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Coletânea de textos – PAS 1

Senhora minha, desde que vos vi


Afonso Fernandes

Senhora minha, desde que vos vi,


lutei para ocultar esta paixão
que me tomou o coração;
mas não o posso mais e decidi
que saibam todos o meu grande amor,
a tristeza que tenho, a imensa dor
que sofro desde o dia em que vos vi.

Quando souberem que por vós sofri


tamanha pena, pesa-me, senhora,
que por vossa crueza padeci,
eu que sempre vos quis mais que ninguém,
e nunca me quisestes fazer bem,
nem ao menos saber o que eu sofri.

E quando eu vir, senhora, que o pesar


que me causais me vai levar a morte,
direi, chorando minha triste sorte:
“Senhor, por que me vão assim matar?”
E, vendo-me tão triste e sem prazer,
todos, senhora, irão compreender
que só de vós me vem este pesar.

Já que assim é, eu venho vós rogar


que queiras pelo menos consentir
que passe a minha vida a vos servir,
e que possa dizer em meu cantar
que está mulher, que em seu poder me tem,
sois vós, senhora minha, vós, meu bem;
graça maior não ousarei rogar.

Vamos, irmã, vamos dormir


Fernando Esquio

Vamos, irmã, vamos dormir


nas margens do lago, onde eu vi andar,
a caçar as aves o meu amigo.

Vamos, irmã, vamos descansar


nas margens do lago, onde eu vi andar,
a caçar as aves o meu amigo.

Nas margens do lago, onde eu vi andar


com seu arco nas mãos as aves a ferir,
a caçar as aves o meu amigo.

Nas margens do lago, onde eu vi andar


com seu arco nas mãos a atirar,
a caçar as aves o meu amigo.
Com seu arco nas mãos as aves a ferir,
as que cantavam as deixava partir,
a caçar as aves o meu amigo.

Com seu arco nas mãos às aves atirar,


as que cantavam não as queria matar,
a caçar as aves o meu amigo.

Dom Fulano, que eu sei que tem fama de covarde


Afonso Mendes de Besteiros

Dom Fulano, que eu sei que tem fama de covarde,


vejam o que fez durante a guerra – disto estou certo:
logo que viu os cavaleiros mouros, como boi ferroado por moscão,
sacudiu-se e remexeu-se, levantou
o rabo e fugiu para Portugal.

Dom Fulano, que eu sei que tem fama de leviano,


vejam o que fez durante a guerra – disto estou certo:
logo que viu os cavaleiros mouros, como um bezerro novo,
sacudiu-se e remexeu-se, levantou
o rabo e fugiu para Portugal.

Dom Fulano, que eu sei que tem fama de medroso,


vejam o que fez durante a guerra – saibam que é verdade:
logo que viu os cavaleiros mouros, como um cão que sai da corrente,
sacudiu-se e remexeu-se, levantou
o rabo e fugiu para Portugal.

Maria Peres se confessou dia desses


Fernão Velho

Maria Peres se confessou dia desses,


pois sentiu-se pecadora
e logo Nosso Senhor prometeu,
pelos pecados que cometeu,
que tivesse um clérigo sob sua proteção,
pelos pecados que o demônio lhe fez cometer,
e com quem ela sempre andou.

Confessou-se, porque diz que se


achou muito pecadora,
porém, rogadora foi logo a Deus,
pois antes guardar a Deus do que ao demo.

E enquanto viva diz que quer ter um clérigo,


com quem possa se defender do demo, que sempre a guardou.
E depois que viu bem seus pecados,
Ela teve muito medo de sua morte
e teve muito prazer em pedir esmolas.
E logo então um clérigo arranjou
e deu-lhe a cama em costumava dormir só.
E diz que o manterá enquanto viver,
o que fará enquanto filha de Deus for.
E depois que este pacto começou
entre ambos houve grande amor
para sempre maior do que o amor que havia entre ela e o demônio,
até que Balteira se confessou.
Mas depois que o demônio viu cair o clérigo entre ambos,
o demônio ficou a perder, a partir do momento em que ela se confessou

Se amor não é qual é este sentimento?


Francesco Petrarca

Se amor não é qual é este sentimento?


Mas se é amor, por Deus, que coisa é a tal?
Se boa por que tem ação moral?
Se má por que é dão doce o seu tormento?

Se eu ardo por querer por que o lamento


Se sem querer o lamentar que val?
Ó viva morte, ó delicioso mal,
Tanto podes sem meu consentimento.

E se eu consinto sem razão pranteio.


A tão contrário vento em frágil barca,
Eu vou por alto-mar e sem governo.

É tão grave de error, de ciência é parca


Que eu mesmo não sei bem o que eu anseio
E tremo em pleno estio e ardo no inverno.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Luís de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Ao desconcerto do mundo, Luís de Camões

Os bons vi sempre passar


No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

Trechos selecionados da Carta a el-Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil


Pero Vaz de Caminha

Trecho 1
Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova
do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha
conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que — para o bem contar e falar —, o saiba fazer pior
que todos. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar
nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Trecho 2
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios
pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-
mor, onde falaram entre si.
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele
começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar
o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos
com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos.
E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa.
Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto.
Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas
e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer
de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde
e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

Trecho 3
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos.
Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta
inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos
brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta
como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é
feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou
no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa
grandura e rapados até por cima das orelhas.

Trecho 4
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro
mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho,
Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas.
Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho
no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo
que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente
para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram
para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes
uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram
comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça;
mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não
beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-
as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o
colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais
o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem
lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas,
as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por
baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por
cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga
e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem
dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto
que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão
a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com
seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de
contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles,
para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com
eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
(...)
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não
podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-
nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós
tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava
um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-
nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria
dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E
alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam
espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam
outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de
azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem
gentis, com cabelos mui pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (...) E uma daquelas
moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha
(que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha,
por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos
e eles foram-se.

Trecho 5
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu.
Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele
ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa,
a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres
e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e
devoção.

Trecho 6
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos,
porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não
duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à
qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á
ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons
rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem
qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão
nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril
dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.

Trecho 7
Esta terra, Senhor (...) de ponta a ponta, é toda praia-palma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão
terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro;
nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e
Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo,
por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
(...)
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

A Jesus Cristo Nosso Senhor


Gregório de Matos

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Antes, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida já cobrada,


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,


Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Declara-se temendo perder por ousado
Gregório de Matos

Anjo no nome, Angélica na cara,


Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara


De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,


Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,


Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

O poeta descreve a Bahia


Gregório de Matos

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,


Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,


Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.

Envolver-se na confusão dos néscios para passar melhor a vida


Gregório de Matos

Carregado de mim ando no mundo,


E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo


Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.
Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,


Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c’os demais que só, sisudo.

Trechos selecionados do Sermão de Santo Antônio aos peixes


Padre Antônio Vieira

Trecho 1
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra,
porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê
tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa
desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga,
e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo
verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem
uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles
fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo
isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que
se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit,
in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. (Se o sal perder a
substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como
inútil para que seja pisado de todos.). Quem se atrevera a dizer tal coisa, se o mesmo Cristo a não pronunciara?
Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina
e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra
ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de
fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso
grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum
santo tomou.

Trecho 2
Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas
repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira coisa que me desedifica, peixes,
de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só
vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal.
Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem
os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho:
Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes. (Os homens com suas
más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.). Tão alheia coisa é, não só da
razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria
e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a
fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e
abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os
matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem
uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir,
vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as
calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os
homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os
herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais
dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador
que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho
da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim,
ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Torno a ver-vos, ó montes; o destino


Cláudio Manoel da Costa

Torno a ver-vos, ó montes; o destino


Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Côrte rico, e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,


Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.

Se o bem desta choupana pode tanto,


Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisonjeiro encanto;

Aqui descanse a louca fantasia;


E o que até agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.

Leia a posteridade, ó pátrio Rio


Cláudio Manoel da Costa

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,


Em meus versos teu nome celebrado,
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,


Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias


Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro


Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

Caso pluvioso, Carlos Drummond de Andrade

A chuva me irritava. Até que um dia


descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria. E cada pingo
de Maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava


como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura…
Maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,


pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa…Nossa!

Não me chovas, Maria, mais que o justo


chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia em vão – pois que Maria


quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva


mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Para! e ela chovendo,


Poças d’água gelada ia tecendo.
E choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,


sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,


as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Os seres mais estranhos se juntando


na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.


Que nada! As cordas d’água mais deliram,
e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes


já submergem com todos os viventes,
e Maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! – e ela parou.

Felicidade clandestina
Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por
cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai
dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato,
ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo,
onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como
"data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como
essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a
que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa
casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra
menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança
de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas
ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam
mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não
caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico.
No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta
calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no
decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração
batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro
esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que
não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,
apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa.
Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A
senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-
se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da
filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina
loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e
calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto
tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma
pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não
disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era
uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

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