em um dia em que está só, trabalhando na cozinha.

E nem toda autoagressão é necessariamente patológica. Há muçulmanos fundamentalistas que


praticam o “autoflagelo” em cerimônias religiosas, batendo em seu próprio corpo, inclusive com
chicotes contendo lâminas de metal nas pontas, provocando ferimentos que chegam a sangrar. Da
mesma forma, em nosso meio cultural religioso, há pessoas que fazem “promessas” para personagens
santificados através de comportamentos que são verdadeiros autoflagelos, em que, tendo alcançado
uma “graça” (pedido ao “santo” que foi concretizado, como a cura de um familiar doente), prometem
e cumprem, por exemplo, subir de joelhos, longas escadarias de uma igreja, esfolando-se e sangrando.
Esses exemplos de autoagressões estão inseridos dentro de um contexto de crenças e práticas cultural-
religiosas, não devendo ser considerados necessariamente psicopatológicos, a não ser que haja
motivações mórbidas subjacentes, como depressão com fortes sentimentos de culpa e necessidade
inconsciente de autopunição, camuflados pelo ritual religioso.

Voltando aos atos autoagressivos impulsivos ou compulsivos, embora possam ser uma forma de
“chamar atenção” (inclusive nas crises histéricas em que a pessoa cai, bate com a cabeça no chão,
rasga violentamente as vestes, arranha-se e promove outras formas de ferimento), em grande número
dos casos trata-se de comportamento às escondidas, com a pessoa procurando ocultar os ferimentos
ou cicatrizes, negando ou omitindo a ocorrência de autoagressões. Pode usar camisas de manga
comprida escondendo ferimentos ou queimaduras, chapéus e perucas ocultando áreas de cabelos
arrancados ou alegar acidente numa mão inchada por pancadas autoinfligidas. Pode ainda evitar
piscinas, praias ou outras circunstâncias em que normalmente se veste poucas roupas, procurando não
mostrar as marcas de autoagressão. Quando a pessoa consegue falar sobre seu comportamento ao
terapeuta que a acompanha ou a amigos que confia, muitas vezes alega que os atos autoagressivos
fazem aliviar tensões emocionais, sentir-se relaxada após a prática deles, preenchem vivências de
indiferença ou vazio existencial ao sentir sofrimento autoinfligido ou diminuem os sentimentos de
culpa. Existem casos em que o indivíduo refere ausência de dor durante as autoagressões.

Segundo abordagens psicodinâmicas, subjacente às condutas autoagressivas, haveria sentimentos de


culpa em decorrência de desejos sexuais e/ou agressividade inconsciente, sendo tais comportamentos
uma forma de autopunição. Um achado frequente na história de vida das pessoas que têm
comportamento autoagressivo é o abuso sexual ou físico na infância, inclusive ser vítima de bulling
(agressões repetitivas, físicas, verbais, em forma de exclusão e/ou humilhações, partindo de alguns
indivíduos contra determinada pessoa).
164

Um adolescente apresentava comportamento autoagressivo em que se queimava com pontas de


cigarro, escolhendo locais em seu corpo que depois pudessem ser coberto por camisa de manga
comprida. Primeiramente vinha em sua mente o pensamento de queimar-se, ideia que tentava afastar,
mas, de forma angustiante, elas persistiam. Se estava em um ônibus, na casa de amigos, em um
cinema, ficava ansiosamente esperando uma oportunidade para a execução daquele comportamento,
que então era feito com certo ritual de queimar-se do peito para os braços. Durante os momentos
dessa atividade solitária (tinha que trancar-se num banheiro ou quarto), sofria muito, tentava evitar o
procedimento, mas não o conseguia, até que, após as queimaduras superficiais, sentia-se aliviado,
todavia com forte sentimento de fracasso. Nesse caso, o comportamento autoagressivo assumia
características mais compulsivas que impulsivas.

Aqui vale lembrar o chamado espectro impulsivo-compulsivo, ou seja, um indivíduo pode apresentar
predominância de impulsos ou de compulsões em seu quadro clínico, mas as duas variantes também
podem se alternar em uma mesma pessoa, ou ainda esta apresentar comportamentos onde a
diferenciação de ações impulsivas e compulsivas seja difícil de delimitar, nem sempre ficando
claramente demarcado se as condutas pertencem a um ou outro tipo fenomenológico.

Os comportamentos autoagressivos podem estar ligados a diversas doenças mentais (esquizofrenia,


depressão grave, transtorno bipolar), mas uma condição em que frequentemente eles são encontrados
é na personalidade fronteiriça ou borderline (assunto que abordamos quando dos comentários do
filme “O Aviador”), em que a pessoa está como que em uma condição limite entre o estado psicótico
e o não psicótico, apresentando, entre outras características, impulsividade de uma forma geral (não
só autoagressiva).

A tricotilomania (TTM) é considerada uma forma impulsiva (ou compulsiva) de comportamento


autoagressivo, onde se observa a conduta recorrente de arrancar cabelos, com perda notória dos
mesmos, fazendo, muitas vezes, com que a pessoa se isole das outras por vergonha de expor regiões
do corpo afetadas pelo distúrbio, podendo estas ser cobertas por lenços, perucas, bonés ou outras
formas de disfarçar a existência de áreas comprometidas. Os pacientes geralmente referem tensão,
ansiedade ou outros sentimentos desagradáveis antecedendo o comportamento (ou quando tentam
resistir ao mesmo), e que passam a vivências momentâneas de prazer, satisfação ou alívio após
arrancar os cabelos. Alguns pacientes, todavia, relatam que não se dão conta que estão os arrancando,
pois se acham assistindo televisão, falando no telefone, lendo ou pensando, quando, quase sem
perceber, se veem envolvidos com tal conduta, com as mãos cheias de cabelos. Embora esses sejam
principalmente os do coro cabeludo, podem também ser das sobrancelhas, região púbica, axilas ou
outros locais específicos de determinado indivíduo (há casos de pessoas que arrancam pelos presentes
no abdome e tórax). Os episódios de tricotilomania podem durar alguns minutos (mais raramente,
horas).

6) COMPULSÃO SEXUAL

A compulsão sexual tem como característica o desejo e prática sexuais aumentados em intensidade e
frequência, vivenciados como um problema que foge ao controle da pessoa (causando, inclusive,
algum grau de sofrimento) e prejudicando sua vida social (no aspecto familiar, no trabalho,
acadêmica). Como fenômeno compulsivo/impulsivo há certa consciência crítica, por parte da pessoa
que o vivencia, de se tratar de um comportamento disfuncional, sendo que o sofrimento, comumente
associado, pode assumir forma de angustia durante a conduta ou posteriormente à mesma, e nesse
caso, muitas vezes é também vivenciado como sentimento de arrependimento, culpa ou vergonha.
Mas, o início do quadro muitas vezes não é acompanhado de senso crítico e sofrimento, fazendo com
que a procura por ajuda devido à compulsão seja tardia, sendo o mecanismo de negação comum nessa
fase inicial.
165

Vale ressaltar que, para o diagnóstico de compulsão sexual, a ênfase não está tanto na frequência das
atividades eróticas, mas na forma, características e vivências ligadas a tais atividades. Porque o
elemento quantitativo pode estar aumentado de forma não patológica, sem que haja compulsão,
sofrimento, tentativas frustradas de autocontrole e consequências prejudiciais à vida. Um jovem casal
apaixonado ou duas pessoas que sempre tiveram elevada sensibilidade sexual em relação à maioria
podem ter bastantes contatos físico-afetivos e apenas isso não caracterizar psicopatologia. O mesmo
raciocínio pode ser feito para o adolescente que, ao descobrir seu potencial sexual, durante certo
tempo ocupa muito o pensamento e a prática com conteúdos e atividades nessa área recém-
desabrochada. Se atentássemos apenas para o fator frequência, cairíamos na difícil (e talvez arbitrária)
questão da determinação de um número limite para demarcarmos o normal e o patológico da atividade
sexual: quantas vezes por semana considerar-se-ia saudável? Uma vez ao dia ainda poderia ser
normal? Mais de um contato sexual diário já seria distúrbio? ...

Todavia, tomemos um exemplo que pode ser considerado compulsão sexual. Um homem, por três ou
quatro vezes durante a semana tem que procurar compulsivamente, para contatos sexuais,
determinada mulher com quem mantém um “caso” ou mesmo uma prostituta, e, embora isso lhe traga
angústia e posterior sentimento de culpa, não consegue controlar tal prática, estando esta inclusive
prejudicando seu emprego, porque, tentando não “dar pistas” à família, determina os encontros para
o horário de trabalho, por vezes ausentando-se ou mesmo faltando a este, além de estar sempre se
“policiando” acerca de telefonemas, hora de chegar em casa ou comentários que possam
comprometer-lhe perante a esposa ou familiares. Apesar de vivenciar conflito em ceder ou não a
realização dos atos compulsivos sexuais no momento em que estes se impõem, não consegue deixar
de marcar encontros para a concretização deles.

Ressalte-se que a compulsão sexual pode assumir diversas formas de apresentação, como por
exemplo, a procura constante de novos parceiros, permanência simultânea de muitos envolvimentos
paralelos, busca intensa por filmes eróticos ou sites sexuais via internet e prática compulsiva
masturbatória.

Há mulheres com compulsão sexual em forma de relações com vários homens, seja através de casos
simultâneos ou de constantes mudanças de parceiros (conhecidas como “ninfomaníacas”), podendo,
paradoxalmente, sofrer de frigidez (anorgasmia), o que talvez justifique, em parte, a intensa e
frequente prática sexual como uma busca compulsiva para encontrar a pessoa que lhe dê prazer,
satisfação, paixão... Fenômeno semelhante pode ser encontrado em homens cujo comportamento de
conquistar e possuir compulsivamente várias mulheres (“satiríase” ou “donjuanismo”, versão
masculina do termo “ninfomania”) talvez oculte sentimentos de inferioridade, medo de se tornar
impotente ou desejos homossexuais inconscientes. Nesses exemplos, podemos vislumbrar a
possibilidade de causas reativo-psicológicas, para as diversas formas de compulsão sexual. Ainda
nessa linha etiológica, a literatura científica mostra que há, com frequência, associação entre
experiência de abuso sexual na infância e compulsão sexual na vida adulta. Por outro lado, sabe-se
que há casos de origem orgânica na gênese de tal distúrbio, como epilepsia do lobo temporal ou início
de processos demenciais. Podem ainda ocorrer impulsos ou compulsões sexuais como sintomas de
doenças psiquiátricas, a exemplo daqueles observados nas fases maníacas do transtorno bipolar.

Concluindo este tópico, vale lembrar que, se já é um tanto difícil estabelecer limites entre o normal e
o psicopatológico nos comportamentos em geral, muito mais problemático é encontrar tal limiar no
campo das condutas sexuais, até porque, muitas vezes, o julgamento do observador pode estar
comprometido com questões socioculturais, inclusive preconceitos. Uma pessoa jovem que tem a
concepção e a prática do amor livre, mantendo contatos sexuais com diferentes parceiros (as) pelos
(as) quais se sinta atraído (a) sexualmente, seria apenas alguém com comportamento diferente da
norma, vivendo maior liberdade existencial, ou pessoa que na verdade estaria racionalizando uma
compulsão sexual? Indo mais além: se essa pessoa for do sexo feminino, talvez já seja considerada
166

uma mulher ninfomaníaca por alguns observadores, mas sendo homem, com bem menos
probabilidade seria tido como alguém com problemas de sexualidade exacerbadamente patológica,
embora o que mude nesse caso seja apenas o gênero feminino-masculino.

7) COMPULSÕES E IMPULSOS BULÍMICOS

Também chamados de “comer compulsivo” ou “comer impulsivo”, compulsões e impulsos bulímicos


são comportamentos em que a pessoa apresenta, em período limitado de tempo (por exemplo, durante
meia ou uma hora), acessos de procura e ingestão de quantidade significativa de alimentos, associados
à vivência de falta de controle sobre tais condutas.

Existem doenças de base orgânica constatável que podem estar associadas ao comer
impulsivo/compulsivo, como as endocrinopatias hipotalâmicas, hipofisárias e adrenais (NOGUEIRA,
F. C. et al. 2008), todavia, são nos chamados Transtornos Alimentares que os acessos bulímicos se
ressaltam mais no quadro clínico. Trata-se de um grupo de entidades nosológicas cujas causas ainda
não são bem conhecidas e estabelecidas, parecendo existir uma combinação de vários fatores
etiológicos em sua instalação (psicológicos, socioculturais, biológicos). Em muitos casos em que
ocorrem episódios bulímicos há o fenômeno das “medidas compensatórias inadequadas” para evitar
ganho de peso, como dietas exageradas, exercícios excessivos, medicações indutoras de perda de
apetite, frequentes jejuns e forçar o vômito após ingestão dos alimentos. Por isso, nesses casos, a
pessoa necessariamente não chega a graus acentuados de obesidade. Estão presentes no grupo dos
Transtornos Alimentares, a Bulimia e a Anorexia Nervosa.

8. BULIMIA E ANOREXIA NERVOSA

Devido à importância que essas duas enfermidades vêm tendo na atualidade, seja por conta de um
possível aumento da frequência delas na população geral, pelas implicações que têm em termos da
gravidade das mesmas (inclusive podendo cronificar-se e até levar a pessoa à morte), bem como por
suas possíveis relações com fatores socioculturais (inclusive possibilitando ações preventivas),
abrimos esse espaço para estudarmos um pouco mais tais distúrbios.

A Bulimia Nervosa (BN) é doença que se caracteriza pelos acessos bulímicos incontroláveis,
acompanhados daquelas medidas compensatórias para evitar aumento de peso (inclusive vômitos
autoprovocados). Algumas outras características ligadas a essa enfermidade são o sentimento de culpa
ou vergonha que a pessoa tem após a conduta bulímica, o comer mais rapidamente do que o usual,
ingestão de comida até sentir-se incomodamente “cheia” e a tendência à execução dos acessos quando
se está sozinha (inclusive pela vergonha de expor isso aos outros). Tal comportamento é recorrente,
com os impulsos ou compulsões se repetindo ao longo do tempo. Há pessoas que só procuram
tratamento após vários anos de padecimento, muitas delas obesas. Curiosamente, os alimentos
consumidos geralmente são aqueles que se recomenda restrição ou abolição em dietas, com alto valor
energético, como doces, massas, pães, biscoitos, chocolates ou guloseimas em geral. Outro sintoma
da Bulimia Nervosa é um medo mórbido de engordar, bem como preocupação com a forma e o peso
corporais, mesmo que estes estejam dentro dos limites saudáveis. Na BN a pessoa não apresenta
necessariamente obesidade e seu peso pode ser normal.

Nos relatos de pacientes com acessos bulímicos, alguns dizem que chegam a “limpar” o armário ou
o refrigerador comendo o que encontram. Outros falam que vão a supermercados na ânsia de trazer
biscoitos, chocolates, bolos e outros alimentos semelhantes, comendo parte deles no caminho de volta
por não aguentar a espera de chegar em casa. É comum o relato de que a necessidade de ingestão é
tão grande que o ato é feito quase sem experimentar o gosto dos alimentos, ou seja, dizem que
“engolem” o que come, sem saborear a comida escolhida.
167

Mas, é importante frisar que Bulimia Nervosa (BN) é um termo empregado para se referir a uma
doença ou transtorno mental específico, com uma série de sintomas próprios, conforme vimos
(aumento da necessidade de comer ou do apetite, impulsos bulímicos, medidas compensatórias, medo
mórbido de engordar, sentimentos de culpa pelo descontrole alimentar). Não devem ser considerados
pacientes com Bulimia Nervosa (BN) aqueles que apresentam apenas um aumento da necessidade de
comer ou do apetite. Isso pode ocorrer devido causas predominantemente psicológicas (excessiva
ansiedade, frustrações afetivo-sexuais), orgânicas (diabete ou outras enfermidades endócrinas) ou
ainda decorrentes e ligadas a doenças psiquiátricas (como estado eufórico do transtorno bipolar).

Embora o termo Bulimia Nervosa designe um diagnóstico de classificações recentes, a doença em si,
com suas descrições que corresponderiam hoje a tal enfermidade, já era observada há mais de um
século atrás. Ludwig Binswanger, um expoente da chamada análise existencial-fenomenológica,
descreveu o caso clínico de uma jovem mulher, ocorrido no início do século XX, Ellen West. Era
considerada uma pessoa inteligente, que admirava a literatura, escrevia poesias e se preocupava com
os problemas sociais de sua época. Mas, por volta dos 20 anos de idade, algo estranho começou a
surgir em suas vivências: ao lado de um apetite voraz e incontrolável, passou a ter intenso medo de
engordar, e o ganho de peso a fazia procurar maneiras de emagrecer (longas caminhadas que
chegavam a lhe ferir os pés, dietas restritivas, abuso de medicamentos para emagrecer, vômitos
autoprovocados). Passava muito tempo deprimida, chorando, sentindo-se fracassada em relação a não
permanecer com o que considerava peso ideal. Aos 26 anos, casa-se com um primo, esperando que
com isso suas ideias e medos em relação à fome, apetite exacerbado e ganho de massa corporal
diminuíssem. Mas não foi o que aconteceu, e o conflito entre o desejo de comer desregradamente e o
medo de engordar se intensificou com o passar dos anos, o que a fez tentar suicídio. Foi então
internada em um conceituado sanatório da região, encaminhada e assistida por Binswanger, mas
praticamente não se obteve nenhuma melhora, inclusive tentando novamente o suicídio, fazendo-se
necessário redobrar a vigilância sobre suas condutas. Após meses de internamento, Ellen decide
então, juntamente com o marido, voltar para casa, e na viagem de volta, demonstra estar animada
com tal decisão. Mas, alguns dias depois, novamente vivencia todos os seus sintomas, juntamente
com a angustia e desespero de não poder os controlar. Em uma noite, após passar a tarde fazendo
passeio animado com seu marido, conversando sobre literatura e poesia, vai para casa e escreve
algumas cartas. Ao deitar-se, ingere uma dose letal de veneno. No dia seguinte é encontrada morta e,
segundo relatos dos que a viram nesse momento, aparentava semblante de tranquilidade, como há
muito não se observava nela. Esse célebre caso descrito por Binswanger, como dissemos, ocorreu no
início do século XX, e embora o diagnóstico de BN ainda não existisse, as características dessa doença
estão todas presentes (BELINCK; MAGTAZ, 2008). A história de Ellen transpôs a literatura
científica. Na década de 1980 a banda de rock alternativo norte-americano Throwing Muses gravou a
música Ellen West, tentando expressar o sofrimento daquela jovem mulher, enquanto o poeta Frank
Bidart escreveu o poema "Ellen West", monólogo dramático partindo do ponto de vista de uma
mulher lutando contra seu corpo.

A Anorexia Nervosa (AN) talvez seja a mais conhecida das doenças do grupo Transtornos
Alimentares, sendo inclusive bastante divulgada e trazida à discussão pela mídia devido às
implicações e pressões ligadas à estética do corpo e a profissões que estimulam o ideal do físico
esbelto e magro, resultando em problemas de saúde. As características básicas da Anorexia Nervosa
são: emagrecimento acentuado (a pessoa fica notoriamente com peso muito abaixo do que deveria
apresentar), medidas compensatórias autoimpostas para perder peso e não engordar (dietas
exageradas, exercícios excessivos, frequentes jejuns, medicação anorética, o forçar o vômito após
comer), distorção da imagem corporal (aqui não só há um medo de engordar, mas também uma
percepção incorreta do próprio corpo, em que a pessoa o sente como se estivesse muito além da forma
e peso adequados). É comum a queixa de se estar “ainda gorda”, com algum excesso ponderal,
precisando “perder uns quilos” ou outras afirmações desse tipo (mesmo quando objetivamente se
168

pode constatar que nada disso é verdade), podendo surgir o risco de desnutrição e até morte devido a
graves alterações fisiológicas e metabólicas em um corpo com precário estado nutricional. A
Anorexia Nervosa (e também a Bulimia Nervosa) é bem mais frequente no sexo feminino, começando
em idade jovem, podendo inclusive ter início na adolescência. No caso da Anorexia Nervosa,
comumente há “amenorreia”, cessação da menstruação ou ausência dela numa faixa etária em que já
seria esperado seu aparecimento.

Mas, antes de prosseguir, é importante se fazer uma ressalva sobre a palavra “anorexia”, já que
ela se presta a mal-entendidos terminológicos. É que no sentido simples do termo, apenas como
um sintoma, significa a diminuição da necessidade de comer, perda de apetite, inapetência, o
popular “fastio”. Isso pode levar a baixa ingestão de alimentos com alguma perda de peso. Tal
“anorexia-sintoma” pode ter causas orgânicas (certos tipos de neoplasias malignas, doença de
Addison, AIDS) ou psicológicas (preocupação duradoura com problemas que não se resolvem,
sentimento prolongado de pesar devido perda significativa ou conflitos neuróticos). Na
psiquiatria, uma das principais condições que provoca diminuição da necessidade de comer e do
apetite é a depressão, seja em suas formas fásicas (do transtorno unipolar ou bipolar), crônica
(distimia) ou de outra natureza. Nada disso é a doença que tem o nome de Anorexia Nervosa
(AN), conforme definida no parágrafo anterior, com todo um conjunto de sintomas.

Embora a Anorexia Nervosa muitas vezes seja citada como uma doença da modernidade, há séculos
que vem sendo descrita de forma bem semelhante às histórias clínicas de hoje, e não apenas na área
científica, mas também sob outros enfoques (como o místico-religioso), naturalmente sem o termo
atual. É possível que tenha havido realmente um aumento dos Transtornos Alimentares em nosso
século, mas esse crescimento do número de casos pode refletir também um melhor reconhecimento
e precisão diagnóstica do quadro clínico que hoje se acha mais sedimentado. Talvez a descrição
sugestiva de AN mais antiga seja a de uma serva que viveu em 895, Friderada, uma jovem mulher
que para diminuir um apetite descontrolado, refugiou-se em um convento, restringiu sua alimentação
e com o tempo passou a fazer longos jejuns, até que sua saúde foi sendo comprometida e terminou
morrendo por desnutrição. A relação entre Transtornos Alimentares e religião, de fato vem ocorrendo
há séculos e o pesquisador Rudolph Bell fez um extenso trabalho sobre a vida de mais de 250
mulheres italianas, beatas da Igreja Católica que viveram entre 1200 e 1600, utilizando-se de cartas,
declarações de confessores e outros documentos que mostram a antiguidade do fenômeno. É
conhecido o caso de Maria Magdalena de Pazzi, que por volta de 1585, em torno de seus 20 anos,
passa a fazer rigoroso jejum (só se alimentando de pão e água, exceto aos domingos, quando comia
uns poucos restos alimentares das outras irmãs do convento em que vivia). Apesar das ordens de suas
superioras para que se alimentasse melhor, continua o jejum e começa a provocar o vômito,
entendendo como “tentações diabólicas” o intenso desejo de comer. Veio a falecer aos 31 anos. Não
por acaso, Maria Magdalena de Pazzi tinha como “modelo” outra religiosa anoréxica da Idade Média,
Santa Catarina de Siena, que morreu de desnutrição aos 32 anos, também praticante de intensas
restrições alimentares e vômitos autoprovocados. Foi na Idade Média o surgimento do que veio a ser
chamado de “Anorexia Sagrada”. Segundo pesquisadores, relatos da época mostram que o
comportamento de inúmeras religiosas beatas chegou a tamanho exagero que os depoimentos escritos
pelos confessores parecem verdadeiras histórias clínicas (CORDÁS; CLAUDINO, 2002; CORDÁS;
WEINBERG, 2002).

É importante frisar que o jejum não implica em distúrbio psicopatológico. Já na Antiguidade tal
procedimento era praticado com ligações místico-religiosas e como forma de purificação. Assim, no
Egito dos faraós, o estudo e compreensão da doutrina de certos deuses se faziam passando dias sem
comer, gregos e romanos recomendavam o jejum para consultar os oráculos, e em várias passagens
bíblicas se enaltece a restrição de alimentos. Todavia, a própria Igreja Católica, que pregava o jejum,
começou a preocupar-se com os exageros da abstinência alimentar e outros comportamentos afins
observados nos conventos, inclusive restringindo a canonização de santas jejuadoras.
169

Hoje, grande parte da ocorrência de Bulimia e Anorexia Nervosa está nos grupos profissionais
submetidos a uma forte pressão de exigência do corpo magro e esbelto, como modelos, bailarinas
(os), atrizes e atores dos quais se exige o culto ao físico belo ou nos que assumem o estereótipo de
“símbolo sexual” (no cinema, novelas, palcos, componentes de bandas musicais). Tais
“personagens mitos”, tão comuns em nossa época, também mobilizam, conscientemente ou não,
uma legião de fãs que tende a se identificar com esse modelo de “beleza corporal”, favorecendo o
aparecimento de casos de Bulimia e Anorexia Nervosa nas pessoas já predispostas. Paralelamente,
uma nociva propaganda tende a lucrar em cima de diversas áreas: dieta/nutrição, alimentos
dietéticos, pílulas para emagrecer, proliferação comercial das academias de ginásticas, programas
e livros que prometem o tão desejado emagrecimento, cremes rejuvenescedores, cirurgia plástica.
Há anos atrás a lipoaspiração era o procedimento estético-cirúrgico mais executado nos Estados
Unidos. Todavia, não podemos dizer que tais fatores socioculturais sejam os causadores dos
transtornos alimentares que ora estudamos. Certamente têm um peso muito grande, mas precisam
incidir em pessoas biológica e/ou psicologicamente predispostas. E o que seria essa predisposição?
Por que certos indivíduos são submetidos a diversas pressões socioculturais e não apresentam
transtornos alimentares, enquanto outros não estão nos grupos profissionais de risco e, no entanto,
têm grave quadro de Anorexia ou Bulimia Nervosa? Pelo lado biológico há estudos que sugerem
um componente genético-hereditário entre os familiares das pessoas com transtornos alimentares
(principalmente nos trabalhos incluindo gêmeos monozigóticos), bem como alterações no
funcionamento de neurotransmissores ligados a regulação do comportamento alimentar e vivência
de saciedade. Componentes psicológicos da pessoa com transtornos alimentares apontam para
distúrbios de personalidade com características histriônicas e também ligadas à estrutura obsessivo-
compulsiva. Na literatura psicológica há trabalhos sugerindo que determinados padrões de
funcionamento familiar contribuem para a instalação dos transtornos alimentares (como mães que
competem com as filhas, figura paterna ausente, tendência familiar de minimizar problemas e
conflitos), todavia, tais fatores são hoje vistos mais como elementos desencadeadores e
mantenedores do que mesmo componentes causais específicos para transtornos alimentares.

A evolução clínica da Anorexia e Bulimia Nervosa tende a ser crônica, transcorrendo, ao longo dos
anos, com fases de melhora e de exacerbação dos sintomas. Às vezes, pode ocorrer alternância de
episódios de AN e BN ao longo da vida de uma mesma pessoa, bem como surgir impulsos bulímicos
de forma esporádica em certos momentos da evolução clínica de uma Anorexia Nervosa. Pode ocorrer
também um subtipo grave de Bulimia Nervosa em que, além dos atos impulsivos/compulsivos na
área dos transtornos alimentares, outras formas de descontrole sobre comportamentos se fazem
presentes na pessoa (autoagressão, tricotilomania, compulsão sexual, cleptomania), parecendo que
ela tem um comprometimento geral na capacidade de controlar suas condutas, não ocorrendo isto
apenas no campo da bulimia.

9. COMPULSÕES, IMPULSOS E TIQUES

Tiques motores são movimentos involuntários, recorrentes, repetitivos, súbitos, não rítmicos,
despropositados, envolvendo determinados grupos musculares, muitas vezes provocando sofrimento
pela dificuldade ou impossibilidade de serem controlados. São exemplos, a elevação da sobrancelha,
piscar os olhos, ações bruscas no pescoço, sacudir os ombros, torções do nariz, rápidas contrações
labiais ou de músculos faciais. As definições enfatizam o caráter comumente não rítmico dos tiques,
diferente das repetições pendulares do corpo ou no constante mover do rosto para a direita e esquerda,
movimentos rítmicos comumente encontrados em crianças autistas ou com retardo mental. Os tiques
motores diferem dos atos impulsivos e compulsivos porque nesses há participação mais evidente de
atividade e elaboração psíquica. Dirigir-se a um local para compras descontroladas, jogar sem limites,
tirar objetos ou provocar incêndios são comportamentos de complexidade bem maior que um
170

movimento brusco do pescoço ou sacudidela de ombros. Os tiques motores podem se exacerbar em


momentos de estresse, diminuir ou cessar durante atividades que exijam concentração e até
desaparecer com o passar do tempo. De fato, muitas crianças apresentam tiques em algum momento
de suas vidas, mas que tendem a remitir. A persistência deles ao longo dos anos, exacerbando-se em
frequência e complexidade, poderia indicar algo já doentio. Além dos tiques motores exemplificados
acima, envolvendo determinados grupos musculares circunscritos e interrelacionados, existem
também tiques mais complexos, como jogar-se para um lado, saltar, correr bruscamente, andar em
redor de um objeto, dar cambalhotas. Quanto mais complexos forem os tiques motores, mais se
aproximam e tornam-se indistinguíveis dos atos impulsivos e compulsivos.

Há também os chamados tiques vocais, que, como os motores, podem ser do tipo simples, em forma
de assovios, sibilos, grunhidos, estalidos com a lingua ou outros sons elementares produzidos pela
boca ou vias respiratórias, ou complexos, envolvendo a emissão de palavras inapropriadas ou gritar
involuntariamente determinadas frases. As características dos tiques vocais são semelhantes às dos
motores, ou seja, são fenômenos involuntários, que se repetem ao longo do tempo, despropositados,
súbitos e comumente não ritmicos.

Os tiques podem estar ligados a estados psíquicos neuróticos, mas também à doenças
organoneurológicas ou uso de estimulantes. Uma entidade clínica de base neurobiológica, embora
possíveis fatores de natureza psicógena também possam estar presentes, é a chamada Doença (ou
Síndrome) de Gilles de La Tourette.

Essa doença é considerada um transtorno neuropsiquiátrico, geralmente com início na infância


(ocorrendo mais em crianças do sexo masculino), cuja sintomatologia principal são os múltiplos
tiques motores e vocais. Frequentemente estão presentes também fenômenos obsessivo-compulsivos,
ecolalia (repetição involuntária de frases ouvidas de outrem) e coprolalia (tendência a falar palavras
obscenas), hiperatividade e dificuldade de atenção. As origens dessa doença ainda não são bem
conhecidas, mas há estudos que mostram o fator genético e alterações de neuroimagens cerebrais
(inclusive nos gânglios da base) como dados significativos nos portadores desse distúrbio, bem como
possível aumento da atividade dopaminérgica cerebral (daí a melhora do quadro clínico com a
utilização de medicamentos antagonistas da dopamina).

Um filme que mostra o quadro clínico da Síndrome de La Tourette é A Menina no País das
Maravilhas (Phoebe in Wonderland,2009), escrito e dirigido por Daniel Barnz. Mas nele não é
abordada apenas a sintomatologia própria de uma enfermidade, pois o filme pretende mostrar também
um contexto psicológico em que uma menina com tal doença se insere. Phoebe, de nove anos, vive
com a irmã de sete e seus pais, esses últimos tentando escrever livros e trabalhos, mas sem muito
sucesso em tais empreendimentos. A menina começa a apresentar distúrbios de comportamento que
interferem no relacionamento com os colegas da escola e mesmo com outras pessoas, como cuspir
nelas, falar palavras obscenas ou grosseiras, repetir despropositadamente frases que ouve de alguém
e falar alto inadequadamente. Phoebe, após ter conhecimento sobre o fato de que seus
comportamentos não expressam desconsideração para com os outros ou perversidade, mas ocorrem
devido a uma doença chamada Síndrome de “Gilles de La Tourette”, em uma passagem do filme,
explica para os colegas de classe sobre a mesma. Discorre sobre seus tiques nos ombros, nos dedos,
aqueles em forma de cuspidas. Em outro momento, Phoebe apresenta andar associado ao bater de
palmas, assim como incessantes saltos nos degraus da escada da casa (o que provoca inclusive quedas
e ferimentos no corpo da menina). Há também o falar palavras de forma brusca e inadequada, como
ocorre em certo momento dentro de um teatro, onde está sendo exibido espetáculo de balé e Phoebe
fica repetindo em voz alta e de forma incontrolável, a palavra “acorde”... “acorde”... “acorde”... para
que a bailarina acordasse do sono que a paralisava, fazendo com que sua mãe, desesperadamente
tivesse que tirá-la da plateia. O filme mostra também o fenômeno da ecolalia, que é a repetição do
que outras pessoas falam, observado em alguns momentos. Por exemplo, sua professora diz: “o seu
171

chá estava marcado para vinte minutos atrás” e Phoebe repete essa frase. Em outras cenas é mostrada
a coprolalia, fenômeno comum na Doença de Gilles de La Tourette, que é o falar palavras obscenas
ou ofensivamente grosseiras: chama bruscamente de “veado” um amigo próximo, e
despropositadamente insulta uma mulher chamando-a de “ratazana gorda”.

Vários rituais obsessivo-compulsivos que frequentemente acompanham a síndrome de la Tourette


também estão presentes no filme, mostrando inclusive que podem chegar a um grau que prejudiquem
significativamente a vida da pessoa. Quando Phoebe chega com atraso ao encontro com a professora
de teatro, tem que explicar: “Desculpe ter chegado atrasada... é que preciso lavar as mãos certo
número de vezes”. Comportamentos de contar, pisar e não pisar espaços do chão, não poder ser tocada
quando em brincadeiras com os colegas, são atitudes que fazem Phoebe, ficar desesperada, e em dado
momento, chorando, exclamar: “Não sei por que faço essas coisas”.

Mas, como dissemos, o filme não se detém apenas na apresentação dos sintomas de uma doença. Nos
faz lembrar que por mais orgânica que seja uma enfermidade, ela está inserida em um ambiente que
pode influenciar favorável ou negativamente seu desenvolvimento. Pode haver também a presença
paralela de sérios conflitos emocionais ou de distúrbios psicológicos que precisariam igualmente de
tratamento. O filme aborda as relações familiares e o contexto escolar em que Phoebe está vivendo.
Sua mãe passa por um momento de bloqueio criativo, pois não está conseguindo desenvolver um
trabalho sobre a história Alice no País das Maravilhas. Vêm então sentimentos de frustração, ideias
de não estar dando a atenção devida à filha e preocupações com um futuro envelhecimento sem ter
produzido algo na vida. Por esses problemas, termina se culpando e achando que os distúrbios de
Phoebe existem por ela não ser uma boa mãe e não dedicar-se mais a menina. Ao concentrar-se apenas
na ideia que a mesma se ressente da falta de atenção dos pais, nega o caráter psicopatológico dos
comportamentos de Phoebe, achando que muitas de suas atitudes são até criatividade de uma menina
inteligente, chegando a negar as informações que um terapeuta lhe dá sobre a patologia da criança,
após fazer avaliação clínica da mesma. O filme inclusive nos remete a esse problema que pode ocorrer
no momento em que os pais, em conversa com algum profissional, são informados sobre um distúrbio
mental de um (a) filho (a), não acreditando no que lhe é explicado, negando um diagnóstico e
retardando terapias.

Por outro lado, Phoebe frequenta uma escola rígida e até castradora. Não é dado às crianças o direito
de questionar aquilo que ensinam. O próprio ato de perguntar deve ser feito com reservas e a ênfase
do processo de aprendizagem é o “seguir as regras” a fim de que tudo corra bem. É quando uma
recém-chegada professora de teatro resolve montar e orientar peça teatral sobre a história Alice no
País das Maravilhas, encenada pelas crianças. Phoebe passa então a se encantar com a ideia de
representar Alice e viver um mundo irreal, todavia um universo sobre o qual a mãe está se dedicando
em seu trabalho. Através da identificação com a Alice e seu cenário de existência, a menina entra
naquele mundo de interesse da mãe. Mas acima de tudo, a construção de um sentido existencial para
sua vida – através da vivência em “Alice no País das Maravilhas” – ajuda a Phoebe em suas angústias
para além da “Síndrome de La Tourette”. A indagação que ela faz a si mesma, “quem é você”, no
final, parece ser encarada com mais tranquilidade e menos desespero do que no início da história,
havendo melhora na sua autoconfiança e autoestima. Todavia, surge um conflito pedagógico. Se por
um lado temos uma escola rígida e repressora (mostrada inclusive na figura de seu diretor), por outro,
a nova professora de teatro, a Sra. Dodger, começa a estimular a autonomia dos alunos. Seu processo
educativo é mostrado num momento em que o ensaio da peça é iniciado e as crianças indagam: “Não
vai nos dizer o que fazer?”, e a professora responde: “Não”. E em seguida: “Me digam vocês. Como
se encena uma peça?”. Vai assim explorando o que os alunos já sabem sobre algo e a partir daí
desenvolvendo novos conhecimentos. Mas alguns comportamentos com sinais de “excessiva”
autonomia não agradam ao diretor, resultando na demissão da Sra. Dodger. Essa, todavia, em seu
último contato com os alunos, orienta-os para que não parem os ensaios, pois eles teriam a capacidade
172

de levar adiante a apresentação do espetáculo. O final do filme é interessante e o trabalho da pequena


atriz Elle Fanning dá um colorido especial a toda trama.

Uma determinada ressalva merece ser feita sobre o filme. Ele sugere que Phoebe poderia estar
apresentando alucinações no momento em que dialoga e vê, em algumas ocasiões de seu dia a dia, as
personagens da história de Alice. Na “Síndrome de La Tourette” comumente isso não ocorre, não há
sintomas psicóticos tipo delírios ou alucinações. É possível também que o escritor-diretor queira
expressar o conteúdo do pensamento de Phoebe através de imagens, não significando necessariamente
que a menina esteja tendo “percepções” visuais e auditivas com características alucinatórias, mas
apenas vivenciando-as na dimensão subjetivo-mental.

CAPÍTULO 6

A CONSCIÊNCIA E SUAS ALTERAÇÕES

1. A CONSCIÊNCIA VIGIL - INTRODUÇÃO

2. ALTERAÇÕES DEFICITÁRIAS DA CONSCIÊNCIA

3. O DELIRIUM
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4. ESTREITAMENTO DA CONSCIÊNCIA

5. HIPOPROSEXIA, DISTRAÇÃO E DISTRAIBILIDADE

6. O SONO E OS SONHOS

7. AS ALTERAÇÕES DO SONO

8. A CONSCIÊNCIA DO EU E SUAS ALTERAÇÕES

1. A CONSCIÊNCIA VIGIL – INTRODUÇÃO

O termo consciência pode ter significados diferentes. Fala-se em consciência moral, ligada aos
valores éticos da pessoa e que nos remete ao conceito de superego da psicanálise. Pode estar sendo
empregado como “consciência crítica”, no sentido da pessoa ter conhecimento que um fenômeno
psíquico é algo psicopatológico, irreal ou de “sua imaginação”, como ocorre nos pensamentos
obsessivos, alucinações tipo alucinose ou fobias. Não é em nenhum desses sentidos que abordaremos
o tema da consciência neste capítulo, mas significando o campo de abrangência do nosso existir
psíquico. O fenômeno a que nos referimos quando dizemos que alguém está em estado consciente ou
que, ao sofrer forte pancada na cabeça, “perdeu a consciência”. Os autores o denominam de
“consciência psicológica”, para diferenciá-lo dos outros sentidos do termo. Tal conceito recai no
que se chama “consciência vigil”, tendo este último constructo, também conotações
neurofisiológicas. Jaspers (1973) elaborou um conceito que ficou clássico na psicopatologia:
174

consciência como “o todo momentâneo da vida psíquica”, ou, em outras palavras, toda nossa vida
psíquica em um dado instante.

Uma pessoa assiste a um show musical, onde uma orquestra acompanha o cântico da cantora lírica.
Vamos atentar para a vivência do todo momentâneo da consciência dessa pessoa que assiste ao
espetáculo. Em um dado instante, faz parte do campo de sua consciência a percepção do contexto
(imagens da orquestra, sons dos instrumentos, voz da cantora, outras pessoas sentadas ao seu lado na
plateia), um sentimento nostálgico associado a certa alegria suscitado pela melodia, uma rápida
lembrança que o conteúdo da canção trouxe à consciência da pessoa, o pensamento e algum raciocínio
feito mediante uma frase ouvida na música. Ou seja, o todo momentâneo da vida psíquica daquela
pessoa englobou as funções da sensopercepção (o que está ouvindo e vendo) vida afetiva (sentimentos
e emoções), memória (recordação que surgiu), inteligência, pensamento (ligados ao processo de
raciocínio do momento), enfim, o campo da consciência não foi constituído apenas por um ou outro
de tais processos psíquicos particulares, mas de um todo que englobou as diversas funções
simultâneas naquele instante. Fazendo-se uma analogia, a consciência seria como um palco no qual
se desenrolam os diversos fenômenos psíquicos em um dado momento.

Quando se analisa o estado da consciência, pode-se considerar nele diversos níveis de intensidade
em relação à clareza de sua manifestação. Há a chamada consciência clara, lúcida, do indivíduo
desperto, atento, alerta, onde as percepções, raciocínios, recordações e demais funções psíquicas se
fazem de maneira nítida. Mas há estados de diminuição da clareza da consciência, como na
sonolência, por exemplo. Quando estamos sonolentos experimentamos a totalidade dos fenômenos
psíquicos como que “enevoados” em seu conjunto, diminuídos em sua claridade, diferentemente do
estado experimentado na consciência clara. Na sonolência temos o funcionamento da globalidade da
consciência, mas em nível mais baixo de intensidade. Indo mais adiante, chegaremos ao estágio do
sono, onde podemos ter as imagens interiores dos sonhos, alguns raciocínios ou vagas percepções do
mundo que nos cerca, ou seja, estaremos em um estado ainda mais distanciado da consciência clara,
desperta, mas ainda com alguma atividade do que chamamos de consciência. Todavia, no estágio do
sono profundo sem sonhos, atingiremos a chamada perda ou abolição da consciência, onde cessa a
experiência do viver os fenômenos psíquicos, não havendo percepções, pensamentos, recordações,
etc. Esse é um estágio psicofisiológico normal, não patológico de apagamento da consciência,
todavia, veremos que há também exemplos no campo da morbidade, como em certos desmaios, na
convulsão epiléptica generalizada e no estado de coma. Mas, como diz Jaspers (1973, p.167): “Se,
todavia, existir qualquer vivência interior, falamos em consciência, ainda mesmo que se ache turvada
a claridade do conhecimento objetivo, ainda mesmo que se apresente enfraquecida ou sequer nem
exista uma consciência de si”. Voltando à analogia do palco, este pode estar bem iluminado,
mostrando com toda clareza a totalidade de uma cena e seus personagens, pode estar menos nítido
devido queda da iluminação que o fez ficar um tanto apagado, ou, ainda, pelo bloqueio total da luz,
“apagar-se” por completo.

Os níveis e estados da consciência vigil têm como substrato neurofisiológico uma estrutura encefálica
denominada de “sistema reticular ativador ascendente (SRAA)”. A palavra “reticular” se refere a
células nervosas ligadas em rede (reticulum), com complexas interconexões que se originam no
tronco encefálico e vão até o córtex cerebral, sendo que a estimulação deste pelo SRAA tem relação
com a regulação da clareza da consciência. Drogas que deprimem a atividade do SRAA (barbitúricos,
por exemplo), produzem sonolência, e lesões nas suas imediações levam a rebaixamentos nos níveis
da consciência. Em animais, a destruição bilateral de estruturas ligadas ao SRAA, como o locus
ceruleus, provoca sono profundo. O SRAA está também ligado ao ritmo circadiano do ciclo sono-
vigília.

Mas, além do conceito de intensidade dos níveis da consciência, há também o que se denomina de
amplitude da consciência, definida como o conteúdo por ela abrangido em um dado instante. A
175

amplitude delimita o que faz parte ou não do campo da consciência, em um período momentâneo de
tempo. No exemplo acima, da pessoa que assiste a um show musical, a amplitude da consciência
engloba percepções, sentimentos, recordações e outros fenômenos psíquicos ligados àquele
espetáculo e momento. Mas está fora do campo consciente, naquele instante, um sem número de
outros registros mentais ou sensoriais, como a percepção dos filhos da pessoa (que estão a quilômetros
de distância), as lembranças de seu casamento ou os sentimentos de dias atrás, quando ansiosamente
comprava os ingressos para o show, com receio que se esgotassem. O que está fora do campo da
consciência é comumente chamado de inconsciente.

Há uma analogia didática que pode ser feita entre a consciência e a projeção de um feixe de luz numa
parede escura. A luz formará um círculo iluminado no anteparo, produzindo uma zona de região clara,
tal como a amplitude da consciência, que abarcará diversos elementos dentro de seu campo. A parte
do centro mais iluminada pelo feixe de luz, é chamada de foco, onde haverá um núcleo bem intenso
de luminosidade. Mas, perceberemos também regiões gradativamente menos claras que vão se
afastando dele à medida que se aproximam das bordas do círculo, até chegarmos a uma área de
penumbra que limita a região de luz com a escuridão. Essa parte negra, sem limites de extensão,
corresponderia à ideia de pré-consciente e inconsciente. A analogia desse “círculo” serve também
para introduzirmos o conceito de atenção, que pode ser entendido como o “foco da consciência”.
Porque na amplitude total da consciência englobamos vários elementos, como vimos no exemplo da
pessoa assistindo a um show musical (percepções, alguma recordação, sentimentos, pensamentos).
Mas, o foco daquele vasto campo, a direção principal da nossa mente, a maior intensidade de nossa
“energia” psíquica, vamos supor que esteja concentrada na imagem e no canto da solista. Apesar de
vários elementos povoarem a amplitude de nossa consciência, focalizamos e elegemos um deles,
estamos com a atenção dirigida ao mesmo. Assim, atenção também pode ser definida como o processo
que direciona a maior concentração da consciência para um determinado estímulo (ou alguns poucos
estímulos específicos). O termo “estímulo”, todavia, não deve ser entendido apenas como algo
percebido no mundo exterior, mas pode ser uma imagem mental, um sentimento ou pensamento de
nossa vivência interior-subjetiva. Podemos estar atentos a uma significativa recordação em dado
momento, ou estarmos raciocinando atentamente sobre algo.

Todavia, além de podermos classificar a atenção quanto à direção (exterior e interior), é possível
classificá-la também quanto a sua natureza volitiva (participação da vontade em seu direcionamento),
ou seja, atenção voluntária, onde há movimento intencional de dirigi-la para algo, a exemplo de
quando estamos lendo concentradamente um texto, e atenção espontânea, aquela que se volta
involuntariamente para alguém que chega repentina e inesperadamente em local onde não era
aguardada.

Se não tivéssemos o processo de seleção possibilitado pela atenção, os vários estímulos externos e
internos que chegassem a nossa consciência dificultariam ou até impediriam um satisfatório
funcionamento psíquico. Atenção e consciência, embora sejam fenômenos bastante interligados, não
são sinônimos. Sem a clareza da consciência, a atenção não funciona satisfatoriamente; todavia, o
nível de intensidade daquela pode estar bem claro e a atenção estar comprometida, como veremos
mais adiante.

A atenção possui duas características importantes, a tenacidade e a mobilidade. A tenacidade é a


capacidade que temos de atentarmos para determinados estímulos por algum período de tempo, ou
seja, a duração com que podemos manter concentrada e fixada nossa atenção em algo. Quando
conseguimos nos debruçar atentamente sobre uma leitura durante uma ou duas horas podemos dizer
que estamos utilizando a capacidade de tenacidade da atenção. A mobilidade – às vezes também
chamada de “vigilância” – constitui-se na possibilidade de movermos a atenção de um objeto para
outro. Uma mulher dizia que estava lendo o jornal, mas atenta a certas cenas da novela que passava
na televisão, bem como prestando atenção (vigilante) aos movimentos do filho de dois anos brincando
176

ao seu lado. A vigilância é essa possibilidade de podermos, em determinado espaço de tempo, desviar
a atenção de um estímulo para outro. Muitas vezes, tenacidade e vigilância tendem a ser fenômenos
opostos, ou seja, se estamos muito concentrados em algo, nossa capacidade de vigilância fica
diminuída; mas se estivermos movendo com frequência a atenção de um objeto para o outro, a
tenacidade com que nos concentramos tenderá a ficar reduzida.

Voltando aos conceitos de amplitude da consciência e do inconsciente, alguns princípios ligados a


psicanálise merecem ser lembrados aqui. Freud considerou dois tipos de material psíquico pertencente
à dimensão do inconsciente. O mais simples, chamado de pré-consciente (às vezes também de
subconsciente), são os conteúdos mentais que embora não pertençam momentaneamente à amplitude
da consciência, podem facilmente, inclusive pelo processo da vontade, passar a tal campo, que é o
que ocorre quando durante uma leitura à noite, introduzimos a lembrança de alguns compromissos
que teremos que fazer no dia seguinte, conteúdos que se achavam fora da amplitude da consciência
mas que agora entraram nesse campo, ao lado (ou no lugar) da imagem da revista e dos pensamentos
que o texto lido nos traz. O outro tipo de inconsciente tem um sentido mais estrito, sendo chamado
também de inconsciente dinâmico, e diz respeito a conteúdos que não podem ser facilmente trazidos
ao campo da consciência e não se depende da atividade voluntária para isso. Às vezes, através de
procedimentos especiais, como a hipnose e determinadas psicoterapias, esse material inconsciente
pode vir à consciência. Segundo a psicanálise, isso nem sempre é possível devido bloqueios mentais
que impedem o acesso desses conteúdos ao campo consciente, bloqueios esses também chamados de
“resistência psíquica”. Psicologicamente, isso ocorreria talvez porque a entrada deles no espaço da
consciência poderia causar sentimentos dolorosos, e o psiquismo estaria se defendendo de lembranças
e vivências desagradáveis. É possível que essa ideia de resistência psíquica não explique todo o
fenômeno da impossibilidade de algo inconsciente vir a tornar-se consciente, mas há diversos
exemplos mostrando que, em muitos casos, tal concepção é bem plausível e até evidente.

Lorenzo era um cientista que residia em uma grande cidade e pesquisava fenômenos do espaço
sideral, fechado em seu laboratório com telescópios e outros instrumentos tecnológicos. Como
possuía uma casa onde morou com seus pais quando criança, resolve voltar, depois de décadas, ao
povoado onde ela se situava, unicamente com a intenção de vendê-la rapidamente e logo regressar as
suas pesquisas na metrópole. Todavia, logo percebeu que a casa precisava de concerto no telhado,
pois uma árvore caíra sobre ele e para obter preço razoável, antes teria que fazer o reparo. Entra então
em contato com Salvatore, um senhor que acerta fazer o trabalho, mas adverte a Lorenzo que isso
será demorado, o que lhe deixa irritado devido à pressa em querer resolver a situação de venda. Mas,
enquanto os dias passam, o cientista vai tomando contato com pessoas do povoado, inclusive
pacientes psiquiátricos de uma comunidade terapêutica, revendo objetos do genitor (que era médico),
ouvindo a voz do mesmo em um antigo gravador, chegando até a encontrar um velho carro do pai
onde muitas vezes o menino Lorenzo andava. Passa a reviver sentimentos de admiração e carinho
pelo genitor, chegando também a sentir apego pela antiga casa que pensava em vender. Muitos desses
conteúdos psíquicos (pensamentos, sentimentos, lembranças, imagens mentais) estavam reprimidos
no inconsciente de Lorenzo. Porque, quando criança, não suportando a morte do pai, resolveu afastar
todo esse material psíquico do campo de sua consciência, jogando-o para o inconsciente, inclusive
ficando longe do povoado onde residira no passado e escolhendo uma profissão bem distanciada da
proximidade afetiva com as pessoas. A volta para a casa de campo, os contatos humanos que
mobilizaram afetivamente Lorenzo, e a compreensão gradativa da existência de defesas contra a dor
pela morte do pai, além da transferência da figura paterna para o velho Salvatore, possibilitaram a
retomada dos conteúdos esquecidos. Essa história está no filme Uma Janela para a Lua (Colpo di
Luna, 1995), dirigido por Alberto Simone, onde o próprio Lorenzo diz, em determinado momento, já
consciente do que ocorrera com ele em termos psicodinâmicos: “No dia em que morreu meu pai,
queria ir à escola. Não me deixaram ir. Nesse dia, decidi como eu seria para sempre. Qual estratégia
usaria para não sentir falta dele. Qual armadura usaria para evitar a dor. Agora vejo que olhava do
lado errado do telescópio”... O filme aborda também os medos e preconceitos que se tem acerca do
177

doente mental através dos diálogos de Lorenzo, todavia, como pessoa intimamente sensível, vai
quebrando as resistências em aproximar-se afetivamente dos outros, passando até a sentir prazer no
contato com os pacientes da comunidade terapêutica.

2. ALTERAÇÕES DEFICITÁRIAS DA CONSCIÊNCIA

Pontuamos introdutoriamente que existem níveis de intensidade em relação à clareza da


consciência. Aqui iremos aprofundar um pouco mais esse assunto, enfatizando as situações mais
ligadas aos distúrbios desse campo. Chamamos alterações deficitárias da consciência aos estágios
gradativos que vão daquele nível de consciência clara, lúcida, da pessoa desperta, disposta
mentalmente, até a ausência completa de atividade psíquica. Em cada estágio de intensidade, o que
se percebe é um déficit na funcionalidade das operações psíquicas, ou seja, se consciência é o
conjunto delas em um dado momento, nos transtornos deficitários as percepções, recordações, curso
do pensamento, raciocínio vão estar debilitados e diminuídos em seu funcionamento.

Talvez a alteração mais leve de rebaixamento na intensidade da consciência seja o que alguns autores
chamam de obnubilação ou embotamento 2 . Segundo Honório Delgado (1969), não se trata
exatamente de um estado de sonolência, mas da vivência de se estar em um campo de consciência
sem foco. Salvador de Sá (2001), fala em estado de consciência relaxada, onde há predomínio da
atenção automática, flutuante de forma involuntária. A pessoa pode demonstrar alheamento em
relação ao ambiente, como se estivesse “distante”, “aérea”, “desatenta”, e o pensamento muitas vezes
está um tanto incoerente e lentificado. Às vezes apresenta aspecto de perplexidade e espanto. Esse
quadro pode surgir em um indivíduo que fez uso de maconha, aspirou solventes voláteis (“cola de
sapateiro”, “lança-perfume” ou “loló”, essas duas últimas substâncias utilizadas comumente no
carnaval). Em estados de intenso esgotamento físico ou mental, na febre e após abalo cerebral (forte
pancada na cabeça), também a obnubilação pode estar presente. Embora tal disfunção seja geralmente
citada em casos de etiologia organofisiológica, por vezes está ligada à experiência de intenso trauma
emocional, como após estupro ou assalto com risco iminente de morte.

A sonolência seria um estágio ligeiramente mais abaixo que o embotamento no nível da diminuição
da clareza da consciência, mas como as duas condições estão em situação fronteiriça de uma para
a outra, pode haver oscilação e alternância entre elas. O estado de sonolência em si, como fenômeno,
não difere muito entre aquele indicativo de algum distúrbio e a sonolência fisiológica que pode
ocorrer em nosso dia a dia. Praticamente, as mesmas circunstâncias citadas como causas da
obnubilação podem produzir sonolência. Muitas condições médicas também têm a sonolência como
sintoma, a exemplo do hipotireoidismo, hipotensão arterial e hipoglicemia. É possível que em certos
casos a sonolência esteja relacionada a fatores psicorreativos, como o caso do paciente que a
apresentava durante suas sessões psicoterápicas, ou a sonolência que pode ocorrer durante os dias em
que se tem difíceis problemas a resolver.

Indo a níveis de maior rebaixamento da intensidade da consciência, temos o estado de sopor ou


torpor, que pode ser entendido como um “sono doentio”, análogo ao sono superficial, como diz
Salvador de Sá (2001), pois à primeira observação a pessoa até parece dormir saudavelmente.
Todas as funções psíquicas, consequentemente, estão bastante rebaixadas, mais que na obnubilação
e sonolência. O paciente pode, todavia, reagir a estímulos enérgicos, como sacudir-lhe o corpo,
falar-lhe alto de forma repetida, podendo expressar reações de defesa mediante ações dolorosas.

2
É importante pontuar que às vezes encontramos algumas discordâncias entre os autores no que diz respeito aos termos
técnicos para cada estado deficitário da consciência, embora não haja discrepâncias nas descrições de tais estados.
Procuramos empregar as denominações mais comumente utilizadas pelos psicopatólogos.
178

Na perda total da consciência, chegamos ao grau máximo das alterações deficitárias ora estudadas.
O principal exemplo é o estado de coma, onde o indivíduo não pode ser despertado, mesmo
utilizando-se estímulos intensos. As causas do coma são sempre orgânicas, como traumatismo ou
tumores cranianos, meningite, hemorragia cerebral (AVC), intoxicação por substâncias sedativas
(inclusive álcool), etc. Todavia, existem graus de intensidade do coma, variando de um estado mais
superficial até um intensamente profundo. É importante lembrar que estamos falando de perda total
do funcionamento da consciência, inexistência do vivenciar as funções psíquicas, e não de
desaparecimento de atividade neurofisiológica. Somente quando isso ocorre, com destruição
irreversível de regiões corticais e subcorticais do cérebro, havendo parada do funcionamento de tais
áreas, é que se pode falar do fenômeno da morte cerebral. Portanto, é diferente do estado de coma,
onde há possibilidade de reversibilidade do quadro patológico. Há rígidos procedimentos técnicos
para tal diferenciação, o que é de suma importância para a questão dos transplantes e doações de
órgãos.

Apesar do protótipo da perda total da consciência ser o estado de coma, há outras situações onde
pode ser encontrada também a abolição da atividade psíquica. Em certos desmaios ou síncopes a
pessoa pode ficar desacordada completamente para, momentos depois, retornar a consciência,
embora haja exemplos em que não ocorre perda completa da atividade psíquica nesses estados, pois
a pessoa lembra, embora de forma fragmentada, que enquanto estava “desmaiada”, ouvia os outros
falarem como se estivessem bem “distante” dela e percebia confusamente as frases ditas. Perda
total da consciência pode ser observada também na crise convulsiva generalizada, onde, por alguns
minutos (às vezes mais tempo, se há uma sucessão contínua de convulsões) pode haver abolição da
atividade mental. Há ainda um tipo de epilepsia, onde é possível observar-se perda total da
consciência por uns 5 – 10 segundos, sem que haja, todavia, queda ao chão como na convulsão
generalizada. Denominada “ausência epiléptica” e ocorrendo mais em crianças, nesse tipo repentino
de crise, a pessoa, além da parada da atividade psíquica, fica com olhar fixo, imóvel; se está fazendo
algo (escrevendo ou falando, por exemplo), para de fazê-lo, nada mais fala, fica, de fato, “ausente”
do ambiente ou do que se passa nele; só após alguns segundos, volta à consciência, mas a pessoa
não tem noção do que ocorreu.

3. O DELIRIUM

Nesse fenômeno vai ocorrer não apenas uma diminuição da clareza da consciência, mas também o
surgimento de diversos outros sintomas, inclusive psicóticos, como alucinações e idéias delirantes.
Por essa produção de rica sintomatologia, o delirium pode ser chamado de alteração produtiva da
consciência, em contraste com o que descrevemos como alterações deficitárias, onde há basicamente
diminuição da clareza da consciência em diversas gradações, acompanhada apenas do funcionamento
prejudicado das várias funções psíquicas.

Um homem foi hospitalizado com pneumonia, apresentando febre alta. A princípio, estava apenas
sonolento, com dificuldade de concentração e pensamento levemente confuso. Mas, aos poucos o
quadro foi se agravando. Apontava para o teto do quarto e dizia estar vendo pássaros voando em
círculo e referia ver pessoas ao lado da porta (na realidade imagens inexistentes). Não sabia onde
estava nem conseguia dizer o dia ou mês em que se encontrava. Começou a desconfiar que os
auxiliares de enfermagem não gostavam dele, e, posteriormente, dizia ter certeza de que queriam
matá-lo. Seu pensamento foi ficando repleto de conteúdos desconexos, passou a demonstrar-se
desesperado, inclusive apresentando agitação psicomotora. À medida que o tratamento da pneumonia
179

vai tendo êxito, a febre baixando e a clareza da consciência se normalizando, todos os sintomas
referidos vão desaparecendo.

Que sintomas podemos observar nesse exemplo? A diminuição da clareza da consciência foi o
primeiro a surgir, mas logo acompanhada de “visões” de pássaros e pessoas. As alucinações (ou
ilusões) visuais são as mais comuns no delirium, (auditivas ou de outras áreas sensoriais às vezes
podem estar presentes). O falseamento do juízo (desconfiança acerca do pessoal de enfermagem)
pode ocorrer em diversos graus, inclusive como ideias delirantes (no exemplo acima, a certeza de que
querem matá-lo). Desorientação no tempo e no espaço é achado comum nesses quadros e o
pensamento confuso-desconexo, se às vezes está levemente presente em algumas alterações
deficitárias da consciência, tende a se exacerbar significativamente no delirium. Os sentimentos e
emoções podem estar sendo vivenciados com intensidade exacerbada (como, por exemplo, estrema
ansiedade, medos imprecisos ou o desespero do paciente citado). Distúrbios da psicomotricidade se
fazem presentes (no caso acima em forma de agitação, mas podem ser observados quadros de
lentificação dos movimentos, acompanhados de prostração). O delirium tende a oscilar em sua
manifestação ao longo do dia: pela manhã e início da tarde, os níveis da consciência estão mais claros
e, então, a sintomatologia tende a diminuir; mas, no final da tarde e à noite geralmente há acentuação
do rebaixamento da consciência, ressurgindo todos os sintomas produtivos. O delirium pode durar
dias e até semanas; após a recuperação e tratamento de suas causas, a pessoa geralmente não se lembra
do ocorrido ou tem recordações fragmentadas de quando esteve nesse estado.

Não devemos confundir os termos delirium com delírio. Esse último é um sintoma caracterizado pela
crença falsa, mas convicta, de que algo é verdadeiro. Delirium é uma síndrome, ou seja, um conjunto
de sintomas que tendem a aparecer associados. Todavia, conforme pontuamos acima, ideais delirantes
podem compor esse grupo de sintomas. O delirium pode conter um delírio. Mas a ideia delirante aqui
se deriva de outro sintoma, no caso, a diminuição da clareza da consciência, e, portanto, trata-se de
um delírio secundário.

A psicopatologia clássica separa do delirium um quadro conhecido como “estado oniróide”, onde se
ressaltam alucinações, pseudoalucinações ou ilusões visuais em abundância, sendo que a pessoa
mescla tais imagens com cenas do que está sonhando (o termo oniróide refere-se ao que é semelhante
ao sonhar). Assim, as imagens fantásticas e plásticas dos sonhos transbordam para o mundo real em
forma de vívidas pseudopercepções. Entretanto, a tendência atualmente é englobar o estado oniróide
como uma forma de delirium.

No cinema há um antigo filme clássico, denominado Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945),
do diretor Billy Wilder. O trabalho cinematográfico foi ganhador de quatro Oscars, incluindo melhor
filme e melhor ator, se prestando a ilustrar não só o quadro de delirium, mas também da infeliz
trajetória de um homem acometido pelo alcoolismo, retratando bem o que ocorre, muitas vezes, na
vida real. Don (interpretado pelo ator Ray Milland) é um escritor fracassado que se torna alcoolista e
cada vez mais vai ficando dependente da bebida, apesar dos esforços do irmão e da sua namorada
para que deixe o vício. Como eles o fiscalizavam para que não bebesse, escondia garrafas de bebidas
em diversos locais do apartamento (lustre da sala, buraco na parede, penduradas para fora de uma
janela). O alcoolismo de Don vai evoluindo ao ponto de ter que roubar para obter dinheiro e comprar
bebidas. Em um estágio mais avançado da dependência, entra em estado de delirium (o chamado
delirium tremens do alcoolismo, onde a pessoa apresenta tremores pelo corpo, associado aos sintomas
psicopatológicos do quadro). Don apresenta alucinações visuais em que “vê” rachaduras e buracos
na parede de seu apartamento, um rato saindo deles e um morcego voando ao redor do alcoolista,
parecendo querer lhe atacar, para, em seguida, morder e puxar o outro animal. O homem entra em
pânico, fica agitado, suando frio e gritando. Antes, aparece uma cena em que Don está internado em
um hospital, numa enfermaria para alcoolistas, e ao seu lado havia outro enfermo apresentando o
delirium tremens, gritando e agitado por estar sentindo e vendo besouros sobre seu corpo, dando tapas
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na cama como que os espantando. Tanto esse doente quanto Don têm alucinações visuais tipo
zoopsias, modalidade que estudamos no capítulo sobre alucinações e que é muito comum nos estados
mais graves da dependência alcoólica.

4. ESTREITAMENTO DA CONSCIÊNCIA

No estreitamento do campo da consciência, essa passa a abranger um conteúdo menor do que se tem
no estado não alterado. Tal conteúdo fica restrito a algumas ideias, imagens mentais, sentimentos,
movimentos corporais, estando reduzida a percepção de grande parte dos estímulos externos, que
agora não são abarcados pela amplitude bastante limitada da consciência. Na analogia desta com a
projeção do feixe de luz numa parede formando um circulo iluminado, podemos dizer que no
estreitamento há uma retração e afunilamento desse círculo, que ficará com uma área mais reduzida.
A periferia menos iluminada do campo, que faz limites com as áreas escuras do inconsciente,
aproximar-se-ia do centro. Assim, os tipos de estreitamentos podem ser considerados alterações da
amplitude da consciência.

Um dos mais conhecidos exemplos é o estado crepuscular. Neste, a pessoa apresenta uma atividade
psicomotora mais ou menos ordenada, frequentemente através de atos automáticos (ou automatismos
psicomotores), em que pode andar, falar (responder a um cumprimento de “bom dia”, uma frase
limitada, sempre com conteúdos reduzidos), correr sem rumo certo. Há casos onde a pessoa passa a
andar sem nenhum destino durante horas; noutros, chega a comprar passagens e viajar. Às vezes
apresenta atos impulsivos, comportamento agressivo e descontrole emocional. Alucinações podem
surgir. Há um déficit na clareza da consciência, mas este geralmente é leve, de modo que a primeira
vista nem sempre se constata que existe alteração no psiquismo da pessoa. Muitas vezes, quem está
em estado crepuscular é descrito comportando-se “como um robô”, ou “distante”, “alheio” ao
ambiente. O episódio comumente tem início e término abruptos, e posteriormente há amnésia para o
período em que ocorreu.

Vejamos um exemplo. Em serviço de emergência psiquiátrica atendemos um homem com aspecto


assustado e constrangido, com as mãos amarradas, trazido por familiares e policiais. As informações
colhidas eram de tratar-se de pessoa epilética desde criança, mas as crises convulsivas estavam
controladas com medicação. Ultimamente, todavia, vinha tendo acessos de agitação. Nesse
atendimento, foi contado pelos parentes que o homem estava em sua residência conversando quando,
repentinamente, começou a gritar, insultar os vizinhos e, em seguida, passou a quebrar objetos da
casa. Quando se tentava segurá-lo, tornava-se agressivo a quem dele se aproximasse. Constantemente,
ficava apontando para locais em seu redor, com olhar fixo, como se estivesse vendo algo. Alguns
vizinhos tentaram ajudar os familiares na sua contenção, mas só com a ação da polícia é que se
conseguiu imobilizá-lo, tamanha a agressividade e força (ressaltar que se tratava de homem com porte
atlético). No serviço de emergência, de forma constrangida dizia não lembrar nada do ocorrido,
achando estranho o relato das pessoas que lhe acompanhavam. Recorda apenas que estava
conversando com alguém em sua casa e então de nada mais lembra, só voltando à consciência quando
estava na viatura policial. Esse período de estado crepuscular levara cerca de uma hora. Não era a
primeira vez que tal acesso ocorria, mas não com tamanha agressividade. Observe-se que com o
estreitamento da consciência, nesse caso, o homem ficava como que “ausente” por um período curto
de tempo, apresentando agitação psicomotora, insultando as pessoas, provavelmente tendo
alucinações, tudo dentro de um campo bem limitado de conteúdos psíquicos e comportamentais.

Os estados crepusculares muitas vezes são sintomas de epilepsia do lobo temporal, mas podem
ocorrer devido traumatismo craniano, intoxicação por álcool ou outras drogas. Todavia, há condições
psicogênicas relacionadas a tais estados, como a dissociação histérica e intenso trauma emocional.
Nesses casos de estados crepusculares onde há evidência de fatores psicológicos envolvidos, alguns
181

autores os chamam de estados segundos, como o exemplo da adolescente em conflito com a família
que após momentos de tensa discussão com os pais, algumas vezes entrava em estado de
estreitamento da consciência e saía a vagar sem rumo pelas ruas, comportamento esse que, entrando
pela noite, preocupava a família e fazia alguém sair a procurá-la, com a adolescente apresentando
amnésia para o incidente. Dificilmente, esses estados segundos chegam a um nível de agitação
psicomotora e agressividade como pode chegar o estado crepuscular da epilepsia. No entanto, há
autores que empregam o termo “estado crepuscular” indistintamente, independente de origens
psicógenas ou orgânicas.

O sonambulismo pode ser considerado um tipo especial de estreitamento da consciência que se inicia
durante o sono, em que a atividade mental, assim como nos estados crepusculares, é bastante restrita
em seu conteúdo. A pessoa anda, fala, troca de roupas, desenha, desvia obstáculos enquanto caminha,
podendo apresentar outras atividades menos comuns. O tempo de duração de um episódio
sonambúlico é geralmente menor que a observada nos estados crepusculares (minutos, meia hora,
raramente hora inteira), mas ambos podem ter origens psicógenas ou orgânicas (essas últimas,
principalmente epilepsia). Ao contrário do que muitas vezes se pensa, geralmente o indivíduo em
estado de sonambulismo não está sonhando, pois é um fenômeno que ocorre no chamado período
NREM (não - REM) do sono, detectado no EEG (eletroencefalograma), onde há determinados tipos
de ondas lentas que não se relacionam com os momentos do sonho, ao contrário da fase REM,
indicativa que se está sonhando. De fato, quando acordada durante o momento de sonambulismo,
dificilmente a pessoa fará referência a estar sonhando ou tendo pesadelos; e no dia seguinte, quase
sempre a experiência não será lembrada. No sonambulismo, a pessoa sente, vê, faz inspeção visual,
daí poder realizar, algumas vezes, movimentos complexos e evitar obstáculos. Mais adiante, quando
abordarmos as principais alterações do sono, voltaremos ao tema do sonambulismo.

A hipnose é outro estado de estreitamento da consciência no qual a pessoa que o vivencia, embora
fique com a receptividade aumentada em relação a determinados estímulos (onde há uma
concentração focal), apresenta significativa diminuição de atenção às outras ocorrências para as quais,
em geral, estamos voltados. Durante o estado hipnótico a pessoa pode focalizar a atenção para dentro
de si mesma e deixar de atentar para os vários elementos que compõem nosso campo da consciência,
que está restrito, estreitado, diminuído em sua amplitude. O estado hipnótico se acompanha de certa
vivência de involuntariedade, como a impressão de que os movimentos parecem automáticos, bem
como da experiência de percepções comuns serem alteradas, a exemplo do sentir as mãos pesando
extraordinariamente ou da sensação de calor induzidos por sugestão hipnótica. Tal estado pode ser
provocado por outra pessoa (o hipnotizador), mas aquele que deseja vivenciar tal experiência pode
também se deixar entrar nela por autossugestão.

Os teóricos do estado hipnótico se utilizam de comparações desse fenômeno com algumas


experiências semelhantes (e que de certa forma são extensões da hipnose) que podemos ter
naturalmente, como estarmos em um grupo de amigos ou sala cheia de pessoas, mas mentalmente
afastados delas, até que alguém chama nosso nome para então sairmos daquela condição de
“desligamento”. Tais explicações podem fazer com que pessoas temerosas em ser hipnotizadas
sintam-se mais à vontade e próximas de algo que pode suscitar muita expectativa. A facilidade ou
dificuldade para alguém entrar em hipnose varia de pessoa para pessoa. Há aqueles que facilmente
são hipnotizáveis, outros não tão rapidamente, e há os que dificilmente ou praticamente não se deixam
fluir nesse estado psíquico. Existem até escalas de avaliação para susceptibilidade hipnótica, como a
Stanford Hypnotic Susceptibility Scale (SHSS), pela qual, através de vários testes de indução
hipnótica chega-se a uma pontuação e gradação no nível de facilidade ou dificuldade com que o
indivíduo entra nesse estado de consciência. Alguns dos itens de pontuação envolvem a percepção da
mão estar bastante pesada ou a de incapacidade de levantá-la, sentir uma força que puxa uma mão
para outra, ouvir ou perceber na pele um mosquito (alucinação do mosquito), experimentar na boca
um gosto amargo e outro doce (alucinação do paladar), escutar ao longe uma música na realidade
182

inexistente (alucinação musical), imaginar-se nos primeiros anos de escola (regressão de idade), fazer
um desenho só alguns minutos após a sugestão ser dada (sugestão pós-hipnótica).

Mas, há muitos mitos e inverdades que se fizeram sobre o estado hipnótico, associando-o a um clima
de mistério, como algo sobrenatural ou místico. Talvez isso tenha ocorrido, em parte, devido a
apresentações públicas de hipnotismo, como fenômeno de manifestação sensacionalista. Estórias
inverídicas, novelas, filmes e contos também se encarregaram da difusão de distorções sobre a
hipnose e que contribuem para a resistência a se entrar nesse estado. Por exemplo, a idéia de que
quando se está hipnotizada a pessoa perde a autonomia e fica controlada pelo hipnoterapeuta ou que
sob hipnose ela falará ou terá condutas perigosas e contrárias a seus princípios éticos e sua moral. Na
verdade, a pessoa se deixa levar pelo transe hipnótico porque essa é sua vontade, e sem a colaboração
e permissão psíquica dela não se chega ao estado de “transe”. Muitos hipnoterapeutas dizem inclusive
que toda hipnose é auto-hipnose. A pessoa não executa comportamentos que vão de encontro a seus
valores éticos e morais. Apenas há casos específicos, como o da mulher que tinha desejos sexuais
pelo terapeuta e, em transe hipnótico, tentou lhe abraçar, o que foi contornado profissionalmente por
ele. Nesse exemplo simples, duas questões se ressaltam: não houve sugestão do hipnoterapeuta para
que a mulher lhe abraçasse, esse era o desejo dela; e da mesma forma que se escolhe um ginecologista
ou cirurgião plástico pelas referências profissionais e éticas do mesmo, também assim deve ser feito
para com aquele que tem competência e formação na área da hipnologia.

Muitos consideram a hipnose como um instrumento terapêutico, mas não uma terapia em si, ou seja,
trata-se de ferramenta que se usa no contexto de uma terapia. Por exemplo, um dentista vai fazer um
tratamento de “canal” em seu paciente e sabe todo o procedimento para tal. Pode fazer uso de um
anestésico ou, se tem experiência em hipnose, utilizá-la para redução da dor. Tanto o anestésico
quanto a hipnose foram instrumentos para o tratamento de “canal”. Da mesma forma, há outras
situações clínicas dolorosas que podem se beneficiar com a hipnose, como as dores provenientes do
câncer, queimaduras e dor pós-operatória, onde se tem conseguido obter abolição ou diminuição
significativa da dor. Também há bons resultados em relação à excessiva ansiedade de certas
patologias mentais, inclusive com a associação do transe hipnótico com relaxamento corporal e
psíquico, ou sua utilização na terapia dos transtornos fóbicos. Atualmente, a pesquisa sobre hipnose
tem avançado em sua aplicação no terreno do tratamento clínico, diferentemente de outros estados de
estreitamento da consciência.

Todavia, um ponto controvertido na pesquisa e terapêutica da técnica hipnótica é sua utilização para
recuperar memórias perdidas associadas a traumas e conflitos. É sabido que, em pessoas com
amnésia, muitas lembranças que ocorrem durante o estado hipnótico, voltam a estar bloqueadas após
a saída do mesmo. E, além disso, sabe-se hoje que muitas das “recordações” que vêm à tona do
período amnésico estão impregnadas de fantasias vivenciadas como lembranças, assunto que
abordamos quando víamos os fenômenos ligados à memória.

Tem-se procurado encontrar correlatos neurofisiológicos no cérebro do indivíduo em estado


hipnótico, assim como são conhecidos determinados tipos de ondas no EEG daquele que dorme.
Todavia, não se tem encontrado modificações neurofisiológicas precisas e consistentes no momento
em que se está sendo hipnotizado, com o EEG mostrando um traçado semelhante ao do indivíduo
acordado. Algumas pesquisas encontraram uma atividade aumentada de ondas alfa, mas isso ainda
não é um achado científico consistente (SADOCK, B.; SADOCK, V; 2007).

5. HIPOPROSEXIA, DISTRAÇÃO E DISTRAIBILIDADE


183

Quando se estuda as alterações da consciência, é inevitável fazer algumas considerações sobre as


alterações da atenção, já que essa atividade mental é o foco daquela, e sempre que houver declínio
dos níveis de consciência, a atenção ficará comprometida em algum grau.

Hipoprosexia é a diminuição geral do funcionamento da atenção, ou seja, tanto a capacidade de


mobilidade quanto a de tenacidade são afetadas. A pessoa se cansa rapidamente em estar concentrada
em algo, assim como a flexibilidade com que normalmente direciona e movimenta a atenção de um
estímulo a outro é feita com dificuldade. Na depressão observamos esse déficit global do foco da
consciência, mas em estados de estafa física ou mental ele também pode ser encontrado, não se
constituindo, necessariamente, em um sintoma específico de doença mental. De uma maneira geral,
onde houver comprometimento da clareza da consciência (sejam distúrbios deficitários ou produtivos),
aí ocorrerá também algum déficit na atenção. Por outro lado, quando a consciência está clara e em
vigília, nem sempre significa que a atenção também se ache em funcionamento eficiente, como se
pode observar no jovem que faz uso de estimulante para brincar os três dias de carnaval, ficando
“aceso” física e mentalmente nesse período, mas sem condições de estudar e se concentrar em um
capítulo de livro nem atentar produtivamente para as palavras de um conferencista.

Quanto aos termos distração e distraibilidade, é necessário ter-se cuidado com seus significados e
empregos em textos científicos, pois são fenômenos distintos e que podem ser confundidos.

Quando uma pessoa está em um ônibus e fica distraída olhando atentamente para alguém que por
algum motivo lhe chama a atenção, pode perder a parada em que ia saltar. Um aluno durante a aula
está distraído pensando num jogo em que irá participar logo mais e consequentemente sua atenção
não está para as palavras do professor e de seus colegas. Um pesquisador durante uma conversa está
com a concentração voltada para um problema científico que não tem nada a ver com o que se fala
naquele momento, então se diz que está distraído ou “no mundo da lua”. Em todos esses exemplos,
as pessoas estão com a atenção voltada preponderantemente para um estímulo externo ou interno em
detrimento de todos os outros. Nenhuma delas apresenta o fenômeno da distraibilidade, mas são
exemplos de distração.

Todavia, quando um paciente em estado maníaco do transtorno bipolar, além da aceleração do curso
do pensamento e hiperatividade, está em um instante falando a uma colega, em seguida desvia a
atenção desta para uma televisão desligada, pensa e fala agora sobre um programa exibido horas atrás,
depois se volta para uma janela e comenta algo sobre o tempo, posteriormente sua atenção se dirige
para um barulho na rua, continuando a “saltar” superficialmente de estímulo a estímulo, então temos
a distraibilidade. Há uma hipotenacidade e hipervigilância (hipermobilidade) da atenção. A pessoa
não consegue mantê-la voltada para um mesmo estímulo e rapidamente a desloca para outros,
geralmente de forma involuntária. De fato, essa elevada mobilidade da atenção é muito comum na
fase maníaca do transtorno bipolar, mas outros exemplos de situações onde pode estar presente são
as intoxicações por certas drogas estimulantes (anfetamina, cocaína, alucinógenos) e no transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

Esse transtorno mental, atualmente muito estudado, surge geralmente em crianças e adolescentes,
antes mesmo dos sete anos, mas muitas vezes só sendo diagnosticado após tal idade, quando começam
a ocorrer maiores dificuldades no desenvolvimento psicossocial, inclusive na área escolar. É mais
frequente no sexo masculino, e fatores biológicos envolvendo neurotransmissores, bem como
predisposição genética e danos cerebrais sutis parecem ser responsáveis por tal doença. Todavia,
componentes psicossociais podem contribuir para a ocorrência ou agravamento do quadro de TDAH.
Há casos de crianças institucionalizadas com hiperatividade e déficit de atenção que melhoram
quando são adotadas. Também a ruptura do equilíbrio familiar e outros acontecimentos causadores
de ansiedade contribuem no aparecimento ou prolongamento do TDAH (SADOCK, B.; SADOCK,
V., 2007).
184

Na prática, a criança com TDAH pode apresentar-se com dificuldades de manter a atenção em tarefas,
ser facilmente atraída por estímulos alheios ao trabalho mental a que tenta se dedicar e fácil
fatigabilidade na capacidade de concentração. Na área da hiperatividade, pode agitar as mãos e os
pés, se mexer constantemente na cadeira ou não conseguir ficar sentado, correr ou escalar objetos em
demasia ou em situações impróprias, podendo falar em excesso e não aguardar sua vez de se
expressar, apresentando impulsividade em diversos momentos. O diagnóstico deve ser concluído não
só através da observação da criança, mas também da entrevista com os pais e do depoimento de
profissionais que lidam com ela na escola. Quanto à evolução do TDAH, não sendo tratado, pode se
prolongar pela vida adulta. O tratamento inclui psicoterapia, orientação aos pais e utilização de
medicação estimulante do sistema nervoso central, como o metilfenidato (Ritalina).

6. O SONO E OS SONHOS

O sono é um estado psicofisiológico da consciência e uma das necessidades básicas do ser humano.
Nele desenvolvem-se os sonhos, igualmente importante para a homeostase psíquica. Hoje se sabe que
existe o ciclo e fases do sono. Quando uma pessoa adormece, comumente passa por duas fases que
podem ser observadas através do EEG: o sono sincronizado ou não-REM e o sono dessincronizado
ou REM. O termo REM se refere ao rápido movimento dos olhos (rapid eye movements), presente
nessa fase do sono.

No início do sono, a pessoa normalmente entra no período não-REM, que acusa no EEG ondas lentas
de grande amplitude, com parâmetros fisiológicos estáveis e em nível baixo de funcionamento, como
frequência respiratória, batimentos cardíacos e movimentos intestinais, havendo diminuição da
atividade do sistema nervoso autônomo. Essa fase é comumente dividida em quatro estágios, que vão
do 1 ao 4, indicando gradativamente a profundidade do sono. Os dois primeiros (1 e 2) são leves e
superficiais, sendo o 2 já menos superficial em relação ao anterior. Os estágios seguintes (3 e 4)
pertencem ao sono profundo (sendo o 4 de maior profundidade), tornando-se mais difícil despertar
uma pessoa nessas duas etapas que nas duas anteriores. Após passar pelos quatro estágios do sono
sincronizado não-REM, surge o período REM, qualitativamente diferente, com características bem
específicas, havendo instabilidade do sistema nervoso autônomo, com variações dos parâmetros
fisiológicos (frequência respiratória, batimentos cardíacos, etc.), ocorrendo os movimentos oculares
rápidos (que dá nome ao período – sono REM) e atonia muscular (relaxamento da musculatura
corporal). Todos esses dados das fases do sono podem ser observados objetivamente através de um
procedimento laboratorial chamado de polissonografia (PSG), que é a avaliação do indivíduo
enquanto ele dorme, monitorado simultaneamente por eletroencefalograma (EEG), eletrooculograma
(EOG) e eletromiograma (EMG). Interessante é que o traçado eletroencefalográfico do período REM
se assemelha às ondas do estágio de vigília, ou seja, atividade diurna do cérebro, e, no entanto,
paradoxalmente, a pessoa está dormindo. Há também atonia muscular, com o corpo em repouso, ao
contrário do estado de movimentos da pessoa acordada. Daí o sono REM também ser chamado de
“sono paradoxal”.

Em um homem adulto sem distúrbios do sono, enquanto dorme, pode-se observar, inicialmente, o
surgimento do período não-REM indo dos estágios 1 a 4 (o que dura uns 90 minutos), para em seguida
ocorrer o primeiro sono REM (de curta duração, em torno de 10 a 15 minutos). Fases não-REM e REM
se alternam a cada 80 – 120 minutos, com cerca de 4 a 6 ciclos por noite. Mas o sono profundo dos
estágios 3 e 4 (chamado de sono delta) estão mais presentes no primeiro terço da noite, surgindo de
forma menos prolongada nas etapas finais do sono. Já os períodos REM vão ficando mais alongados a
partir da segunda metade da noite. Essa estrutura do sono com seus ciclos, fases e estágios, bem como
o tempo que se dorme podem variar de acordo com determinados fatores, como a extensão do sono nas
noites anteriores, uso de medicamentos ou drogas, ambiente (excessivo frio ou calor, ruídos
185

perturbadores), idade, inversão do ciclo sono-vigília (por exemplo, trabalhar à noite e ter que dormir
durante o dia) e situação psicológico/emocional pela qual a pessoa está passando.

Um dado significativo e interessante é que 80 – 90 % das pessoas, quando são acordadas durante o
sono REM, dizem que estavam sonhando, mesmo que não lembrem o conteúdo do sonho. As
pesquisas cada vez mais vêm constatando que a grande maioria dos sonhos, principalmente os mais
vívidos, ocorre nesse período, e com isso existe forte aceitação científica a se considerar o período
REM como o momento da atividade onírica no ser humano. É possível a ocorrência de sonhos se dar
também em períodos não-REM, mas são menos frequentes e sem a estruturação e clareza que os da
etapa REM. Hoje, acredita-se que a grande maioria das pessoas sonha, embora nem todas se lembrem
do que sonhou, ou seja, é pouco provável ser verdadeira a afirmação de que muita gente não sonha.
O não lembrar sonhos foi confundido com o não sonhar. Outro dado interessante sobre o período
REM é que a privação do mesmo parece causar sérios problemas psicopatológicos para o indivíduo.
A ausência do sono, com várias noites sem dormir, há muito já era conhecida como perturbadora do
psiquismo, produzindo irritabilidade, excessiva ansiedade, inquietação e até quadro psicótico,
inclusive com alucinações. Mas há também determinadas pesquisas sugerindo que quando se suprime
apenas o período REM de uma pessoa (isso é possível acordando-a e interrompendo seu ciclo de sono
todas as vezes que for constatado início de período REM) ocorrem também sintomas de privação.
Houve experiências com gatos em que se provocou cessação do sono REM de forma contínua,
ocorrendo morte dos animais (os mamíferos têm também registro cerebral com ciclos de sono
sincronizado/dessincronizado, semelhante ao homem). Essas pesquisas de privação de sono REM
são contestadas por alguns, alegando-se que os indivíduos e os animais estariam estressados e
descompensados não pela falta do sono REM, mas por experiências sucessivas de serem
continuamente acordados enquanto dormiam.

Durante o sono REM, áreas do lobo occipital comumente são ativadas por conta das chamadas ondas
PGO, que se originam na ponte (P), vão até o corpo geniculado (G) – ambas as regiões subcorticais
– e daí ao lobo occipital (O), sendo essa última estrutura ligada aos estímulos visuais. É possível que
nessa ativação cerebral em tal lobo (confirmada inclusive por tomografia por emissão de pósitrons –
PET), possa estar a explicação de imagens visuais predominando na maioria dos sonhos. E, então,
algumas pessoas perguntam como os cegos de nascimento podem ter sonhos com imagens visuais.
Na verdade, isso não ocorre, eles têm representações corporais, de movimento, tácteis, e talvez até
aproximações do que pensam serem imagens ligadas à visão, da mesma forma que ao tocar e
manusear uma bola de futebol podem ter vaga ideia de como seria a sua forma visual (todavia, não
podem sentir o mesmo acerca de um objeto intocável, como as estrelas no céu, o arco-íris ou o
horizonte).

Comumente, o tempo médio que as pessoas dormem é em torno de 6 a 9 horas por dia. Todavia, há
aquelas que necessitam e funcionam bem com um período menor que seis horas diárias. Outras
precisam de tempo maior que nove horas para estar satisfeita com seu sono e ter um tempo de vigília
sem problemas. Vale ressaltar que os cochilos ou sestas tirados durante o dia muitas vezes diferem
do traçado da noite de sono que estamos abordando, pois aqueles momentos de adormecimento breve
podem apresentar, por exemplo, grande quantidade de período REM. Muitos já passaram pela
experiência de, em um cochilo de meia hora, sonhar.

Mas o que seria o conteúdo do sonho, invadindo nossa consciência enquanto dormimos e cuja
presença, em nível neurofisiológico, é representada basicamente pelo período REM do sono? Desde
a antiguidade que tal fenômeno enigmático vem despertando atração e tentativas de compreensão da
parte dos homens. Concepções místicas, neurofisiológicas, psicogênicas foram surgindo ao longo da
história. Houve quem achasse que se tratava apenas de um conjunto solto, aleatório e desconexo de
imagens mentais sem sentido, produzidas por um estado de frouxidão do funcionamento cerebral. Em
186

outro extremo foram atribuídas explicações sobrenaturais, como comunicação de seres espirituais ou
previsões do futuro.

Freud (1969), em seu trabalho “A Interpretação dos Sonhos”, formulou uma hipótese de que a
lembrança dos nossos sonhos, ou seja, aquilo que recordamos como sendo o conteúdo das imagens
oníricas experimentadas enquanto dormíamos - e que ele chamou de conteúdo manifesto - é apenas
uma parte da totalidade do que os sonhos contêm. Subjacente a isso, existiria um conteúdo latente
que seria o lado não consciente da experiência onírica e representaria desejos inconscientes da pessoa.
Por exemplo, alguém teria raiva do pai, reprimiria esse pensamento e sentimento tornando-os não
consciente, mas, ao sonhar, sua mente transformaria o desejo de agressão (conteúdo latente) em um
sonho que estaria vencendo uma luta de boxe, cujo adversário seria um homem mais velho (conteúdo
manifesto). Sonhar abertamente espancando o genitor seria conflitante e algo gerador de sentimentos
de culpa e condenação; daí o psiquismo “disfarçar” o desejo com uma cena de luta, não deixando de
dar, de forma camuflada, evasão à parte desse desejo. Esse trabalho psíquico de transformar o
conteúdo latente inconsciente em conteúdo manifesto consciente, Freud chamou de elaboração do
sonho, também inconsciente. Isso ocorreria através de determinados processos psíquicos, como o
deslocamento e a condensação. No primeiro, haveria um desvio do desejo “proibido” de um objeto
para outro. No exemplo dado, o deslocamento do agredir o pai para bater em um lutador, algo mais
aceitável. Na condensação, ocorreria a fusão de dois ou mais desejos confluindo no conteúdo
manifesto. Tomando o mesmo exemplo, vamos supor que além do desejo de agressão ao pai,
houvesse também uma aspiração infantil de ser atleta e seguir carreira desportista, ideia nunca aceita
pelo genitor, havendo então, nesse sonho, condensação de dois desejos. Os pesadelos,
paradoxalmente, poderiam ser também interpretados, à luz dessa concepção freudiana, como desejos,
todavia, de punição e castigo. Se, por exemplo, o sonho de agredir o pai, começasse a se fazer
consciente nos seus conteúdos latentes, o psiquismo poderia transformar a luta em que o sonhador
estava levando a melhor, em um pesadelo em forma de violento e prolongado espancamento por parte
do adversário mais velho sobre o jovem...

Mas, a interpretação dos sonhos de uma pessoa deve ser feita apenas por um psicoterapeuta experiente
e que conheça a história dela. Um conteúdo de sonho semelhante, apresentado por dois indivíduos,
não terá, provavelmente, o mesmo simbolismo. Nem sempre a encenação onírica de alguém lutando
deverá ter o mesmo significado, o que invalida certos “dicionários” de sonhos, do tipo “sonhar com
tal conteúdo tem determinado significado”, como, por exemplo, cobra significar símbolo fálico e
desejo sexual, adolescente sonhar voando indicar desejo de liberdade, etc. Além do mais, hoje se
considera que os conteúdos dos sonhos podem estar ligados a outros elementos além de desejos e
conflitos. Impressões sensoriais (calor, frio, fome, dor, presença de ruídos), enquanto se dorme,
podem entrar no sonho de alguém interferindo no seu conteúdo, como o exemplo do homem que
sonha andando na neve a partir duma queda significativa da temperatura do ar condicionado de seu
quarto. Os chamados “restos diurnos” também podem compor o conteúdo dos sonhos, como
pensamentos, recordações, preocupações e atividades dos dias anteriores que fizeram parte da
consciência da pessoa enquanto acordada. Apesar das diversas concepções, os conteúdos dos nossos
sonhos continuam sendo uma interrogação e objeto de controvérsias.

7. AS ALTERAÇÕES DO SONO

As alterações do sono podem ser classificadas em dissonias e parassonias. As primeiras dizem


respeito a comprometimentos ligados a quantidade, qualidade e regulação do sono. As do segundo
tipo se referem a fenômenos comportamentais e emocionais indesejáveis que ocorrem durante o
dormir. As principais dissonias são a insônia, a hipersonia e o distúrbio circadiano do ciclo sono-
vigília. São exemplos de parassonias, o sonambulismo, pavor noturno, pesadelos constantes,
transtorno comportamental do sono REM e o bruxismo noturno.
187

INSÔNIA

Graciliano Ramos (2003, p. 9-16), intitulou um de seus contos de “Insônia”, em que aborda o sofrimento
de um homem cujas noites são desprovidas de sono satisfatório, onde o autor descreve, momento a
momento, através da narrativa da personagem insone, as vivências de se estar percebendo o tempo
passar e o sono não vir. Talvez atormentado por uma dúvida que é expressa em um pensamento de “Sim
ou não?”, palavras essas que são repetidas 22 vezes pela personagem durante a noite-madrugada, vemos
através do conto, a descrição do sofrimento por não conseguir relaxar no colchão, a dificuldade com os
lençóis e travesseiros, uma irritante fresta de luz que parece entrar em seu quarto, a percepção
aumentada do bater de um relógio mostrando que o tempo passa sem a conciliação com o sono, a
indecisão entre o levantar-se e fumar ou continuar tentando dormir, a inveja que sente das pessoas que
nesse seu momento de insônia dormem tranquilas, a enxurrada de pensamentos que invade a mente
cansada daquele que vivencia uma noite insone. O quadro de tormento entre o dormir e o não dormir
parece gerar, em alguns instantes, alucinações hipnagógicas na personagem (aquelas que ocorrem
quando se está em situação limítrofe entre a vigília e o sono).

Transcrevemos alguns trechos do sofrimento desse homem:

Sim ou não? Essa pergunta surgiu-me de chofre o sono profundo e acordou-me. A inércia
findou num instante, o corpo morto levantou-se rapidamente, como se fosse impelido por um
maquinismo. [...] Não consigo estirar-me na cama, embrutecer-me novamente: impossível a
adaptação aos lençóis e às coisas moles que enchem os colchões e os travesseiros. [...] Ouvi
uma pancada dentro da noite, mas não sei se o relógio está longe ou perto: o tique-taque dele
é muito próximo e muito distante [...] Houve agora uma pausa nessa agonia, todos os rumores
se dissiparam, a vidraça escureceu, o soalho fugiu-me dos pés – e senti-me cair devagar na
treva absoluta. Subitamente um foguete rasga a treva e um arrepio sacode-me. Naquela queda
imensa deixei a cama, alcancei a mesa, vim fumar. [...] Que me dizia ontem à tarde aquele
homem risonho, perto de uma vitrina? Tão amável! Penso que discordei dele e achei tudo
ruim na vida. O homem amável sorriu para não me contrariar. Provavelmente está dormindo.
[...] Há uma terrível injustiça. Por que dormem os outros homens e eu fico arriado sobre uma
tábua, encolhido, as falanges descarnadas contornando órbitas vazias? [...] Sim ou não?
Quem me está fazendo na sombra esta horrível pergunta? Com a golfada de luz que penetrou
a vidraça, alguém chegou, pegou-me os cabelos, levantou-me do colchão, gritou-me as
palavras sem sentido e escondeu-se num canto. [...] Se a noite findasse, erguer-me-ia,
caminharia como os outros, entraria no banheiro, livrar-me-ia das impurezas que me estão
coladas nos ossos. Mas a noite não finda, todos os relógios descansaram – e a terra está
imóvel como eu.

Insônia não é só aquela dificuldade de adormecer quando nos deitamos. Esse tipo é chamado de
insônia inicial. Todavia, pode ocorrer que a pessoa consiga dormir até rapidamente, mas acorde a
uma ou duas horas da madrugada e não consiga mais conciliar o sono. Temos então a insônia
terminal (que parece ser a do conto de Graciliano Ramos, quando se expressa: “sim ou não? Essa
pergunta surgiu-me de chofre o sono profundo e acordou-me”). E há ainda um terceiro tipo, onde o
indivíduo passa a noite toda tendo despertares em que acorda total ou parcialmente, e embora volte a
dormir, deixa uma vivência de sono insatisfatório. Isto seria a insônia intermediária. Portanto,
insônia pode ser definida como uma deficiência na iniciação ou manutenção do sono. Os estados
reativos ansiosos geralmente estão ligados à insônia inicial, enquanto a terminal é comumente
encontrada nas depressões.

O déficit de sono pode ser transitório, também chamado de insônia aguda, durando dias ou semanas
e desaparecendo com o passar do tempo, com ou sem tratamento, ocorrendo em uma pessoa até então
com sono satisfatório; ou ser persistente, chegando a se prolongar por meses ou até anos, quando
188

então se considera que há insônia crônica, geralmente mais difíceis de serem tratadas. Na insônia,
além da queixa de sono insatisfatório, expressada muitas vezes em termos de “não consigo dormir
direito” “passo a noite em claro” ou “acordo de madrugada e não durmo mais”, há sintomas que são
percebidos durante o dia, como sonolência, irritabilidade, fadiga, sintomas cognitivos leves (na área
da memória, concentração, raciocínio).

Há insônias de causas conhecidas, psicogênicas ou orgânicas, como intensas preocupações com


problemas difíceis de resolver, persistentes conflitos, perdas significativas na vida, doenças com
quadro doloroso ou desconfortável, abuso e dependência de drogas (inclusive de ação estimulante),
hipertireoidismo. Outras são de etiologia incerta ou mesmo desconhecida, como a chamada insônia
idiopática, que é um tipo crônico de insônia que começa cedo, muitas vezes ainda na infância e que
não se sabe ao certo a partir de que se origina, já que não há quadro psiquiátrico subjacente, doenças
clinica-gerais, nem evidentes fatores psicológicos que expliquem o início precoce desse distúrbio,
havendo apenas hipóteses de alterações constitucionais neurofisiológicas.

De uma maneira geral, quando deixam de existir os fatos estressantes que produziram uma insônia
psicogênica, a tendência é essa ir desaparecendo; todavia, há casos em que, mesmo a pessoa aliviada
em saber que os problemas ou conflitos foram resolvidos, pode haver persistência e cronificação do
distúrbio. É o que ocorre com a insônia psicofisiológica. Vejamos um exemplo típico dessa
modalidade de alteração. Vamos supor um homem passando por situação estressante no trabalho,
com risco de ficar desempregado, e que durante as várias noites em que está intensamente preocupado
com essas questões, não consegue dormir, ficando “rolando na cama” até a madrugada, quando
exausto, concilia o sono por algumas horas. Após a situação causadora do estresse ter sido resolvida,
na noite seguinte, começa a temer que seu sono não volte ao normal, a duvidar que a insônia passe,
e, apesar da situação favorável no trabalho, continua sem dormir satisfatoriamente. A ansiedade e o
estado de apreensão para dormir vão se exacerbando, o tempo em que está na cama buscando o sono
vai se tornando estressante, o que o faz, naturalmente, não adormecer. Nas noites subsequentes, essa
apreensão se repete, criando um condicionamento em que o deitar passa a associar-se à tensão de ser
agora um homem que sofre de insônia. Quanto mais tenta esforçar-se para dormir, mas se frustra
nessa tentativa. O medo de continuar com insônia estaria causando insônia. A queixa de dificuldade
em dormir vai se tornado fixa e o distúrbio se cronificando. Todavia, muitas vezes a insônia
psicofisiológica, além do condicionamento, ocorre em combinação com outros fatores, como um
terreno propício a ansiedade e tensão somatizadas, bem como facilidade em estressar-se.
Vale lembrar que a insônia pode levar ao uso abusivo de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas,
quando, por exemplo, a pessoa começa a perceber que a ingestão do álcool ou medicação
tranquilizante produz algum efeito como indutor (pelo menos parcial) do sono. Os tranquilizantes e
soníferos do grupo dos benzodiazepínicos, como o diazepam, o flurazepam (Dalmadorm), podem ser
muito úteis em determinados casos, desde que haja um acompanhamento médico-psiquiátrico para
não se cair no abuso ou até dependência desses medicamentos quando do uso prolongado sem
planejamento. Pode inclusive ocorrer o fenômeno da “tolerância”, em que o organismo vai precisando
cada vez mais de dosagens elevadas do produto para se conseguir algum efeito ansiolítico e sonífero.

É importante se ter conhecimento acerca da chamada higiene do sono, que são condutas que podem
favorecer um dormir mais tranquilo e até diminuir ou mesmo cessar certas insônias, mas que muita
gente desconhece, inclusive profissionais de saúde mental. Hoje, chega-se a falar de insônia por
higiene do sono inadequada. Os principais itens da higiene do sono são os seguintes:

 Horário determinado para deitar, dormir e acordar (deitar e levantar em horários diferentes a
cada dia pode comprometer o sono satisfatório).
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 Exercícios e atividades físicas regulares durante o dia (acredita-se que tais práticas liberem
endorfinas no corpo, favorecendo um bem estar psíquico e o sono), mas deve-se evitar
atividades físicas pesadas próximo ao dormir.

 Evitar o uso de substâncias cafeinadas (café, chá preto, chocolate, determinados refrigerantes),
principalmente à tarde e à noite.

 Não ingerir bebidas alcoólicas algumas horas antes de dormir (pois o álcool, apesar de
propiciar indução inicial do sono, esse tende a ser entrecortado e insatisfatório).

 Não se envolver com atividades tensas e que exijam muita concentração próxima ao dormir,
como trabalho intelectual, resolução de problemas, jogos competitivos, estudos que requeiram
muito raciocínio.

 Evitar o uso de certos aparelhos eletrônicos antes de dormir, como televisão, computador,
jogos tipo videogame (apesar de que, no caso da televisão, algumas pessoas dormem ao
assistir programas amenos).

 Não fazer refeições “pesadas” antes de dormir, mas também não ir deitar-se com fome, sendo
aconselháveis comidas leves e relaxantes nesse momento, como sopas, sucos, leite quente,
torradas, chás não estimulantes, etc.

 Quando não conseguir dormir, não ficar “lutando” na cama para “vencer a insônia”, sendo
preferível levantar e fazer atividade relaxante.

 Só deitar-se quando estiver sentindo sono, evitando o condicionamento da cama e do quarto


como locais associados à insônia.

 O ambiente do sono deve ser adequado, satisfatoriamente escuro, fresco e silencioso, mas
músicas relaxantes podem ajudar.

 Evitar dormir durante o dia, inclusive não dando “cochilos” (cestas), exceto se fizerem parte
de programa de tratamento para determinados distúrbios do sono.

No cinema, vários filmes abordam, implícita ou explicitamente, o tema da insônia. Em Taxi Driver
(Taxi Driver, 1976), filme clássico do diretor Martin Scorcese, Robert De Niro faz o papel de um ex-
combatente de guerra que sofre de insônia, motivo pelo qual resolve trabalhar à noite, como taxista.
A partir daí, vários incidentes ocorrem com essa personagem que vão fazendo com que, em suas
palavras, “odeie todos os ‘animais’ que aparecem à noite... putas brancas e negras, doidos, bichas,
traficantes, viciados”, achando tudo isso “doentio, venal”, acreditando que “um dia, uma chuva forte
tirará a escória das ruas”. O estresse do trabalho e provavelmente o não conseguir dormir
satisfatoriamente terminam desencadeando um quadro psicótico, em que o taxista descobre uma
“direção” para sua vida, dizendo-se agente policial e executando pessoas ligadas a prostituição,
querendo inclusive retirar desse meio uma menina que nele conheceu.

Outro filme que traz o tema da insônia, e dessa feita de forma mais explícita e presente no enredo,
tem como título o próprio distúrbio: Insônia (Insomnia, 2002), dirigido por Christopher Nolan e
ambientado nas paisagens frias do Alasca, em um período do ano em que o sol não se põe totalmente
e a luz do dia dura 24 horas. Will Dormer (Al Pacino), um policial de Los Angeles vai a um povoado
do Alasca investigar o assassinato de uma adolescente. Numa difícil perseguição ao suspeito desse
crime (Robin Williams), devido intensa neblina, Dormer atira e mata outro policial que também
190

investiga o caso. Isso faz com que se sinta culpado pelo ocorrido e atormentado pelo remorso. Tal
estado emocional, aliado à questão do fenômeno atmosférico do “dia de 24 horas”, provoca em
Dormer intensa insônia, ficando sem dormir diversos dias, o que vai fazendo seu psiquismo começar
a apresentar sintomas condizentes com privação de sono. Surgem dificuldade de concentração e
raciocínio, constante aspecto de cansaço, sonolência, diminuição dos reflexos (dificuldade em dirigir,
inclusive com derrapagem numa estrada), alterações da sensopercepção (sugerindo ilusões e
alucinações) e sinais de embotamento da consciência. No final do filme, após ser atingindo por uma
bala, enquanto está sendo atendido, Dormer suplica: “Deixe-me dormir... Apenas deixe-me dormir”...
Há quem considere a dificuldade de dormir do policial como sendo, mais precisamente, uma
desorganização do ciclo sono-vigília, que costuma ocorrer quando se faz longo percurso aéreo,
viajando-se através de vários fusos horários (na estória há a viagem Los Angeles–Alasca e 24 horas
de luz solar). Mas o filme nos mostra também outra questão interessante, em termos de reflexão
psicodinâmica. Após ficar evidente para todos que a morte do parceiro de Dormer fora acidental
(inclusive estando o próprio detetive que o matara convicto disso), aos poucos ele vai ficando em
dúvida se, no íntimo, não tivera a intenção realmente de matá-lo, o que nos remete as questões
levantadas por Freud sobre atos falhos, certos acidentes, enganos do dia a dia e acontecimentos afins.
Segundo a psicanálise, um acidente, um comportamento prejudicial não intencional poderia ter
motivações inconscientes, mas a própria pessoa envolvida não teria consciência dessas motivações.
No caso do filme, ficam evidentes quais desejos inconscientes poderiam motivar Dormer ao ato
acidental. Vale a pena conferir, inclusive pela trama e ritmo do filme que nos prende a atenção
(principalmente em certas sequências), além do trabalho de Al Pacino e Robin Williams.

HIPERSONIA

A hipersonia é alteração em que ocorre quantidade excessiva de sono e/ou sonolência diurna
exacerbada, essa última podendo se manifestar em forma de ataques irresistíveis de sono. A primeira
possibilidade (quantidade excessiva de sono) diz respeito àquela pessoa que dorme bastante durante
um período prolongado no transcurso de um dia e geralmente tem dificuldades de levantar e despertar
após tal período, podendo apresentar o fenômeno da “embriaguez do sono”, transição prolongada
entre o começar a acordar e o estado de plena vigília. Não é hipersonia se a pessoa está cansada ou
sonolenta devido quantidade insuficiente de sono nos dias anteriores. A hipersonia segue um padrão
prolongado de comprometimento do estado de consciência (vários dias, semanas, meses), e não
apenas uma ocasião esporádica de sono excessivo. Não deve também ser considerada hipersonia
aquela sonolência diurna decorrente da insônia, pois nesse caso o distúrbio básico é a falta ou déficit
de sono. A hipersonia pode ainda ter um curso recorrente, não contínuo, como na síndrome de Kleine-
Levin (onde além da hipersonia, há o comer compulsivo e outros distúrbios comportamentais –
agitação, hipersexualidade), doença de etiologia ainda pouco elucidada, manifestando-se na vida da
pessoa em forma de períodos de crise, que geralmente duram dias ou algumas semanas, mas com
intervalos assintomáticos de meses ou até anos.

Assim como a insônia, existem hipersonias de causas identificáveis (sejam orgânicas ou


psicogênicas), como as decorrentes de tumores ou traumatismos cranianos, apneia do sono,
hipotensão arterial, certas depressões, defesa psicológica em relação a conflitos ou situações
desagradáveis. Mas há também a hipersonia idiopática, de causa desconhecida, em que não são
encontrados fatores que possam claramente explicar o aparecimento de tal distúrbio, havendo a
hipótese de alterações em neurotransmissores no sistema nervoso central.

Três doenças ou situações patológicas merecem destaque nesse item: a apneia do sono, a narcolepsia
e a síndrome das pernas inquietas, pois são alguns dos principais distúrbios responsáveis pelos casos
de hipersonia.
191

A apneia Obstrutiva do Sono é uma doença relativamente frequente, com registro crescente de
casos, à medida que o conhecimento sobre ela vai se expandindo na população e as pessoas procuram
esclarecimento sobre o surgimento de sintomas sugestivos da doença. A apneia durante o sono é a
parada da passagem do ar pelas vias áreas superiores, com duração em torno de 10 segundos. Até
cinco dessas paradas durante uma hora é considerada como frequência normal; a partir daí, entra-se
no campo do patológico. Podem ser encontradas apneias em torno de 20, 30 ou mais em cada hora,
já tendo sido registrados casos graves com cerca de 300 episódios apneicos numa noite de sono. Com
tantas paradas respiratórias a estrutura do sono fica bastante comprometida, embora a pessoa continue
na cama e até possa ter a impressão de dormir a noite inteira. A obstrução das vias aéreas superiores
pode ocorrer devido a um colabamento em algum ponto dessas vias, aumentando a resistência da
passagem do ar. Isto pode estar ligado, por exemplo, à presença de tumores e pólipos, obstrução nasal,
rinite alérgica ou outros fatores causadores ou facilitadores do distúrbio. A obesidade contribui
desfavoravelmente na apneia obstrutiva do sono por conta da deposição de gordura em torno das vias
áreas superiores. Durante o sono, a pessoa apresenta episódios apneicos (bloqueios respiratórios),
esforços dos músculos abdominais e torácicos para fazer passar o ar pelas vias obstruídas, inquietação
e comumente roncos. Os sintomas diurnos comuns são hipersonia em forma de sonolência excessiva,
cefaleia matinal e déficits cognitivos (memória, concentração, raciocínio). Numa noite de sono,
ocorrem momentos de queda da saturação do oxigênio arterial, aumento da pressão arterial e
pulmonar e arritmias cardíacas. Com o passar dos anos, pode haver instalação de hipertensão arterial,
insuficiência cardíaca, angina, e risco de morte por colapso cardiovascular. É possível que a apneia
obstrutiva do sono seja a responsável por mortes “inexplicáveis”, inclusive de bebês no berço. O
tratamento da doença é feito através de orientações úteis para diminuição dos sintomas, como evitar
álcool, ter atividades físicas, hábitos alimentares saudáveis (visando inclusive o não engordar), não
se automedicar com soníferos benzodiazepínicos (hábito comum em nosso meio, e que aqui pode
agravar a apneia do sono). Muitas vezes, é indicado o uso de “aparelhos de pressão aérea positiva” o
CPAP (continuos positive airway pressure), que, por meio de máscara nasal, diminui ou elimina a
impossibilidade de passagem de oxigênio nas vias aéreas superiores. Outra possibilidade de
tratamento é a cirurgia para resolução dos fatores de obstrução dessas vias (remoção de tumores,
pólipos, correção de problemas nasais, necessidade de uvulopalatofaringoplastias), que tem obtido
bons resultados.

A Narcolepsia é considerada um distúrbio neurológico crônico, de etiologia não bem esclarecida,


mas que parece envolver neurotransmissores cerebrais e possíveis mecanismos autoimunes. Por
exemplo, pesquisas mostram que as pessoas com tal doença têm deficiência de hipocretina,
neurotransmissor que estimula a vigília. Parece haver também, a presença, em grande quantidade, de
um antígeno contra leucócitos (denominado HLA-DR2), presentes em 90 a 100% dos narcolépticos
(encontrado só em 10 a 30% dos indivíduos que não têm a doença). A narcolepsia não é considerada
um distúrbio de causa psicológica, embora fatores emocionais possam agravar o quadro clínico.
Também não é um tipo de epilepsia, apesar de já ter sido descrita, no passado, como uma variante
desta.

A narcolepsia é geralmente composta pela tétrade sintomatológica: (1) hipersonia crônica, (2)
cataplexia, (3) alucinações hipnagógicas (ou hipnopômpicas) e (4) paralisia do sono. A hipersonia
ocorre principalmente em forma de crises de sono (às vezes muito súbitas) em que a pessoa não
controla o adormecer, tendo cochilos de 10 a 20 minutos em qualquer lugar, ocorrendo duas a seis
vezes ao dia, inclusive em contextos inadequados e até perigosos (como dirigir, trabalhar em elevadas
altitudes), não conseguindo, muitas vezes, encontrar ou manter empregos, podendo o sintoma também
gerar problemas de relacionamentos interpessoais. Por outro lado os cochilos podem ser reparadores,
se forem planejados dentro de um esquema de tratamento, aliviando a vivência de sonolência e a
ocorrência de novas crises. Comumente, há relatos de sonhos durante os curtos períodos de sono. A
cataplexia é uma perda súbita do tônus muscular corporal, muitas vezes com queda ao chão, mas com
o indivíduo podendo permanecer com consciência preservada, havendo rápida recuperação do
192

controle motor. Às vezes, o paciente dorme depois da cataplexia, ou seja, o acesso de sono pode vir
logo após esse estado, entrando ele em sono REM, podendo posteriormente relatar sonhos.
Alucinações hipnagógicas, geralmente visuais ou auditivas, são alterações da percepção que ocorrem
no período intermediário entre a vigília e o dormir (ou também o contrário, entre o estar dormindo e
a vigília, sendo, nesse ultimo caso, chamadas de alucinações hipnopômpicas). Finalmente, o quarto
sintoma que pode ocorrer na narcolepsia é a paralisia do sono, em que, nesses mesmos dois períodos
(começo do sono ou princípio do despertar), a pessoa fica imóvel, sem conseguir falar, todavia,
parcialmente consciente, vivenciando tal situação com muita angustia, e só após alguns minutos é
que a mesma cessa com o recobrar dos movimentos. Alucinações hipnagógicas (ou hipnopômpicas)
e paralisia do sono podem ocorrer como fenômenos breves e isolados, em pessoas não narcolépticas.
A sonolência excessiva em forma de crises é o sintoma básico da narcolepsia, podendo ou não estar
presente os outros três componentes da tétrade.

A narcolepsia, como diversos outros distúrbios neuropsiquiátricos, não tem cura e pode ser
incapacitante para determinadas atividades, mas a pessoa também pode conviver com os sintomas
atenuados pelo tratamento, encontrar formas de manter sua inclusão na sociedade, inclusive com
trabalhos profissionais, bem como seguir a higiene do sono (já mencionada) e organizar uma
programação de cochilos em momentos do dia onde o indivíduo mais comumente tem os acessos de
sono (muitas vezes, após os ataques, a sonolência tende a diminuir).

Dois filmes, acerca de narcolepsia, merecem ser vistos: o já clássico Garotos de Programa (My Own
Private Idaho,1991), do diretor Gus Van Sant, e o mais recente Problemas de um Dorminhoco
(Narco, 2004), dos cineastas Tristan Aurouet e Gilles Lellouche. Ambos os filmes mostram, nas
personagens centrais, as típicas crises de sono irresistíveis, além de outros sintomas.

Garotos de Programa narra as experiências e o cotidiano da vida de um grupo de jovens que se


vendem para homens e mulheres na prostituição das ruas, onde ganham algum dinheiro. Falam de
suas experiências sexuais, primeiras “transas” eróticas, aspirações para o futuro, sonhos a realizar,
roubos e pequenos delitos praticados; enfim, o filme dá um mergulho no universo do submundo
desses rapazes, não só através de seus relatos, mas também de cenas fortes mostrando o dia a dia
deles. Mike (River Phoenix) é um dos garotos de programa, o que apresenta ataques de narcolepsia
(ocorrendo durante diversos momentos do filme), por vezes, em situações de estresse. Um dos
principais sonhos de Mike é reencontrar sua mãe, separado dela desde criança, acreditando que se
tivesse tido uma família “normal”, com pai e mãe morando numa casa tradicional, seria alguém feliz
e não o jovem perturbado que é. Em algumas cenas ele “percebe” a imagem da mãe ao seu lado, o
que sugere alucinações. Também, na multidão das ruas, parece avistá-la, ilusoriamente. Sabe-se que
no passado ela foi internada em um manicômio após ter assassinado seu amante. Ao lado de Scott
(Keanu Reeves), seu amigo mais próximo pelo qual é apaixonado, Mike faz uma jornada pelas
estradas dos Estados Unidos e até além desse país, voando a Roma, pois há a possibilidade de sua
genitora se encontrar nas proximidades dessa cidade. Mas tudo em vão; novamente a mulher
idealizada não ressurge nem é encontrada, e os dois rapazes retornam à América. Scott, todavia,
embora rebelde, é filho do prefeito da cidade, e termina deixando seus amigos de prostituição,
inclusive Mike, para enveredar por uma vida formal, pensando em atividade política, após a morte
do pai. A última cena do filme é semelhante à do início: Mike, novamente sozinho, às margens de
uma estrada, caindo ao chão com ataque de narcolepsia. Uma crítica técnica que precisa ser pontuada
é que em diversos momentos do surgimento das crises ao longo do filme, Mike apresenta contrações
ou tremores musculares nos dedos ou outras partes do corpo, todavia, no quadro clínico real não é
comum tais movimentos involuntários, exceto se houver algum tipo de epilepsia ou outro
comprometimento organocerebral superposto a narcolepsia.

Problemas de um Dorminhoco é o nome (não muito feliz) que foi dado, no Brasil, ao filme Narco
(título original), que pode significar “entorpecimento”, e também uma abreviatura de narcolepsia.
193

Conta a história de Gus (o ator francês Guillaume Canet), um homem que desde criança tem esse
distúrbio, e por conta dele não consegue se fixar em nenhum emprego, pois em pleno trabalho tem as
crises típicas de sono repentino com necessidade imperiosa de deitar, muitas vezes apresentando
queda ao chão. No início do filme, quando Gus dorme no balcão duma lanchonete onde trabalha,
ouve seu patrão despedi-lo com a frase: “Não quero gente preguiçosa aqui”. De fato, muitos associam
o sono no trabalho ou em outras circunstâncias inapropriadas a desinteresse, negligência ou preguiça,
não sabendo da existência de distúrbios associados à hipersonia, como a narcolepsia. Mas, não é só
no trabalho que tais ataques sobrevêm, pois Gus os têm em diversas circunstâncias: durante uma
conversa, dançando, quando vai beijar a namorada ou mesmo em plena relação sexual. É comum ele
tombar sobre a mesa durante as refeições em casa. Com isso vai tendo também problemas de
relacionamento interpessoais e cada vez mais sua vida se complica. A esposa, que sempre fora
apaixonada pelo marido, passa a não ter mais atração por ele, que por sua vez fica praticamente com
um único amigo, Lenny, um instrutor de artes marciais. Gus vai ficando atormentado com sua
existência cheia de fracassos, surgindo baixa autoestima, frustração com a vida, isolamento e
depressão. Essa é uma sequência que de fato pode ocorrer na evolução da vida de uma pessoa com
narcolepsia, o que a faz muitas vezes necessitar de acompanhamento psiquiátrico/psicológico. E é
assim que Gus procede; todavia, ao procurar ajuda profissional, inclusive terapia de grupo, se depara
com um psiquiatra cheio de frustrações que termina por complicar mais ainda os problemas do
protagonista. O grande momento que vai modificar sua vida é quando resolve desenhar as imagens
dos seus sonhos, porque, desde criança, tinha aptidão para desenhos. Vimos que frequentemente há
sonhos durante os curtos períodos dos ataques de sono, e no caso de Gus, esses consistiam em
interessantes imagens fantásticas. O resultado disso é que ele vai produzindo histórias em quadrinhos
e passa a ter sucesso como quadrinista. O filme procura mostrar que a pessoa com narcolepsia, apesar
das dificuldades que esse mal lhe traz, pode se realizar através de alguma atividade sobre a qual os
sintomas da doença não interfiram tanto. Mas também há uma crítica técnica a ser feita na história de
Gus: no final do filme é sugerido que ele, após acidente que o deixa em coma por semanas, ao sair
desse estado de inconsciência não apresenta mais a narcolepsia, tipo de remissão não encontrada na
realidade prática.

A Síndrome das Pernas Inquietas (SPI) se caracteriza por uma “sensação” de desconforto nos
membros inferiores, de inquietude, ocasionando vontade irresistível de movimentá-los. Geralmente,
há piora da “agonia” se a pessoa tenta repousar as pernas e parar de mexê-las. Esses sintomas podem
começar durante o dia, mas com tendência a piorar à noite, interferindo na qualidade do sono. A
intensidade e a frequência dos sintomas variam com cada paciente, e em casos mais graves, a pessoa
tem dificuldades em ter uma vida social satisfatória, podendo ficar impossibilitada de fazer viagens
de longa distância, participar de encontros sociais ou até permanecer em uma casa de espetáculo para
um show, teatro ou cinema. Em relação à frequência, o paciente pode ficar sem sintomas por
determinados períodos ou apresentá-los todos os dias, com o distúrbio evoluindo ao longo da vida
com épocas de exacerbações e melhoras. Os sintomas pioram com a idade, sendo um distúrbio mais
encontrado em indivíduos na faixa dos 40 – 60 anos, embora possa ocorrer em qualquer época de
vida. Associado à inquietação das pernas, comumente há sono insatisfatório e sonolência excessiva
diurna, assim como fadiga durante o dia. Não parece ser causada por distúrbios psiquiátricos ou
estresse, mas essas condições podem contribuir ou exacerbar as manifestações da SPI.

Há pouco conhecimento acerca das causas da SPI, que pode ser classificada como primária e
secundária. A primeira não tem ligação com nenhuma outra doença ou condição que explique seu
surgimento, parecendo ter componente genético (com outros casos de SPI na família) e estar ligada a
disfunções no sistema dopaminérgico (alteração na dopamina cerebral). A secundária formaria um
grupo em que há doenças associadas ou mesmo causadoras de SPI, como lesões nervosas periféricas
ou da medula espinhal, uremia, artrite reumatoide, fibromialgia, doença de Parkinson e anemia
ferropriva. Outras condições, igualmente conhecidas como ligadas ao aparecimento da síndrome das
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pernas inquietas, são os efeitos colaterais de certos medicamentos (determinados antidepressivos,


lítio) e uso excessivo de cafeína.

PSEUDOINSÔNIA E DISTÚRBIOS DOS RITMOS CIRCADIANOS

Ao avaliar a queixa de insônia ou hipersonia de uma pessoa, é importante que o técnico-profissional


esteja atento ao relato e detalhes que a mesma faz acerca de suas queixas, pois nem sempre
correspondem à verdadeira ocorrência daqueles sintomas. Há casos que a primeira vista parecem se
tratar de insônia ou hipersonia, todavia, isso não se confirma quando são mais bem investigados
através da colheita de dados e/ou de exames complementares.

É o que se pode observar na chamada má percepção do estado de sono (fenômeno também


conhecido como insônia paradoxal ou pseudoinsônia), porque ocorrem queixas de dificuldade de
dormir e/ou manter o sono por parte do paciente, todavia, dados mais objetivos, como relatos de
pessoas que dormem ao seu lado ou até mesmo a polissonografia não constatam insônia. É como se
o campo da consciência registrasse informações erradas sobre o estado e transcurso do sono. Trata-
se de mais um distúrbio de origem imprecisa. Há hipótese de excesso de ritmos eletrofisiológicos
rápidos na atividade cerebral do sono, bem como a possibilidade de associação com características
obsessivas ligadas a funções somáticas ou quadros hipocondríacos.

Outra situação que não deve ser considerada precisamente como insônia ou hipersonia são queixas
em que a pessoa refere não dormir durante quase toda a noite, mas quando se lhe pergunta sobre como
é seu dia, responde que passa a maior parte dele dormindo, das 6h às 14h, por exemplo, ou seja, oito
horas diárias, o que é confirmado por familiares, caracterizando período satisfatório de sono, não
cabendo propriamente nem o diagnóstico de insônia nem hipersonia, mas do fenômeno chamado
popularmente de “sono trocado” ou tecnicamente, distúrbio circadiano do ciclo sono-vigília.
Devemos lembrar que existe um ritmo do sono nas 24 horas de um dia, em que se dorme mais ou
menos um terço desse tempo (havendo, é claro, as diferenças individuais), existindo mecanismos
biológico-endógenos que regulam os períodos do dormir e da vigília (“relógio biológico”), com
principal localização nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo. Todavia, fatores ambientais e
culturais podem também influir nesse ciclo, como a luz do dia, horários de trabalho ou da escola que
tendem a se concentrar no período das 7.00 às 22.00 horas, sons, barulhos e ruídos nesse mesmo
período de maior movimento numa cidade. Assim, normalmente as pessoas tendem a estar despertas
durante o período diurno e têm sono à noite. Vários indivíduos, por motivos diversos, descontrolam
esses horários, ocorrendo então um desalinhamento entre o período de sono almejado/desejado e o
real/conseguido, configurando o distúrbio circadiano. Mas neste, após o sono ter início, comumente
sua estrutura e duração são normais, e o que ocorre basicamente é o deslocamento do período de
dormir. Todavia, isso pode causar sérios problemas interpessoais e ocupacionais, com atrasos à escola
ou ao trabalho, prejudicando a vida do indivíduo e podendo até gerar conflitos e discussões com os
familiares, por acharem, por exemplo, que ele “quer ver televisão à noite toda”, ou “fica dormindo o
dia inteiro”, não se tendo conhecimento que isso pode ser um distúrbio. Voos intercontinentais, em
que a pessoa viaja através de vários fusos horários (o chamado “jet lag”) ou trabalhos em sistema de
turnos (médicos, enfermeiros, vigilantes), podem também apresentar alterações do ritmo circadiano.

Os trabalhos por turnos (como os ligados a plantões) é uma questão que precisa ser mais bem estudada
e pesquisada, devido ao prejuízo que a prática deles pode representar para o profissional, tendendo a
ocorrer principalmente com as pessoas que frequentemente, e de forma rápida, mudam o horário e
esquema de trabalho ao longo das semanas ou meses. Inicialmente, há queixas mistas de insônia e
sonolência, mas com o tempo podem surgir sintomas somáticos, como hipertensão arterial, úlcera
péptica ou outros. Há indivíduos, principalmente os jovens, que se adaptam a essas constantes
modificações do horário de dormir sem apresentar sintomas significativos. Todavia, os mais velhos
e aqueles com sensibilidade a tais mudanças podem ser bastante prejudicados.
195

A diferenciação entre as verdadeiras insônias e hipersonias para com os casos de pseudoinsônia e


distúrbio do ciclo sono-vigília é importante porque a diretriz terapêutica pode ser bem diferente. Por
exemplo, a pessoa pode acreditar que está “sem dormir”, insone, e então buscar substâncias indutoras
do sono, quando, na verdade, apresenta desalinhamento do ritmo circadiano.

SONAMBULISMO E PAVOR NOTURNO – PARASSONIAS DO SONO NÃO-REM

Conforme abordamos no item sobre estreitamento da consciência, o sonambulismo é um estado em


que a pessoa, durante o sono, apresenta movimentos e comportamentos diversos, desde os mais
simples e automáticos, como gesticular e andar, até os mais complexos, que inclui o dirigir veículos
(esses menos frequentes). Um adolescente observava seus colegas andando e equilibrando-se em um
muro, sem coragem de imitá-los, impedido pelo medo, mas com muita vontade de fazê-lo; em seus
estados sonambúlicos, conseguia essa proeza. A atividade do sonambulismo ocorre geralmente no
primeiro terço da noite, correspondendo ao período não-REM, fases 3 e 4, com ondas lentas,
comumente não havendo lembranças de sonhos nem do período sonambúlico quando a pessoa acorda
(no dia seguinte ou imediatamente após o episódio). De fato, o principal momento em que se sonha
é no período paradoxal e não no não-REM. É recomendável que sejam tomadas providências e
cuidados para o sonâmbulo não acidentar-se, como proteção nas janelas, portas da rua fechadas, não
obstrução do caminho realizado comumente pelo sonâmbulo (quando não perigoso), etc. Comumente
a pessoa volta, por ela mesma, a deitar-se ou passivamente deixa-se levar por outra até sua cama. Se
o sonâmbulo insistir em caminhar a lugares em que possa acidentar-se, resistindo à tentativa de ser
reconduzida ao local em que dormia, poderá ser acordado. Há muitos mitos sobre “perigos” de se
acordar o sonâmbulo. Na verdade, se isso for feito, pode ficar um pouco atordoado, confuso e
desorientado, espantando-se por se encontrar tão fora do local em que se deitou, às vezes até
demonstrando irritação, mas minutos depois tenderá gradativamente a entrar no estado de vigília e
despertará desse momento transitório de consciência alterada.

Honório Delgado (1969) nos relata o caso de um homem que andava pelo interior de sua casa
enquanto dormia, mas depois deixou de fazê-lo por algum tempo, ocasião em que a posição da mobília
de alguns cômodos foi mudada. Todavia, ao voltar a apresentar os episódios sonambúlicos, o homem
deparou-se com um grande móvel impedindo que passasse por espaço que antes era uma porta. Ao
tentar mover tal obstáculo, esse caiu provocando enorme estrondo que o acordou. Ou seja, ele viu e
sentiu o ambiente, a posição trocada do móvel, e sabendo da existência de uma porta por trás,
organizou movimentos para tentar passagem. Nobre de Melo cita também dois exemplos de pessoas
em estado de sonambulismo. Um deles era de um rapaz que, dormindo, andava até um galpão e
serrava madeiras. O outro se tratava de um artista que desenhava durante o episódio sonambúlico.
Ambos mostram que a percepção do ambiente e a organização dos movimentos estão presentes em
muitos casos, embora façam parte de uma amplitude de consciência bastante reduzida.

Por vezes, durante o estado sonambúlico, a pessoa poderá falar (sonilóquio), geralmente com palavras
confusas e difíceis de serem entendidas, quase sempre em forma de monólogo, raramente dialogando
com alguém que esteja por perto. Pode ocorrer também como fenômeno isolado, não associado ao
sonambulismo.

O sonambulismo é relativamente comum dos quatro a oito anos de idade, tendendo a desaparecer em
torno dos dez, parecendo tratar-se de fenômeno ligado ao desenvolvimento psicofisiológico da
infância em indivíduos predispostos, havendo evidentes influências genético-hereditárias, pois é
comum, entre os parentes do sonâmbulo, serem encontradas, além do sonambulismo, outras
alterações do sono não-REM (como pavor noturno). Acredita-se que cerca de 10 a 15 % das crianças
apresentem um ou mais episódios de sonambulismo. Podem ocorrer desde surgimento em única vez
ou ocorrência de forma espaçada, até aparecimento em todas as noites. Como o fenômeno muitas
196

vezes deixa os pais e familiares preocupados, é importante que sejam informados do caráter
comumente não psicopatológico do mesmo, tendendo a desaparecer com o tempo, bem como orientá-
los sobre crenças errôneas acerca do sonambulismo. Havendo persistência além da adolescência, ou
surgindo pela primeira vez na vida adulta, pode ser feita uma avaliação clínica mais apurada, estando
geralmente, tais casos, ligados a fatores psicológicos, como transtornos dissociativos (neuróticos).
Mais raramente, esse sonambulismo tardio, pode ser sintoma de comprometimento organocerebral
(como epilepsia do lobo temporal, possível de ser diagnosticada pelo eletroencefalograma), mas então
outros sintomas provavelmente estarão presentes. Quando o sonambulismo passa a ser um problema
sério, mesmo ocorrendo na infância, quer por sua frequência ou pelos riscos de acidente que a pessoa
vem se expondo, algumas medicações podem ser utilizadas (tranquilizantes benzodiazepínicos e
antidepressivos tricíclicos).

O Pavor ou Terror Noturno é outra parassonia que pode ser considerada como fenômeno afim do
sonambulismo. As duas fazem parte dos chamados “transtornos do despertar”, ocorrem no período
não-REM do sono (mais especificamente nos estágios 3 e 4), acometem mais crianças e adolescentes
do que adultos, e o curso de ambas as condições tendem a diminuir com a idade. Mas a manifestação
clínica do terror noturno é um tanto diferente do sonambulismo. A pessoa “acorda” parcialmente
(comumente fica naquele estado em que não se acha nem dormindo nem desperta), grita, senta-se na
cama, apresenta fisionomia de intenso pavor, pode apontar para algum canto do recinto e talvez tenha
alguma alucinação hipnagógica, se agita e, às vezes, corre dentro do espaço em que está como se
quisesse escapar de algo. Os sintomas de manifestações autonômicas geralmente estão presentes,
como taquicardia, taquipneia e sudorese. Quando se tenta acalmar a pessoa em seu desespero,
comumente isso não é conseguido ou até piora o quadro, pois ela está pouco responsiva aos estímulos
externos de tranquilização. Após alguns minutos (em torno de 1 a 15), geralmente a crise cessa com
a criança (ou adulto) voltando a dormir. Assim como no sonambulismo, após a ocorrência do episódio
de pavor noturno, ao acordar, a pessoa praticamente de nada se lembra do que ocorreu nos momentos
em que a parassonia foi vivenciada, nem refere sonhos ou pesadelos (até porque se acha no período
não-REM). Apesar de toda a agitação, movimentos e intensa expressão corporal, a pessoa com pavor
noturno quase sempre não está sonhando, ao contrário do que ocorre nos pesadelos constantes
(fenômeno que veremos no próximo item). Fatores genéticos também estão presentes aqui,
comumente havendo outros casos de sonambulismo e pavor noturno na história familiar. Vale
ressaltar que a febre, fadiga ou época de tensão emocional pode precipitar essas duas alterações do
sono.

PESADELOS CONSTANTES

Pesadelos são sonhos intensamente desagradáveis, de conteúdos bastante assustadores, com a pessoa,
no momento que os vivencia, podendo apresentar manifestações de atividade autonômica
(taquicardia, respiração acelerada, sudorese). Diferentemente do pavor noturno, os pesadelos ocorrem
geralmente na segunda metade de um período de sono, enquanto aquela parassonia é observada
comumente na primeira metade do período em que se está dormindo. Todavia, a diferença mais
significativa é que o pesadelo é fenômeno da fase REM, ao contrário do pavor noturno, típico da não-
REM. De fato, pesquisas com a polissonografia mostram que os pesadelos ocorrem basicamente na
fase REM, assim como a maioria dos sonhos vívidos. Durante os pesadelos o indivíduo pode mover
a cabeça ou os braços, respirar ofegantemente, mas não há aquela motilidade corporal significativa
observada no pavor noturno. Até porque uma das características do período REM é a atonia muscular
(relaxamento da musculatura corporal). Quando a pessoa acorda de um pesadelo (espontaneamente
ou por interferência de alguém) rapidamente fica alerta e orientada, diferentemente do pavor noturno,
onde a transição para a vigília se dá mais lentamente, com desorientação e dispersão que duram alguns
ou vários minutos. A amnésia para o ocorrido no pavor noturno contrasta com as lembranças do
pesadelo trazidas por aquele que o vivencia (imediatamente após o acordar ou mesmo na manhã do
dia seguinte), por vezes com bastantes detalhes das “cenas” oníricas e minucioso desenrolar
197

sequencial das mesmas. Os pesadelos surgem comumente durante o sono noturno, mas podem ocorrer
durante um “cochilo” diurno.

Todas as pessoas já experimentaram eventuais pesadelos. Em crianças e adolescentes estão quase


sempre relacionados ao desenvolvimento psicobiológico, geralmente carecendo de significado
patológico. No adulto, quando se tornam persistentes e recorrentes, com os pesadelos e a perturbação
do sono deles resultantes levando a significativa ansiedade, prejudicando o bem estar do indivíduo,
aí teremos um fenômeno psicopatológico que necessita algum tipo de intervenção clínica. Os
pesadelos recorrentes podem causar ansiedade no momento do dormir (medo de ter os sonhos
desagradáveis), interferindo no sono e até gerando insônia. Esta também pode ocorrer se há vários
despertares durante a noite devido aos pesadelos.

Segundo alguns autores e classificações atuais, “sonhos maus” que não se acompanham do acordar
pela ansiedade associada, não seriam pesadelos. Mas, esse posicionamento classificatório é
controverso, havendo os que consideram também como pesadelos aqueles que necessariamente não
levam o indivíduo a despertar do sono.

Subjacentes aos pesadelos podem existir conflitos psicológicos (inconscientes ou conscientes), temores,
preocupações persistentes, períodos em que se passa por tensões e estresses. Conforme já pontuamos,
a psicanálise levantou a possibilidade dos sonhos terem também um significado inconsciente latente,
encoberto pelo conteúdo manifesto, podendo os pesadelos ser formas oníricas de punição e castigo.
Mas podem, às vezes, estar relacionados a medicamentos (uso de L-dopa para tratamento da doença de
Parkinson) ou uso de substâncias psicoativas (como o abuso de álcool).

Os pesadelos geralmente envolvem conteúdos em que a pessoa que sonha está sendo perseguida,
atacada, lutando ou passando por situações de perigo (desastres, caindo de locais elevados ou se
esforçando para não cair, etc.). Podem também ser situações que atinjam pessoas próximas ou
queridas, ou ainda um grupo maior de indivíduos, geralmente incluindo aquele que sonha, como estar
dentro de um terremoto.

Monika, jovem de 18 anos, vive em companhia dos pais e, até recentemente, também com seu irmão
dois anos mais velho, sendo muito ligada a ele; todavia o rapaz teve que sair de casa para a
universidade, o que a fez ficar entristecida e sentindo muito sua falta. Desde criança que ela tem
sonhos muito nítidos, mas foi aos 17 anos que passou a ter frequentes pesadelos que a faz acordar
agitada. Inicialmente ocorriam duas a três vezes por semana, mas essa frequência foi aumentando
para todas as noites e, em algumas ocasiões, até mais de uma vez durante o período noturno. O
conteúdo dos pesadelos de Monika envolve estar grávida, ter partos com dores e presenciar mortes
violentas de familiares e amigos. Quando acorda, tem medo de voltar a dormir, pois os sonhos podem
retornar. Pela manhã, sente-se cansada e, durante o dia, apresenta “falta de energia”. O início de seus
pesadelos incide com a época da saída do irmão para a universidade, bem como com seus conflitos
em seguir ou não o mesmo trajeto, deixando a casa para estudar e formar-se, ficando, todavia, distante
dos familiares, possibilidade que lhe dá muito medo. Monika se sai bem na escola, é estudiosa e boa
aluna, mas se descreve como alguém com dificuldades de enfrentar mudanças na vida e com baixa
autoconfiança. Possui poucos amigos, não tem namorado, nunca teve experiências sexuais e
preocupa-se muito em não ser capaz de “encontrar a pessoa certa”. Os pais são professores e, no
entender de Monika, muito ocupados e com pouco tempo para ela e seu irmão. Quando crianças, os
dois costumavam passar várias horas juntos, enquanto os genitores trabalhavam. Esse caso de Monika
está detalhado no livro Casos Clínicos de Adultos – as Várias Faces dos Transtornos Mentais
(ÜSTUN, T. B. et al., 1998).
198

Vemos que os pesadelos de Monika não ocorrem esporadicamente e estão prejudicando o dia a dia
de sua vida, produzindo insônia e excessiva ansiedade, podendo o fenômeno ser considerado como
um distúrbio do tipo parassonia. Nesse caso clínico, observamos também que alguns conteúdos de
seus sonhos poderiam não ser pesadelos para outra pessoa, como sonhar que está grávida, tido por
ela como algo perturbador. Observamos ainda como a frequência de pesadelos pode ser elevada,
ocorrendo repetidas vezes durante uma noite, podendo ocasionar sono insatisfatório com
consequências prejudiciais no dia seguinte. Fatores psicológicos parecem estar relacionados com
experiência de ficar sem o irmão, pessoa que lhe fazia companhia na ausência dos pais, bem como a
antecipação de sua própria vida longe também dos genitores. A preocupação de não “encontrar a
pessoa certa” pode também remeter ao tema da solidão e desamparo.

TRANSTORNO COMPORTAMENTAL DO SONO REM

Sabemos que durante o sono REM há ocorrência de sonhos acompanhados de atonia muscular
(relaxamento da musculatura corporal esquelética), ou seja, quando a pessoa sonha não apresenta os
movimentos significativos e muitas vezes intensos que vemos no sonambulismo e pavor noturno.
Todavia, no transtorno comportamental do sono REM, tal período vai se acompanhar da ausência da
atonia corporal, podendo o indivíduo mover-se e vivenciar, com comportamentos, seus sonhos. Pode
haver risco de ferir-se (dando murros na parede ou tropeçando devido um pesadelo em que esteja
lutando) ou agressão contra alguém dormindo ao seu lado. Mas pode também correr, saltar de lugar
elevado ou quebrar objetos, comportamentos quase sempre associados a sonhos quando o indivíduo
acorda. O surgimento dessa alteração ocorre geralmente após os 60 anos, frequentemente em pessoas
com história de sono agitado. Cerca de 30% dos casos de transtorno comportamental do sono REM
está associado ou pode ser sintoma de doenças neurológicas (como lesões encefálicas, demência,
esclerose múltipla, doença de Parkinson, etc.). A suspensão abrupta de certos medicamentos, como
hipnóticos benzodiazepínicos, pode provocar temporariamente essa parassonia.

Em um caso clínico, homem de meia idade vinha apresentando, nos últimos cindo anos, distúrbios
durante o sono. Movia-se na cama de forma irregular, com fortes movimentos das pernas e braços, que
às vezes chocavam-se com a esposa ao lado. Certa vez, quando acordado com tais movimentos, contou
estar sonhando com jogos de golfe junto a amigos (de fato praticava esse tipo de esporte), executando
grandes jogadas. Em outra ocasião, ficava fazendo movimentos amplos com os braços; ao acordar,
relatou sonho em que brincava com a neta, empurrando-a em um balanço. Quando fazia uso de bebida
alcoólica, o distúrbio se exacerbava.

Vale ressaltar que há casos denominados de Síndrome “Overlap”, que se caracterizam pela
associação de parassonias não-REM (sonambulismo, pavor noturno) com transtorno comportamental
do sono REM, com tais ocorrências surgindo nas fases diferentes de sono, em noites alternadas ou
até na mesma noite.

BRUXISMO DURANTE O SONO

Muitas pessoas, ao longo de suas vidas apresentam o ranger de dentes enquanto acordada ou
dormindo, todavia, com frequência e intensidade não causadoras de danos. O Bruxismo durante o
sono (BS) é uma parassonia em que o indivíduo, involuntariamente, pressiona os músculos masseteres
(mandíbula), causando intenso atrito e ranger dos dentes, o que vai provocar ruído devido à fricção,
às vezes tão alto que pode incomodar as pessoas que dormem ao lado, embora, muito frequentemente
não desperte a ele próprio. Tal distúrbio, além do ruído do ranger os dentes, engloba desgaste
dentário, hipertrofia dos músculos masseteres, dores nesses músculos e na arcada dentária, cefaleia,
má qualidade do sono e sonolência durante o dia. O fenômeno pode ocorrer em qualquer fase do sono,
todavia é observado com maior frequência nas etapas 1 e 2 do sono N-REM. Frequentemente torna-
se necessário o uso de placas dentárias de proteção durante a noite para evitar o desgaste dos dentes.
199

A sigla BS, indicativa de bruxismo durante o sono, diferencia esse do bruxismo diurno, representado
por BD, onde a pressão mandibular é semi-involuntária.

O BS é mais comum em crianças, sendo que parte delas deixa o distúrbio com o passar do tempo, no
entanto, esse pode persistir na idade adulta. Em muitos casos existem enfermidades ou condições
especiais que estão associadas ao bruxismo durante o sono, como doenças neurológicas (Alzheimer,
Parkinson, Huntington, síndrome de Gilles de La Tourette), uso de substâncias psicoativas
(anfetamina, cocaína, cafeína em dosagens elevadas,) e efeito colateral de certos medicamentos
(antipsicóticos antagonistas da neurotransmissão dopaminérgica, antidepressivos ISRS, etc.).
Todavia, um número significativo de casos não está associado a tais condições, e fatores psicológicos
parecem se achar ligados ao surgimento ou exacerbação do bruxismo, sendo então úteis os
tratamentos psicoterápicos, inclusive aqueles que utilizam técnicas de relaxamento. Períodos de
tensão emocional e talvez raiva reprimida, podem estar envolvidos na manifestação ou intensificação
dos sintomas. Estudos também sugerem componentes genéticos hereditários facilitando a ocorrência
de bruxismo.

8. A CONSCIÊNCIA DO EU E SUAS ALTERAÇÕES

Aspecto importante na mente humana é a condição de refletirmos sobre nós mesmos, propriedade
essa que chamamos de Consciência do EU. Segundo Jaspers (1973, p.148), é através dela que “o EU
se faz consciente de si mesmo”. Por essa condição, temos consciência de que existimos, comandamos
nossos atos e pensamentos, somos um ser individual, estamos conscientes de sermos também a
mesma pessoa ao longo do tempo e percebemos os limites entre o EU e o não-EU.

A essa chamada Consciência do EU se contrapõe ao que Jaspers denominou de “consciência do objeto”.


O sentido do termo “objeto” se refere a tudo que temos diante de nós, de nosso EU, quer seja através
da sensopercepção, de representações mentais (incluindo imagens mnêmicas), de conhecimentos e
aprendizados sobre o mundo que nos cerca, inclusive os conceitos de espaço e tempo. A vivência de
estar pensando e existindo é algo pertencente a “consciência do EU” (o “penso, logo existo” cartesiano),
mas o fato de estar pensando sobre a imagem de uma árvore ou som de um violino é “consciência do
objeto”. Ambas formam e fazem parte da amplitude global da consciência.
Quando um cão nos olha e late está evidente que nossa imagem e presença estão fazendo parte de sua
consciência. O animal pode ter a imagem mental do dono, pode vivenciar sofrimento pela sua falta e
até ter, de forma rudimentar, algum raciocínio lógico. Imagens mnêmicas, imagens que se fixam nas
estruturas cerebrais e em certos momentos se fazem presentes em alguma forma de representação
mental – certamente sem a complexidade das nossas recordações – podem também fazer parte da
consciência de determinados animais (é claro que estamos falando daqueles com estruturas
neurológicas mais evoluídas). Como diz Lyra Bastos (1997, p.189):

A consciência externa [...] é uma função mental que o ser humano compartilha com outros
animais. Mas a consciência interna, subjetiva, é característica exclusiva humana. Tomar
conhecimento de si próprio é inerente a própria definição da condição humana.

Mas, ao voltarmos à conceituação dada no primeiro parágrafo desse item, podemos atentar para cinco
aspectos observados na descrição da consciência do EU, consciência íntima de “mim mesmo”:
(1) temos consciência de que existimos, (2) de que comandamos nossos atos e pensamentos, (3)
somos um ser individual, (4) estamos conscientes de sermos também a mesma pessoa ao longo do
tempo e (5) percebemos os limites entre o EU e o não-EU.
200

O primeiro aspecto diz respeito à Consciência de Existência do EU, evidente no instante do “penso,
logo existo”, quando temos a plena consciência de que existimos, nos sentimos como um ser real,
vivendo em um mundo que existe de fato, rodeado de pessoas e coisas também reais, com todas essas
vivências nos conferindo a consciência de um existir na realidade.

Mas fica também implícito que quando pensamos ou agimos somos nós mesmos que executamos
nosso pensar e nossos movimentos, vivenciamos a propriedade e autonomia da produção de nossas
idéias e ações, o que é chamado de Consciência de Execução do EU.

Enquanto experimentamos o existir e o executar, estamos também vivenciando nosso EU como algo
unitário em cada instante, ou seja, no aqui e agora nos percebemos como sendo uma só mente, um só
campo de abrangência dos conteúdos da consciência, e não duas mentes ou duas consciências
constituindo-se isso em um terceiro aspecto vivencial, a Consciência de Unidade do EU.

Mas também a consciência do EU implica em uma continuidade ao longo do tempo como “mesma
pessoa” de ontem e de hoje, ou seja, o EU que existe agora é o mesmo de outrora, o mesmo de há
anos atrás ou até onde nossa lembrança vai, e embora as características de personalidade e o modo de
conceber a vida possam mudar, o núcleo do EU permanece. Identificamo-nos como o mesmo EU ao
longo de toda a nossa vida, o que nos confere uma Consciência de identidade do EU no Tempo.
Por isso um adulto diz: “quando completei 10 anos, EU estava com vários amigos em torno da mesa
de aniversário” e não “ELE estava na mesa de aniversário”.

Um quinto aspecto da consciência do EU é a Consciência de Oposição do EU ao Externo, quando


conseguimos vivenciar nosso EU como algo distinto dos objetos e pessoas que nos rodeiam. Nossos
pensamentos, sentimentos e ações são vivenciados apenas através da intimidade do EU. O que
pensamos é somente do nosso conhecimento e está restrito à privacidade de nossa mente. A vivência
de medo não é a mesma vivência de medo de outra pessoa, mesmo que diante de igual perigo, e a
experiência do pensar é distinta da experiência do pensar de outrem, por mais próximo que seja de
nós. Também chamada de “consciência dos limites do EU”, essa vivência nos possibilita a distinção
entre o EU e o não-EU, entre o intrapsíquico e o ambiente, característica ausente ou muito imprecisa
na mente da criança de alguns anos, época em que os limites de nosso EU em relação ao mundo
externo não estão bem definidos, conforme creem os pesquisadores da psicologia infantil.

A Consciência do EU, como um todo, abrange tanto um aspecto psíquico quanto um corporal, na
prática, características integradas na vivência de um EU abrangente. Assim, por exemplo, associado
à experiência de estarmos existindo, de percebermos os sentimentos e pensamentos como algo que se
passa em nossa intimidade psicológica, também podemos sentir os limites físicos de nosso corpo, sua
extensão, forma, tamanho, disposição espacial e outros detalhes corporais. Esse EU físico nos é
conferido pelas projeções neurológicas do cérebro e sistema nervoso central, mas também através do
que foi chamado de “noção de esquema corporal”, autopercepção físico-espacial que temos de nosso
próprio corpo. Já se sabe que as vivências corporais de um membro amputado permanecem fazendo
parte de nosso EU físico ainda por algum tempo, de tão integradas que estavam na percepção dos
limites do EU corpóreo.

A consciência do EU, obviamente, não está plenamente presente no indivíduo desde o instante em
que ele nasce. Acredita-se que durante os primeiros anos de vida não haja ainda delimitação clara da
presença de um EU em contraposição a um mundo real, e só depois desse período é que a vivência
do EU começa a adquirir nitidez e fazer-se presente. Ao longo do tempo, o contato persistente com o
mundo real e as limitações trazidas pelo “princípio de realidade” contribuiriam para a maturidade da
consciência do EU. É claro que outros fatores, sejam de ordem biológica ou psicológica vão influir
também na sua formação e estabilidade, como as potencialidades genéticas e constitucionais da
pessoa e, possivelmente, as formas de ligação mãe-criança.
201

Embora, o processo da consciência do EU seja algo integrado, onde os cinco aspectos mencionados
se interpenetram e interagem, observa-se que um ou mais deles podem estar predominantemente
alterados em relação aos outros, formando assim, no campo da psicopatologia, os distúrbios
fundamentais da consciência do EU:

 ALTERAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DO EXISTIR – DESPERSONALIZAÇÃO/DESREALIZAÇÃO


 ALTERAÇÃO NA CONSCIÊNCIA DE EXECUÇÃO – AS VIVÊNCIAS DE IMPOSIÇÃO
 ALTERAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DE UNIDADE
 ALTERAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DE IDENTIDADE
 ALTERAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DO EU EM OPOSIÇÃO AO EXTERNO – PERDA DOS
LIMITES DO EU

ALTERAÇÕES DA CONSCIÊNCIA DE EXISTÊNCIA DO EU E A DESPERSONALIZAÇÃO

Há pacientes que dizem ter forte “sensação” de não estar mais vivendo, não se encontrar em um
mundo real, ou com a “impressão” de estar participando de uma novela de televisão ou de um sonho.
A vivência de que “tudo é irreal”, parece ser algo presente em seu pensamento. Alguns dizem que se
sentem como que “máquinas” sem vida. Espantam-se ao observar suas ações e pensamentos como se
fosse um expectador. Uma pessoa com distúrbios mentais dizia sentir-se “como se fosse um cadáver”,
com a “impressão de já ter morrido”. Outra, falava que ao andar pelas ruas tudo lhe parecia estranho,
como que “distante” e “separado” dela. Muitos dizem que o mundo parece mudado, diferente, embora
não saibam precisar em quê. No filme Uma Janela para a Lua, o paciente “Agonia”, em uma
comunidade terapêutica, está sempre perguntando às pessoas: “estou vivo ou morto?”.

Em relação a esses fenômenos, usa-se muitas vezes o termo despersonalização quando as vivências de
irrealidade são sentidas basicamente no campo do intrapsíquico e do corporal, como ter a “sensação”
de que o corpo e o EU parecessem não existir. Quando tais experiências dizem respeito mais ao mundo
circundante, a exemplo da impressão de que as pessoas e o espaço não são reais ou fazem parte de uma
mera representação teatral, a expressão desrealização é mais empregada. Todavia, em muitos textos, o
termo genérico “despersonalização” tende a ser usado englobando os dois ângulos existenciais.

Tais vivências quase sempre são angustiantes, associadas a sofrimento. Todavia, às vezes, apresentam
caráter prazeroso, como algumas ligadas a agradáveis sensações de leveza e de se estar como que
pairando no ar.

Nobre de Melo (1981) assinala que o essencial na despersonalização é a alteração do sentimento do


existir e, paralelamente, a “desrealização do mundo”. Todavia, ao se analisar diversas descrições de
pessoas que apresentam despersonalização, observa-se que o fenômeno pode envolver outras áreas
da consciência do EU, além da consciência do existir, corroborando o que foi dito acerca da
interligação prática delas. Inclusive, nos estudos atuais, vem sendo dada importância a presença de
outros fenômenos da despersonalização que, necessariamente, não fazem parte das características
comumente citadas como integrantes da consciência do EU. Assim, por exemplo, há relatos de
pessoas que, ao lado de vivências de inexistência pessoal e irrealidade do mundo, apresentam também
sentimentos de “oco ou vazio interior”, extrema ansiedade, alterações sensoperceptivas (como ver os
objetos bem distanciados, ouvir os sons aumentados, estranheza ao olhar suas mãos ou imagem no
espelho e até pseudopercepções). Muitos pacientes referem vivências de alterações corporais, como
a impressão que todo o corpo está aumentado de tamanho ou a cabeça se achar bastante diminuta.
Outros referem “sensação de pairar no ar”, dúvidas sobre sua identidade ou ainda alguma indefinição
202

nos limites do corpo. Por conta dessa pluralidade de sintomas, inclusive extrapolando aqueles
concernentes à consciência do existir, é que certos autores, como Lyra Bastos (1997), consideram a
despersonalização como uma consequência do enfraquecimento da consciência do EU como um todo,
e não apenas em decorrência do comprometimento de um de seus componentes.

Muitas vezes, a pessoa tem dificuldades de expressar em palavras suas experiências peculiares de
“transformação” e “enfraquecimento” do EU, tamanha são as vivências pouco comuns às
experiências do cotidiano. Como diz Mayer-Gross (1972, p.128):

Alguns pacientes usam termos bizarros para descrever sua experiência. Referem-se às suas
cabeças como ‘cheias de algodão’ ou seus corpos como ‘feitos de mármore’. Poder-se-á
empregar uma forma de expressão quase delirante para conduzir as experiências, mas, a
menos que esteja ocorrendo uma transição para doença esquizofrênica, uma investigação
posterior revelará que essas descrições contêm uma qualificação explícita “como se”. Os
braços poderão parecer pesados, inchados, ou mãos colocadas diante do paciente poderão
provocar-lhe uma sensação de estranheza ou de terror.

Esse trecho de Mayer-Gross é também importante por lembrar que a vivência da despersonalização
é diferente da experiência delirante, no momento em que nesta última vai havendo uma perda do
senso crítico e um juízo falso e irredutível irá se instalando. Embora a despersonalização possa surgir
como síndrome de estágios iniciais de psicoses esquizofrênicas, com evolução e modificação para
franca atividade delirante, na maioria das vezes isso não parece ocorrer. O que se observa são
pacientes intensamente deprimidos ou ansiosos tendendo a apresentar despersonalização. Também
na chamada Doença de Pânico é comum ocorrer esse fenômeno, em que, no momento da crise aguda,
quando a pessoa apresenta medo impreciso que vai se exacerbando com taquicardia, muitas vezes
suor frio, tremores e tonturas, podem surgir sintomas de despersonalização (impressões de estranheza
em relação ao ambiente, vivência de estar como que em um sonho, “sensação” de que todo o corpo
pesa excessivamente, etc.). Epilepsia do lobo temporal, tumor cerebral ou uso de drogas (maconha,
LSD, mescalina), e às vezes alguns casos de enxaqueca, são condições organofisiológicas passíveis
de apresentarem despersonalização.

Diversos autores e classificações atuais ressaltam que a pessoa guarda certa consciência crítica de
que os sintomas de despersonalização são alterações subjetivas, com a capacidade de julgamento da
realidade praticamente preservada. Daí aquela observação de Mayer-Gross acerca de que muitos
pacientes utilizam a expressão “como se”. Comumente, não falam que estão exatamente mortos, em
um sonho ou precisamente sem corpo, sem vida. Dizem ter a forte “impressão” de estar mortos,
“parecendo estar” em um sonho, “como que” sem existência corporal, “como se” não existissem. Ao
invés de dizerem que o corpo transformou-se (literalmente) em pedra, é mais comum falarem que o
mesmo está “como se” fosse de pedra, e em lugar de afirmar delirantemente que as pessoas na rua
lhe observam e falam dela, o indivíduo com despersonalização tenderá a referir uma forte “impressão”
de percebê-las estranhas e talvez ameaçadoras, sem características de vivências delirantes.

Sabe-se que um intenso estado de exaustão física e mental pode produzir experiência de
despersonalização, como foi observado em prisioneiros dos campos de concentração, bem como em
situações de perigo iminente de morte. Mayer-Gross (1972) cita o caso de um médico que guiava em
pista molhada, quando seu carro derrapou numa curva; o homem experimentou imediatamente um
desligamento psíquico e percebeu-se a si mesmo, girando o volante do automóvel para a direita e para
a esquerda de forma automática, “como se” estivesse contemplando-se à distância. Após rodopiar
diversas vezes, inclusive evitando o tráfico que vinha no sentido contrário, o carro parou; quando os
espectadores o acudiram e falaram com ele, as vozes soavam como que abafadas e tudo em sua volta
lhe parecia imóvel, “remoto”, irreal, com a própria voz parecendo desconhecida. Prosseguiu a viagem
e, ao chegar à clínica em que trabalhava, ao atender seu primeiro paciente, a despersonalização do
203

médico aumentou súbita e consideravelmente, com ele percebendo então que estava com forte
taquicardia, tremendo e transpirando intensamente. Conforme já pontuamos em outros momentos,
uma função psicológica alterada não quer dizer necessariamente psicopatologia. Na adolescência,
período de muitas transições e transformações físicas e psicológicas, podem surgir vivências com
características de despersonalização, mas que tendem a desaparecer com o tempo e com o crescimento
do (a) jovem.

Eventualmente, estados especiais de meditação, bem como algumas experiências místicas ou


religiosas adquirem formas de despersonalização, mas de maneira contextualizada e com intenção
voluntária. Além disso, aquelas encontradas nos contextos clínico-psicopatológicos, quase sempre se
acompanham de fortes vivências com conotações desagradáveis (sentimentos angustiantes e
impressões perturbadoras), enquanto as despersonalizações místico-religiosas (inclusive associadas à
meditação) tendem a trazer vivências de leveza, transformações corporais prazerosas, sentimentos de
bem estar e até experiências de êxtase.

ALTERAÇÕES DA CONSCIÊNCIA DE EXECUÇÃO DO EU

Nossa consciência do EU, em seu dia a dia, é vivenciada como a entidade autônoma que produz os
pensamentos e ações, mas isso ocorre com tamanha naturalidade que comumente não percebemos
esse caráter de propriedade sobre o que nosso corpo e mente produzem, ou seja, que nossas idéias,
movimentos, comportamentos, sentimentos, opiniões, juízos, emanam de nós e são produzidos por
nós mesmos. Temos a consciência de sermos o sujeito de nossas próprias produções mentais e
intervenções em relação ao mundo que nos cerca, e isso é o que conhecemos como consciência de
execução do EU. Algo que nos permite vivenciar nosso pensar e agir com o caráter de “serem meus”,
mesmo que me façam sofrer e até não desejasse produzi-los. Porque os pensamentos ou ações
obsessivo-compulsivas, por exemplo, nos fazem sofrer e não gostaríamos de produzi-los, mas
reconhecemos, mesmo assim, que são criados por nós, ou seja, não há perda da consciência de
execução nesses fenômenos. Não é o que ocorre nos casos de vivências de imposição - também
chamados de vivências de influência externa - nesses sim, observa-se uma autêntica alteração na
consciência de execução do EU.

Os pacientes que possuem tal sintoma referem, por exemplo, que os pensamentos que surgem em
sua mente não são produzidos por eles, mas por uma “força” ou “alguém” que está fora de seu
psiquismo e que “coloca” conteúdos mentais em sua cabeça. Falam de chips implantados no cérebro
ou de ondas eletromagnéticas que lhe enviam pensamentos e “comandos”. É claro que tais
vivências, chamadas também de pensamentos impostos, terminam caindo no campo dos delírios
de influência externa. Em certa ocasião, um paciente tentou explicar o que se passava com ele
fazendo analogia com um gravador-reprodutor de fita cassete, onde o dispositivo com gravações é
colocado no aparelho e esse passa a reproduzir conteúdos que não são suas criações, pois vêm da
fita, “de fora”, embora pareçam ser produzidos pelo gravador, que representaria o cérebro da
pessoa.

Acerca de seus pensamentos, um paciente citado por Jaspers (1973, p.150), assim se expressa:

Vêm sem serem chamados. Não me arrisco a pensar que provenham de mim. Todavia, sinto-
me feliz por sabê-los sem tê-los pensado. Em todo momento adequado voam para mim.
Parecem ser presentes, de sorte que não ouso comunicá-los como sendo meus próprios.

Assim como se vivencia a perda da autonomia e propriedade dos pensamentos através dessa
experiência de não se reconhecer como o autor dos mesmos, certos pacientes sentem, em um primeiro
instante, que suas ideias ou atos são produzidos por ele, mas logo em seguida ficam fora de seus
domínios e passam a ser controlados pelas “forças” externas. Tal fenômeno não deixa de ser uma
204

forma de vivência de imposição, denominada de subtração ou roubo do pensamento. Jaspers (1973)


cita o exemplo de uma paciente que, muitas vezes, ao pensar, sentia que lhe subtraiam de repente seus
pensamentos, como quando alguém puxa uma cortina ou se um cordão arrastasse as ideias de sua
cabeça.

Comparando essas alterações da consciência de execução com a despersonalização, se nessa a pessoa


sente-se como se fosse um espectador passivo de suas próprias atividades e ideias, não vivencia,
todavia, o EU ser invadido e tomado por “forças” externas que lhe controlam a mente e o
comportamento, experiência sentida na alteração da consciência de execução do EU.

Jaspers (1973, p.151), nos dá outro exemplo dessa alteração psicopatológica ao citar um paciente
narrando suas vivências de imposição:

Os músculos, que servem à respiração são postos de tal maneira em movimento que sou
forçado a expelir o grito, se não usar um esforço especial para reprimi-lo... o que dada à
rapidez do impulso nem sempre é possível ou somente seria possível mantendo constantemente
a atenção dirigida para este ponto... Às vezes estes gritos se repetem de modo tão rápido e
frequente que se tornam situação insuportável para mim... [...] Toda minha musculatura se
acha sob certas influências que só podem ser atribuídas a uma força atuante de fora... As
dificuldades que me fazem ao tocar piano ultrapassam qualquer descrição. Paralisia dos
dedos, mudanças na direção dos olhos, desvio dos dedos para teclas erradas, aceleração do
ritmo estimulando antes do tempo os músculos dos dedos....

Nesse exemplo, observa-se a alteração da execução do EU mais na área dos movimentos e


comportamentos do que na do pensamento. Sob vivência semelhante, outro paciente dizia ser como
um boneco fantoche (marionete), movido por cordões invisíveis.
Alguns desses exemplos foram citados quando abordávamos, no capítulo sobre delírios, o tema
“delírio de influência externa”. Voltamos a trazê-los, propositadamente, para uma reflexão sobre
classificação em psicopatologia. Porque, pode surgir a pergunta: enfim, esses relatos de vivências de
influência devem ser considerados delírios ou tidos como alterações da consciência de execução do
Eu? Aproveitamos esse momento para lembrar que a classificação de um fenômeno como alteração
de uma ou outra função psíquica é apenas um recurso didático para nosso aprendizado. Se mostrarmos
uma bola de couro a algumas pessoas indagando do que se trata, alguém vai de pronto responder que
é uma bola de futebol, instrumento esportivo. Mas um estudante de física, ali presente, pode afirmar
que se trata de uma esfera geométrica. Ou seja, aquele mesmo objeto exposto, é um instrumento
esportivo e é também uma figura geométrica, depende do ângulo sob o qual está sendo analisado.
Da mesma forma, vivências de influência externa é um fenômeno apresentado por certas pessoas que,
sob a ótica dos juízos falsos é um delírio, e sob o raciocínio de consciência do EU, é alteração da
consciência de execução. Nesse caso, não se trata de ser uma coisa ou outra, mas o mesmo objeto de
estudo observado sob óticas diferentes.

Nas vivências de imposição, sejam pensamentos, atos ou outras formas de funções psíquicas alteradas
na consciência de execução do EU, às vezes observamos uma ocorrência curiosa ligada ao sofrimento
produzido por essas vivências, principalmente quando as comparamos com os fenômenos obsessivo-
compulsivos. Nestes, quando alguém sofre por produzir e não controlar as ideações ou
comportamentos, além da desagradável experiência do fenômeno em si, o sofrimento está também
ligado à sensação de “fraqueza mental”, falta de força para combater o aparecimento dos pensamentos
ou atos, e frequentemente há culpa e revolta por estar pensando ou executando-os, pois a pessoa
assume que é ela quem está os produzindo, tem consciência crítica de que há algo psicopatológico
em seu psiquismo. Já no caso das vivências de imposição, muitas vezes o indivíduo não experimenta
culpa ou outro sofrimento ligado à responsabilidade dos pensamentos ou dos atos, porque não acha
que ele é o autor dos mesmos, não tem consciência crítica de que possui uma perturbação, daí porque,
em um dos exemplos acima, o paciente diz: “... sinto-me feliz por sabê-los sem tê-los pensado... em
205

momento adequado voam para mim... de sorte que não ouso comunicá-los como sendo meus
próprios”. Ele perde a vivência de propriedade que temos em relação aos pensamentos e ações que
produzimos, mas também o sentido de responsabilidade para com a criação deles.

Nos fenômenos obsessivo-compulsivos, parece que a estrutura do Ego não está tão comprometida,
tão afastada da realidade, observando-se um juízo crítico em condições de reconhecer a existência de
um distúrbio, com preservação da vivência de propriedade. Isso nos faz pensar, psicodinamicamente,
em possível papel de mecanismo de defesa com características psicóticas nas vivências de imposição,
obviamente sem desconsiderar um provável componente orgânico subjacente ao distúrbio e sem o
qual as vivências não surgiriam. Os pensamentos ou ações, na verdade produzidos pelo paciente,
seriam projetados para “forças” ou “alguém” de “fora”, e assim ele se exime da responsabilidade ou
culpa pela produção do conteúdo de tais sintomas. Uma religiosa em surto psicótico pode falar ter
“horríveis” e constantes pensamentos “pecaminosos”, mas acreditar que esses não são dela, e sim de
“demônios” que estão lhe colocando em prova de fé. Outros exemplos de vivências de imposição cujos
conteúdos não são tão evidentes em termos de simbolismo poderiam ter ligações ou intenções
inconscientes. Por que, por exemplo, o surgimento do ato de gritar, bem como de ações que
atrapalhavam o tocar piano do paciente citado acima por Jaspers? Por que esse conteúdo e não outro?

São nas condições psicóticas onde mais comumente estão presentes essas vivências de imposição,
frequentemente associadas à atividade delirante com características esquizofrênicas. Todavia, em
certas neuroses histéricas (hoje chamadas de transtornos dissociativos), nos casos de sintomatologia
mais grave, pode-se observar alteração da consciência de execução do EU, como gritos, quedas ao
chão, autoagressões em forma de rasgar-se, arranhar-se e outras condutas histriônicas.
ALT E RAÇ ÕE S DA CONS CI Ê NCI A DE UNI DADE E DA I DE NT I DADE DO E U –
O FENÔMENO DA “DUPLA PERSONALIDADE” (OU PERSONALIDADES MÚLTIPLAS)

Nem sempre é fácil fazer a diferenciação de casos onde haja comprometimento da consciência de
unidade ou da identidade do EU, pois esses dois constructos muitas vezes se superpõem. Vejamos
dois exemplos que nos são dados por Jaspers (1973, p. 152-153).

Um homem cuja evolução da enfermidade e do processo psicótico aponta para o diagnóstico de


esquizofrenia descreve algumas de suas vivências relacionadas à experiência de ter o demônio se
apoderado não só de seu corpo, mas também de sua mente, seu EU:

Não posso descrever o que se passou comigo então, e como esse espírito se uniu com o meu,
sem no entanto roubar-me a consciência e a liberdade de minha alma. Apesar disso agia como
outro eu, como se eu tivesse duas almas. Uma colocada fora do alcance e uso do corpo,
postergada por assim dizer para um canto, a outra, a que entrou, agindo livremente. Ambos
os espíritos lutam na mesma região do corpo, e a alma está como que dividida. Numa parte
de seu ser acha-se subjugada às impressões do demônio e na outra obedece aos seus próprios
movimentos ou aos que Deus lhe deu. Ao mesmo tempo experimento uma paz profunda de
acordo com a vontade de Deus, sem saber donde provêm em mim o furor terrível e o asco
contra Deus [...] Os gritos de minha boca brotam simetricamente de ambos os lados e só com
esforço posso distinguir se neles atua prazer ou ira furiosa [...] Ao querer fazer, por impulso
de uma das almas, o sinal da cruz na boca, a outra alma me impede com extrema rapidez,
empurrando-me os dedos entre os dentes, para mordê-los de raiva.

Afirma o outro paciente trazido por Jaspers:

Ao descrever minha história, tenho consciência de ser apenas uma parte do meu eu atual que
vivenciou tudo isso. Até 23 de dezembro de 1901 não posso dizer que tenha o eu de hoje. O eu
de então me parece agora um pequeno anão dentro de mim. É desagradável para minha
maneira de sentir e penoso para meu sentimento de existência, descrever as vivências até
206

então na primeira pessoa. Posso fazê-lo aplicando representações contrárias e tomando


consciência de que o “anão” reinava até aquele dia, a partir daí, porém terminou seu papel.

Em ambos os exemplos, percebe-se que há uma quebra na percepção do próprio EU, existindo a
experiência de duas pessoas em um só indivíduo, com cada uma não se identificando como sendo a
outra.

No primeiro relato, no entanto, observa-se que as duas existências ocorrem simultaneamente, havendo
uma quebra da unidade do EU, cujo indivíduo, praticamente ao mesmo tempo, é alguém como o
demônio e como uma alma que se coloca ao lado de Deus. Ressalte-se que o paciente não está usando
“forças de expressão” do tipo “estou dividido sobre qual posição devo tomar nessa decisão” ou “sinto
uma mistura de amor e ódio por aquela pessoa”, pois nessas duas formulações o EU em si não está
sendo vivenciado como duas entidades, mas está em dúvida ou com sentimentos ambivalentes, e não
percebido duplicado, quer no agora, quer na linha do tempo.

No segundo relato, a quebra da vivência do EU não se dá em um mesmo momento como no exemplo


anterior, mas ao longo do tempo, onde até uma data o indivíduo se sentia como alguém que parece
achar desprezível, mas, a partir daí, sente literalmente que é outra pessoa, outro EU. E esse existir
atual não integra as experiências passadas como sendo a do EU de agora, chegando a utilizar a terceira
pessoa para referir-se ao sujeito da existência anterior, chamando-o de “o anão”. Aqui, então, há
basicamente uma alteração na consciência de identidade do EU no tempo, não uma divisão atual da
unidade com quebra simultânea na vivência do EU no aqui e agora. Mas, novamente, temos que
diferenciar esse fenômeno com forças de expressão que nada têm a ver com o distúrbio que ora
abordamos. Frases como “não sou mais aquela garota inexperiente do passado” ou “após a terapia
sinto que sou outra pessoa”, são formas de dizer que certas características pessoais ou de
personalidade modificaram, mas o núcleo do EU permanece o mesmo, como quem diz: “eu era
ingênuo, hoje sou esperto”, sem quebra da linha do tempo pela qual o EU tem continuidade.

E com essas considerações, entramos no tão conhecido fenômeno denominado dupla personalidade,
também chamado transtorno dissociativo de identidade, conhecido mais pelos filmes, romances ou
novelas, pois na prática é relativamente raro. Durante muito tempo tais estados eram considerados
como ligados a esquizofrenia ou a psicose epilética (principalmente do lobo temporal). Nas últimas
décadas, todavia, vem sendo reconhecida a natureza neurótica histérica (dissociativa) desse quadro
psicopatológico, inclusive com formulações psicodinâmicas e psicoterapia como parte de sua
compreensão e tratamento. A causa dessa condição mórbida não é bem conhecida, mas as pesquisas
apontam para traumas no passado, principalmente na infância e de natureza física e/ou sexual como
fatores significativos para a instalação do quadro na vida adulta. Em diversos casos, o
desenvolvimento do transtorno dissociativo de identidade está associado à ausência de apoio por parte
de pessoas significativas e acolhedoras, inclusive pais e outros familiares (SADOCK, B. e SADOCK,
V; 2007).

Clinicamente, o indivíduo apresenta, ao longo do tempo, identidades diferentes, muitas vezes com
características e nomes distintos, com transição súbita de uma para a outra. O número delas é variável,
podendo existir duas, três ou, mais raramente, acima de dez identidades, daí ser usado também o
termo personalidades múltiplas. É comum que as características de cada uma sejam opostas entre
si. Por exemplo, a personalidade primária (ou básica) ser uma pessoa recatada, de poucas conversas,
caseira, sexualmente inibida, enquanto a outra, secundária (ou intrusiva), que surge posteriormente,
se apresentar expansiva, falante, saindo constantemente para diversões, demonstrando sensualidade
ostensiva. Frequentemente, uma desconhece a outra, mas pode ocorrer também consciência mútua
dos comportamentos adotados pelas diferentes identidades. Por vezes, a primária apresenta amnésia
para as secundárias, mas essas se lembram da vida e condutas da identidade básica. Nos casos em que
uma personalidade recorda da outra, elas se referem entre si na 3ª pessoa, como “Maria é uma mulher
207

que só vive para o marido” ou “ela é uma idiota, não aproveita a vida” (identidade intrusiva referindo-
se à primária). Esses relatos, evidentemente, pressupõem uma psicodinâmica em que desejos
inconscientes são reprimidos, mas se manifestam através do outro EU, e, assim, a consciência da
pessoa se exime ou mesmo não lembra os comportamentos de alguém que age de forma oposta e
certamente “condenável” para ela. Os casos de dupla personalidade geralmente recaem na alteração
da identidade do EU, não da unidade, pois cada uma delas se alterna no tempo e comumente não se
apresentam simultaneamente.

Todavia, no filme clássico Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, é mostrada a história de um
homem (Bates) que apresenta duas identidades, mas com momentos em que é sugerida uma alteração
da unidade do EU e outros com distúrbio na identidade do EU. Há cenas em que simultaneamente
vemos diálogos entre as duas personalidades de Bates, com ele emitindo falas por ambas, mas em
outras ocasiões vemos a existência apenas da identidade primária ou então da secundária, de forma
alternada. Isso, teoricamente, é possível. No final do filme é sugerida uma compreensão
psicodinâmica para a trama. Esse clássico de suspense da década de 1960 teve uma nova filmagem
feita pelo diretor Gus Van Sant, em 1998, extremamente semelhante ao anterior, semelhança que
pode se observar na trilha sonora, abertura do filme, sequência das cenas, ângulos de câmeras e até
mesmo muitos diálogos idênticos. O remake da obra de Hitchcock foi muito criticado pelos cinéfilos
por ser uma mera cópia sem criatividade, mas, para a finalidade de recursos didáticos acerca de dupla
personalidade, ambos os filmes são válidos. Psicose possui uma das cenas mais famosas do cinema:
o assassinato no chuveiro. A cena prende atenção do espectador, desde o momento em que o assassino
entra no banheiro com uma faca, até a parte em que a vítima, que descontraidamente tomava banho,
morre com o rosto no chão, sem piscar, enquanto a câmera vai se afastando em um close, mostrando
o sangue diluindo-se na água. Tudo ao som de um tema musical que também se tornou clássico, e
que ajuda muito a manter o clima de tensão.

Em agosto de 1951, uma mulher foi levada ao psiquiatra pelo marido, pois ela se queixava de períodos
de amnésia, cujos lapsos mnêmicos duravam algumas horas, e posteriormente não lembrava o que
fazia durante esses lapsos. Eva White, seu nome, era uma dona de casa obediente ao marido, tímida,
reservada e propensa a depressão. Nas semanas seguintes, fica evidente que os momentos de amnésia
da mulher eram preenchidos por pensamentos e comportamentos bem diferentes do usual, em que se
dizia não ser Eva White, mas alguém com o nome de Eva Black, que se referia à esposa submissa
com desprezo pela vida de insatisfação que a mesma levava. Enquanto assumia a segunda
personalidade, era desinibida e extrovertida, comprava sapatos e roupas caras, ficava ostensivamente
sedutora, inclusive com vestes sensuais (bem diferentes das usadas pela Sra. White), frequentando
boates e fazendo uso de bebidas alcoólicas, comportamentos não existentes na personalidade básica.
Às vezes, ficava agressiva, como na ocasião em que tentou apertar o pescoço da filha criança. A Sra.
Black tinha conhecimento da Sra. White, referindo-se a ela na 3ª pessoa, mas esta praticamente não
sabia, pelo menos durante longo tempo, da existência de uma segunda Eva. A transição de uma
personalidade para outra era rápida: ficava cabisbaixa e ao levantar a cabeça já assumia a identidade
paralela, ou, sob estado hipnótico, quando o psiquiatra chamava uma das Eva, rapidamente surgia a
personalidade solicitada. A psicodinâmica é evidente. A Sra. Black representava os desejos
inconscientes da submissa dona de casa, embora de forma exagerada nos pensamentos e
comportamentos. Mas Eva White também não se mostrava feliz e satisfeita com sua vida, conforme
se observa no desenrolar de seus relatos. E, então, numa sessão de hipnose, surge uma terceira
personalidade, que se autodenominava Jane, com características intermediárias em relação às outras
duas e se apresentava como uma pessoa sem passado, pois não se recordava de quase nada de sua
vida. Mas essa identidade, acerca da qual o relato do médico envolvido no caso sugere ser mais
equilibrada e sensata, é a que termina predominando, inclusive com a amnésia se dissipando e as duas
identidades iniciais de Eva não mais retornando. Esse relato clínico-psiquiátrico de personalidades
múltiplas foi apresentado como estudo de caso na Sociedade de Psiquiatria da Geórgia (USA) em
1953, e levada às telas do cinema pelo diretor Nunnally Johnson, com o nome As três faces de Eva
208

(The Three Faces of Eve, 1957), onde Joanne Woodward arrebatou o Oscar de melhor atriz pelo triplo
papel. Os nomes reais foram trocados por fictícios (propositadamente com os sobrenomes das duas
identidades iniciais sendo opostos – White e Black).

São inúmeros os filmes e romances que abordam o fenômeno das personalidades múltiplas, mas vale
lembrar a produção cinematográfica de 1996, As Duas Face de Um Crime (Primal Fear) do diretor
Gregory Hoblit, que trata de uma questão paralela a essa alteração da consciência do EU. Ela levanta
o questionamento: até quando, na área jurídica da criminologia e psicopatologia, uma pessoa deve ser
responsável pelos seus atos e condenada por infrações penais enquanto está sob o domínio de uma
personalidade intrusiva? Essa questão extrapola o diagnóstico das personalidades múltiplas e se
expande para outras áreas da psiquiatria, como esquizofrenia, transtorno bipolar ou demais casos em
que o comportamento e consciência crítica de uma pessoa estejam comprometidos por sintomas de
afastamento da realidade no momento de um delito. Por outro lado, é possível o indivíduo simular
uma doença mental para obtenção de ganhos jurídicos e até inocência por crime cometido? São
questões levantadas no filme.

ALTERAÇÕES DA CONSCIÊNCIA DO EU EM OPOSIÇÃO AO EXTERNO


(OU ALTERAÇÕES DOS LIMITES DO EU)

A consciência de oposição do EU ao externo, como vimos, refere-se ao processo em que a criança vai
percebendo que existe o campo do EU e o do não-EU em suas vivências pessoais, e então consegue
experimentar-se como algo distinto dos objetos e pessoas que lhe rodeiam. As alterações nessa área
existencial sugerem uma regressão ou retorno a vivências de indefinição dos limites do EU.

Certos pacientes, geralmente em estado psicótico, se sentem em fusão com os objetos que o cercam
e até se percebem fazendo parte dos mesmos, como uma extensão deles, a exemplo do paciente com
esquizofrenia que pede para que os outros não batam nas coisas que o cerca, pois isso ocorrendo,
sentiria também a pancada. Alguns se dizem “espalhados” por diversos lugares da extensão de uma
sala, afirmam que uma árvore é parte de seu corpo ou que sua personalidade “se mistura” com a de
um seu amigo, de modo que os dois são um único ser. Mayer-Gross (1972) menciona uma pessoa
que, sob efeito de mescalina (cacto alucinógeno) dizia que ao ouvir um cão latindo, sentia que tal
latido fazia parte do seu corpo.

Uma forma especial e relativamente comum desse tipo de alteração dos limites do EU é a chamada
divulgação ou publicação do pensamento, onde a pessoa, geralmente com esquizofrenia, vivencia
a experiência de não ter a privacidade do conteúdo de seus pensamentos, ou seja, sente que, de alguma
forma esses passam a ser de conhecimento público, pois extravasam sua cabeça e se expandem para
os outros, que assim sabem tudo sobre ela. Um paciente com divulgação do pensamento, ao ouvir
indagações feitas a ele pelo médico, respondeu: “O senhor já sabe, por que me pergunta?”.

É importante lembrar mais uma vez que muitas das falas e experiências vivenciadas pelos pacientes
psicóticos não têm caráter simbólico, abstrato, figurativo, que costumam acompanhar as construções
literárias e poéticas. Quando um paciente com divulgação do pensamento diz que suas ideias não têm
fronteiras e “pertencem a todos”, ou quando, possuindo vivências de imposição, afirma que as ideias
dos outros interferem na sua vida, está se expressando concretamente, não no sentido figurativo como
“forças de expressão”. As afirmações e verbalizações desses pacientes nos fazem ter apenas uma vaga
209

aproximação empática do que eles apresentam, pois não temos o entendimento e compreensão do que
vivenciam realmente, não experimentamos impressões equivalentes e semelhantes em nossa vida,
como ocorre em relação a pensamentos obsessivos, atos impulsivos ou depressão, que embora possam
ser psicopatológicos, não nos fica tão difíceis de serem compreendidos.

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