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Terapias do esquecimento em Além do Bem e do Mal

Antonio Edmilson Paschoal*

1. Apresentação geral da questão


No outono de 1881 Nietzsche registra em seus apontamentos uma frase
aparentemente simples: « eu esqueci meu guarda-chuva » 1. Essa sentença, que Jacques
Derrida comenta, destacando o modo aleatório como aparece, entre aspas, podendo tratar-
se de algo que tenha sido ouvido « aqui ou ali » 2, e que hoje é reconhecida como uma
citação,3 chama a atenção pelo fato de reunir dois elementos caros ao filósofo de Sils
Maria. O guarda-chuva e o esquecimento. Com efeito, o primeiro tem uma grande
importância para o filho da Senhora Franziska Oehler Nietzsche como um bem cultural,
notadamente em seu cotidiano, 4 porém, não apresenta uma inserção relevante na obra do
filósofo. 5 Ao passo que o segundo, o esquecimento, é constantemente mencionado por
Nietzsche, seja no seu cotidiano, seja na sua obra, aparecendo com grande regularidade
nas suas cartas, anotações e na obra publicada.6
Considerando essa inserção do esquecimento naqueles escritos e tomando
inicialmente as cartas, é possível observar a predominância de ocorrências do termo em
associação a eventos e compromissos assumidos por Nietzsche em seu dia a dia. 7 Nesses

*
Professor do Departamento de Filosofia da UFPR e pesquisador do CNPq. E-mail:
antonio.paschoal@yahoo.com.br.
1
KSA 9, 12[62]. As passagens dos fragmentos póstumos de Nietzsche mencionadas no capítulo foram
traduzidas por mim do alemão para o português.
2
Jacques DERRIDA Esporas. Os estilos de Nietzsche, tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla
Rodrigues, Rio de Janeiro, Nau Editora, 2013, p. 93.
3
Andreas Urs Sommer confirma que a frase é uma citação de Un autre monde (1843/44), de Grandville.
Uma obra acessada por Nietzsche, na tradução alemã feita por Oskar Ludwig Bernhard Wolff e publicada
com o título Eine Andere Welt von Plinius dem Jüngsten, em 1847. (Andreas Urs SOMMER Kommentar zu
Nietzsches Jenseits von Gut und Böse, Berlin / Boston, Walter de Gruyter GmbH, 2016, p. 796).
4
O que se expressa, por exemplo, na alegria de enviar à mãe um guarda-chuva « robusto », que serviria «
para os próximos cinquenta anos de sua existência » (Brief an Franziska Nietzsche, 2. Februar 1871 KSB
3). Ou ainda, no entusiasmo registrado pelo fato de seu amigo Carl von Gesdorff não necessitar de um
guarda-chuva em Florença, pois vivia maravilhosamente perto das galerias. (Brief an Franziska Nietzsche,
31. Januar 1873, KSB 4).
5
A figura do guarda-chuva aparece apenas uma vez na obra publicada de Nietzsche, de forma metafórica,
associado ao entusiasmo, o qual seria, assim como o guarda-chuva, « algo extremamente desejável » (Além
do Bem e do Mal, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 1992 / JGB, § 288).
6
Uma consulta rápida no site da Nietzsche Source permite identificar mais de cinco centenas de ocorrências
do termo « esquecimento » e suas variações nos escritos do filósofo, em sua maioria nas cartas do filósofo,
mas também com grande frequência nos apontamentos e obras publicadas. Conferir:
http://www.nietzschesource.org/#eKGWB.
7
Esse uso não demarcado do termo « esquecimento » (Vergessen) corresponde, no geral, ao modo como
ele é encontrado nos dicionários da língua alemã. Ilustrativo, nesse sentido, é o Deutsche Wortschatz.
Etymologisches Wörterbuch des Deutschen, que apresenta um estudo etimológico do vocábulo « Vergessen
», mostrando que o termo é composto pelo radical « get » (pegar) – que remete a « erreichen » (alcançar),
casos, a lembrança ganha uma conotação quase sempre positiva, como uma virtude a ser
conquistada, enquanto o olvidamento aparece como uma espécie de obstrução ao bom
funcionamento da memória ou uma desatenção, 8 muitas vezes acompanhada de pedidos
de desculpas. O que realçaria o seu caráter negativo em relação à memória, como se o
esquecimento, mesmo não estando totalmente ao alcance do homem, e podendo no seu
limite ser associado a uma doença,9 devesse ser evitado, assim como alguém evita alguma
coisa que poderia trazer prejuízos para si ou para os demais.
Passando do epistolário do filósofo para seus apontamentos, e também para seus
manuscritos e sua obra publicada, é possível identificar uma mescla daquele uso coloquial
do termo com outros nos quais o esquecimento ganha novas conotações, destacando-se
alguns papeis conferidos a ele em certos contextos bem específicos. 10 Dentre esses papéis
é possível considerar, inicialmente, o seu uso como um fator que permite ao homem,

« fassen » (agarrar), « ergreifen » (tomar, alcançar ou prender algo) – e recebe um sentido específico por
meio do prefixo « ver », que inverte o radical, do mesmo moco como temos com a palavra « kaufen », «
comprar » que com o prefixo « ver » se torna « verkaufen », isto é, « vender ». Assim, teríamos « ver-get
», no sentido de deixar algo escapar, de « nicht erreichen » (não alcançar), « nicht fassen » (não agarrar), «
nicht ergreifen » (não segurar algo). Em resumo, esquecimento remeteria à ideia de perder a posse de algo.
(Cf: Der deutsche Wortschatz. Etymologisches Wörterbuch des Deutschen. Disponível em:
https://www.dwds.de/wb/etymwb/vergessen. Acessado em 28 de maio de 2022). Sobre a conotação
negativa do vocábulo « esquecimento » em comparação ao termo « memória » na cultura ocidental e as
variações que a palavra « esquecimento » recebe em diferentes momentos e contextos dessa cultura, é
interessante conferir os seguintes trabalhos: Harold WEINRICH Lete. Arte e crítica do esquecimento, trad.
de Lya Luft, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001 e Paolo ROSSI O passado, a memória, o
esquecimento, trad. de Nilson Moulin, São Paulo, Editora UNESP, 2010.
8
Alguns exemplos, nesse sentido, podem ser observados em: Brief an Franziska e Elisabeth Nietzsche, 12.
Januar 1866, KSB 2; Brief an Paul Deussen, Februar 1870, KSB 3; Brief an Erwin Rohde, 03. April 1868,
KSB 2; Brief an Franziska e Elisabeth Nietzsche, 27. Oktober 1869, KSB 3.
9
Vários transtornos são associados ao esquecimento, como é o caso do estresse e ansiedade. Contudo, a
principal doença associada ao esquecimento, que corresponde a uma degeneração das funções cerebrais
manifestada pela perda da memória, é aquela caracterizada em 1907 pelo médico alemão Alois Alzheimer,
e que é conhecida pelo seu sobrenome. (Cf.: Marília de Arruda Cardoso SMITH « Doença de Alzheimer »,
Genética - Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 21, outubro 1999, p. SII3-SII9. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/rbp/a/DbpBDqKVTnsfyF3HHTDCkNN/?format=pdf&lang=pt. Acessado em 29
de maio de 2022). Por sua vez, o excesso de memória entendido como uma espécie de adoecimento aparece
na literatura, por exemplo, com a figura de Ireneu Funes, o Memorioso, descrito como um « Zaratustra
xucro e vernáculo », que nada podia esquecer e que morre aos 21 anos, de uma congestão pulmonar. (Cf.:
Jorge Luis BORGES « Funes, o memorioso », Ficções, trad. de Davi Aguirre Jr., São Paulo, Companhia das
Letras, 2016, p. 99-108).
10
Utilizamos a expressão « contexto » justamente para ressaltar o fato de que o termo « esquecimento »
assume diferentes formas e papéis a cada ocorrência nos escritos de Nietzsche, sem que isso remeta a uma
espécie de evolução do termo no decorrer da obra. Um exemplo nesse sentido, de que não há uma evolução
do conceito, é o fato de a ideia de esquecimento como « assimilação anímica », celebrada como a principal
contribuição de Nietzsche no debate sobre o esquecimento, no geral associada à Genealogia da moral, de
1887, (cf.: Werner STEGMAIER Nietzsches ‘Genealogie der Moral’, Darmstadt, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, 1994, p. 133-135 e Wilson FREZZATTI JR Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século
XIX, São Paulo, Humanitas, 2018, p. 107-109), já ter um importante papel também na Segunda
Consideração Extemporânea, de 1873.
enquanto um animal que vive em comunidade, estabelecer certas convenções, seja no
campo da linguagem, seja no campo da moral.
No que diz respeito à relação entre esquecimento e linguagem, o exemplo mais
conhecido é, ao certo, a primeira seção de Sobre verdade e mentira no sentido extra-
moral. Nesse texto, embora seja tomado de uma forma crítica, o esquecimento tem um
11
papel capital na transição da metáfora para o conceito, atuando, por exemplo, na
petrificação da primitiva « massa imagética » da « fantasia humana », contribuindo para
a igualação do que é diferente e, por fim, para que o homem possa viver « com certa
tranquilidade, com alguma segurança e consequência ». 12
Por sua vez, para a relação entre esquecimento e moral, um exemplo importante é
o aforismo 92 de Humano, demasiado humano, onde o conceito ocupa um lugar central
no debate sobre a moralização dos costumes. 13 Nesse aforismo, o filósofo atribui um
papel central ao olvidamento na origem da justiça, em especial quando explica o modo
como certas ações foram alçadas para a condição de justas e boas em si. « Dado que os
homens, conforme o seu hábito intelectual, esqueceram a finalidade original das ações
denominadas justas e equitativas ». O que permite a ele afirmar, por fim: « quão pouco
moral pareceria o mundo sem o esquecimento ».14
Nesses casos, como se pode observar, o termo se mantém associado à ideia de um
desgaste de impressões passadas, designando algo ocorrido, que poderia até ser desejado
por seus resultados, a despeito de serem positivos ou negativos, mas que dificilmente
poderia ser associado a uma tarefa do filósofo ou mensurado por seus efeitos terapêuticos,
por exemplo. O que se apoiaria, em grande parte, na proposição de que o esquecer, «

11
Também no aforismo 312 de Aurora, Nietzsche afirma que o estado civilizado do homem só é possível
graças ao esquecimento de suas « experiências originais », sua animalidade e gestos primitivos que
tenderiam a se manter na memória, mas que são esquecidos.
12
Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral / WL, § 1. Tradução própria. Observe-se que o uso do
termo nesse ensaio de Nietzsche é diferente do que se tem em outra obra do período, a já mencionada
Segunda Consideração Extemporânea. Da utilidade e da desvantagem da história para a vida, onde o
esquecimento é evocado não pelo dano que produz, mas pela felicidade que permite.
13
Conferir ainda: Humano, demasiado humano, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia
das Letras, 2000 / MA, § 39 e também O andarilho e sua sombra, tradução de Paulo Cézar de Souza, São
Paulo, Companhia das Letras, 2008 / WS, § 40. Não se pode perder de vista que esse mesmo papel do
esquecimento em relação à origem da justiça é retomado de forma crítica no início da primeira dissertação
da Genealogia da moral. (Genealogia da moral / GM I, § 1) Um estudo comparativo entre essas duas
passagens poderia considerar, como ponto de partida, as interpretações de Volker Gerhardt e Werner
Stegmaier (cf.: Volker GERHARDT « Das ‘Prinzip des Gleichgewichts’. Zum Verhältnis von Recht und
Macht bei Nietzsche », Nietzsche-Studien, Bd. 12, 1983, p. 111-133 e Werner STEGMAIER Nietzsches
‘Genealogie der Moral’, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994, p. 94-103).
14
Humano, demasiado humano / MA, § 92.
justamente isso, não está em nosso poder » e que, por fim, « não se consegue esquecer
quando se quer esquecer ».15
Em outras passagens, contudo, além de ser tomado pelos efeitos que produz, o
esquecimento ganha algum lastro também no campo da vontade. Ele é considerado, por
exemplo, por aquele que tem diante de si o perigo de perder a referência ao que lhe é
próprio, sendo apontado, então, como uma forma de preservação de si. É desse modo, em
associação a uma atenção sobre si, ou à perda dessa atenção, que o termo aparece, por
exemplo, em Sobre o futuro de nossas instituições de ensino, quando o filósofo critica o
esquecimento de si realizado com a finalidade de « desfrutar a juventude eterna em um
sistema solar de temas intemporais e impessoais » 16. Ou, de maneira análoga, mas num
sentido oposto, na Terceira consideração extemporânea, onde a atenção sobre si, o
reconhecimento do próprio « ser assim e não de outro modo » 17 e o afastamento do que
é comum se apresenta como parte da « tarefa » que seria a produção do gênio filosófico.
Uma ideia que é retomada pelo filósofo, com peculiaridades e numa alusão mais direta a
si mesmo em Ecce homo, quando se refere ao « esquecimento da distância própria » 18 e
ao perigo de « nivelar-se a qualquer um » – algo que ele não se perdoaria.19
Nessas passagens, contudo, o interesse pelo esquecimento mostra-se ainda
controverso, pois, mesmo desejado, ele não estaria entre as coisas controladas pelo
homem, por sua vontade e muito menos por uma deliberação consciente de um individuo.
Para entender o modo como o esquecimento pode ser um meio associado a uma tarefa,
talvez o texto mais instrutivo seja a Genealogia da moral. Nessa obra, à qual em alguns
momentos o filósofo confere o papel de elucidar certos conceitos já presentes em Além
do Bem e do Mal,20 evidencia-se o caráter paradoxal que o esquecimento assume ao ser

15
Aurora, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2004 / M, § 167. Num
outro aforismo de Aurora, intitulado « Esquecimento », tem-se a afirmação de que o termo corresponderia
apenas ao fato de não controlarmos a rememoração. Algo que « não está em nosso poder » (Aurora / M, §
126), segundo o filósofo, e que não poderia ser associado a uma faculdade, mas à lacuna que as palavras
em geral possuem em relação àquilo que podemos ou não podemos.
16
Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino / BA, § 4. Tradução própria.
17
Da utilidade e da desvantagem da história para a vida / HL, § 4. Tradução própria.
18
Ecce homo, « Por que sou tão esperto », tradução de Paulo C. de Souza, São Paulo, Companhia das
Letras, 1995 / EH, « Warum ich so Klug bin », § 3.
19
Uma análise desse ponto não pode deixar de considerar outras passagens em que Nietzsche associa o
conhecimento de si ao esquecimento de si em Ecce homo (« Por que sou tão esperto » / EH, « Warum ich
so klug bin », § 9). Apresentamos esse tema, numa formulação ainda preliminar, em: Antonio E. PASCHOAL
« Nascentes e meandros do Lete em Nietzsche », Cadernos Nietzsche, vol. 43, n. 01, 2022, p. 55-82.
20
Como se evidencia nas propostas de títulos: « Além do Bem e do Mal. Prelúdio de uma filosofia do futuro
(...) Nova edição mais inteligível. Segundo volume. Com um anexo: Guia do pensamento. Um meio de
auxiliar a um estudo sério da primeira parte de meus escritos ». (KSA 12, 2[138]), e « Além do Bom e do
Ruim? Um escrito polêmico-filosófico. (Complemento e elucidação do último livro publicado “Além do
Bem e do Mal”) » (KSA 12, 6[2]).
associado a uma tarefa. Isto porque a tarefa que a natureza, no caso, se impôs em relação
ao homem, de produzir nele uma memória, não poderia desconsiderar o esquecimento.
Isto porque seria o esquecimento, entendido como uma « uma força inibidora, ativa,
21
positiva no mais rigoroso sentido » , que permitiria ao homem viver plenamente o
presente. 22 O que introduz o esquecimento no âmbito de um processo seletivo que se
traduz, por meio da ideia de « assimilação pela alma », correlata à assimilação dos
alimentos pelo corpo. 23 Nesse sentido, o esquecimento pode ser desejado assim como se
deseja o bom funcionamento do aparelho digestivo e, se não é possível controla-lo
conscientemente, assim como não é facultado ao homem controlar o processo digestivo,
ao certo, é possível tomar certos cuidados em relação a ele, por exemplo, por meio da
escolha de certos alimentos e, assim, zelar pela saúde do aparelho digestivo e, em
decorrência, colher os benefícios de seu bom funcionamento.
Conforme veremos, em Além do Bem e do Mal, uma obra que se constitui no
âmbito de uma « oscilação entre o futuro e o passado » 24, mas que, ao certo, « privilegia
o futuro sobre o passado » 25, o termo « esquecimento » aparece já com essa conotação
de incorporação. Contudo, essa conotação se mantém ali, em grande parte, como um
pressuposto, associando-se a outras acepções, dentre as quais destaca-se aquela em que o
esquecimento é tomado como um fármaco,26 podendo ser prescrito, ou não, para
diferentes finalidades, conforme os objetivos e os traços daquele que poderia lançar mão
dele.

2. Usos não demarcados do termo « esquecimento » em Além do Bem e do Mal


Do mesmo modo como se verifica no conjunto dos escritos de Nietzsche, também
em seu livro de 1885 o esquecimento aparece com diferentes conotações que permitem
uma aproximação àquela acepção demarcada pelo filósofo e realçada neste estudo, como

21
Genealogia da moral, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 1998 / GM
II, § 1.
22
Vale dizer: livrar-se do ressentimento. Desenvolvemos essa correlação entre o esquecimento e
ressentimento em: Antonio E. PASCHOAL Nietzsche e o Ressentimento, São Paulo, Humanitas, 2014.
23
É interessante observar que a « alma », na Genealogia, é descrita por meio da linguagem do corpo, como
« um mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas » (Genealogia da moral /
GM II, § 16).
24
Andreas Urs SOMMER Kommentar zu Nietzsches Jenseits von Gut und Böse, Berlin / Boston, Walter de
Gruyter GmbH, 2016, p. 673.
25
Vanessa LEMM La filosofía animal de Nietzsche Cultura, política y animalidad del ser humano, trad.
Diego Rossello, Santiago – Chile, Ediciones UDP, 2010, p. 172.
26
Fármaco é o princípio ativo de um medicamento ou de um produto usado em uma terapia. O termo grego
« phármakon » pode significar tanto um remédio quanto um veneno, o que depende da dose e do próprio
paciente.
um fármaco. Assim, considerando previamente aqueles casos em que o termo não possui
um uso filosoficamente demarcado, algumas passagens chamam a atenção. Por exemplo:
quando o filósofo se refere à tarde, na qual o dia se torna lembrança (Erinnerung); ou ao
recorrer à expressão usual « é para se lembrar », quando afirma que « Schopenhauer,
embora pessimista, tocava flauta » 27; ou quando pede para que « não esqueçamos » os
efeitos dos ingleses sobre o espírito europeu28; ou ainda, no contexto de uma espécie de
balanço da música alemã, quando menciona algumas óperas, como é o caso da
Tannhäuser, de Wagner, um exemplo para uma « música passada, embora ainda não
esquecida », e também a música de Felix Mendelssohn, cujo trabalho foi « rapidamente
festejado e rapidamente esquecido »29. Considerando, outros casos, em que se observa
um uso filosófico do termo, mas sem uma conotação própria de Nietzsche, um exemplo
seria a referência ao sentido que oesquecimento possui na filosofia de Platão, no âmbito
da qual, um pensamento não seria tanto uma descoberta, mas um « reconhecimento,
relembrança (Wiedererkennen, Wiedererinnern), um retorno a uma primavera, longínqua
morada perfeita da alma, de onde um dia os conceitos brotaram » 30.
Por sua vez, ainda num uso não demarcado, mas indicando algo que de algum
modo poderia ser deliberado pelo homem, o esquecimento aparece: quando é apontado
como algo que é produzido até mesmo « de bom grado »31, no âmbito de uma crítica do
filósofo aos « idealistas »; ou quando se tem a referência a verdades que são deixadas «
inertes e esquecidas no seu canto »32, como é o caso da crueldade; ou ainda quando o
filósofo afirma: « inventamos e construímos a pessoa com quem lidamos – para em
seguida esquecer que assim fazemos » 33. Algo que, segundo Nietzsche, realizamos tanto
em sonho quanto acordados. De fato, tanto nos primeiros exemplos quanto nesses
últimos, predomina um uso coloquial do termo e, mesmo quando se tem a menção a um
interesse do sujeito em produzir o esquecimento, isso não é acompanhado de uma
explicação sobre os artifícios por meio dos quais ele seria obtido.
Outros exemplos, contudo, de Além do Bem e do Mal permitem uma aproximação
ao modo como ele é produzido. Por exemplo, quando são analisados os propósitos de
determinadas morais, no âmbito de uma « semiótica dos afetos ». Nesse contexto, o

27
Além do Bem e do Mal / JGB, § 186.
28
Além do Bem e do Mal / JGB, § 253.
29
Além do Bem e do Mal / JGB, § 245.
30
Além do Bem e do Mal / JGB, § 20.
31
Além do Bem e do Mal / JGB, § 39.
32
Além do Bem e do Mal / JGB, § 229.
33
Além do Bem e do Mal / JGB, § 138.
filósofo evidencia o papel da moral como um meio para o seu autor esquecer tanto de
algo fora de si quanto « de si mesmo ou de algo de si » 34.
Ao certo, a observação acerca de um possível papel entorpecedor da moral, no
sentido de obstruir a memória, oferece um ponto importante para a compreensão de
algumas estratégias pensadas pelo filósofo, em seu livro de 1885, tendo em vista aquela
oscilação entre o passado e o futuro, e que diz respeito às possibilidades de crescimento
da « planta “homem” ». O que remete novamente à acepção do esquecimento como um
fármaco, mas, neste ponto, uma beberagem que pode ser tomada com diferentes
propósitos: como um fator necessário para uma preservação de si em relação ao que é
comum; como uma necessidade frente ao perigo representado por certas lembranças; e
também como algo ambivalente que, conforme o caso, poderia não ser recomendado.

3. Esquecer para não « sufocar de lembrança »


Como parte de um cuidado 35 necessário para a preservação de si em relação ao
que é comum, em Além do Bem e do Mal o esquecimento vincula-se à figura do « homem
superior »36, tomado inicialmente aqui em termos abrangentes, enquanto uma meta
possível que requer cuidados e apresenta percalços. No âmbito desse vínculo, o
esquecimento atua tanto no sentido de manter a atenção na meta proposta quanto de
prevenir adversidades que poderiam desviar dela.
Nesse caso em particular, em que se tem uma espécie de um olhar externo do
filósofo para o homem superior, considerado como uma meta a ser alcançada ou mantida,
o esquecimento atende à necessidade que aquele tipo elevado possui de conservar a
distância própria e, nesse sentido, de apartar-se « da multidão e de seus deveres e virtudes
» 37, de « turvar a lembrança » 38 como uma ação de defesa. Uma ação exigida de uma «
alma elevada e exclusiva », em especial quando ela é lançada numa « época ruidosa e

34
Além do Bem e do Mal / JGB, § 187. O que pode corresponder também a um ocultar-se (sich verstecken)
ou a um fazer aparecer (sich verklären), como se observa no apontamento de 1883, que apresenta uma
formulação prévia deste aforismo. (KSA 10, 7[58]).
35
A ideia de cuidado e em especial de cuidado de si é controversa em Nietzsche. Se, por um lado, ela
remete a uma atenção sobre si, como se tem, por exemplo, em Ecce homo, « Por que sou tão inteligente »
/ EH, « Warum ich so Klug bin », 2 e 9, como uma forma de « egoísmo » (Selbstsucht) e um cultivo de si
(Selbstzucht), por outro, ela pode corresponder ao « cuidado atencioso e conservador », típico das religiões,
que têm como resultado, a manutenção do « tipo “homem” num degrau inferior » (Além do Bem e do Mal
/ JGB, § 62).
36
Além do Bem e do Mal / JGB, § 62.
37
Além do Bem e do Mal / JGB, § 213.
38
Além do Bem e do Mal / JGB, § 40.
plebeia, com a qual não quer compartilhar o mesmo prato (...) » 39. Para essas « almas de
40
constituição mais estranha », marcadas por uma « incurabilidade interior » e pela
propensão à ruína, o esquecimento pode ser relacionado a uma máscara, ou ainda à
solidão e ao afastamento requerido por ele como uma forma de pudor.
Contudo, se nesse ambiente o perigo de se perder leva aquele tipo destacado de
homem a não dividir a mesa com os demais, outro perigo se impõe a ele, o de morrer de
fome no seu isolamento. Suas opções seriam, assim, « perecer de fome e sede, ou, caso
41
finalmente “se sirva” – de náusea » . O que requer o esquecimento como aquele
distanciamento em relação ao perigo que representaria o « nojo prolongado » produzido
por aqueles alimentos, e também como uma prevenção, uma profilaxia, « face a uma
memória demasiado fiel » dos seus próprios percalços, do seu isolamento, daquilo que
poderia produzir nele o « fantasma da descrença ». Fatores que acarretariam no perigo de
42
ele « sufocar de lembrança » . O risco de ele ficar paralisado e, no seu extremo, ser
levado, talvez, a « suspirar por glória » e, assim, abandonar sua tarefa e, ao seu modo, se
corromper 43.
Ao certo, tal acepção de um mundo elevado, um mundo mais espiritual, supõe «
que se tenha nascido para ele », mas, também, « que se tenha sido cultivado para ele ». O
que implica numa a transmissão e incorporação de certas virtudes que não ocorre de forma
rápida, mas como um movimento lento que pressupõe gerações para se realizar.
Pressupõe o cultivo daquela « espiritualidade superior », que « arrasta o indivíduo para o
alto », para uma posição de destaque em relação à « mediania e à planura da consciência
de rebanho » 44. Um fator que termina por produzir um novo perigo, pois tal afastamento
é visto como uma ameaça pelo rebanho que, ao certo, volta-se contra os que se destacam
em relação a ele.45
Nesse contexto, em que se tem a necessidade de filtrar certas memórias e digerir
certas impressões, é possível fazer uma primeira aproximação entre o esquecimento e a

39
Além do Bem e do Mal / JGB, § 282.
40
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
41
Além do Bem e do Mal / JGB, § 282.
42
Além do Bem e do Mal / JGB, § 282.
43
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
44
Além do Bem e do Mal / JGB, § 201.
45
O rebanho tem a seu favor, nesse confronto, além do maior número, também a comunicação que é própria
a ele na medida em que ela pressupõe « vivências semelhantes, necessidades semelhantes ». Como um «
processo de abreviação », ela não envolve as ocorrências raras, mas apenas as vivências recorrentes e
comuns, o que a torna um fator capital para o que o filósofo chama de « natural, muito natural progressus
in simile », frente ao qual, afirma, é preciso « invocar prodigiosas forças contrárias » (Além do Bem e do
Mal / JGB, § 268).
ideia de digestão em Além do Bem e do Mal. De fato, um corpo sadio se encontra apto
para digerir alimentos difíceis de serem assimilados, encontra-se apto também para
selecionar o que deve ser mantido no corpo e o que deve ser eliminado. Do mesmo modo,
o esquecimento atuaria para manter a saúde daquele corpo, não apenas assimilando, mas
também eliminando, filtrando certas impressões que debilitariam aquele corpo. O que não
pode falhar, sob pena de se perder aquela espiritualidade superior na forma de uma
corrupção que, então, se configuraria como a « inclinação para o conforto », que
Nietzsche afirma ser comum em « todos os doentes crônicos, [em] todos os dispépticos
». Uma inclinação apontada por ele como uma marca do seu tempo, caracterizado pela «
fraqueza », « correção » e « comodidade » de uma moralidade estabelecida por
conveniência. Uma época que, ainda segundo o filósofo, « digere mal seus
acontecimentos, jamais “da conta” deles », de tal forma que, para ele, « a profundidade
alemã é, com frequência, apenas uma ‘digestão’ pesada e arrastada ». 46

4. Esquecer para não « sufocar de compaixão »


Passando de uma observação geral dos homens mais elevados, para um exame
daquele que se ocupa com o homem superior, tem-se diante dos olhos o aparecimento de
um tipo específico que em Além do Bem e do Mal é caracterizado como o « psicólogo »
47
ou como o « espírito livre » 48, ou ainda como o « homem do conhecimento » 49. A
compreensão dessa categoria de homem destacado, tendo em vista a particularidade de
seus percalços e o papel terapêutico do esquecimento em relação a eles, deve considerar
o modo como ele está ligado à sua tarefa.
Tal categoria de homem superior diz respeito àquele que assume a tarefa que se
desprende daquela tensão do espírito, indicada no prefácio do livro. Uma tarefa que
envolve uma relação do seu proponente consigo mesmo a partir da sua atenção para com
um outro, para com aquele homem superior descrito até aqui em linhas gerais. Essa tarefa
é assumida por um « nós » - o que inclui o próprio Nietzsche nesse conjunto – que se
identificariam como « os avessos, que abrimos os olhos e a consciência para a questão de
onde e de que modo, até hoje, a planta ‘homem’ cresceu mais vigorosamente às alturas
». O que envolve, essa abertura dos olhos e da consciência, algo « temerário » também

46
Além do Bem e do Mal / JGB, § 244.
47
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
48
Além do Bem e do Mal / JGB, § 44.
49
Além do Bem e do Mal / JGB, § 171.
para aquele observador que, por sua vez, precisa de uma sabedoria peculiar no que diz
respeito ao « preservar-se » 50.
Ao certo, a esse « espírito elevado », ao psicólogo, impõe-se também os perigos
que assolam todo aquele que possui uma espiritualidade superior, por exemplo, o de
perder-se no interior de uma « época ruidosa e plebeia ». Contudo, no seu caso, esse risco
ganha novos contornos. Com ele, o grande perigo, frente ao qual ele deve se precaver é o
impacto produzido nele por aquela regra que é a « a corrupção e a ruína dos homens mais
elevados, das almas de constituição mais estranha ». Ao fato de que « é horrível ter diante
dos olhos uma tal regra » 51.
Neste ponto, o psicólogo e leitor de almas deve cuidar, por exemplo, para não
ceder às opiniões dos aduladores dos grandes homens, que terminam por torna-los «
animais de sacrifício » 52, tão venerados quanto inofensivos para o seu tempo. Mais ainda,
ele deve evitar se igualar aos seus antípodas, os espíritos que não são livres justamente
porque são « bonzinhos e desajeitados » e buscam a comodidade da « felicidade do
rebanho em pasto verde ». Espíritos que seriam, assim, « cativos e ridicularmente
superficiais » 53, marcados justamente pela incapacidade de conduzirem a tarefa afigurada
naquela « magnífica tensão do espírito » 54. Antes, prefeririam distender a tensão própria
àquela tarefa, pois, na perspectiva assumida por eles, a da compaixão, o « sofrimento
mesmo [seria] visto como algo que se deve abolir » 55. Assim, nada teriam a acrescentar
em relação à « moderna ideologia e aspiração de rebanho ».
O que evidencia a recomendação feita ao psicólogo, de cuidar-se e, nesse sentido,
« não se prender a pessoas » ou, em termos mais precisos, de « não se prender a uma
compaixão », especialmente quando ele « se dirige a homens superiores, cujo martírio e
desamparo o acaso permitiu vislumbrar ».56 Isto porque a observação daquele martírio
pode levar o psicólogo, finalmente, a « voltar-se com amargura contra a sua sorte e fazer
uma tentativa de autodestruição - de ele próprio se “corromper” ». Assim, « o medo da
própria memória [que] lhe é característico », 57 exige também dele « uma espécie de fuga
e esquecimento, para longe de tudo que lhe colocaram na consciência suas percepções,

50
Além do Bem e do Mal / JGB, § 41.
51
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
52
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
53
Além do Bem e do Mal / JGB, § 44.
54
Além do Bem e do Mal, « Prefácio » / JGB, « Vorrede ».
55
Além do Bem e do Mal / JGB, § 44.
56
Além do Bem e do Mal / JGB, § 41.
57
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269.
seu ofício ». De fato, a fineza de sua sensibilidade, própria de seu ofício, resulta no perigo
de que ele « sufoque de compaixão » e, assim, venha a se « corromper », exigindo, assim,
olvidamento como uma espécie de preservação de si e de sua tarefa.58
Neste momento, torna-se indispensável uma palavra sobre o modo como está
sendo compreendido aqui o termo « tarefa », que remete a um daqueles conceitos difíceis
de serem elucidado da filosofia de Nietzsche. A palavra alemã « Aufgabe », utilizada pelo
filósofo, pode remeter a algo a ser realizado por alguém, bem como a um problema a ser
59
solucionado, podendo significar, num sentido mais amplo, uma missão. No caso de
Nietzsche, o termo possui uma correlação com o vocábulo « Gelöbniss », que remete a
um « compromisso », no sentido de um « voto », um « juramento », como aparece, por
exemplo, em Ecce homo 60, vinculado à « história mais íntima » daquele que assume tal
compromisso. Algo próximo ao que se tem, também, quando o filósofo utiliza a expressão
« Schicksal », que é traduzida por « destino » 61, com destaque para a ideia de « fatalidade
», de « fado » ou, ainda, de « sina ». Nesses casos, os termos não remetem a uma vontade
pessoal, mas a uma determinação que considera « toda a linha “ser humano” até ele
mesmo » 62. Todo um constructo que se impõe a ele na forma de uma necessidade, 63 «
Noth », indicando, no caso de Nietzsche, que a tarefa em pauta derivaria forçosamente
daquela « magnífica tensão do espírito » identifica na cultura ocidental, nomeadamente a

58
Como evidencia Marta Faustino, Nietzsche se apresenta em inúmeras ocasiões como « médico da cultura
» e também como « médico filosófico », adotando « um ponto de vista clínico ou terapêutico » em relação
a seu tempo (Marta FAUSTINO Nietzsche e a grande saúde. Para uma terapia da terapia, Tese de
doutoramento em Filosofia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa,
Lisboa, 2013, p. 19 e 22). Neste estudo, além de considerar o termo « terapia » frente ao adoecimento de
seu tempo, em relação ao qual o filósofo proporia uma « terapia da terapia », o termo « terapia » será
utilizado também – e principalmente – num sentido profilático, indicando os cuidados que se toma para
prevenir a ocorrência de certos problemas, como é o caso daqueles que poderiam levar à perda do tipo de
homem que possuiria uma espiritualidade elevada, segundo Nitzsche. O termo profilaxia, por sua vez, é
tomado neste estudo como um conjunto de medidas que visam proteger o indivíduo de determinadas
doenças. (Cf.: Porto Editora Dicionário Infopédia de Termos Médicos, Porto, Porto Editora. Disponível em
https://www.infopedia.pt/dicionarios/termos-medicos/profilaxia, consuntado em 11/06/2011). Ou, ainda,
como a prescrição de determinadas intervenções voltadas a prevenir certos adoecimentos, como se observa,
por exemplo, com a « Síndrome de Burnout nos profissionais de saúde », causada pela exposição a situações
de exaustão inerentes à profissão médica. (Cf.: Patrícia PERNICIOTTI et al « Síndrome de Burnout nos
profissionais de saúde: atualização sobre definições, fatores de risco e estratégias de prevenção », Revista
da SBPH, vol. 23 n.1, 2020).
59
Conferir o verbete « Aufgabe » no Deutsche Wortschatz. Etymologisches Wörterbuch des Deutschen e
também no Duden Wörterbuch (Disponível em: https://www.duden.de/suchen/dudenonline/aufgabe.
Consultado em 02/06/2022).
60
Ecce homo, « Extemporâneas » / EH, « Unzeitgemässen », § 3.
61
Ecce homo, « Por que sou um destino » / EH, « Warum ich ein Schiksal bin », § 1.
62
Crepúsculo dos ídolos, tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, «
Incursões de um extemporâneo » / GD, « Streifzüge eines Unzeitgemässen », 33.
63
Como a abelha necessariamente produz mel (Assim falou Zaratustra, « Prólogo do Zaratustra », tradução
de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2011 / ZA, « Zarathustra’s Vorrede », § 1).
partir de Platão, e que é assumida por aquele « nós », «bons europeus e espíritos livres »,
« nós », que ainda temos « toda a necessidade do espírito e toda a tensão de seu arco ». 64
No âmbito dessa tarefa, o psicólogo – o próprio Nietzsche – precisa afirmar sua
peculiaridade e afastar-se do diferente, sob pena de abandonar sua tarefa e se perder. Do
mesmo modo, quando sua atenção para com « os casos e seres mais seletos » o expõe ao
perigo de « sufocar de compaixão » 65 , ele precisa buscar o elemento que permite produzir
nele o necessário « eco de deserto e solidão » 66, gerar o pendor que distingue e separa,
sem o qual não se teria o Espírito Livre. O meio para isso, o esquecimento.

5. Aprender a esquecer
De fato, a análise do tipo elevado de homem que tem diante dos olhos a questão
« de onde e de que modo, até hoje, a planta ‘homem’ cresceu mais vigorosamente às
alturas [?] » 67 requer ainda uma observação sobre o Espírito Livre, a partir de um outro
ângulo. É preciso considerar os detalhes de sua tarefa que exigem dele atuar como um
homem do conhecimento.
Preliminarmente, nesse sentido, cabe observar que expressões como « homem
elevado », « espírito livre » e, agora também, « homem do conhecimento » 68 que remetem
a diferentes formas de se pensar uma natureza mais espiritual, remetem também a
diferentes formas de se considerar os usos possíveis de algum fármaco ou terapia. Essa
questão, vinculada ao tema da saúde, em Nietzsche, é anunciada pelo filósofo em um
aforismo de 1882, de A Gaia Ciência quando afirma que não existe um padrão de saúde
a ser considerado para todos os homens, devendo mesmo ser abandonado « o conceito de
uma saúde normal, juntamente com uma dieta normal e curso normal da doença ». Nesse
sentido, e destacando a ideia que « não existe uma saúde em si », ele evidencia ainda a
ideia de que também um mesmo medicamento pode ter diferentes efeitos para diferentes
homens, podendo ser saudável para um e prejudicial para outro. Mais ainda, ele afirma

64
Além do Bem e do Mal, « Prefácio » / JGB, « Vorrede ».
65
Além do Bem e do Mal / JGB, § 269. Trata-se de um dos poucos textos que Nietzsche reproduz
praticamente em sua totalidade em duas obras distintas, em Além do Bem e do Mal e, posteriormente, em
Nietzsche contra Wagner, no capítulo intitulado: « O Psicólogo toma a palavra ». Peculiar em Nietzsche
contra Wagner é a divisão do texto em 3 partes. As duas correspondendo ao aforismo 269 até o ponto em
que é introduzido o tema do amor, e a terceira ao aforismo 270 de Além do Bem e do Mal, estabelecendo,
assim, uma correlação direta entre o sofrimento do psicólogo e a necessidade da máscara.
66
Além do Bem e do Mal / JGB, § 289.
67
Além do Bem e do Mal / JGB, § 41.
68
A expressão « homens do conhecimento » (Erkennender), associado aos psicólogos, no aforismo 269, é
ambivalente em Nietzsche, do mesmo modo como é ambivalente a pertença de Nietzsche a tal grupo, como
se pode observar na seção 24 da terceira dissertação da Genealogia da moral.
que tanto a determinação do que seja saúde para uma pessoa, e por decorrência, do que
seja medicamento para ela, « depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças,
de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma ». 69
Nesse ponto, considerando diferentes propósitos, forças e também erros,
peculiares ao Espírito Livre, quando observado como « homem do conhecimento »,
também o esquecimento precisará ter sua prescrição redimensionada. De fato, como os
demais homens, ele busca por condições favoráveis de vida. Como um homem destacado,
procura, de forma instintiva, o « seu castelo e seu retiro » precisamente, « onde esteja
salvo do grande número, da maioria, da multidão; onde possa esquecer a regra “homem”,
enquanto exceção a ela » 70. De fato, também ele precisa do esquecimento nesse sentido.
Porém, se também para ele o esquecimento da regra homem corresponde a uma
possibilidade de refúgio, o fato é que ele não pode se dar ao luxo de usufruir desse refúgio.
Com ele o « grande e excepcional » tem como marca capital a sua predestinação para o
conhecimento, evidenciando-se nele uma relação necessária com aquilo que de
preferência ele evitaria. Como homem do conhecimento, ele não pode prescindir do
contato com o que é comum.
Assim, embora possua um « gosto elevado », esse tipo de homem não pode se
isolar frente ao « nojo, fastio, compaixão, tristeza » e ficar, enfim, « quieto e seguro em
seu castelo », protegido pelo esquecimento. Contudo, ele também não pode dizer: « ao
diabo com o bom gosto! A regra é mais interessante que a exceção – que eu, a exceção!
» e, desse modo, descer à planície e, indistintamente, misturar-se à regra. Em síntese, caso
evite, em absoluto, a companhia do homem comum, ele não se mostrará, de fato, como
um « predestinado para o conhecimento » 71, mas ao mesmo tempo, não pode diluir-se na
grande mistura que caracteriza o comum. O paradoxo nele é evidente. Os homens do
conhecimento precisam ser os antípodas « de toda a moderna ideologia e aspiração de
rebanho », mas, ao mesmo tempo, precisam ser os « mais comunicativos ». Aspectos que
pressupõem uma relação profunda deles com o seu tempo, sem, contudo, transformarem-
se em « defensores das “ideias modernas” » 72.
Assim, « jurados e ciumentos da solidão », eles não poderiam, pari passu, evitar
o seu tempo. Antes, precisam estabelecer uma relação com esse tempo que se traduz, nas

69
A gaia ciência, tradução de Paulo Cézar de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 / FW, § 120.
70
Além do Bem e do Mal / JGB, § 26.
71
Além do Bem e do Mal / JGB, § 26.
72
Além do Bem e do Mal / JGB, § 44.
palavras do filósofo, em ter « dentes e estômagos para o mais indigesto » e, de forma
73
peculiar, em « aprender a esquecer » . Nesse ponto, evidencia-se uma segunda
aproximação entre o esquecimento e a ideia de digestão em Além do Bem e do Mal. Em
especial nesse ponto, « aprender a esquecer » não remete a algo que se passa como uma
força inercial ou como um simples ofuscamento de certas lembranças, mas como a
digestão delas. Em especial, nesse caso, o homem do conhecimento precisa digerir o seu
tempo e, como parte desse processo de digestão, separar meticulosamente o que entra em
seu organismo tendo em vista o que seriam nutrientes, que deve ser em parte absorvido
como energia, em parte transformado em matéria orgânica, em novas células e o que
seriam as mazelas desse tempo, que ele deve rejeitar e expelir.
Esse uso da ideia da digestão, como um princípio seletivo, 74 ganha destaque
quando o termo « esquecimento » é associado a uma « bem aventurança ». No momento
em que o filósofo afirma: « Bem aventurados os que esquecem: pois “darão conta”
também de suas tolices » 75. Nessa passagem, que é evidentemente uma paródia do texto
bíblico,76 o termo « dar conta » evidencia o esquecimento como uma ação do corpo, assim
como a digestão é realizada pelo corpo. Uma acepção que remete, ao certo, à obra do
77
filósofo de 1887, como uma « assimilação anímica » e, que é retomada em 1888,
quando ele usa a mesma expressão « de nada dar conta » (von Nichts loszukommen)
indicando com ela impossibilidade de um organismo doente de digerir as impressões
causadas pelas vivências passadas. O que corresponderia a uma fraqueza do « instinto de
defesa e ofensa (ataque) », a uma incapacidade de assimilação. Para esse homem descrito
em Ecce homo e que seria o oposto do « bem aventurado », descrito em Além do Bem e
do Mal, « as vivências calam fundo demais, a lembrança é uma ferida supurante »78.
Servindo-se de seu tempo, os homens do conhecimento não podem prescindir do
fato de que também eles retiram sua flama « daquele fogo que uma fé milenar acendeu,
aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade

73
Além do Bem e do Mal / JGB, § 44.
74
Tal seleção, que envolve o esquecimento, corresponde a ser « forte o bastante para que tudo tenha de
resultar no melhor para [si] » (Ecce homo, « Por que sou tão sábio » / EH, « Warum ich so weise bin », §
3).
75
Além do Bem e do Mal / JGB, § 217.
76
O texto bíblico em questão é o Novo Testamento, onde se tem, no Sermão da Montanha, registrado por
Mateus (A Bíblia de Jerusalém, MT 5, 11, São Paulo, Edições Paulinas, 1973, p. 1288), a ideia de que
seriam bem aventurados os injuriados e caluniados. Considerando essa mesma possibilidade, a da calúnia,
Nietzsche indica como bem aventurado o que esquece, inclusive tais « tolices ».
77
Genealogia da moral / GM II, § 1.
78
Ecce homo, « Por que sou tão sábio » / EH, « Warum ich so weise bin », § 6.
é divina... » 79. Contudo, mesmo sendo herdeiros – diga-se, de uma « vontade pessimista
» 80 – eles devem ser também os esbanjadores dessa vontade. Esbanjadores do que o seu
tempo dispõe para eles. Tais homens precisam alimentar-se de seu tempo e, deixar a seu
corpo, à sua alma, a fina triagem do que é saudável e do que deve ser excretado, para não
perderem a sua tarefa, eles mesmos.

6. Considerações finais
Uma leitura de Além do Bem e do Mal que evidencia os desafios relativos ao futuro
do homem precisa considerar as possibilidades associadas ao “crescimento da planta
homem” e também a figura de Nietzsche que se apresenta como um herdeiro de toda
aquela « necessidade do espírito e tensão de seu arco », como aquele que divisa, no
horizonte, « a seta, a tarefa e, quem sabe? A meta... » 81.
Tal leitura evidencia ainda que aquela meta não indica apenas uma possibilidade
de elevação do homem, mas diferentes modos possíveis de ele se colocar além de bem e
mal. Possibilidades que se confrontam com percalços, frente aos quais não se pode
desconsiderar o papel terapêutico do esquecimento, quer como um estimulante quer como
uma forma de resguardo para os envolvidos naquela tarefa.
Neste ponto, mesmo tendo claro que o questionamento de Nietzsche sobre o futuro
do homem diz respeito ao seu tempo, não se pode hoje deixar de retomar essa indagação,
se ainda dispomos daquela tensão do espírito e do estômago necessários para levar a cabo
aquele tipo de tarefa. Isto porque há uma grande chance de já termos distendido a linha e
danificado o arco que permitiriam divisá-la no horizonte. E também de já termos
comprometido nosso aparelho digestivo. Como nos permite pensar, por exemplo, Davi
Kopenawa, o xamã yanomami da Amazônia brasileira, nas palavras registradas no livro
82
A queda do céu, que tratam da voracidade do homem atual em devorar tudo ao seu
redor, colocando em perigo justamente as possibilidades de futuro que estariam
associadas a ele.

79
Genealogia da moral / GM III, § 24.
80
Aurora « Prefácio » / M, « Vorrede », § 4.
81
Além do Bem e do Mal, « Prefácio » / JGB, « Vorrede ».
82
Davi KOPENAWA & Albert BRUCE A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, tradução de
Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo, Companhia das Letras, 2015. Essa questão, que talvez apenas
aparentemente envolva uma perspectiva diferente daquela apontada por Nietzsche ao referir-se ao futuro
do homem, deve ser retomada em uma outra investigação.

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